RESUMO: Voltado para a paróquia de N. S. do Pilar do Iguaçu, no recôncavo da capitania do Rio de Janeiro, em torno do período de 1770 a 1810, o artigo analisa como um pardo forro, Luciano Gomes Ribeiro, tornou-se senhor de um engenho com 155 escravos, constituindo-se em elite escravista. Portanto, a elite escravista era parda mestiça. Além disso, o trabalho ressalta que o pardo forro governava terras nas quais residiam lavradores senhores de poucos escravos amiúde também desprovidos de terras. A ascendência familiar do capitão de tropas auxiliares de pardos libertos lhe viabilizou o governo de sua casa e o da comunidade política do Pilar do Iguaçu. Ele era o mais desigual daquela sociedade ancorada no mar da desigualdade da escravidão de antigo regime. Para realizar o estudo, utilizamos registros paroquiais de batismo e óbito, e alguns testamentos e documentos administrativos.
Palavras chave: Pardos forros, escravidão, família.
ABSTRACT: This article focuses on the parish of N. S. do Pilar do Iguaçu, situated in the Recôncavo area of the Captaincy of Rio de Janeiro, during the period from 1770 to 1810. It examines how Luciano Gomes Ribeiro, a mestizo freedman, ascended to become the owner of a mill along with 155 slaves, thereby integrating into the slave-owning elite. This case study reveals that the slave-owning elite included individuals of mixed ancestry. Additionally, the analysis highlights that Ribeiro governed lands where farmers, who typically owned slaves, resided. The family background of Ribeiro, serving as a captain of troops and an auxiliary to freed mestizo individuals, enabled him to manage both his household and the political community of Pilar do Iguaçu effectively. He emerged as the most prominent figure in a society deeply entrenched in the inequalities characteristic of the old-regime slavery system. The methodology for this study encompassed an examination of parish baptism and death records, alongside various wills and administrative documents.
Keywords: Pardo freedmen and women, slavery, family.
DOSSIÊ: ESCRAVIDÃO, COTIDIANO E DINÂMICAS DE MESTIÇAGENS NOS MUNDOS IBÉRICOS (SÉCULOS XVI-XVIII): ESPAÇOS, MOBILIDADE, ACORDOS E CONFLITOS
Capitão Luciano Gomes Ribeiro. A elite escravista era parda (N. S. do Pilar do Iguaçu, Rio de Janeiro, c. 1770-1810)
Captain Luciano Gomes Ribeiro. The slave-owning elite was parda (N. S. do Pilar do Iguaçu, Rio de Janeiro, c. 1770-1810)
Received: 8 May 2024
Revised document received: 15 November 2024
Accepted: 4 September 2024
Entre 1774 e 1809, Luciano Gomes Ribeiro fez batizar 43 escravos na paróquia de Nossa Senhora do Pilar do Iguaçu, no fundo do recôncavo da cidade do Rio de Janeiro. Nas cerimônias, Luciano foi reconhecido como capitão, às vezes como senhor de engenho, outras como morador no Engenho da Posse. Capitão era uma importante patente militar e senhor de engenho um título de distinção social daquela sociedade escravista de antigo regime tropical. Entre aqueles 43 batismos, não havia adultos de origem africana que comumente eram batizados na cidade do Rio de Janeiro ou em suas paróquias rurais (Soares, 2000). Batizar apenas inocentes, todavia, não significa que Luciano não frequentasse o próspero mercado atlântico de cativos entre fins do século XVIII e inícios do XIX, contexto da análise. Então, a cidade carioca, a cerca de 25 quilômetros do Pilar, abrigava o maior porto de desembarque de cativos africanos das Américas e era a principal praça mercantil da monarquia portuguesa. Portanto, Pilar e as demais paróquias guanabarinas estavam perfeitamente integradas ao mercado atlântico (Demetrio, 2017; Florentino, 1995; Fragoso, 1992, 2015; Machado, 2020; Sampaio, 2003).
Por volta de 1775, Luciano recebeu carta patente de capitão dos auxiliares de homens pardos libertos. Porém, em Pilar do Iguaçu, entre 1770 e 1809, quase não se disse que ele era um pardo liberto. Embora amiúde houvesse mestiços egressos do cativeiro entre senhores que mandavam batizar escravos, os padres redatores de assentos de batismo tendiam, a depender do tempo de vida em liberdade, das relações de parentesco e da inserção social etc., a ocultar o antepassado escravo se a pessoa constasse no batismo na condição senhorial. Por isso, Luciano não estava pardo em nenhuma daquelas vezes em que fora assinalado como senhor de escravos. Na localidade, esse ocultamento fora acintoso em seu caso porque ele era diferenciado por ser capitão, senhor de engenho e de muitos escravos, e, principalmente, pela família que integrava.
Todavia, em 24 de julho de 1802, na mesma freguesia do Pilar, tornou-se padrinho de Justiniano, filho de Xavier de Nação e de Eva Crioula, escravos de Manoel Antônio Vieira. Nessa circunstância, como padrinho e compadre de escravos, Luciano foi registrado pelo vigário como “pardo livre”. Sua proeminência social não foi óbice para que fosse chamado de pardo e se acompadrasse com um escravo africano e uma crioula. Senhor de escravos pretos e pardos, crioulos e africanos, padrinho e compadre escravos de outro senhor, como o imponente Luciano lidava com os sacramentos batismais e matrimoniais de seus escravos, com a escravidão e com a liberdade? Como se tornou elite escravista? O que a trajetória de um homem oriundo da escravidão e de uma importante família pode nos dizer sobre outros pardos mestiços?
A nossa hipótese é que ser um Gomes Ribeiro e governar escravos e outros subalternos forros ou livres fizeram toda diferença. Luciano integrou uma linhagem que estava presente na capitania desde fins do século XVI, encabeçada entre meados do século XVII e inícios do XVIII pelo capitão-mor reinol Francisco Gomes Ribeiro (doravante Francisco I).1 Esse capitão-mor era tio de seu homônimo reinol (doravante Francisco II), homônimo que era apenas capitão, não capitão-mor. O sobrinho, provavelmente chegado ao Rio de Janeiro em inícios dos setecentos e falecido solteiro em 1763, é o pai do pardo Luciano Gomes Ribeiro e de outros mestiços pardos forros tidos com diferentes mulheres: Isabel Joaquina de Santana, Jacob e Timóteo.2 Em fins dos setecentos, coube a Luciano, em grande parte, dar continuidade à linhagem senhorial, seguindo, efetivamente, o projeto de seu pai Francisco II. Sendo assim, pardos egressos da escravidão filhos de elites agrárias modelaram uma hierarquia social costumeira fundada em laços parentais, clientelares, na escravidão e na posse de terras e de engenhos. Os senhores pardos participaram de tudo isso porque também foram construtores da escravidão e das desigualdades.
Vistas as questões a serem contempladas neste artigo, para realizá-lo utilizamos cinco livros de registros de batismo de escravos, quatro de livres e dois de óbito da aludida freguesia, além de alguns documentos administrativos. Oriundos do acervo documental do Arquivo da Diocese de Petrópolis, os livros paroquiais não contêm numeração regular de páginas e, por isso, além da referência documental em notas de pé de página, as datas aludidas no corpo do texto e no próprio rodapé também servem de referência documental. Os livros manuseados são os de registros de batismo de escravos para os anos de 1719 a 1752, 1760 a 1772, 1772 a 1783, 1784 a 1795 e 1791 a 1809.3 Os de batismo de livres manuseados são os dos anos de 1714 a 1756, 1751 a 1766, 1766 a 1772 e 1786 a 1807.4 Os de óbito abarcam os períodos de 1759 a 1771 e 1793 a 1808.5
Luciano diferenciou-se da grande maioria dos “pardos”, “pretos”, “brancos”, “mulatos”, entre outros agentes sociais assim categorizados em sua época,6 livres ou libertos, porque ele era de uma importante família, senhor de engenho, de terras e de muitos escravos. Mas ele tinha consciência desses atributos sociais, em especial o de que ser senhor de vários escravos o colocava no topo daquela sociedade ancorada na escravidão?
Em 1778, em requerimento à rainha de Portugal, o “capitão Luciano Gomes Ribeiro e seus sócios” disseram que possuíam um engenho “chamado do Coito, sito no Recôncavo do Rio de Janeiro”. O engenho estava em terras que “há 126 anos lhes foram concedidas por carta de sesmaria dada a seus antepossuidores, em 5 de maio de 1650”. Porém, certo Romão de Bastos Caldas teria afirmado que havia terras devolutas no engenho que poderiam lhe ser cedidas. Com esse argumento, em 1771, Caldas pedira e recebera uma nova sesmaria ao vice-rei do Estado do Brasil. Por essa razão, continua a alegação de Luciano Gomes Ribeiro, fez-se medição nas terras sem respeitar seus “verdadeiros rumos e todos os mais termos recomendados em Direito”.7
As alegações de Luciano também lembraram à rainha de que ele era senhor de uma “laboriosa e importante fábrica do Engenho (...) de 155 escravos de trabalho, 244 cabeças de gado vacum [sic.] e 17 de cavalar”. “Visivelmente”, a fábrica de engenho necessitava “de uma grande extensão de terras, e principalmente de matos”, sem os quais não era possível às “semelhantes fazendas na América” terem “substância alguma”, cabendo à rainha “proteger” os matos e reservas necessários ao labor e à expansão dos engenhos. A percepção de Luciano sobre os engenhos como partes inerentes à totalidade da América escravista dava relevo a sua própria fábrica, cujas atividades evitavam a “decadência” e o “prejuízo do Real contrato dos dízimos”, pois a sua unidade recolheu, “só no decurso de 8 anos, nos trapiches daquela cidade” do Rio de Janeiro, “343 caixas líquidas do dízimo com 10.857 arrobas de açúcar branco e fino e 2.389 arrobas do inferior”.8
Na verdade, o engenho, como disse o pai de Luciano em testamento, tinha, na margem de um rio, “um guindaste” para embarcar suas “caixas” que mandava pelo “rio abaixo para se carregarem” à cidade do Rio. Economicamente, o engenho constituía um complexo de produção-escoamento desde a época da compra original. Antes de ser de Francisco II, o padre Marcos Gomes Ribeiro realizara a compra do engenho, cedendo-o ao irmão. Destarte, enfaticamente, Luciano afirmou no requerimento que “aquelas terras” não “podiam considerar-se devolutas”, como erroneamente informaram ao “vice-rei”, o que o levou a recorrer à rainha.9 Como é possível observar, Gomes Ribeiro concebia os frutos do seu engenho como um serviço geracional prestado à manutenção da monarquia e, em troca, esperava receber mercê.
Para atingir seu intento, acrescentou outros atos de fala a seu favor. Salientou que, além das prestações de serviço do seu engenho do Coito, também chamado Engenho da Posse10, as terras também eram “ocupadas pelos numerosos lavradores, que foram expulsos das mesmas” devido à petição de Caldas ao vice-rei. Para reforçar esse ponto, Luciano reportou-se ao “maior interesse e pública utilidade da sua fábrica, a que Vossa Majestade quis atender na Ord. do Livro 4, título 43, δ 14 [...] mandando literalmente = [sic.] haver respeito ao dar roças, que por pouco proveito particular, e de pouca dura [duração], não se faça dano geral aos moradores dos lugares, ou a algum deles em particular”. Nessa alegação, que sublinhava a expulsão de lavradores, ele realçava o “dano geral dos moradores”, tendo em mente os vários produtores de cana e de alimentos que povoavam as terras dos engenhos, inclusive o seu que estava ali há tempos. Por exemplo, em 13 de abril 1722 e 31 de agosto de 1723, dois casais de índios livres eram “assistentes na fazenda do capitão-mor” Francisco I. Uma das madrinhas foi a escrava parda Branca, que, em 18 de julho de 1723, batizara um filho escravo do mesmo “capitão-mor”. Por sua vez, entre os 61 legados testamentais que deixou, Francisco II dirigiu 20 a paroquianos do Pilar, inclusive viúvas e outros moradores no bairro do Couto, isto é, em terras ou adjacências do engenho.11
Assim, o pedido de Luciano chamava atenção à má interferência de Caldas em uma comunidade política secular cujo epicentro era o engenho encabeçado por ele em fins do Setecentos. Obviamente, o pardo sabia que engenhos com fábricas eram muito mais do que meros exemplares produtivos à moda fabril capitalista, eram arraiais regidos por regras costumeiras de acesso à terra assentadas em laços clientelares e parentais que envolviam escravos, lavradores forros e livres, pardos, pretos, reinóis etc.12 Luciano era senhor das terras ao redor das quais giravam as relações sociais (de produção) dos moradores com ou sem escravos. Ele recobrava o aval da coroa para exercer, no Pilar, a autoridade que lhe foi investida sobre a população pelo cargo de capitão dos homens pardos e descendente de capitão. Resumindo, o requerimento também era um apelo ao respaldo real para com a ordem social local abalada por Caldas.
Com efeito, Luciano seguiu o projeto de seu pai, construído no decorrer dos setecentos. Em 1763, Francisco II deixou em testamento 1% do valor líquido de sua grande fortuna para ser repartido entre missas para as almas do purgatório e ornamentos para o convento do Carmo do Rio de Janeiro. Era o pagamento de uma promessa, pois, quando veio ao Brasil, Francisco pediu para que “Nosso Senhor” lhe “alcançasse de dinheiro” e lhe fizesse “ser bem-sucedido nos meus negócios”.13 Demonstrando que fé e economia andavam juntas, a promessa também atesta que Francisco não viera com muito dinheiro de Portugal e o acumulou no Brasil. As terras do engenho derivam de um investimento de longo prazo. O irmão de Francisco II, o padre Marcos Gomes Ribeiro, comprara ao capitão Antônio Correia Pimenta e à sua mulher Dona Cecília da Silva 1.100 braças de terras, cedendo-as ao irmão. Essas terras localizavam-se no “Rio do Couto acima à margem direita”.14
Depois da compra, por 22 anos, entre 1737 e 1759, Francisco II, pai de Luciano, adquiriu “a vários donos” “terras místicas” (fronteiriças) àquelas 1.100 braças. Mais importante, essas terras místicas provinham da herança deixada por Francisco I, tido de Francisco II, a seus descendentes, que as venderam. Como o mercado de terras dos engenhos guanabarinos e alhures não era impessoal (Fragoso, 2001, p. 63-68; Levi, 1988, p. 131-168, p. 160; Machado, 2020; Sampaio, 2003), mas familiar, a compra de terras pelo sobrinho Francisco II foi um mecanismo de transmissão e preservação patrimonial entre os Gomes Ribeiro e seus afins. No total, Francisco II realizou seis compras, quatro a herdeiros de Francisco I e uma ao seu próprio tio. Embora não saibamos a medida de uma das terras adquiridas, em suas compras Francisco II acresceu 890 braças àquelas 1.100, quase dobrando, pelo menos, a extensão de suas terras. O engenho extrapolava a freguesia porque Francisco II afirmou que o guindaste estava “acima da freguesia” do Pilar e uma das terras compradas se localizava no “Sertão” da freguesia de “Inhomirim”.15
Em fins dos setecentos, todo o histórico do patrimônio familiar em terras e relações sociais dos que as habitavam estava nas mãos do pardo Luciano. Este que, efetivamente, deu prosseguimento, até certo momento, ao projeto de Francisco II voltado à manutenção da ordenação social em torno do engenho:
Declaro que minha mente e intenção é que se conservem em ser o meu engenho com os escravos, terra, e tudo mais que assistir ao tempo de meu falecimento, assim porque não há de haver quem o compre e pague, como porque, conservando-se os ditos bens, é o meio mais seguro e sólido para meus filhos e herdeiros poderem viver e passar sem virem pelo tempo adiante a experimentar a miséria, que de ordinário experimentam aqueles que vendem os bens que lhes ficam de seus pais, por se gastar o dinheiro com pouca consideração, sem lembrarem as misérias a que se expõem para o futuro.16
No requerimento de 1776, Luciano defendeu o projeto paterno de futuro, mas sua argumentação mais contundente, para que não se permitisse que seu adversário permanecesse nas terras, evocou o passado imemorial das posses de sua família:
Principalmente, sendo certo não ter o suplicado [Caldas] mais do que sete escravos para cultivar uma légua de terras [...] nem o conhecimento necessário e experiência, que inculcou ter da sua cultura por viver naquela cidade [do Rio], exercitando o ofício de carpinteiro [...]. Ponderando, outrossim, os mesmos suplicantes que, ainda quando se achasse verdadeiramente devoluta essa porção de terras; ainda quando a sua inteira propriedade se lhes não devesse julgar contra o Capítulo da Ordenação [...]; nem deviam ser inquietados da sua imemorial posse por um hóspede que não vinha a plantar e beneficiar como eles; mas a destruir e derrubar os matos do seu engenho para se locupletar com o seu estrago [...].17
Contraposta a “morador lavrador”, a palavra “hóspede” provavelmente fora usada no sentido de desprovido de terra própria e desrespeitoso dos direitos costumeiros, mas Caldas estava na freguesia como padrinho pelo menos desde 1766. Mesmo ano que, coincidentemente, Luciano aparece pela primeira vez na documentação ao apadrinhar um filho livre do pardo forro João Gomes Ribeiro.18 Caldas podia ser hóspede, mas não chegara ali ontem e pleiteava terra, o que significa que um senhor de engenho da estirpe de Luciano pôde ser afrontado por alguém, em sua avaliação, abaixo de sua estatura.
Desconhecemos seu oponente, mas, para responder àquela pergunta a respeito da consciência de Luciano sobre sua posição social, importa grifar a contraposição que ele próprio fez entre, de um lado, um experiente senhor de engenho com 155 escravos, ainda que em sociedade, e, de outro, um carpinteiro com sete escravos morador na cidade do Rio de Janeiro, inculcado de senhor. Ao delimitar essa fronteira, Luciano alardeava a sua posição social privilegiada, não apenas de senhor de engenho com conhecimento no negócio, mas de membro da elite escravista, isto é, colocando-se no topo da sociedade, diferenciando-se dos demais livres por ser senhor de engenho e, principalmente, de homens. Mais do que outros senhores, ser senhor de engenho e de muitos mancípios propiciava a extração de renda extra do trabalho escravo, status, proeminência social (Finley, 1991), enfim, ele era distinto, não só dos escravos, mas, principalmente, de senhores de poucos escravos. Afinal, uma das funções da escravidão era hierarquizar os livres.
Além disso, ele tinha maior poder de barganha junto à rainha porque a escravidão em seu engenho era um pilar de sustentação da monarquia portuguesa na América, já que dava dízimos ao erário régio. Nesse sentido, almejando favor real, ele asseverou que em seu engenho havia, não quaisquer escravos, mas 155 “escravos de trabalho”. Destarte, ele reforçou sua justificativa de direito à terra invocando, muito além de bois e cavalos, o seu enorme contingente de escravos para os padrões de época, gerador de riquezas. Exceto pelos escravos de ordens religiosas e de um ou outro senhor de milhares de escravos, Luciano seria elite escravista em qualquer seara do Brasil. Ele estava ciente de que a grande maioria dos senhores no Brasil não tinha mais do que cinco escravos.19
Essencialmente, ele requeria a manutenção da hierarquia escravista porque esta era o que dava parâmetro de ordenamento social para senhores, escravos, livres, libertos, plantadores de cana sem-terra, agricultores de alimentos, pardos, pretos, brancos etc. Fincados nas orientações valorativas da escravidão e do antigo regime, que se casaram muito bem (Lara, 2005, p. 21-38; Mattos, 2001, p. 141-162; Schwartz, 1988, p. 209-223), todos eram desiguais e naturalizavam a desigualdade (Fragoso, 2024; Levi, 2002; Hespanha, 2010). Como não poderia deixar de ser, isso significa que Luciano pensava conforme instrumentos cognitivos de uma sociedade escravista alicerçada na desigualdade, não como dono de uma fábrica mecanizada do século XX, pois sabia que os escravos não eram vendedores de força de trabalho. Sabia que o que compelia os seus escravos ao trabalho eram fatores de alçada política e moral.20 Luciano, muito mais do que proprietário de uma fábrica, era “senhor” de escravos (Alves, 2012) porque o “ser senhor de engenho” trazia consigo o “ser servido, obedecido e respeitado de muitos”. E se fosse, qual deveria “ser, homem de cabedal e governo”, pois governo dos escravos implicava poder moral e respaldo social (Castro, 1995; Demetrio, 2017; Machado, 2020).
Mas o ser senhor de engenho e de escravos não explicava tudo, e talvez não o principal para Luciano. Sua primeira alegação foi a de que, há 126 anos, as terras foram concedidas por carta de sesmaria aos “antepossuidores” do engenho, em 5 de maio de 1650. Igualmente, no desfecho da petição à rainha, ele deu relevo à “imemorial posse” da sesmaria. Dessa maneira, suas alegações primeira e última sublinharam a precedência da posse da terra e o passado memorialmente evocado, mas não somente. Precisamente, ao que e a quem ele aludia?
Ele reportava-se à continuidade do pacto secular entre reis e súditos manifesto nos serviços e mercês,21 em seu caso materializado nas sesmarias dadas aos possuidores do Engenho do Coito. Ele rememorou à rainha que, secularmente, a posse e a ocupação da terra provinham da parentela dos ascendentes e parentes de seu pai. Sabendo que havia muitos homens sem-terra, embora senhores de escravos (Fragoso, 2024), ele estava cumprindo o projeto paterno e reatualizando a memória de uma tradição patrimonial dos Gomes Ribeiro. Em suma, o requerimento tocava no ponto central: o governo atrelado à preservação das hierarquias costumeiras, inclusive o governo moral.
Nesse último aspecto, Monsenhor Pizarro realizou visitas pastorais no recôncavo do Rio de Janeiro na década de 1790,22 aliás, deixando sua marca em um livro de batismo de escravos da freguesia do Pilar, em 1795.23 O visitador afirmou que a paróquia possuía apenas três capelas sujeitas à matriz: a de N. S. do Rosário, das Neves e a de “Santa Rita, no lugar da Posse ou do Coito”. Esta terceira capela foi fundada pelo testamenteiro do “capitão Francisco Gomes Ribeiro”, o pai de Luciano, Antônio Ribeiro de Avelar (sobrinho de Francisco II). Os documentos sobre a ereção da capela desaparecem por descuido do falecido “vigário Alberto Caetano Álvares de Barros, depois da visita daquele tempo”.24 Padre Alberto assentou centenas de registros paroquiais nos livros da freguesia entre 1773 e 1792,25 mas, depois de sua morte, não se encontraram os documentos sobre a capela “entre os seus papéis, como me informou” – escreveu Pizarro – “o capitão Luciano Gomes Ribeiro, herdeiro do dito capitão Francisco Gomes Ribeiro, senhor que foi da fazenda e administrador da capela”.26
O testamento de Francisco II, devoto de Santa Rita, confirma as palavras de Pizarro, mas acrescenta um detalhe sobre o governo moral católico:
Declaro que por devoção que sempre tive com a Bem-aventurada Santa Rita, determinei fazer-lhe uma capela na minha fazenda da Posse, onde ao presente está o oratório para nele se colocar a imagem da Santa, e a de Santo Antônio das Almas, e de S. Miguel, Seu Protetor, a qual determino, se Deus for servido, fazer ainda em minha vida, mas quando o mesmo Senhor dispor o contrário, mando a meu testamenteiro a faça [ilegível] com a grandeza que desejo, com a capacidade necessária para nela se celebrar o Santo sacrifício da missa.27
Na capela administrada por Luciano, portanto, celebravam-se missas, ou seja, um rito crucial à educação moral católica. Luciano, em síntese, era filho herdeiro do fundador post-mortem da capela, o capitão Francisco II, capela que fora construída entre 1766 e 1768 no “mesmo lugar” onde estava o “oratório” de Francisco I. Todavia, houve, de acordo com Pizarro, desleixo por parte do “herdeiro e administrador” Luciano Gomes Ribeiro, que, ainda na década dos anos 1790, vendeu a “fazenda” com sua capela ao capitão Manoel José Moreira, que consertara o templo.28 Ou bem ou mal, Luciano manteve o governo do arraial através da moral católica. Administrou o templo, deu chãos para as missas, batizou e casou escravos ali, assim como faziam os livres. Todos moralmente governados em sua capela.
Qual o peso e quem eram os Franciscos Gomes Ribeiro antecessores do engenho herdado por Luciano? A nobreza da terra era o grupo político-social que exercia poder de mando na república desde primórdios da ocupação do Rio de Janeiro, por direito de conquista (Fragoso, 2000). Essa nobreza espraiou-se por diferentes paróquias da capitania. Nesse espraiamento, em N. S. do Pilar, no decorrer do século XVIII, os sobrenomes Gomes Ribeiro moldaram o lugar. Ainda em 5 de novembro de 1720, o capitão-mor Francisco I já constava como senhor de Felipe Ribeiro, pai de um inocente batizado na freguesia, mas mesmo antes ele apadrinhara um livre em 15 de agosto de 1716. Francisco I ainda pegou a época em que se chamava escravos africanos de tapanhunos, a exemplo de dois “tapanhunos escravos” de um capitão em 4 de abril de 1720. Um próprio escravo de Francisco (talvez o I) serviu de padrinho de um filho de um casal de índios em 7 de setembro de 1719.29
Os termos “índios” e “tapanhunos” foram sumindo dos livros batismais, mas os Gomes Ribeiro permaneceram. Entre 1722 e 1809, os diferentes Gomes Ribeiro mandaram batizar 120 escravos em Pilar,30 sem contar suas posses de pais, mães, padrinhos e madrinhas.31 Entre os senhores de batizados estavam Francisco Gomes Ribeiro, um homônimo de alcunha “Moço”, Raimundo, Antônio, Jacob, João, Estevão, Sebastião, e Luciano e seu irmão Timóteo. Assim, o muito bem aparentado Luciano compunha a casa Gomes Ribeiro. Para os antecessores, Francisco, se era “Moço”, nunca foi referido como capitão-mor no Pilar. Para complicar ainda mais, havia, como senhor de padrinhos, Francisco Gomes Ribeiro, “o Velho” (provável Francisco I), em 1731. Mais: um pardo forro Francisco Gomes Ribeiro batizou um escravo em 19 de abril de 1805. Excluído o pardo forro,32 quem poderiam ser Francisco Gomes Ribeiro e os homônimos “o Moço” e “o Velho” nos documentos paroquiais?
Esperança Mina foi batizada em 14 de março de 1730 “na fazenda de Francisco Gomes Ribeiro”, mas “o Moço”, o primeiro a mandar batizar escravos, só o fez quatro vezes entre 1722 e 1732, e consta como senhor de uma madrinha em 1729, ao passo que Francisco Gomes Ribeiro, sem alcunha, batizou 45 escravos entre 1723 e 1763. Em 1763, ano do testamento do Francisco II, Francisco I já era morto. Assim, pode ser que, depois de morto “o Velho” (Francisco I), “o Moço” (Francisco II) amadureceu e se tornou apenas “Francisco Gomes Ribeiro”, deixando de ser moço. Mas, em 15 de agosto de 1716, quando Francisco I era “o Moço”, ele e sua mulher, Dona Elena da Silva, foram padrinhos de um livre. Três anos depois, em 7 de setembro de 1719, um Francisco já era capitão-mor em um batismo de livre. Já havia um capitão-mor Francisco Gomes Ribeiro desde 1722, que era Francisco I, porque Francisco II nunca se casou.33
Por seu lado, Francisco I casou-se duas vezes, e, aparentemente, não teve filhos homens (Rheingantz, 1967, p. 271). No século XVIII, portanto, até 1763, quem herdou o título Francisco Gomes Ribeiro foi o sobrinho homônimo, conduzindo o nome, a casa, o governo das terras, dos homens e do engenho, do escoamento, legando da capela aos paroquianos, mesmo tendo vindo sem grandes recursos de Portugal. Em resumo, Francisco Gomes Ribeiro (Francisco I), às vezes o Moço e às vezes o Velho nas fontes paroquiais, madurara e morrera e, depois, o homônimo Moço, em alusão a Francisco II, amadurecera, carregando no Setecentos o nome da família da nobreza da terra e o título de capitão. Embora nem sempre haja certeza sobre quem era quem nos batismos, entre 1763 (ano da morte de Francisco II) e 1805 não há mais Franciscos entre os Gomes Ribeiro que batizaram cativos na freguesia, havia apenas Raimundo Gomes Ribeiro com um escravo sacramentado em 1764, Antônio com três entre 1765 e 1767, Jacob com três entre 1765 e 1773, João com cinco entre 1766 e 1771, Estevão com 12 entre 1774 e 1797, Sebastião com dois entre 1771 e 1802, Luciano e seu irmão Timóteo com 43 entre 1774 e 1809, outro Francisco Gomes Ribeiro com um em 1805 e um de um Gomes Ribeiro, morador no Rio de Janeiro, de nome ilegível, em 1796.34 Ser Gomes Ribeiro trazia consigo ser senhor de escravos, pelo menos.
Um dos Gomes Ribeiro egresso do cativeiro e da nobreza da terra, Luciano, não esqueçamos, podia ser tido por pardo, pois era, de fato, mestiço. Tudo muito normal porque, como ressaltado, principais moradores e nobres da terra se aparentavam com escravos e forros, transmitindo-lhes em herança e/ou legado patrimônios, cargos e títulos, inclusive cargos eclesiásticos (Fragoso, 2007; Guedes, 2008; Oliveira, 2014; Aguiar, 2015; Oliveira, 2020). Evidentemente, bens imateriais, como nomes e sobrenomes, também faziam parte da herança (Levi, 2000), identidades desejadas e usufruídas por senhores mestiços egressos do cativeiro (Guedes, 2008).
É o que se nota nas práticas de nomeação pelo uso de nomes e sobrenomes senhoriais. Além dos nobres da terra e seus afins, havia os pardos livres ou forros, Luciano, Timóteo, Estevão, as filhas de Estevão, que eram Gomes Ribeiro ou com apenas um dos sobrenomes. Porém, a nomeação da casa Gomes Ribeiro iniciava-se antes mesmo de os escravos receberem alforria. Francisco Gomes Ribeiro (I ou II) dera o seu sobrenome a alguns de seus escravos, a exemplo de Felipe Ribeiro, em 1720, e de Felix e Inácio Gomes Ribeiro, em 1752.35 Tempos depois, o senhor Luciano e seu irmão Timóteo reproduziram a prática de deixar seus escravos usarem seus sobrenomes. O escravo Manoel Ribeiro recebeu o Ribeiro de seu senhor Timóteo Gomes Ribeiro, em 1792. Marcelo Ribeiro e Venâncio Gomes seriam escravos de Luciano e de seu irmão.36 Na verdade, Venâncio Gomes e sua mulher, Maria Gomes, constam como escravos de João Gomes Ribeiro, em 1766, e, posteriormente, de Luciano e seu irmão Timóteo, em 1775 e 1779.37 Talvez esse Venâncio fosse o mesmo homem alforriado em 1763 por Francisco II.38 Sendo assim, em 1792 a alforria ainda não teria sido cumprida, o que não faria tanta diferença, porque os forros deveriam ficar na casa dos Gomes Ribeiro, não na de estranhos, como sublinharemos adiante.
Luciano apadrinhou um filho do pardo forro João Gomes Ribeiro em 1766.39 A coincidência dos nomes e sobrenomes de senhores, forros e escravos sugere que João era parente, talvez um irmão alforriado, de Luciano ou de Timóteo, e que a posse escrava dos Gomes Ribeiro era familiar. Até o engenho era em sociedade e os escravos de capitão pardo eram também de Timóteo, e o próprio Luciano requereu à rainha em seu nome e nos de seus sócios.40 Destarte, amalgamando os nomes parentais senhoriais, inclusive dos forros e escravos, a escravidão era uma relação de poder pessoalizada na órbita familiar, não individualista. Tratava-se de famílias senhoriais sob as quais giravam as escravas, bem como as de alforriados e nascidos livres, senhores ou não. Todos integravam uma casa hierarquizada encabeçada por um pater, que, em fins do Setecentos, era o pardo Luciano, e dar sobrenomes senhoriais aos escravos era um exercício costumeiramente compartilhado pelos Gomes Ribeiro para propagar a posição elevada de sua casa, tal como fizeram outros senhores. No mesmo sentido da ampliação da casa, repetiam-se os homônimos senhoriais ao longo das gerações familiares, ao que os padres anotavam “o Moço”, “o Velho”. Em suma, parentelas poderosas propagavam o aumento de suas casas através da nomeação de seus escravos, decerto dirigida a poucos escravos, dos forros e de si próprias.
A propósito, fazer os forros e os livres desprovidos de terras se enraizarem na casa senhorial, não na de estranhos, também foi projeto de Francisco II. Além de deixar legados a várias pessoas na freguesia do Pilar que habitavam suas terras ou terras contíguas, Francisco II asseverou:
Declaro que entre os escravos que possuo ao presente é bem assim quatro pardos chamados Venâncio, Estevão, João e Valério, e uma parda chamada Rita,41 dos quais todos cinco, pelos bons serviços que me têm feito, e pelo amor de Deus, quero, e é minha vontade, que por minha morte fiquem libertos e forros como se o fossem de seu nascimento, aos quais desejo que seu irmão Jacob favoreça e conserve em sua companhia, qual família lhe pode ser útil para que se não vejam precisados a ganhar o sustento à casa de estranhos.42
Ora, Jacob é um dos filhos que Francisco II reconheceu em testamento. Logo, se Jacob era irmão dos libertos por Francisco II, das duas, uma: ou Francisco II também é pai deles, ou todos eram irmãos de Jacob apenas por parte de uma mãe escrava que se relacionou com outros homens antes e/ou depois de Francisco II, ou durante. De todo modo, se foram alforriados, a mãe ou as mães eram escravas, isto é, Francisco II matinha relações sexuais-afetivas com suas e/ou outras escravas e reconhecia e/ou alforriava seus filhos paridos na escravidão. O governo moral católico não era avesso à procriação ilegítima entre senhores e escravas. Amoral seria deixá-los em escravidão porque o poder do disse-me-disse era fortíssimo (Godoy, 2017, cap. 5).
Uma vez alforriados, os libertos conduziam o status dos sobrenomes dos seus antigos pais e/ou senhores, que, reciprocamente, perpetuavam-se nos egressos do cativeiro. As relações políticas também se perpetuavam. Por exemplo, Estevão, escravo de Francisco II, o Moço, foi batizado em 2 de janeiro de 1732, filho de uma escrava Isabel Mina solteira.43 Estevão fora alforriado em 1763 por Francisco II44 e, em 1788 e 1789, por volta dos seus 57 anos de idade, “Estevão Gomes Ribeiro”, como senhor de dois batizados, estava “pardo forro”, morador, escreveu um padre, “na terra do Engenho da Posse”,45 engenho na ocasião ainda governado por Luciano.
Em 23 de novembro de 1800, falecera a viúva de Estevão Gomes Ribeiro, a “parda” Ana Correa dos Santos.46 Em partilha amigável com os herdeiros de seu marido, Ana ficou com sete escravos, um sítio e plantações no engenho do capitão Manoel José Moreira Barbosa. Este Manoel é o homem que comprara a fazenda ao capitão pardo Luciano, como atestou Pizarro. Logo, sendo Estevão e Ana membros da antiga parentela do senhor de engenho Luciano, sua permanência na terra após a venda do engenho demonstra que os laços políticos e de amizades pretéritos e os usos e costumes locais sustentaram os moradores nos engenhos, embora as fábricas e terras mudassem de senhores.
Ademais, o laço político e/ou de amizade entre os antigos (vendedores) e os novos (compradores) de engenhos e terras talvez fosse uma condição para a própria venda, porque não se tratava um mercado impessoal. Gerações precedentes a Luciano, as de Francisco I e II, fizeram isso a partir da alienação de terras entre parentes, mas, como desconhecemos os elos entre Luciano e o comprador (talvez seu genro), outro modo de perscrutar essa aliança é pelo compadrio escravo. Pesquisas indicam (Vargas, 2015) que, se os senhores fossem inimigos políticos, seus respectivos escravos não estabeleciam ligações compadrescas uns com os outros. Os compadrios ficavam restritos à órbita senhorial e/ou à de seus aliados (Vargas, 2015). No sentido inverso, se senhores fossem amigos, parentes ou aliados, podemos supor que era permitido o estabelecimento de elos compadrescos mútuos entre seus escravos. Eis que o comprador do engenho do Coito (ou da Posse), Manoel José Moreira, e o vendedor, Luciano Gomes Ribeiro47, novamente ataram suas casas por intermédio do compadrio de seus escravos. Em 23 de novembro de 1798, Manoel, filho de um casal de forros, recebeu como padrinhos Ângelo, escravo crioulo do capitão Manuel José Moreira, e Marta, escrava crioula do capitão Luciano Gomes.48 Essa foi uma das raras vezes em que escravos apadrinharam filhos de forros, mas o caso nada tinha a ver com escravidão, e sim com continuidade de laços pretéritos no engenho. Os senhores capitães estavam vinculados antes e depois da venda do engenho.
Confiante nas amizades senhoriais e no direito costumeiro de acesso à terra, a viúva do pardo forro Estevão Gomes Ribeiro, a parda Ana Correa, tinha segurança sobre seus bens que estavam em terras de um engenho de um novo senhor, talvez não mais de um membro da parentela Gomes Ribeiro. Ela deixou seus bens em legado a seus sobrinhos, filhos de seus irmãos. Além disso, legou à Rosaura Gomes, filha do “defunto meu marido” Estevão Gomes Ribeiro, 40 mil réis, e à sua irmã paterna, Luciana Gomes, 20 mil réis.49 Ana dos Santos era viúva de um Gomes Ribeiro e madrasta de duas Gomes. Os Gomes egressos do cativeiro multiplicavam-se no Pilar, conservando os sobrenomes seculares de suas famílias e das dos antigos senhores nos mesmos engenhos, como o do Coito, mesmo que os engenhos mudassem de donos.
Posteriormente à morte do sobrinho do “nobre da terra”, Francisco II, em 1763, e mesmo depois da venda do engenho a Manoel José Moreira, os Gomes Ribeiro vindos da escravidão continuaram fincados nas mesmas terras de posse imemorial, a exemplo do capitão Luciano, de seu irmão Timóteo, de Estevão, mas também de Sebastião, Francisco, todos assinalados como pardos ao menos uma vez na freguesia do Pilar. Portanto, os forros e demais egressos do cativeiro não precisavam migrar para afirmar a liberdade. Faziam-no, além da condição senhorial, pelos nomes e sobrenomes reatualizados como herança imaterial de seus antigos senhores, por regras consuetudinárias de permanência na terra. O parentesco geracional entre si, mas também com seus antigos senhores e os filhos destes, respaldava-os nos locais em que eram nascidos. Francisco II, sobrinho da “nobreza da terra”, gerou pardos forros na freguesia, dando-lhes laços políticos, terras e nomes. Em reciprocidade, os oriundos da escravidão perpetuaram o nome de sua casa, sem esquecer que ninguém era batizado com sobrenome porque o ato de nomear era uma construção social (Hameister, 2006) levado a cabo também por mestiços com (ante)passado escravo. Encarnados em si mesmos, os pardos forros mestiços Gomes Ribeiro reatualizaram poderosos nomes senhoriais imemoriais em Pilar.
Vimos que, nos batismos de seus 12 escravos, Estevão Gomes Ribeiro foi considerado pardo forro em dois.50 Nos demais não se apontou que era pardo. Quando ditou testamento de 10 de junho de 1799, sua viúva Ana Correa dos Santos disse que fez partilha amigável com os herdeiros de seu marido. Se a partilha foi igualitária, o casal tinha 14 escravos, estando acima da imensa maioria das famílias senhoriais da paróquia do Pilar. Ana Correa pronunciou ser viúva de Estevão, filha da falecida Josefa Correa e de pai incógnito, sem filhos, e que, naquela partilha amigável, couberam a ela “sete escravos de nomes José, Joaquim, Maria, Mariana, Feliciana crioula, Angélica e Izabel crioulas”.51 As escravas Feliciana, Mariana Angola e Maria Benguela (ou do gentio da Guiné) eram as mães dos 12 cativos que Estevão mandara batizar entre 1774 e 1796, e entre os bebês havia uma Angélica; todas provavelmente eram as mesmas escravas presentes nos dois tipos de fonte; e ainda havia João, um padrinho escravo de Estevão.52
No mesmo sentido da hierarquia escravista, os senhores pardos habitualmente também não se tornavam compadres de seus escravos, pois, como se sabe, senhores quase não os apadrinhavam, delegando tal função a parentes e afins (Brügger, 2007, cap. 4; Fragoso, 2007, 2010; Gudeman, Schwartz, 1988; Guedes, 2008). Por outro lado, em 1795, o próprio Estevão, assim como procedeu o senhor de engenho pardo Luciano, apadrinhara um escravinho de outro senhor, filho de uma crioula, em 20 de outubro de 1795.53 Não foi caracterizado como pardo talvez por ter sido padrinho por procuração apresentada por um terceiro. Mas, mesmo sendo senhor no batismo, ele foi tido por pardo duas vezes, talvez por não ser um senhor do porte do capitão Luciano. De todo modo, Estevão era mais um pardo forro senhor de escravos aparentado espiritualmente no cativeiro.
Estar aparentado no cativeiro, todavia, não impediu pessoas de passado escravo de imputar “qualidade da escravidão” (preto, mulato, negro, crioulo etc.)54 a seus escravos. Comumente, os senhores atribuíam qualidades de escravidão a seus escravos mas não a si mesmos, pelo simples fato de serem senhores. Além disso, quando arrogam a si qualidades, quase nunca eram as mesmas com as quais definiam seus escravos. Era uma forma de exercer poder por atribuições que associavam seus subordinados à escravidão (Paiva, 2016; Guedes, 2017). A viúva de Estevão, Ana, tida por parda pelo padre, não usou esse termo para si própria, mas chamou seus escravos de crioulos, crioulas ou crioulinhas. Em Pilar, nos assentos de batismo, o termo mais usual dirigido a escravos nascidos no Brasil era crioulo, quase não havia pardos (Quadro 3, supra).

Apartando-se dos crioulos, senhores cientes de si, os pardos mestiços, que eram muitos,55 também sustentaram a hierarquia escravista. Reforçaram a escravidão porque escravizar implicava em subjugar seus escravos pelo uso das palavras. A viúva parda de Estevão deixou “liberta a crioula Feliciana”, bem como o “crioulo Joaquim”, caso este pagasse por si quatro doblas em “coartação” (alforria a prazo), “e também a crioula Angélica”, por “três doblas”, no prazo de dois anos. Instituiu sua sobrinha Rita, filha da sua irmã Mônica, como herdeira, mas querendo que, entre o remanescente de seus bens, coubesse à sua sobrinha, “em espécie, a crioulinha Isabel”. Depois do falecimento da sobrinha, a crioulinha seria “liberta, não passando a outra escravidão mais”. Ela alforriou, portanto, quatro de seus sete escravos. Os demais três, inclusive as escravas Maria e Mariana, com 12 filhos batizados no Pilar, deviam ser vendidos.56
Nomear e imputar qualidades de escravidão aos escravos, escolher suas escravidões, doá-los, vendê-los e/ou alforriá-los eram prerrogativas do poder senhorial, como as exerceu a senhora parda viúva de Estevão Gomes Ribeiro. Alforriando em testamento como se fosse um ato litúrgico (Soares, 2009; Guedes, Soares, 2015, p. 80-124), a senhora parda pediu missas para salvar sua alma e a de seu falecido marido senhor pardo forro, pagando pelas missas com recursos da venda e da alforria de seus crioulos. Como as almas de todas as qualidades precisavam de salvação, vender e alforriar gente crioula, mulata, preta, mulatinha, entre outras, para pagamento de missas era algo absolutamente naturalizado e cotidiano. Faziam-no senhores reinóis, naturais do Brasil, da Índia, nascidos em Angola, vindos da Costa da Mina, pardos, pretos, brancos, homens, mulheres etc. (Guedes, 2018). A escravidão católica na monarquia portuguesa de antigo regime era comum a todos os senhores.
O caso de Estevão Gomes Ribeiro e de sua esposa parda, filha de pai incógnito, demonstra que egressos do cativeiro podiam prosperar como senhores, reatualizando os sobrenomes familiares imemoriais herdados de seus antigos senhores. O forro Estevão foi um filho natural ou “ilegítimo” (filho de pais não casados) como o era a sua esposa Ana Correa. Igualmente, Luciano Gomes Ribeiro era um filho natural. Em um registro de batismo de livres de 21 de janeiro de 1771, consta que Luciano Gomes Ribeiro e Ana Maria do Nascimento eram casados e pais de Maria, ele natural do Pilar e ela da freguesia de Inhaúma, uma paragem rural do Rio de Janeiro. A menina Maria era “neta por parte paterna de Isabel Gomes, Preta Mina, solteira, escrava de Francisco Gomes Ribeiro”.57 Em bom resumo, Luciano era filho de uma preta Mina com um reinol ligado a uma família de nobres da terra. Seu irmão Timóteo, idem, ou era apenas irmão paterno de Luciano. Isabel Gomes, que, mesmo escrava, já gozava de sobrenome senhorial, devia ser a mesma mãe daquele pardo forro Estevão Gomes Ribeiro (filho de “Isabel Mina”), batizado, em 2 de janeiro de 1732, como escravo de Francisco Gomes Ribeiro, o Moço, que talvez fosse Francisco II.58 Assim, Francisco II seria pai não só de Rita, Jacob, Luciano e Timóteo, mas talvez também de Estevão, pois, lembremos, Jacob era irmão de Estevão e de outros alforriados não reconhecidos como herdeiros por Francisco II.
Nem sempre era conveniente reconhecer filhos naturais ou no cativeiro. Francisco II era cavaleiro da Ordem de Cristo, o que lhe conferia certo grau de nobreza, mas as Ordenações Filipinas só permitiam que filhos naturais de homem nobre tivessem direito à herança se não houvesse filhos legítimos.59 Não era o caso do solteirão Francisco II, mas, por outro lado, tornar-se cavaleiro colocou obstáculos à transmissão patrimonial por herança a seus filhos naturais nascidos depois da investidura no título, obstáculos que o pai contornou. Afirmou que teve Jacob quando ainda “não era Cavaleiro”, mas sabia que “os outros dois, havidos depois, não podiam herdar”. O pai solicitou ao filho Jacob, emancipado primeiro, que de “espontânea vontade” concordasse “em que os outros dois irmãos com ele igualmente herdassem”. O pai e Jacob celebraram uma escritura em nota cartorial para dirimir qualquer dúvida sobre a partilha igualitária entre os reconhecidos filhos naturais herdeiros do cavaleiro e do cativeiro. Sagazmente, Francisco nem disse que eram filhos de escravas,60 apenas de mulheres, pois ocultar a condição escrava das mães legitimava ainda mais o status dos filhos. Pater, ele protegeu sua descendência e a continuidade de sua casa.
Luciano não auferiu pouca coisa em herança como cabeça dos irmãos pardos forros, até mais do que eles. Era comum os pais que transformaram seus filhos do cativeiro em herdeiros e/ou legatários privilegiarem um deles visando a não dispersão do patrimônio e a consequente manutenção da casa (Aguiar, 2015; Guedes, 2008, capítulo 5; Oliveira, 2014, 2020). Que herança ou legado? Para várias pessoas, Francisco II deixou um total de 6.652:200 réis, sendo 4.031:800 em legados pessoais e 2.620:400 em disposições pias. Como esse valor se aproxima de sua terça, sua fortuna beirava os 18 contos de réis em 1763. Porém, não se incluem no valor dos legados de Francisco II os gastos com a construção de uma capela.61
Francisco II mandou, ainda, que suas disposições pias fossem pagas com o rendimento do engenho, dando dez anos de prazo para as constas do testador. Suas vontades seriam pagas com os rendimentos porque era preciso manter o engenho e “mais mistérios da casa”, incluindo “roças donde se tiram mantimentos, e escravos para se repartirem por uns e outros trabalhos”. Os herdeiros ficariam obrigados a entregar ao testamenteiro, anualmente, o rendimento líquido dos “asucres” vendidos na cidade do Rio, “ou vindo eles pessoalmente fazer esta diligência”. Se não seguissem essas instruções, os herdeiros “conhecerão depois o seu erro”, para o qual não haveria “remédio”. Cabia ao pai testador apenas “dar-lhes espera suficiente”.62 Pai Francisco II queria tempo e bom governo para o futuro da casa, para poder pagar seus legados sem deixar os filhos na miséria e os forros em casa estranha. Os herdeiros mestiços conseguiram governar, pois Luciano dissera à rainha, em 1778, que o arraial dava bons rendimentos em impostos à fazenda real.
Luciano recebeu escravos além do engenho e da fazenda, mas não qualquer fazenda. A paragem era um ponto mercantil nodal porque a capela erigida por Francisco II, conforme Pizarro, fora edificada “à face da Estrada Geral, que segue para as Minas Gerais”, onde havia “ranchos para as tropas, além de muitas casas que formam um pequeno arraial”. Logo, a fazenda com o engenho e os ranchos para tropeiros formavam um pequeno arraial. Era muito útil à capela e ao arraial que houvesse “sempre um reverendo sacerdote aí presente para socorrer com parte espiritual aos moradores daquelas vizinhanças e território, desde o meio da fazenda até suas extremidades”. Os caminhos pela fazenda, que iam de duas e meia a três léguas de distância, eram “péssimos”, quer na estação chuvosa ou “no tempo seco”, dificultando a assistência das necessidades espirituais. Mas a razão maior para a constante presença de um padre na capela era que “aquele território” era “o mais povoado” da freguesia do Pilar, como o próprio Pizarro viu “pela imensidade do povo que concorreu à missa nesta capela no dia em que a visitei; e da continuação da mesma concorrência em todo ano”, como o visitador foi “igualmente informado”. Na ocasião da visita de Pizarro, em 1795, na capela residia o reverendo João Caetano da Fonseca, que estava lá desde 1791, dando pão espiritual. Por tudo isso, a capela devia “ser enobrecida com exercício de curada”, isto é, com cura permanente para respaldar o governo moral.
A descrição do visitador Pizarro revela aspectos importantes. Com muitos ranchos, a fazenda arraial mais povoada do Pilar do Iguaçu estava localizada em uma encruzilhada do amplo comércio entre Rio e Minas Gerais. Assim, como uma miríade de livres, forros e escravos habitavam os engenhos com práticas costumeiras centenárias, era necessário governo no arraial. Sabemos que usos compartilhados das terras, respeito aos costumes etc., faziam parte do bom governo de uma casa senhorial nos arraiais, especificamente, no que nos interessa no momento, o governo dos escravos, embora Luciano talvez recebesse foro e pagamento de lavradores e plantadores de cana de partido sem terras, engenho etc.
Como, então, Luciano governava seus escravos? Primeiramente, atentemos para a população que habitava seu engenho. A freguesia do Pilar era “uma das mais antigas” do recôncavo do Rio de Janeiro. Baseado em um rol de desobriga, Pizarro afirmou que, em 1793, havia 55 fogos (domicílios) e 2.770 almas, entre “maiores e menores”, mas em 1794 eram 567 domicílios e 2.932 habitantes, refluindo para 555 domicílios em 1795, porém com 3.026 almas.63 Não estavam incluídos os habitantes que se ocultavam pelos matos. Por esses dados, apenas os 155 escravos do Engenho do Coito, em 1778, do capitão pardo Luciano, representariam 5,6% de toda a população da freguesia de 16 anos antes. Por outra estimativa, em 1779/89, a freguesia contaria 3.895 habitantes, dos quais 1.868 (48% do total) eram escravos.64 Aqueles 155 escravos de Luciano e seu irmão correspondiam a 8,3% do contingente mancípio da freguesia. Realmente era preciso governar os cativos e, em fins dos oitocentos, esse governo, em grande parte, coube à elite escravista do Pilar, que era parda.
O governo escravista do capitão Luciano repousou sobre uma grande escravaria, cuja posse aferida em registros de batismo confirma a estatura senhorial de um Gomes Ribeiro com 155 escravos em sociedade. Como ele chegou até aí? Apesar da lacuna para certos anos, dispomos de batismos de escravos da paróquia do Pilar para os anos de 1719 a 1809. Para não distorcer os resultados, elegemos as mães para analisar a distribuição da escravaria entre os senhores. Não optamos pelos pais (homens) porque há muitos filhos naturais sem o registro paterno e, no caso dos padrinhos e madrinhas, muitos eram livres ou forros. Também não medimos a distribuição da escravaria pelo número de batizados por senhor porque uma mesma escrava podia gerar vários filhos.65 Por exemplo, Maria crioula e seu marido, Teodósio Benguela, tiveram nove filhos batizados entre 13 de dezembro de 1767 e 16 de abril de 1785.66
Ainda sobre cálculo da posse de mães como indicador de distribuição da escravaria (Góes, 1993), dividimos o século XVIII em três grandes fases, 1719 a 1753, 1761 a 1780, e de 1781 a 1809. Se determinado senhor consta em mais de um período, contabilizamos seu número de mães para cada momento, inclusive se uma mesma mãe se repete em mais de uma fase. Aquela Maria crioula, esposa de Teodósio Benguela, foi contada uma vez para 1761-1780 e outra para 1781-1890. Em 1761-1780 ela era uma das quatro mães daquele senhor, ao passo que, na fase seguinte, só havia ela e mais uma.
Mortes, alforrias e eventuais sub-registros de batismo alteravam o quantum de mães de uma fase para outra, assim como se alterava o contingente de senhores por falecimentos, migrações etc. Em resumo, baseados na posse de mães, analisamos mudanças e permanências na distribuição da escravaria no tempo, com o objetivo de – por aproximação, sem exatidão – contemplar três gerações senhoriais ou três conjunturas. A técnica permite, ainda, aferir a efemeridade e a perenidade de certas casas senhoriais, lembrando que muitas unidades escravistas estavam em terras alheias e que não há séries de inventários post-mortem para o Rio de Janeiro setecentista. Porém, diferentes de inventários, os assentos batismais deixam ver a posse de escravos ao longo da vida de determinado senhor ou de famílias senhoriais, e não apenas no fim de suas vidas (Matheus, 2016, capítulo 4).
Embora os registros e a técnica empregada não absorvam todos os escravos batizados, constatamos que os Gomes Ribeiro sobreviveram no cume da elite escravista, ao menos no que tange ao senhorio sobre mães. Francisco I ou II foi quem mais senhoreou mães no primeiro período e Luciano o fez no último, mas não foi só isso. O Quadro 1 (infra) parece lacunar sobre a posse de escravos à luz de outras pesquisas que atestam a concentração da escravaria, pois sabemos que a maior parte era masculina e avaliamos a posse apenas pelas mães – no entanto, essa dominância masculina precisa ser confirmada para os setecentos. Por outro lado, é possível sugerir que o contingente de senhores em Pilar quase triplicou entre a primeira e a terceira fases. Esse aumento é explicado não apenas pelo fato de o terceiro período abarcar mais anos corridos (29), mas igualmente porque o impacto do comércio atlântico de cativos naquele momento elevou o número de senhores, o que vinha ocorrendo desde a segunda fase (1761 a 1780). Esse recrudescimento deve ter sido uma tendência linear progressiva no desenrolar dos setecentos por causa do constante aumento do volume de cativos africanos desembarcados no porto do Rio. Em suma, podemos afirmar que muitos senhores do Pilar chegaram à paróquia a partir dos anos 1760, principalmente após os idos de 1780.

O trato atlântico de gente não apenas trouxe milhões de cativos, também fez milhares e talvez milhões de senhores. Mas, diferente dos senhores neófitos, a casa Gomes Ribeiro era antiga e com muita escravaria. Aquele senhor de mais de dez mães no período 1719-1753 era um dos Franciscos Gomes Ribeiro, ou eles juntos. Além dos 18 adultos no período, eles sacramentaram 31 inocentes.67 Ora, batizar implicava em fazer-se senhor pelo registro da posse escrava no livro batismal, convertendo os cativos em escravos com nomes cristãos (Bôscaro; Guedes, 2022).
As Ordenações Filipinas, de 1609, ordenavam que os senhores batizassem os escravos para tomar posse deles, sob pena de perda do domínio, e as orientações canônicas das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1720, eram enfáticas sobre batismos de escravos (Guedes; Soares, 2023). Senhor cristão, o capitão-mor Francisco sabia que a legislação respaldava a conversão dos cativos em escravos e que era preciso batizar, não registrar em cartório, para fazer-se senhor. Em 1730, mandou batizar um “filho de uma escrava sua ainda pagã que se chamará Josepha Mina”.68 Assim, tal como imputar qualidades de escravidão, escravizar o cativo pelo nome cristão de batismo atribuído pelo senhor era algo elementar no governo (moral) da escravaria.
Porém, sendo isso comum a todos os senhores, muito deles só começaram a se tornar senhores na freguesia a partir de meados ou fins do século XVIII, sobretudo depois de 1779, enquanto o pardo Luciano evocou a posse imemorial de suas terras escravistas há 126 anos. Talvez o engenho fosse mais recente, mas, mesmo assim, sua família era antiga na paróquia. Só a capela, onde antes havia um oratório, remontava há 1766-68. Por seu lado, como vimos, o primeiro batismo de um escravo de um Gomes Ribeiro, Francisco I ou II, ocorreu em 1720, pelo menos. Um Francisco Gomes Ribeiro já dispunha de um capelão desde 1730, pois um sacerdote que registrou o batismo de uma escrava sua afirmou que a inocente foi batizada por um padre capelão “do dito” senhor.69
Em fins dos setecentos, Luciano, conforme disse Pizarro, ainda usufruía de um capelão.70 Transformar cativos em escravos pelo batismo era comum aos senhores, mas ser ou descender da nobreza da terra e dispor de um capelão na paróquia era para pouquíssimos. A nobre casa de Luciano cristãmente escravizava há muito tempo, mas muitos outros senhores eram recém-arrivistas. A esse respeito, na petição à rainha, Luciano referiu-se à legislação que prevenia a “pouca dura”71 (duração) dos hóspedes que, como Caldas, vinham de fora e se inculcavam de senhor. Para o pardo, senhor mesmo era quem estava ali há muito tempo e vinha de proeminente linhagem, não era somente uma questão do tamanho da escravaria.
As demografias dos escravos dos Franciscos e de Luciano atestam a antiguidade e a reordenação da casa Gomes Ribeiro em Pilar. É o que se percebe também para o conjunto da freguesia ao se analisar, por décadas ajustadas, os batismos de adultos vindos d’África e de inocentes nascidos na paróquia, sem esquecer que o conceito de adulto dos padres não era necessariamente etário, mas religioso, a exemplo Custódio Mina, “adulto de seis anos” de idade vindo de terras gentílicas, ou de “Francisco mouro escravo”, a quem bastou ser mouro para não ser inocente, ambos batizados em 1719. O mesmo critério de fé consta para um escravo do capitão-mor Francisco I ou II, batizado em 1730, “Faustino Mina, adulto da idade de quatro anos”, filho daquela escrava “pagã” que se chamaria Josefa Mina.72 Além de Josefa, Francisco I ou II batizou quatro filhos de mães “ainda pagãs” em 1730 e 1731. Ele devia estar montando ou renovando a escravaria de sua fazenda, ou mesmo o seu engenho. Entre 1722 e 1731, batizou 17 adultos de origem africana73, seguindo a tendência da freguesia.
Nesse sentido, o Quadro 2 (infra) demonstra que, na primeira década setecentista, a proporção de batismos de adultos de origem africana era próxima a dos de inocentes na freguesia, mas os adultos chegaram a ínfimos 0,9% dos sacramentados entre 1801 e 1809. Porém, seria errôneo supor que, depois de certo momento, a escravidão na paróquia se ampliou apenas por reprodução natural. Como a cidade do Rio de Janeiro redistribuía cativos novos vindos d’África, parcela substancial deles se dirigia para outras searas. Com efeito, apesar da tendência decrescente e embora houvesse poucos batismos de adultos no Pilar, a maior parte dos inocentes veio do ventre de mães africanas entre 1719 e 1790, com índices oscilantes entre 77% e 56,1% (Quadro 3 infra). Os filhos de mães nascidas no Brasil (crioulas) só superaram os rebentos de africanas entre 1791 e 1809, em pequena proporção e com muitos casos sem informação entre 1791 e 1800. Houve, portanto, uma leve tendência ao crescimento de filhos gerados por crioulas, vetor acentuado a partir dos anos 1760, desconsiderando os dados escassos dos anos de 1744 a 1753. No geral, pode-se dizer que prevaleceram filhos de mães de origem africana até 1790.

As naturalidades das mães dos escravos dos capitães Francisco I ou II e Luciano Gomes Ribeiro pardo acompanharam a orientação majoritária de filhos de africanas na freguesia do Pilar até 1790. Porém, os Franciscos I e II, em montagem ou remontagem de sua escravaria, batizaram 18 adultos africanos. Esses adultos e 20 mães foram registrados até 1760, e só duas mães entre 1761 e 1763. No total, de suas 23 mães, 12 eram de procedência africana, cinco eram nascidas no Brasil (pardas e crioulas) e para as demais cinco não foi possível identificar a origem. Entre todas as mães, apenas dez eram casadas.
Esses batismos ocorreram até 1763, seguindo o vetor mais acentuado de filhos de mães africanas e de filhos gerados fora do casamento cristão até 1753. Por sua vez, a demografia da escravaria de Luciano e de seu irmão Timóteo acompanhou a mudança de direção da freguesia a partir dos anos 1760. Nessa década, provavelmente por ação clerical, elevaram-se sobremaneira os batismos de filhos legítimos, mesmo que refluíssem nas décadas seguintes. Dito de modo diferente, os índices de nupcialidade (casamento escravo) e legitimidade (filhos gerados por pais casados) entre escravos eram maiores a partir de 1761, época de Luciano, do que na de seus antecessores, até 1760. O mesmo índice pode ser observado em relação aos filhos de mães naturais da África e de mães naturais do Brasil. Os inocentes paridos por crioulas superaram os filhos de africanas a partir de 1790.
Por isso, entre 1774 e 1809, além de não batizarem adultos, os inocentes senhoreados por Luciano e seu irmão Timóteo foram gerados por 19 diferentes escravas, das quais apenas seis eram africanas, dez crioulas e três sem identificação. Onze mães eram casadas. Estruturalmente, na época de Luciano, pós 1760, os índices de casamento escravo no Pilar eram maiores do que na época dos Franciscos. Essa crioulização (no sentido da naturalidade) da escravaria de Luciano fornece sólidas indicações de que ele pode ter herdado escravos de Francisco I, logo, herdou também relações costumeiras no trato da escravaria, entre as quais muito provavelmente, além de doar seus sobrenomes a escravos, o respeito às regras de parentesco moldadas pelos próprios escravos (Góes; Florentino, 1997). Para contemplar os laços familiares dos escravos, cabe saber seu tempo mínimo de escravidão, evidentemente como estimativa.
Os assentos de batismo dos escravos dos Franciscos abrangem 43 anos de casa senhorial na freguesia (1720 a 1763) e sua continuação reordenada, na época de Luciano e Timóteo Gomes Ribeiro, 35 anos (1774 a 1809). Por outro lado, os batismos abarcam menos tempo de vida de seus escravos. Mortes e alforrias, eventuais fugas, com certeza interferiram no tempo de permanência dos escravos no engenho do Coito. Infelizmente, ainda há lapsos documentais para os anos de 1723 a 1733, 1746 a 1750 e 1757 a 1759, impedindo a observação da longevidade da escravaria na época dos Franciscos. O que nos resta, portanto, é uma ideia aproximada da estabilidade do governo dos escravos no Coito entre 1774 e 1809.
Apesar da lacuna, parece que certos escravos atravessaram gerações de senhores Gomes Ribeiro. Em 1761, Venâncio, pardo, casado com uma mulher de nome ilegível, ambos escravos de Francisco I ou II. Francisco II alforriara um Venâncio em testamento em 1763, mas em 1766, Venâncio Gomes, pardo forro, era casado com Maria Rodrigues, escrava de João Gomes Ribeiro. Em 1775, Venâncio Gomes, escravo de Luciano e Timóteo, continuava casado com Maria Gomes. Talvez por erro do padre ele foi tido por escravo em 1775, mas, em 1779, ainda ajustado com Maria “crioula”, novamente se reconheceu que Venâncio era pardo forro, mas ela ainda era escrava. Destarte, com casamento estável, Maria e Venâncio Gomes foram senhoreados por quatro Gomes Ribeiro da mesma casa senhorial: João, Francisco, Luciano e Timóteo. O governo dos escravos de uma casa antiga era de foro familiar geracional. Embora Venâncio Gomes já não fosse escravo em 1766, e sim pardo forro, ele e sua mulher circundaram a órbita dos senhores Gomes Ribeiro por 19 anos.74
No período senhorial de Luciano e Timóteo, Marcelo Crioulo e Maria Rebolo/Angola mantiveram laços em seu casório de nove anos e cinco filhos, entre março de 1783 e agosto de 1792.75 Os exemplos de casais estáveis seriam multiplicados entre os escravos dos Gomes Ribeiro, podendo chegar a, pelo menos, 13 anos. Porém, a solteirice das mães de modo algum significava instabilidade (ver Quadro 4 abaixo). Mariana Angola, escrava do pardo Estevão Gomes Ribeiro, viveu solteira com esse senhor entre 1774 e 1796, 22 anos.76 Depois de 26 anos, em 1800, Mariana foi vendida em testamento pela mulher de Estevão, a parda Ana Correa Soares. Recordemos que a viúva libertou a crioula Feliciana, solteira, mãe de Florentino batizado em 15 de abril de 1797. A senhora deixou a “crioulinha” Isabel à herdeira Rita, mas, depois do falecimento da sobrinha, a “crioulinha” seria liberta. Esta foi batizada em 16 de novembro de 1794 e era filha de uma escrava preta solteira.77 Em suma, mães escravas solteiras também permaneceram na mesma casa por tempo considerável e viram seus filhos alforriados se tornarem potenciais senhores pardos, a exemplo de Sebastião, Estevão e Luciano, entre tantos outros pardos forros mestiços que reproduziram a escravidão.

Sumariando, a demografia dos escravos de Luciano e Timóteo era diferente da geração senhorial que a precedeu. Mas as “gerações do cativeiro”, belo título de autoria de Ira Berlin (2006), não contemplava apenas escravos, também os senhores. Os Franciscos povoaram sua escravaria com africanos. Em um único dia, dois de março de 1731, fizeram sacramentar 11 escravos adultos, totalizando 18 desde o dia 24 de março de 1722.78 Certamente, Luciano e Timóteo herdaram “gerações do cativeiro”. A montagem das suas atividades agrárias antecede ao mês de junho de 1778, quando Luciano aludira aos 155 escravos do seu engenho e, obviamente, esse contingente não apareceu de supetão.
A petição de Luciano e seus sócios remonta a 1778 e, não à toa, antes desse ano, entre 1774 e 1777, as atas batismais de seus escravos mencionavam apenas o seu nome como senhor. Somente depois do requerimento, a partir de 1779, os escravos eram “do capitão Luciano Gomes Ribeiro e de seu irmão Timóteo Gomes Ribeiro”. Nos sacramentos dos escravos de ambos, a sociedade foi reconhecida até 20 de março de 1791. Depois, Timóteo só batizou mais um escravo, em 21 de agosto de 1792, pois, entre janeiro de 1793 e janeiro de 1809, ele não consta mais como senhor das mães dos batizados, apenas o capitão Luciano. Pode ter morrido ou desfeito a sociedade com seu irmão.
Durante a vigência da parceria dos irmãos, em parte substancial daqueles batismos os padres afirmavam que os senhores eram “moradores no Engenho da Posse”, mas Timóteo, como Luciano, nos três batismos em que não se mencionou a posse conjunta dos cativos, também foi enunciado como “senhor de engenho”. Às vezes se anotava que batizados, pais, mães, padrinhos e madrinhas eram “escravos do Engenho da Posse do capitão Luciano Gomes Ribeiro e de seu irmão Timóteo Gomes Ribeiro”. Nos assentos de batismo, Luciano – e/ou seu irmão Timóteo – consta como senhor de engenho até 1786, e Pizarro, que silenciara sobre Timóteo, afirmara, em 1795, que o engenho já havia sido vendido. O comprador mandou batizar 19 escravos entre 1793 e 1808, e em um sacramento de 20 de abril de 1798 afirmou-se que os pais eram “escravos do engenho do capitão Manoel José Moreira”.79
Como da venda do engenho não necessariamente derivou a venda da escravaria (Lima, 2023; Machado, 2020), Luciano casou quatro escravos em nove de janeiro de 1796.80 Deixara de ser senhor de engenho em 1795, mas não de escravos, e já devia estar envelhecido, conforme os padrões da época. Antes de 1776, ele afirmara que, devido a uma ordem que instituiu novas tropas de auxiliares e ordenanças “em 22 de março de 1766”, o vice-rei Conde do Lavradio o havia nomeado ao posto de capitão do terço de auxiliares de infantaria dos “homens pardos libertos”. Então, solicitou patente de confirmação real, no que foi atendido em 17 de abril de 1776. Não há data na carta patente emitida por Lavradio, mas em nove de outubro de 1775 Luciano já era referido como capitão em um batismo de escravos. Em 1794 ele estava reformado do posto,81 embora, até 1809, fosse considerado capitão nos batismos de seus escravos. O pardo filho de escrava preta e reformado manteve a majestade de capitão e o status de senhor, mesmo que não fosse mais senhor de engenho.
Não sabemos as idades exatas de Luciano no decorrer de momentos de sua trajetória de vida, mas, sendo reformado em meados dos anos 1790 e padrinho em 1766, primeiro ano em que consta em um batismo na freguesia, no último ano mencionado nos livros batismais, 1809, ele já era um homem para lá de seus 50 anos de idade, talvez na casa dos 60 ou mais. O pardo forro Estevão, talvez seu irmão, e sua esposa já estavam mortos em 180082, sua geração de senhores forros estava indo embora. Antes de partir, a viúva parda de um Gomes Ribeiro alforriou em testamento crioulos que talvez empardecessem socialmente depois. Bem antes disso, Jacob, irmão mais velho de Gomes Ribeiro, em 22 de fevereiro de 1767, mandou batizar sua escrava Rosália, filha de Teodósia crioula, e, em um de março do mesmo ano, foi à igreja dar alforria de pia batismal à criança. Como sabia escrever, Jacob assinou a alforria.83 O dar alforria e escolher sua modalidade também eram parte do governo cristão dos escravos. Era costume secular dos Gomes Ribeiro.
Em 1774 registraram-se os três primeiros assentos de batismo de escravos de Luciano. No terceiro deles, em 27 de novembro, Isabel e seu marido tiveram um filho batizado. Até primeiro de abril de 1787, o casal teve mais três meninos batizados. Nos dois primeiros, em 1774 e 1775, os padres não mencionaram a procedência dos pais, mas em 1782 Antônio e Isabel eram do “gentio da Costa”, e Isabel era “Angola” em 1787.84 Depois de 13 anos de escravidão junto ao senhor, o casal não mais teve assinalados registros de batismo na freguesia. Nesses batismos, como afirmamos, Luciano não era pardo. A primeira evidência na freguesia de que ele era oriundo da escravidão consta no batismo de sua filha, no qual se anotou, em 1771, como vimos, que a menina era neta paterna da escrava preta Mina Isabel, mãe de Luciano, mas sem se afirmar que este era pardo. A segunda evidência explícita à pardice de Luciano está no sacramento daquele escravo de outro senhor em que ele servira de padrinho, em 24 de julho de 1802, quando o padre Joaquim Soares de Oliveira lhe imputou a qualidade de “pardo livre”.85 Em 8 de janeiro de 1803, ele e a esposa eram ambos “pardos livres”, no batismo de seu filho Manoel. Por fim, em nove de julho de 1804, Luciano e sua esposa, Mariana Rodrigues dos Santos, “pardos livres”, novamente batizaram outra filha, Inácia, com Santa Rita, a da capela, servindo de madrinha, como anotou o padre Oliveira.86 Ou seja, a maior parte do tempo em que habitou os cotidianos registros paroquiais de escravos na freguesia, Luciano não era visto como pardo livre; aliás, livre, não forro.
Em 89 dos 623 registros que lançou nos livros entre 1797 e 1809, o mesmo sacerdote caracterizou os padrinhos como forros, fossem pardos, pretos, crioulos ou cabras, mas só 21 inocentes eram afilhados de “pardos livres”.87 Se naquele mundo das mil e uma desigualdades havia alguma diferença para o sacerdote entre ser pardo livre ou pardo forro, Luciano estava entre os primeiros. Há outro detalhe sobre o vigário. Sua primeira anotação em um livro de batismo de escravos data de 29 de setembro de 1797, como vigário encomendado, ou seja, vindo de fora por vacância de um vigário na matriz.88 Curiosamente, em seis de agosto de 1802, o mesmo vigário que um mês antes empardecera Luciano, ao batizar um escravo deste, referiu-se a ele apenas pelo prenome, pelos sobrenomes imemoriais e pelo status de “capitão”.89 Não parou aí, entretanto. Em quatro de setembro de 1803, o mesmo padre novamente afirmou que Luciano era pardo livre ao assentar o batismo de um filho de “Vicente, crioulo, escravo de Domingos Ribeiro, e de Emerenciana Maria, crioula forra”.90 Enfim, em 16 de março de 1804, no batismo de uma filha de um casal de pardos livres, os padrinhos Luciano e sua esposa Mariana não foram imputados por pardos pelo padre.91
Resumindo, para o vigário colado, que foi quem mais atribuiu qualidade de escravidão a Luciano, o capitão só era pardo livre quando apadrinhava filhos de escravos, um capricho desse padre. Outro padre do Pilar, o coadjutor Antônio Goncalves Grandão, anunciou Luciano apenas como capitão em dois batismos de livres em 10 de janeiro e 25 de março de 1789, mesmo sendo pardo livre um dos pais do batizado.92 Padre Grandão também não assinalou Estevão Gomes Ribeiro como pardo forro quando ele se acompadrou de um casal de pardos forros pais de um inocente livre em cinco de maio de 1788.93 Ser pardo, enfim, depende de circunstâncias relacionais.
A última evidência sobre o fato de o capitão ser egresso da escravidão é vista na “escritura de liberdade” que deu “o capitão Luciano Gomes Ribeiro a sua escrava Isabel Congo”, que talvez fosse aquela mesma Isabel Angola, passada em 28 de agosto de 1793 na cidade do Rio. Na ocasião, “pareceu presente Luciano Gomes Ribeiro Capitão do Terço dos Homens Pardos, assistente na Freguesia do Pilar de Iguaçu”. Luciano possuía, entre muitas outras escravas,
uma preta de nação Congo por nome Isabel e pelos bons serviços que da mesma tem recebido até o presente e juntamente por lhe ter dado a quantia de [32.000] réis em dinheiro corrente que adquiriu por esmola que lhe deram para efeito de se libertar, nunca faltando a obrigação de seu serviço; portanto disse o dito Capitão Luciano Gomes Ribeiro que ele, muito de sua livre vontade [...] lhe dava [...] alforria e carta de liberdade à referida preta Isabel Congo [...].94
Nem se disse que ele era pardo, era apenas capitão do Terço dos Homens Pardos. Mais uma vez Luciano exercitou seu poder senhorial dando continuidade à casa Gomes Ribeiro. Senhores de muitos escravos tendiam a alforriar menos mancípios e com menos frequência (Guedes, 2008; Paiva, 2001). Ele assim se comportava porque era desigual em relação não apenas a seus mancípios, mas também a senhores de poucos escravos. Foi assim que ele diminuiu o inculcado de senhor Bastos Caldas, que só possuía sete. Destarte, é improvável que os oficiais de milícia pretos e pardos pleiteassem “direitos iguais” aos oficiais brancos, como se tem sugerido (Kraay, 2011; Souza, 2020), e até havia pardos e forros em regimentos vindos do reino (Ferreira, 2023, p. 52-56), porque não imperava a ideia fixa de raça.
Ora, Luciano descendia de um capitão sobrinho de um capitão-mor da nobreza da terra conquistadora, o que significa afirmar que ocupar postos nas ordenanças, mesmo de pardos, guardava relação com a família a que se pertencia e com a rede relacional. Os pardos em questão tinham estirpe e posição social para pleitear “direitos iguais”. Lembravam os privilégios imemoriais de seus antepassados ainda vigentes na segunda metade dos setecentos. Logo, os virtuais direitos iguais evocados pelos egressos do cativeiro dirigiam-se, no máximo, apenas aos oficiais das tropas de pardos e pretos, não a todos os pardos e pretos, e ninguém nem se lembrava dos mulatos, negros, mamelucos, cafuzos etc. No antigo regime, a palavra direito evocava privilégios, não igualdade. Sabia disso Luciano quando, em seu requerimento à rainha, pediu os privilégios às terras imemoriais dos Gomes Ribeiro. O senhor pardo capitão também arrogou a si o direito de dar liberdade do modo que desejasse à sua escrava de nação Congo; direito que era um privilégio senhorial, inclusive o de chamá-la de preta, posto que escrava. A elite escravista era parda e sabia que estava no topo da hierarquia social iguaçuana da América portuguesa.
Agradecemos ao professor João Fragoso pela leitura prévia e por todas as informações sobre nobreza da terra e à professora Ana Machado por conceder registros paroquiais da freguesia do Pilar. Somos gratos também aos alunos participantes daqueles projetos, a saber: Ana Melo, Caio Carvalho, Daniel Soares, Gabriel Borges, João Silva, Juliano Mello, Kevin Wetter, Larissa Fragoso, Lethicia Marinho, Mateus Nóbrega, Paolo Simas e Victória Baudson.



