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A corrupção nos tribunais carolíngios a partir do Contra Iudices de Teodulfo de Orleães (Gália, final do século VIII). Um problema estritamente moral?
Corruption in Carolingian Courts from Theodulf of Orléans’ Contra Iudices (Gaul, Late 8th Century). Just a moral Problem?
Varia Historia, vol. 40, e24037, 2024
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais

ARTIGO


Received: 18 June 2023

Revised document received: 5 October 2023

Accepted: 2 October 2023

DOI: https://doi.org/10.1590/0104-87752024v40e24037

RESUMO: A partir do Contra Iudices, poema composto por Teodulfo de Orleães no fim do século VIII, este texto se propõe a: i) mapear as práticas consideradas corruptas denunciadas por Teodulfo, levando em consideração também os sujeitos envolvidos, uma vez que falamos de corruptores e corrompidos; ii) levantar o vocabulário empregado para descrever esta corrupção; e iii) tendo em mente questões de autoria, gênero documental e público-alvo, levantar hipóteses dos motivos que levaram Teodulfo a redigir seu poema naquele momento. Parece-me que somente a associação dos valores cristãos à ação dos agentes públicos, como apontada por parte da historiografia, é insuficiente para descrever a preocupação do bispo de Orleães com a correta aplicação da justiça. É possível imaginar que a condenação da corrupção, pelos argumentos trazidos pelo poema, desdobra-se também em outras questões, como a econômica e a política.

Palavras chave: Teodulfo de Orleães, corrupção, Contra Iudices.

ABSTRACT: From Contra Iudices, a poem composed by Theodulf of Orleães at the end of the 8th century, this text proposes to: i) map the practices considered corrupt denounced by Teodulfo, also taking into account the subjects involved, since we talk about corruptors and corrupted ones; ii) underline the vocabulary used to describe this corruption; and iii) bearing in mind issues of authorship, documentary genre and target audience, answer why Teodulfo wrote his poem at that time. It seems to me that only the association of Christian values with the action of public agents, as pointed out by part of the historiography about the performance of Carolingian rulers, is insufficient to describe the concern of the Bishop of Orléans with the correct application of justice. It is possible to imagine that the condemnation of corruption, due to the factors brought by the poem, also unfolds in other issues, such as economic and political ones.

Keywords: Theodulf of Orléans, corruption, Contra Iudices.

Por volta de 798 E.C., Teodulfo (m. c. 821), bispo de Orleães, foi enviado por Carlos I (r. 768-814, dito Carlos Magno), então rei carolíngio, ao sul da Gália com uma missão: atuar como voz e ouvidos da corte nos tribunais. Acredita-se que foi dessa experiência que resultou o Contra Iudices, um longo poema composto por Teodulfo pouco após, no qual este narra as vicissitudes da atuação dos juízes em promover a justiça. Comumente visto pela historiografia como um apelo moral à correta conduta nos tribunais, o escrito do bispo de Orleães se apresenta como um possível testemunho das práticas envolvidas nos julgamentos, entre elas a venalidade das sentenças. Neste sentido, este texto se propõe a: i) mapear as práticas consideradas corruptas denunciadas por Teodulfo, levando em consideração também os sujeitos envolvidos, uma vez que falamos de corruptores e corrompidos; ii) levantar o vocabulário empregado para descrever esta corrupção; e iii) tendo em mente questões de autoria, gênero documental e público-alvo, levantar hipóteses dos motivos que levaram Teodulfo a redigir seu poema naquele momento. Parece-me que somente a associação dos valores cristãos à ação dos agentes públicos, como apontada por parte da historiografia acerca da atuação dos governantes carolíngios, é insuficiente para descrever a preocupação do bispo de Orleães com a correta aplicação da justiça. É possível imaginar que a condenação da corrupção, pelos fatores trazidos pelo poema, desdobra-se também em outras questões, como a econômica e a política. Isto porque, como membro da corte de Carlos I, Teodulfo estava ciente das disputas políticas nas quais o rei estava envolvido – na segunda metade da década de 790 E.C., podemos contar a guerra contra os ávaros, a supressão de revoltas na Saxônia e, ainda, a incursão na Itália em favor de Leão III, que culminaria na coroação imperial de Carlos I em 800 E.C. Do ponto de vista econômico, cujos eventos acima também incorrem, sabe-se que Carlos tinha preocupação com a estabilidade financeira do reino e de seus súditos, como exemplificado pela regulação do preço do trigo no Capitular de Frankfurt de 794 E.C. Então, é possível pensar que os escritos de Teodulfo condenando o suborno dos juízes remetam à lógica de bom ordenamento do reino, incluso aí a amenização de disputas políticas e a previsibilidade do fisco.

Bispo, abade, exegeta bíblico, professor, erudito, poeta, administrador, político. Poucas figuras simbolizam tanto o período carolíngio – especialmente no quadro pintado por parte da historiografia como “Renascença carolíngia”1 – como Teodulfo (lat. T[h]e[o]/[u]dulfus). De fato, entre os intelectuais reconhecidos por terem frequentado a corte de Carlos (entre eles Paulino de Aquileia, Paulo Diácono, Moduíno e Rábano Mauro), talvez apenas Alcuíno de Iorque (m. 804 E.C.) tenha maior proeminência. Talvez. Por isso nos parece tão surpreendente encontrarmos tão poucas informações biográficas a seu respeito. Nenhuma hagiografia sobre ele foi composta, e os dados de sua vida geralmente são obtidos através de seus próprios testemunhos, transcritos em suas obras ou por inferências de terceiros. Em que pese essa dificuldade, imagino que para a melhor compreensão dos problemas a serem explorados neste texto, é importante tomar nota de alguns pontos da biografia de Teodulfo, especialmente de seu “cursus honorum”.

Nascido no Emirado de Córdova, provavelmente em Saragoça, Teodulfo talvez estivesse entre o influxo de migrantes que de lá vieram e passaram a residir na região da Septimânia nos anos 780 E.C. (Freeman, 1992). Bem versado na patrística e nos estudos clássicos, Teodulfo foi reconhecido pela corte real,2 e, a pedido de Carlos I, compôs, entre 791 e 793, o Opus Caroli regis contra synodum – também conhecido como Libri Carolini.3 Tal obra4 lhe trouxe prestígio entre o círculo de intelectuais palatinos5 e junto ao próprio rei, que acabou lhe “recompensando” com a nomeação como bispo de Orleães e abade de Fleury, provavelmente em 797 ou 798 E.C. (Freeman; Meyvaert, 2001).6

Embora a vida de Teodulfo tenha se prolongado até por volta de 821 E.C.,7 interessa-nos esse momento de 798. Isto porque foi neste ano que ele foi designado por Carlos I8 como um dos líderes da missatica que atuaria na porção meridional da Gália.9 Provavelmente tomando em grande parte as uiae Agrippa e Domícia,10 Teodulfo e Leidrado (lat. L[e]/[a]idradus, ou Leidrat), pouco antes de sua consagração como bispo de Lyon, viajaram por cidades como Lyon, Vienne, Valence, Nimes, Béziers, Narbona, Carcassona, Arles, Marselha, Aix-en-Provence e Cavaillon. O objetivo: como missi, ou “enviados reais”, Teodulfo e Leidrado deveriam realizar o controle e a inspeção dos territórios (que compõem a missatica) sob domínio carolíngio, exercendo para isso tarefas variadas, da solução de disputas judiciais à divulgação de decretos reais, e passando até pela inspeção dos mercados.11 Talvez, ao convocar a missatica, Carlos I visasse a inspeção do recém-criado reino da Aquitânia, marcando presença de sua autoridade numa região conhecida por suas disputas identitárias (Bayard, 2014).

Ainda que não existisse uma regra definitiva sobre a escolha dos missi, é seguro afirmar que as missatica eram compostas de dois personagens, em geral um laico e um eclesiástico.12 Teodulfo teria sido, nessa missão de 797-798 E.C., um missus “extraordinário”, segundo a classificação historiográfica (Werner, 1980), isto é, um enviado real atuando fora da circunscrição de sua autoridade13 – atente-se que Orleães dista, ao menos, 630 quilômetros de Narbona, uma das cidades pelas quais Teodulfo passou. De fato, esta é uma característica das missatica do período de Carlos I: recorrer a agentes externos para atuar nas zonas periféricas de seu domínio. A partir do segundo terço do século IX, o recrutamento dos missi dominici por parte da autoridade carolíngia se faria cada vez mais no seio das elites locais (Grunin, 2019).

Pouco após sua atuação como missus,14 Teodulfo compôs um poema inspirado nesta experiência. Intitulado, na edição publicada em 1881 dos Monumenta Germaniae Historica (MGH), como Contra Iudices (“Contra os juízes”),15 os 956 versos – o mais longo dos cerca de 70 poemas compostos pelo visigodo16 – mostram um homem apaixonado pela justiça e pela defesa dos miseráveis.

Embora a questão da autoria na Idade Média seja um tema bastante debatido entre os especialistas do período,17 é seguro afirmar que o Poema 28 se originou da pena de Teodulfo (Schaller, 1962). Seus escritos sobreviveram em 22 manuscritos, divididos em treze famílias. O Poema 28 consta em quatro desses manuscritos (H2, L1, M e P1). O mais antigo, o manuscrito M (Codex Mediol. Ambros. C 74), proveniente de Milão, é datado de meados do século X.18 Existem evidências de que estes textos poéticos, especialmente os de Teodulfo,19 circulavam pela corte, sendo declamados em eventos públicos (Godman, 1985).

Como salutarmente aponta Anthony Musson (2009), analisar historicamente um texto de caráter lírico como os poemas apresenta grandes desafios. É preciso cuidado para não os tomar literalmente e estar consciente das construções retóricas e exigências do gênero. O caso de Teodulfo e do Poema 28 é ainda mais particular. Não só por conta de sua cultura cristã, da qual o bispo de Orleães faz um uso extensivo,20 mas também por sua erudição nos textos clássicos pagãos de língua latina. Não raras são as paráfrases ou interpolações fazendo alusão a Virgílio ou a Ovídio, ou mesmo a ambos!21

Mas em que pesem estas considerações, não é o caso de se tratar o Poema 28 de Teodulfo como uma simples construção narrativa, descolado de qualquer experiência real. Justamente porque acreditamos que foi a partir da vivência do bispo de Orleães como missus que este sentiu a necessidade de registrar por escrito suas experiências e pensamentos. Além disso, Enimie Rouquette (2019) demonstrou como os poemas de Teodulfo são, de facto, um testemunho de sua época. Mais do que uma constatação metodológica, isto também é uma verificação documental: ora, as descrições pormenorizadas dos objetos22 feitas pelo visigodo no Poema 28 – ao ponto de Monod (1887) categorizar o texto de Teodulfo como um “documento arqueológico” – não seriam frutos dessa atuação in loco do bispo?

Ao se endereçar aos juízes em tom moralista, Teodulfo enumerou práticas que ele reputava incondizentes com a realização da justiça. Tendo em mente sua própria experiência nos tribunais, cumprindo a função de missus designado pela corte carolíngia, pode-se dizer que o bispo de Orleães testemunhou e, inclusive, potencialmente, foi alvo de algumas dessas práticas.23

Antes disso, porém, cabem algumas precisões. A primeira é a própria figura dos “juízes” a quem de fato se endereça, independente do título escolhido,24 o poema de Teodulfo. Mencionados costumeiramente na documentação do período carolíngio, principalmente nos capitulários e escritos analistas, os juízes para quem o visigodo fala não são definidos no texto. Nem se pode fazer uma correspondência direta à hierarquia de cargos públicos do período carolíngio. Ora, se tomarmos o quadro de agentes responsáveis pelos julgamentos na sociedade carolíngia, perceberemos que a lista era encabeçada por bispos e condes (Ganshof, 1968) – que não figuram nominalmente no poema do bispo de Orleães – e comportava também outras figuras, como os centanarii e os scabini,25 outrora conhecidos como rachimburgii, e que tinham funções semelhantes a dos iudices (Davis, 2015). Ou seja, a meu ver, Teodulfo não circunscreve seus versos a um agente real específico, mas engloba todos numa categoria “iudices”, daí talvez sua opção de utilizar a palavra censor para também fazer referência a estes personagens.26

E qual o problema que esta abstração coloca? Basicamente, ela dificulta a percepção de quem eram estes agentes, colocando-os numa faixa que vai da alta aristocracia (condes e bispos) aos proprietários de terras locais. Fato que posicionaria os “juízes” num conflito ingrato com a corrupção: altamente dependente das elites locais, o poder das cortes não parecia ser independente de seu contexto imediato. Assim, os resultados das disputas judiciais poderiam ser vistos como condicionados pelos status sociais e das relações das partes envolvidas, conforme demonstrou Marios Costambeys (2007) ao analisar as disputas judiciais na Itália lombarda e carolíngia. A luta contra a corrupção, conforme descrita por Teodulfo, configura-se mais como um apelo do que uma prescrição propriamente dita, principalmente se levarmos em conta como o poema termina: num clamor pelo respeito aos pobres e miseráveis.

Analisar a corrupção no Contra Iudices, porém, não é tão simples como parece. As práticas que consideramos corruptas – isto é, aqueles atos desonestos ou ilegais realizados em troca de dinheiro, bens ou serviços em proveito próprio – são descritas por Teodulfo, porém, o vocabulário empregado para isso dista daquilo que imediatamente vem à mente quando se pensa sobre o assunto nos dias atuais.27

Mesmo se considerado o termo que deu origem à palavra em português, o termo latino corruptio, corruptionis, observa-se que ele não ocorre nenhuma vez no Poema 28.28 De fato, se considerarmos que a palavra tem poucas ocorrências no próprio texto bíblico29 – leitura elementar nos centros de letramento carolíngios, sendo a Vulgata uma referência de vocabulário universal (Riché, 1999) –, não é de se espantar esta ausência.

Para verificar as palavras associadas à prática da corrupção no Contra Iudices, deve-se atentar, então, às descrições feitas por Teodulfo sobre o que ele entendia por isto. Um primeiro passo é verificar os termos mais associados à figura dos “juízes” no texto:30

De fato, vê-se que, tanto para o termo iudex (e suas derivações declinativas conforme demonstra a Figura 1) quanto para o termo censor (e suas derivações declinativas conforme demonstra a Figura 2), termo utilizado por Teodulfo para também fazer menção aos juízes,31 quase inexistem palavras que fazem menção direta à corrupção. A exceção é iniquus, no caso das ocorrências de censor, que pode ser traduzido para o português moderno como algo próximo a “injusto”. Ou seja, neste contexto, a figura mantenedora da justiça nos tribunais carolíngios do final do século VIII teria atrelada a si a ideia de injustiça. Ora, se não há quase menções diretas à corrupção no Poema 28, como analisar, então, este problema no texto? Para isto é preciso retornar ao documento.


Figura 1
: Árvore de palavras mais frequentemente relacionadas a “iudex” no Poema 28 de Teodulfo de Orleães


Figura 2
: Árvore de palavras mais frequentemente relacionadas a “censor” no Poema 28 de Teodulfo de Orleães

Já nos versos iniciais, a preocupação do visigodo estava evidente. Ao aconselhar os juízes a tomarem o caminho do justo julgamento,32 ele declarou: “Que a piedade seja dada nos tribunais, e o zelo à piedade / Para que presentes cruéis não tenham nenhum lugar”.33 A boa ordem nos tribunais seria alcançada pela ação correta dos juízes em demonstrar não só a bondade e o senso de dever na condução dos julgamentos,34 mas também na diligência dos juízes em não aceitar presentes (munera) considerados inadequados.

Este último ponto é, a meu ver, a grande chave semântica para entender a corrupção no Poema 28. Teodulfo estava preocupado com aquilo que poderia obstruir a correta aplicação da justiça, e a venalidade das sentenças ocupa um lugar especial em seu discurso. E, para isso, ele se serviu em diversas passagens das palavras munus, muneris (plural munera) e donum, doni (plural dona).

Em que pese seus sentidos polissêmicos (Niermeyer, 2002), elas podem ser traduzidas também como “presente” – reforçando assim o que frisou Janet Nelson (2010b) sobre a pluralidade da semântica do “dom” à época de Carlos I. E foi nesta acepção que Teodulfo fundamentou seus receios sobre a corrupção dos juízes. Por exemplo, a palavra munus (e suas derivações declinativas) aparece dez vezes no Contra Iudices, sendo a 69ª mais frequente no texto, empatada com as palavras o, ipse, pia e qua – como comparação, o termo “Deus, -i” aparece treze vezes (o 46º mais frequente); “iudex, -icis”, sete vezes, bem como “censor, -is” (ambos situados entre os 96º-121º mais citados).35 Ou seja, na totalidade do discurso poético, a questão dos “presentes” chamou a atenção de Teodulfo. Seria, talvez, por conta da própria experiência do bispo?

Ao descrever suas atividades como missus, entre elas a presença nos julgamentos, ele pontuou assim seus encontros com os litigantes:

Uma grande multidão continuamente nos visitava, pode-se dizer que todas as idades e sexos tinham.

O pequenino, o idoso, o jovem, o pai, a solteira, o solteiro, o maior, o adolescente, a velha, o marido, a esposa, os filhos.

Por que hesito? A plebe ansiosamente ofereceu presentes (munera), pensando que, se dessem, o que queriam seria feito.36

Percebe-se, pelo relato de Teodulfo, que a tentativa de suborno aos juízes provinha dos litigantes de todas as idades e sexos. Mais à frente, ele nos deixa conhecer que também pertenciam a diferentes origens sociais:

Como o grande oferece grandes coisas, o pequeno oferece pequenas coisas, pois eles pensam que dessa maneira eles receberão o que desejam.

[...]

Um rico rapidamente enubla a mente de um juiz com um presente [munera], e porque o pobre não pode trazer um [presente igual], vem tremendo.37

Fossem pobres ou ricos, aqueles que compareciam ao tribunal traziam presentes na intenção de obter sentenças favoráveis a si. Mas que “presentes” seriam estes? Nesse ponto, o texto de Teodulfo é bem peculiar: a minúcia com que ele descreve as potenciais ofertas que seriam feitas aos juízes é espantosa.

Por exemplo, à altura do verso 170, o autor menciona que seriam ofertados “cristais e gemas” do Leste, finas moedas de ouro cunhadas em caracteres arábicos, ou moedas de prata impressas com o selo romano.38 Uma das mais impressionantes descrições, porém, é a do vaso com temas da mitologia helênica: Hércules derrotando Caco, filho de Hefesto (Vulcano no poema), e pinturas de seus doze trabalhos.39 Teodulfo minuciosamente relata sua estampa, composição e, de certa forma, tamanho, dando a impressão de que não seria algo corriqueiramente visto. A estes munera se juntariam outros, como elaborados tapetes multicoloridos enviados por “árabes”, joias, cálices de ouro e peles vindas de Córdova.40 Objetos cuja posse por si só demandariam um outro estudo – afinal, como eles teriam chegado à Gália? Quem poderia tê-los comprado? Como funcionaria este circuito de mercadorias de luxo? Apresenta-se aí uma pesquisa a ser feita.41

Como mencionado acima, não somente os ricos ofereciam presentes. Pessoas em condições financeiras inferiores também o faziam, de acordo com seus rendimentos: vestimentas feitas de lã, como capuzes, meias e luvas, lenços ou tabuinhas de cera.42 Ou seja, a oferta de presentes provinha de diferentes estamentos sociais. Mas esta prática coloca a questão: receber presentes era tão malvisto assim na sociedade carolíngia?

De fato, não. Receber presentes, inclusive, era algo comum, sendo requisito para diversas práticas do período. A troca de presentes fazia parte do circuito político dos séculos VIII e IX, principalmente por seu caráter público (Curta, 2006).43 E o próprio rei, no caso Carlos I, fazia parte deste circuito: em 793 E.C., após suprimir a revolta de Pepino, o Corcunda (m. 811), seu filho, ele convocou uma assembleia em Ratisbona (atual Alemanha), que, segundo Janet Nelson (2010b), foi o provável epicentro da revolta, e distribuiu presentes em ouro, prata e sedas àqueles que não tinham se juntado à rebelião. De forma semelhante, este rei carolíngio distribuiu aos seus magnatas e cortesãos parte do tesouro tomado dos ávaros na campanha contra estes em 796 E.C.

A importância das trocas de presentes, especialmente aquelas provindas da autoridade carolíngia, justificar-se-ia pelo fato do sistema político dessa sociedade ser menos fundado numa realidade territorial, com uma organização burocrática e hierárquica semelhante ao que ocorria no Império Romano, do que nas relações pessoais entre os governantes e os grandes que os cercavam (Devroey, 2003). Assim, a ligação de fidelidade entre estes personagens era cimentada também pela troca de presentes e benefícios (de diversas naturezas) entre eles.

Por isso, a meu ver, a condenação do suborno feita por Teodulfo ganha um caráter mais amplo do que aquele ligado somente ao campo moral, como apontou tradicionalmente a historiografia (Nelson, 2010a). Um presente dado a um juiz não somente corromperia a justiça, um conceito altamente cristianizado à época (Close, 2011; Le Jan, 2001; Lauwers, 2004), mas também poderia desequilibrar o jogo de relações políticas envolvidas, pois criaria tanto um sistema de dependências paralelo àquele imaginado pela autoridade central carolíngia quanto retiraria do circuito de trocas de presentes bens que poderiam ser destinados ao próprio tesouro real ou que competiriam com sua relevância. Isto porque o tesouro real era, à época, um símbolo de prestígio do soberano e um elemento do sistema de governo. Como apontou Jean Pierre Devroey (2003), o próprio tesouro real seria um munus.

Nesse ponto, convém atentar também ao que foi “interditado” por Teodulfo: o bispo de Orleães não condena os presentes per se, mas sim os “maus” presentes, isto é, aqueles que entorpeceriam as decisões dos juízes e os tornariam ávidos para recebê-los: “Eu tenho visto juízes que demoram em julgar, / Mas, admito, são rápidos em aceitar presentes”.44 Teodulfo sinaliza também que a aceitação de presentes poderia não ser feita factualmente pelo próprio juiz, mas sim por aqueles que integravam seu círculo mais próximo. O juiz, por isso, deveria estar atento às palavras de seus servidores e até de sua própria esposa, caso estes demonstrassem intenção de influenciar suas decisões.45

O recebimento de munera pelos juízes parece ter sido uma preocupação bastante difundida no reinado de Carlos I. Em 782, por meio de um capitulário, o então rei carolíngio condenou a venalidade judiciária, inclusive depondo todo conde que aceitasse quaisquer munera.46 Medida que se repetiria, de maneira mais ou menos elaborada, nos Capitularia Admonitio Generalis (789), Capitularia missorum item speciale (802) e no Capitulare ecclesiasticum Caroli magni (805-813) (Mordek; Schmitz, 1987). Estas decisões podem ser corroboradas pela entrada do ano de 802 dos Anais de Lorsch. Neste registro, o então imperador carolíngio, pensando nos pobres súditos que viviam em seu reino e que não podiam obter a devida justiça, determina que a escolha dos arcebispos, bispos, abades, duques e condes não deveria ser feita entre os mais pobres de seus vassalos, já que estes se deixariam tentar pelas munera ou pela necessidade de recebê-las às custas dos inocentes.47

Outros personagens daquele momento também trataram do assunto. Numa carta endereçada a Arno, bispo de Salzburgo, e datada de 799 E.C., Alcuíno descreveu como os munera cegavam os corações dos mais prudentes e pervertiam a palavra dos justos.48 De certa forma, a reflexão sobre o recebimento de presentes parecia, então, uma preocupação constante na corte de Carlos I, que governou entre 768 e 814 E.C.

Retomando um raciocínio exposto anteriormente: ainda que condenando, de forma geral, os presentes recebidos, Teodulfo se destaca das outras críticas aos munera por elencar presentes passíveis de serem aceitos, até por ele próprio:

Considerando isto, eu alegremente tomo as pequenas coisas, dadas não por uma mão cruel, mas por uma afetuosa: nomeadamente, frutas das árvores de um verde jardim, ovos, vinho, pão e alimento para os cavalos.

Tomo também jovens galinhas e pequenos pássaros, porque, embora seus corpos sejam pequenos, são adequados para se alimentar.49

Nota-se, então, que Teodulfo estabelece dois níveis para os munera: o inofensivo e o pernicioso. Tal postura se alinha ao que havia sido estabelecido no Capitulare de Villis, redigido provavelmente poucos anos antes do poema do bispo de Orleães.50 Nele, Carlos I estabeleceu limites e qualidades aos dona, proibindo dar como presentes animais, como cavalos, vacas, porcos, carneiros e bois, e permitindo apenas garrafas, vegetais de jardim, maçãs, galinhas e ovos.51 Ou seja, proibia-se a doação como presente de bens ou itens de alto valor agregado, especialmente numa sociedade majoritariamente rural e que dependia da economia agrícola, trazendo benefícios claros para seus recebedores.

Essa interlocução entre o tema da corrupção dos juízes tratado no Poema 28 de Teodulfo e as decisões dos capitulares demonstra não só uma possível forma de circulação dessas normativas reais, um tema espinhoso no estudo desta documentação (Ribeiro da Silva, 2020), mas também em como o Contra Iudices, observada a ideia de que era um poema que circulava na corte real, como demonstrou Peter Godman (1985), também se propunha como arma política ao reforçar o discurso normativo da autoridade carolíngia.

Estas observações, de certa forma pouco analisadas pela historiografia, dão outros contornos ao discurso de Teodulfo contra o suborno dos juízes. Se para alguns autores, como Nelson (2010a), a condenação da venalidade das sentenças se inscreve exclusivamente no plano da reforma moral da sociedade carolíngia conforme capitaneada por Carlos I, creio que é preciso ter em conta também o fato de que esses bens, retirados da circulação pública e colocados nas mãos de uns poucos personagens como resultado da prática da corrupção, prejudicariam o próprio tesouro real, na medida em que este se beneficiava diretamente da “economia moral” no período.52

Além disso, há outras nuances a serem observadas. Timothy Reuter (1985) demonstrou como a “taxação” de riquezas e seu pagamento assumia diversas formas durante o período carolíngio, de pilhagens à distribuição de presentes. Isso nos leva a crer em como a missão de Teodulfo, retratada em seu poema, também poderia ser uma tarefa para garantir que esses bens não escapassem ao tesouro real carolíngio (Magnou-Nortier, 1994).53 Esta visão ganha um novo sentido quando nos atentamos aos motivos que levam os corruptores a tentar corromper os juízes como descritos por Teodulfo: tentar favorecer a si mesmos nas causas em questão.

No Contra Iudices, os munera são oferecidos em troca de benefícios nas decisões dos tribunais. Os cristais e gemas do Leste, por exemplo, foram ofertados em troca da posse dos campos de uma outra pessoa.54 Já o tapete multicolorido seria dado pela garantia da posse de uma porção de gado em disputa.55 O vaso com temas helênicos, por sua vez, seria dado em troca da falsificação dos documentos de manumissão de escravos.56 Vê-se que as práticas corruptoras estão ligadas aos casos “civis”, nos quais as posses dos bens passam de um sujeito para outro sem a correta observação da justiça, e, por consequência, da autoridade carolíngia. De fato, num universo em que os juízes não são pagos diretamente pela corte, mas também por encargos dos tribunais (além de seus próprios rendimentos, geralmente fundiários), a correta transação garantiria uma estabilidade nos valores recolhidos pelo fisco (Le Jan, 2001; Nelson, 1986).

Possivelmente, o apelo à anticorrupção dos juízes fez parte, sim, da reestruturação moral do reino carolíngio em fins do século VIII. Mas nela também teve parte seus elementos políticos e administrativos. Sua importância se dá não somente pelos ideais de justiça propagados por Carlos I e seu círculo de apoiadores, do qual Teodulfo certamente fez parte, mas também pela importância material do processo. Ao fim e ao cabo, as advertências aos juízes sobre os perigos da corrupção feita pelo bispo de Orleães no Contra Iudices têm como fim a proteção dos mais pobres, aos quais, inclusive, é destinada a porção final do Poema 28 (a partir da linha 893, no qual declara “Namque inopum curam recinat pars ultima habendam”).57 Sabe-se que essa preocupação teve contornos mais amplos do que somente a piedade religiosa da autoridade carolíngia, fundando-se também na própria estrutura administrativa do império: afinal, como demonstra o capitulário de convocação do exército de 807, diversos estratos sociais, inclusive os pauperes, deveriam contribuir prestando o serviço militar.58 Dessa forma, usurpar bens desses “pobres” por meio de atos corruptos era não só moralmente condenável, mas também prejudicaria a própria estrutura do poder carolíngio, econômica e politicamente falando. Mais um indício de que não se deve pensar política, economia e moral de modo estritamente separado ao se analisar a sociedade carolíngia do final do século VIII e início do século IX.59

REFERÊNCIAS

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Notes

1 Para um balanço historiográfico e conceitual da expressão “Renascença carolíngia”, ver Depreux (2002).
2 É incerta a maneira pela qual Teodulfo apareceu na corte de Carlos I. Nikolai Alexandrenko (1970) aponta que talvez Teodulfo tenha sido o líder dos apoiadores de Carlos I no Al-Andalus, e, após a derrota de 778 E.C., ele e sua família de lá tiveram que fugir. Tal ideia justificaria o fato de Teodulfo aparecer tão repentinamente próximo ao trono e em tão alta consideração.
3 THEODULFUS AURELIANENSIS. Opus Caroli Regis contra synodum (Libri Carolini). Monumenta Germaniae Historica (MGH), Concilia 2, Supplementa 1, 1998.
4 Acerca das adversidades que acometeram o Libri Carolini, entre elas a sua não publicação, ver Freeman (2003).
5 Embora as obras tenham continuado mesmo após a morte de Carlos I em 814, sabe-se que o Palácio de Aquisgrana (ale. Aachen) já tinha grande parte de sua construção pronta em 798. Acerca deste palácio, ver Nelson (2002).
6 Não há registro da data exata da nomeação de Teodulfo como bispo e abade. Sabe-se apenas que: i) ela não se deu antes de 794, uma vez que ele não consta na lista de presentes do Concílio de Frankfurt de 794, tal como Paulino de Aquileia – sobre este documento, ver Tsuda (2019); ii) ela não pode ter ocorrido após 798, uma vez que Alcuíno, numa carta datada daquele ano e endereçada a Carlos I, nomeia Teodulfo como “episcopis doctoribus et magistris” (Tignolet, 2019; 2023). Talvez Carlos I tenha nomeado Teodulfo como bispo de Orleães no mesmo movimento em que fizera de Alcuíno, abade de Marmoutier, em Tours, em 796 E.C.
7 Em 817 E.C., Teodulfo seria deposto de seus cargos eclesiásticos e exilado por supostamente ter apoiado o levante de Bernardo da Itália (m. 817) contra seu tio e imperador, Luís I (m. 840), ocorrido naquele mesmo ano. Sobre a deposição de Teodulfo, ver Noble (1981).
8 Trad. livre do autor: “Nulli vi studiisque piis armisque secundus / Rex dedit hanc Carolus, primus ad omne bonum” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: Monumenta Germaniae Historica (MGH), Carm. 28, ll. 101-102, 1881).
9 Trad. livre do autor: “Praefectura mihi fuerat peragenda tributa / Resque actu grandes officiumque potens” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 99-100, 1881).
10 O site Omnes Viae (https://omnesviae.org/) é um útil recurso para a visualização de possíveis roteiros de viagem que fizeram uso das estradas romanas, particularmente para o período pré-Moderno.
11 A bibliografia sobre os missi dominici é bastante ampla. Numa lista, não exaustiva, indicações que não podem faltar incluem os seguintes nomes: Werner (1980); Hannig, (1984); Gravel (2007); Mckitterick (2009); Jégou (2010); Vocino; West (2019); Grunin (2019).
12 O que reforçaria a ideia de que Teodulfo já era bispo à época desta missão, sendo ele o personagem eclesiástico, e Leidrado, o laico.
13 Os contornos geográficos das missatica suscitam diversas interrogações. Se alguns textos as mencionam de maneira explícita (como é o caso do poema de Teodulfo que será analisado a seguir), outros não apresentam mais do que informações esparsas sobre os locais onde atuaram os missi dominici. Estudos recentes demonstram que uma grande parte dos agentes efetuavam suas atividades num raio de 100 a 125 quilômetros dos locais onde exerciam autoridade (Grunin, 2019). Um ponto de investigação para o futuro, ainda não explorado devidamente pelos especialistas, é discernir se existem intersecções entre essas áreas de atuação dos missi e, por exemplo, as propriedades familiares deles.
14 A datação do poema é incerta, justamente pela imprecisão da data da missão a qual Teodulfo foi incumbido. Sabe-se, porém, que ele foi composto não muito após sua realização. Isto porque o Poema 32, Ad regem (“Ao rei”), endereçado a Carlos I, foi redigido antes da coroação imperial deste no Natal de 800 E.C. – justamente pelo uso da denominação “rex” para se referir ao monarca carolíngio. Ver DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 32, 1881.
15 O nome do Poema 28 é controverso. Ernst Dümmler, editor dos poemas de Teodulfo nos MGH em 1881, denominou-o “Contra Iudices” por ser este o título encontrado num dos manuscritos do documento (P1, Codex Paris. Lat. 18557, datado do século X. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b100352148). No entanto, sua primeira edição conhecida, feita por Pierre Daniel em 1598, o nomeia como Paraenesis ad iudices (que pode ser traduzido como algo próximo a “Conselho/Exortação aos juízes”, principalmente se levarmos em conta a raiz grega da palavra paraenesis, costumeiramente utilizada num sentido moral ou religioso). Tradição que perdurou na edição de Jacques Sirmond (Theodulfi Aurelianensis Episcopi Opera. Paris, 1646), republicada na Patrologia Latina de Jacques-Paul Migne (PL 105, 191-376). Num artigo de 1887, Gabriel Monod (1887, p. X) justifica sua preferência pelo antigo título dizendo. Trad. livre do autor: “car le poème est une exhortation et non une invective”. Peter Godman (1985), em seu livro dos anos 1980, chega até a advogar um novo título para o poema: De iustitia, justificando que sua mensagem não estava limitada ao final do século VIII, mas era um tratado atemporal sobre o tema. Dito isso, embora eu, pessoalmente, prefira atribuir o título De iudicibus (“Sobre os juízes”) ao Poema 28 – como Hagen o fizera numa edição paralela publicada em 1882 (Theodulfus Aurelianensis; Hagen, 1882) – para fins de praticidade e clareza, ao se referir ao Poema 28 neste texto, utilizarei a versão consagrada pela edição dos MGH: Contra Iudices.
16 A opção por atribuir a Teodulfo o termo visigodo vem não só de sua história ligada à Península Ibérica e ao seu nome – composto das partículas Teo, como em Teodorico, nome comum de autoridades visigodas ao longo do séculos V e VI; e Ulfus, cujo significado remete a lobo e é também comum em nomes da região, como Ataulfo; sobre antroponímia dos reinos pós-romanos, ver Le Jan (2003) –, mas também pela maneira como o próprio Teodulfo se denomina. Nos versos 137 a 140, ao narrar sua chegada a Narbona, ele comenta: “Logo chegamos a sua morada, a bela cidade de Narbona, onde uma multidão feliz me encontrou, remanescente do povo gótico [Getici populi], e também uma multidão de hispânicos [Hespera], que estavam felizes por eu, um oficial, ser do seu sangue [Me consaguineo fit duce laeta sibi].” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 137-140, 1881, grifo nosso).
17 A este respeito, ver Ranković; Budal (2012).
18 DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, 1881.
19 Ainda que Teodulfo utilizasse apenas um tipo de métrica em seus versos, ele escreveu diferentes gêneros de poesia, como poemas epistolares, odes, epigramas e fábulas.
20 Tome-se, por exemplo, os versos 18-86: Teodulfo estabelece o modelo de atuação dos juízes com base nas escrituras, citando Moisés, Samuel e Josias (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, 1881).
21 Provavelmente é sob essa influência “clássica” que Teodulfo utiliza o termo censor e suas derivações, cuja origem remonta ao oficialato romano abolido em 22 a. E.C., para fazer analogias ao iudex carolíngio. Segundo Jaakko Suolahti (1963), censores tinham, entre outras responsabilidades, o dever de garantir a “moralidade pública”. O próprio termo iudex dividia espaço no vocabulário de cargos carolíngios com o comes, sendo o primeiro paulatinamente substituído pelo último (Hammer, 2018).
22 A precisão com que Teodulfo descreve um objeto, oferta de suborno, nos versos 183-199, faz-nos pensar se ele não o viu pessoalmente. Trataremos dessa ocasião mais à frente no texto.
23 Em mais de uma ocasião, Teodulfo questiona se ele também não sucumbiria às tentações pelas quais passavam os juízes, como em: “Muitas vezes, quando repreendo os iníquos sobre tais assuntos, eles dizem secretamente para si mesmos que eu também sou da mesma espécie. Muitas vezes, embora eu não seja assim, sou suspeito de ser. Embora eu possa ter muitos defeitos, estou livre desse”. (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 93-98, 1881).
24 Ver nota 15, supra.
25 Acerca dos scabini, ver Estey (1951); Hicklin (2020).
26 Ver nota 21, supra.
27 Ao pesquisar as tendências no Brasil da palavra corrupção no Google, vê-se que elas majoritariamente se ligam ao tema da política. Ver: https://trends.google.com.br/trends/explore?date=all&geo=BR&q=corrup%C3%A7%C3%A3o.
28 A bem da verdade, uma variação, que ocorre apenas uma vez, está presente: o adjetivo corruptus. Mas ele serve para descrever as más condições de tempo no percurso de Teodulfo como missus. Trad. livre do autor: “Aequoris insani fera quas vicinia laedunt / Aere corrupto et tabidus efflat odor.” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 155-156, 1881, grifo nosso). Os cálculos de ocorrências de palavras foram feitos utilizando o Online Text Analysis Tool, disponível em: https://www.online-utility.org/text/analyzer.jsp.
29 Contam-se 19 ocorrências, incluindo-se aí as formas declinadas. Corruptio (3) = Sab 14: 12, Sab 14: 25; 1Co 15: 20; Corruptioni (1) = Jó 33: 22; Corruptionis (3) = Dn 3: 92, Rm 8: 21, 2Pe 2: 19; Corruptione (2) = 1Co 15: 42, 2Pe 2: 12; Corruptionem (10) = Jó 33: 24, Sl 15: 10, Sl. 29: 10, At 2: 27, At 2: 31, At 13:34-37, Gl 6: 8, 2Pe 1:4. Estes números consideram a Nova Vulgata (1986). A versão Clementina, aprovada no concílio de Trento em 1546, apresenta 27 ocorrências do termo corruptio e seus derivados – o que indica que houve mudanças na interpretação do texto bíblico entre a versão do século XVI e a versão do século XX. De outro modo, não é fácil precisar quais exatamente eram os textos bíblicos utilizados pelos autores ao longo da Idade Média, como pontuaram Pierre Riché e Guy Lobrichon (1984). Ainda que o caso de Teodulfo seja peculiar: não menos do que seis versões da Bíblia feitas sob influência do bispo de Orleães chegaram até nós. Ainda assim, como assinalou Caroline Chevalier-Royet (2007), é difícil confirmar a existência de um texto “teodulfiano” puro, muito em razão das diferenças entre os manuscritos sobreviventes.
30 Os gráficos seguintes, bem como as estatísticas de ocorrência, distribuição e contexto das palavras que compõem o Poema 28 de Teodulfo de Orleães foram feitos com base na ferramenta Voyant Tools (https://voyant-tools.org/), um ambiente de leitura e análise de texto desenvolvido por Stéfan Sinclair e Geoffrey Rockwell.
31 Ver nota 21, supra.
32 Trad. livre do autor: “Iudicii callem censores prendit iusti” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, l. 1, 1881).
33 DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 15-16, 1881. Trad. livre do autor, com apoio na proposta de Alexandrenko (1970): “Iudicio pietas, pietati industria detur / quo teneant nullum munera saeva locum”.
34 Embora a palavra latina pietas, -atis tenha dado origem à palavra piedade em português, e no latim medieval seja carregada de sentidos religiosos (que perduram até hoje), não se pode esquecer do seu uso também no latim clássico, onde possuía sentido ligado ao “sentimento de cumprir os deveres relacionados à família, à pátria e aos deuses”, daí sendo inclusive um sinônimo para patriotismo (Gaffiot, 2000). Dada a formação de Teodulfo, já discutida mais acima, parece-me que foi por justamente trazer esse duplo sentido cívico-religioso que o visigodo escolheu empregá-la.
35 Em seus 956 versos, o Poema 28 totaliza 6.407 palavras.
36 DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 163-168, 1881. Trad. livre do autor: “Magna catervatim nos contio saepe frequentat /Aetas quod dicat sexus et omnis habet / Parvulus, annosus, iuvenis, pater, innuba, celebs / Maior, ephoebus, anus, masque, marita, minor. /Quid moror? instanter promittit munera plebes, / Quodque cupit factum, si dabit, esse putat”. Ver também Alexandrenko (1970).
37 DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. ll. 243-244; 313-314, 1881. Trad. livre do autor: “Magna ut maiores, sic promunt parva minores, / Dum fore quae cupiunt hac sibi sorte putant”; “Iudicis ingenium cito turbat munere dives, / Hoc qui ferre nequit, it tremebundus inops”. Ver também Alexandrenko (1970).
38 Trad. livre do autor: “Hic et cristallum et gemmas promittit Eoas, / Si faciam, alterius ut potiatur agris. / Iste gravi numero nummos fert divitis auri, / Quos Arabum sermo sive caracter arat, / Aut quos argent Latius stilus inprimit albo” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 171-175, 1881).
39 Trad. livre do autor: “‘Est mihi vas aliquod signis insigne vetustis, / Cui pura et vena et non leve pondus inest, / Quo caelata patent scelerum vestigia Caci, / Tabo et stipitibus ora soluta virum; / Ferrati scopoli variae seu signa rapinae, / Humano et pecudum sanquine tactus ager. / Quo furor Herculeus Vulcanidis ossa retundit, / Ille fero patrios ructat ab ore focos / Quove genu stomachum seu calcibus illia rumpit, / Fumifluum clava guttur et ora quatit. / Illic rupe cava videas procedere tauros, / Et pavitare iterum post sua terga trahi. / Hoc in parte cava planus cui circulus ore est, / Nec nimium latus signa minuta gerens, Perculit ut geminos infans Tirintius angues, / Ordine sunt etiam gesta notata decem. / At pars exterior crebro usu rasa politur / Effigiesque perit adtenuata vetus, / Quo Alcides, Calidonque amnis, Nessusque biformis / Certant pro specie, Deianira, tua. / Inlita Nesseo feralis sanguine vestis / Cernitur et miseri fata pavenda Lichae. / Perdit et Anteus dura inter brachia vitam, / Qui solito sterni more vetatur humo” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 179-202, 1881).
40 As descrições minuciosas que Teodulfo fez dos objetos possivelmente ofertados como suborno aos juízes nos tribunais nos faz questionar não se ele os viu propriamente, mas quando. O fato de muitos desses objetos estarem ligados ao mundo “árabe”, como as moedas de ouro com caracteres arábicos, as joias do Leste, os tapetes e as peles vindas de Córdova, então sob domínio muçulmano, permite-nos questionar se essas não são lembranças reminiscentes de um momento em que o visigodo viveu no Al-Andalus. E se, em caso positivo, elas invalidariam os relatos do bispo de Orleães sobre os tribunais carolíngios. Creio que não. Os objetos, nesse caso, assumiriam o papel de reforçar a argumentação de Teodulfo. Ao mesmo tempo, o autor ainda oferece outros exemplos de objetos, com valor agregado mais baixo, como se verá a seguir.
41 O que nos coloca a questão se o circuito de longa distância dos objetos de luxo no Ocidente alto-medieval era tão irrelevante assim quanto argumentou Chris Wickham (2005). Obviamente, o poema não nos dá a escala das transações que envolvem estes artigos – se são mais recorrentes que outros objetos, por exemplo, uma vez que a argumentação de Teodulfo se dá numa dimensão qualitativa.
42 Trad. livre do autor: “Linea quit potis est, qui non, fert lanea dona, / Tengmen et hic capitis, hic pedis, ille manus. / Quo facies humore levi palmasque solemus / Tergere, quis dandum textile munus habet. / Scrinia danda parant alii, nec defuit ille, / Caereolas rotulas qui dare vellet ovans” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 247-252, 1881).
43 Embora para Curta (2006) ela não formasse necessariamente uma economia do dom e contradom de acordo com os modelos propostos por Bronislaw Malinowski e Marcel Mauss.
44 DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 389-390, 1881. Trad. livre do autor: “Vidi ego censores ad iuris munia tardos, / Munera, nam fateor, ad capienda citos”.
45 Sobre o cuidado com os servidores. Trad. livre do autor: “Nec minor in propriis cura est adhibenda ministris, / Quis comitatus ines, sunt prope quique tibi: / Ne fera pestis eos, illi tua pectora laedant, / Et tua conmaculent intima tabe sua. / Qui ut capias, ut possint sumere sumas, / Cogent, si poterint, tu vigil esse stude” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 715-720, 1881). Sobre o cuidado com a esposa: Trad. livre do autor: “Esto et sollicitus propriae de parte iugalis, / Ne mentem maculet inliciendo tuam. / Oscula quae genibus, manibus, colloque, genisque / Blanda dabit, miscet lenia verba quibus, / Sueta preces tali proprias armare veneno, / Armat ut architenens inpigra tela suo” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 691-696, 1881).
46 Trad. livre do autor: “De praemiis et muneribus: ut munera super innocente nullus accipiat, et si quis hoc facere praesumpserit, nostrum bannum solvat. Et si, quod absit, forte comis hoc fecerit, honorem suum perdat” (BORETIUS, Alfred; KRAUSE, Victor. Capitularia regum Francorum. In: Monumenta Germaniae Historica (MGH), Capit. I, n. 26, 1883).
47 Trad. livre do autor: “802. Eo anno demoravit domnus Caesar Carolus apud Aquis palatium quietus cum Francis sine hoste; sed recordatus misericordiae suae de pauperibus, qui in regno suo erant et iustitias suas pleniter abere non poterant, noluit de infra palatio pauperiores vassos suos transmittere ad iustitias faciendum propter munera, sed elegit in regno suo archiepiscopos et reliquos episcopos et abbates cum ducibus et comitibus, qui iam opus non abebant super innocentes munera accipere, et ipsos misit per universum regnum suum, ut ecclesiis, viduis et orfanis et pauperibus et cuncto populo iustitiam facerent” (PERTZ, Georg H. Scriptores (SS) 16, Annales aevi Suevici. In: Monumenta Germaniae Historica (MGH), Annales Laureshamenses, a. 802 (XXXV), 1925).
48 Trad. livre do autor: “Munera excecant corda prudentum, et subvertunt verba iustorum” (DÜMMLER, Ernst. Epistolae Karolini aevi II, 4. In: Monumenta Germaniae Historica, Epistolae (MGH), Ep. 186, 1925).
49 DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 283-288, 1881. Trad. livre do autor: “Haec ego pertractans sumebam parva libenter, / Quae non saeva manus, cara sed illa dabat: / Scilicet arboreos fructus hortique virentis, / Ova, merum, panes, cornipedumque cibos./ Sumpsimus et teneros pullos, modicasque volucres, Corpora sunt quarum parva, sed apta cibis”. Ver também Alexandrenko, 1970.
50 O Capitulare de Villis ( BORETIUS, Alfred; KRAUSE, Victor. Capitularia regum Francorum. In: MGH, 1883) é um escrito devotado à administração das propriedades reais provavelmente publicado entre 792 e 800 E.C. Há uma extensa literatura sobre a natureza deste documento e dos problemas que ele evoca, entre os quais se pode citar: Campbell (2010); Guérard (1857); Iu-Nortier (1998); Marigliano (2013).
51 Trad. livre do autor: “Ut non praesumat iudices nostram familiam in eorum servitium ponere, non corvadas non materia cedere nec aliud opus sibi facere cogant, et neque ulla dona ab ipsis accipiant, non caballum non bovem non vaccam non porcum non berbicem non porcellum non agnellum bem aliam causam, nisi buticulas et ortum, poma, pullos et ova” (BORETIUS, Alfred; KRAUSE, Victor. Capitularia regum Francorum. In: MGH, Capit. I, n. 32, c. 3, 1883). Não há evidência de que Teodulfo, embora já estivesse presente na corte de Carlos I na década de 790 E.C., tenha participado na elaboração do Capitulare de Villis. Tal ideia merece uma investigação mais aprofundada no futuro.
52 A “economia moral”, para se referir ao circuito de bens dados como presentes, é aqui entendida em sua forma mais simples e direta: o presentear como ato fundador de uma dívida moral. Conforme observou Devroey (2003), seguindo as observações antropológicas de Marcel Mauss, dar um presente não é somente uma maneira de compartilhar o que se tem, mas também de instrumentalizar esta posse. No seio das elites, esse sistema de presentear e receber em troca teria engendrado uma relação de dominação, uma vez que nem sempre é possível para um sujeito retribuir o presente recebido, restando assim a dependência do benfeitor.
53 Obviamente, não se trata de pensar um sistema fiscal como nas proporções estabelecidas por Jean Durliat (1990). Mas é inegável que, mesmo para os autores mais favoráveis às teses da autonomia camponesa, como Wickham (2005), o advento dos carolíngios transformou (ou revitalizou, dependendo da interpretação) o fisco real. É possível que este processo tenha se dado em conjunto com a própria transformação da exploração da terra, cujas medidas encontradas nos polípticos são testemunhos exemplares. Estes inventários detalhados dos bens fundiários de um grande proprietário, laico ou eclesiástico, e cujo exemplo mais antigo (datando do ano 800) é justamente a descrição das propriedades do bispado de Salzburgo e da abadia de Wissembourg (Devroey, 2003), aparecem justamente no período carolíngio. Ou seja, é possível supor uma transformação do espaço rural carolíngio, no qual o desenvolvimento dos latifundii (ale. Grundherrschaft, fr. grand domaine, ingl. great estate) é uma das características.
54 Trad. livre do autor: “Si tamen adquirat predia, rura, domos” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, l. 176, 1881).
55 Trad. livre do autor: “Pro quibus ista paro congrua dona dare. / Pro vitulis vitulum, pro tauris offero taurum, / Pro vacca vaccam, pro bove dono bovem” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 218-220, 1881).
56 Trad. livre do autor: “Pars numerosa subest populi, matrum atque virorum, / Infantum, iuvenum, sexu ab utroque simul: / Quos pater et genetrix sub libertatis honore / Liquere, ex illo libera turba manent. / Quorum si cartas vitiem, vase ille vetusto, / His ego, tu donis mox potiere meis” (DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 205-210, 1881).
57 DÜMMLER, Ernst. Antiquitates, Poetae 1. In: MGH, Carm. 28, ll. 893, 1881. Trad. livre do autor: Pois a última parte canta que se deve ter cuidado com os necessitados.
58 BORETIUS, Alfred; KRAUSE, Victor. Capitularia regum Francorum. In: MGH, 1883.
59 Minha reflexão se apoia naquelas desenvolvidas por Marcelo Cândido da Silva (2014) e Jean Pierre Devroey (2014), cada um, a seu modo, também se ocupou em pensar como a economia carolíngia estaria “imbricada” de valores externos aqueles comumente associados ao mercado em sentido moderno, entre eles a moral cristã.

Author notes

Editora Responsável: Mariana de Moraes Silveira


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