ARTIGO
Received: 20 March 2024
Revised document received: 18 September 2024
Accepted: 16 September 2024
DOI: https://doi.org/10.1590/0104-87752025v41e25007
RESUMO: O artigo busca analisar os izibongo zamakhosi (“poemas de aclamação”) coletados pelo administrador colonial James Stuart, na região da Colônia de Natal e Zululândia, entre as décadas de 1890 e 1920, com atenção aos poemas registrados nas conversações com Mtshayankomo kaMagolwana, o filho de Magolwana kaMkhathini, um dos principais izimbongi (“aclamadores”) zulus entre as décadas de 1810 e 1860. A análise, que considera os izibongo como objetos culturais produzidos em situações de “enquadramento de memória” (expressão de Michael Pollak) e registrados em um contexto marcado pelos avanços do colonialismo, visa refletir sobre as dimensões políticas dos “poemas de aclamação” a sua relação com as dinâmicas de poder nas chefaturas zulus no sudeste da África, bem como nas interpretações do passado promovidas no encontro da cultura escrita e oralidade.
Palavras chave: História da África, África do Sul, Reino Zulu.
ABSTRACT: The article focuses on the analysis of the izibongo zamakhosi (praise poems) collected in the region of the Colony of Natal and Zululand by the colonial administrator James Stuart between the 1890s and 1920s, with a particular focus on the poems recorded in his conversations with Mtshayankomo kaMagolwana, the son of Magolwana kaMkhathini, one of the main Zulu izimbongi “praise poets”) between the 1810s and 1860s. The analysis, which considers the izibongo as cultural objects produced in situations of “memory framing” (to use Michael Pollak’s term) and recorded in a context marked by the advances of colonialism, aims to reflect on the political dimensions of the “praise poems”, their relationship with the power dynamics in the Zulu chiefdoms in southeastern Africa as well as the interpretations of the past promoted in the meeting between written culture and orality.
Keywords: African History, South Africa, Zulu Kingdom.
INTRODUÇÃO
Entre as décadas de 1890 e 1920, James Stuart (1868-1942), um funcionário civil no Departamento de Assuntos Nativos da Colônia de Natal, registrou por escrito suas conversações com aproximadamente duzentos homens e mulheres falantes de isizulu na região de Natal e da Zululândia (atual província de KwaZulu-Natal, na África do Sul). Essas entrevistas foram realizadas em um contexto marcado pela expansão das políticas coloniais e legislações segregacionistas, que visavam, entre outros aspectos, o controle das terras e da mão de obra no sul e sudeste da África. Além disso, o período foi caracterizado pela incorporação das chefaturas tradicionais (amakhosi) à estrutura administrativa colonial, como parte do sistema de governo indireto implementado no sul da África. Stuart, que integrava a administração colonial até meados da década de 1910, compreendia que um controle mais eficaz da população nativa demandava conhecimento das suas formas de organização sociopolítica e dos processos históricos que levaram à formação de comunidades linhageiras e chefaturas nas primeiras décadas do século XIX.
Desse modo, por meio do registro de entrevistas que intercalavam passagens em inglês e em isizulu, Stuart objetivava produzir uma massa documental que fornecesse quadros explicativos aos contextos de reconfiguração política que, nas primeiras décadas do século XIX, resultaram na consolidação do centro de poder zulu. Além disso, buscava avaliar e mapear os impactos das políticas coloniais elaboradas nas últimas décadas do século XIX, sobretudo a cobrança de impostos, exploração do trabalho, apropriação de terras e imposição de sistemas de governo indireto. Dentre os elementos registrados por Stuart nas conversações com seus narradores falantes da língua zulu, constavam os izibongo, os “poemas de aclamação”, um gênero poético transmitido oralmente entre as comunidades falantes da língua isizulu, e voltado à capacidade de nomear e aclamar indivíduos do tempo presente ou mesmo antepassados mortos.
Em especial, destacam-se os izibongo zamakhosi, os poemas voltados a narrar as histórias e memórias das chefaturas zulus, a exemplo de Shaka kaSenzagakhona e seus sucessores, Mpande e Dingane. Destarte, o objetivo principal do artigo incide sobre a análise dos izibongo zamakhosi a partir do James Stuart Archives, com atenção aos poemas registrados nas suas conversações com Mtshayankomo kaMagolwana, o filho de Magolwana kaMkhathini, um dos principais izimbongi (“aclamadores”) entre as décadas de 1810 e 1860. Considerando os izibongo como objetos culturais produzidos em contextos de “enquadramento de memória” (Pollak, 1989) e registrados, por escrito, nas “zonas de contato” (Pratt, 1999) características dos encontros coloniais, o artigo visa refletir sobre as dimensões políticas dos “poemas de aclamação” e sua relação com as dinâmicas de poder nas chefaturas zulus.
ORALIDADE E CULTURAS POLÍTICAS NOS IZIBONGO ZAMAKHOSI
A incorporação de fontes orais à historiografia africana relaciona-se aos processos de ampliação das abordagens, temas e fontes históricas iniciados entre as décadas de 1960 e 1970, contexto marcado pela consolidação dos movimentos de descolonização e as independências no continente africano e, também, de renovação nas formas de investigar os passados da África. Naquele momento, os trabalhos de historiadores como Djibril Tamsir Niane, Amadou Hampâté Bâ e Jan Vansina, contribuíram para as reflexões acerca dos contextos sociais, culturais e políticos da oralidade, bem como a possibilidade de mobilizar as tradições orais como fontes de conhecimento histórico sobre o passado africano. Em termos metodológicos, a mobilização de fontes orais demandava uma atenção especial às formas, métodos e redes de transmissão dos testemunhos; a relação entre memória, esquecimento e as distorções do testemunho; as estruturas internas dos testemunhos, e sua relação com (outros) gêneros literários; e, entre outros aspectos, os significados sociais e culturais do testemunho transmitido oralmente (Vansina, 1965).
A utilização de fontes orais ou metodologias de História Oral também pode ser observada na historiografia no sul da África pelo menos desde a segunda metade da década de 1970. A título de exemplos, pode-se citar os projetos de História Oral voltados à publicação de testemunhos de trabalhadores sul-africanos nas últimas décadas do apartheid, tal como The Sun Shall Rise for the Workers (1984), no âmbito de importante atuação política dos movimentos operários nas lutas contra o regime segregacionista; as investigações na história social, a exemplo de pesquisas sobre trabalhadores rurais e os processos de proletarização (Sparks, 2020); os estudos de gênero e história das mulheres sul-africanas a partir de relatos orais (Onselen, 1993; Bozzoli; Nkotsoe, 1998); ou, ainda, projetos institucionais como o Swaziland Oral History Project, estabelecido em 1985 sob coordenação da historiadora Carolyn Hamilton, com o escopo de estabelecer um arquivo de testemunhos sobre a história swazi, a publicação de transcrições de entrevistas concernentes à “história pré-colonial da Suazilândia” e à “popularização da história pré-colonial” (Hamilton, 1985, p. 383), ou ainda o The Western Cape Oral History Project, também estabelecido na década de 1980, com o fito de produzir acervos de entrevistas inspiradas na história social (Bickford-Smith, Field, Glaser, 2001).
A difusão da História Oral ou da mobilização de testemunhos orais pelos historiadores sul-africanos relaciona-se a um momento de recepção dos aportes teórico-metodológicos da história social, a exemplo da possibilidade de produzir uma “história vista de baixo” por meio da oralidade; de ampliação dos estudos sobre as chamadas sociedades “pré-coloniais” pela análise da memória individual e coletiva dos seus descendentes; de diálogos com a Antropologia, e a possibilidade de utilização de métodos etnográficos para coletar e analisar testemunhos; como também dos contextos políticos a partir do fim do apartheid e da criação da Truth and Reconciliation Comission em 1996, cujo trabalho de registro de testemunhos das vítimas do regime encorajou os historiadores a promover perguntas acerca das relações entre o passado e o presente a partir de contranarrativas não-oficiais (Wieder, 2004, p. 24). Mais recentemente, a historiografia sul-africana tem promovido novas reflexões acerca do uso da oralidade na investigação histórica, visando, sobretudo, abandonar as formas coloniais de compreender o passado.
Conforme Isabel Hofmeyr (1995), apesar da “novidade” representada pela incorporação da História Oral na produção historiográfica recente no sul e sudeste da África, as práticas culturais envolvendo o registro de testemunhos orais são muito mais antigas e podem ser vistas como um dos aspectos predominantes no mundo colonial: administradores coloniais, funcionários públicos, missionários, educadores passaram parte significativa de suas carreiras lidando ou registrando testemunhos orais (Hofmeyr, 1995). Hofmeyr aponta o fato de que algumas tendências da historiografia recente tomaram os testemunhos orais como fontes dotadas de maior autenticidade, vestígios mais fidedignos das formas tradicionais de vida em comunidade, ou ainda com pouca atenção às relações entre a oralidade e outras formas de transmissão testemunhal – a exemplo da cultura escrita. Desse modo, enfatiza a importância de atentar-se à “hibridez” nos testemunhos orais, e conclui que tais documentos não precisam necessariamente ser vistos “como inteiramente ‘orais’ ou mesmo inteiramente escritos e, uma vez conceitualizados desta forma, podem contribuir muito para abrir o pensamento sobre a memória, que é muitas vezes considerada ‘oral’” (Hofmeyr, 1995, p. 25). Afinal de contas, “os processos de memória que podem se basear na ideia de escrita ou na ideia de fala como recursos metafóricos e simbólicos”1 (Hofmeyr, 1995, p. 25).
Essas reflexões acerca dos entrelaçamentos entre escrita e oralidade no sul da África, fornecem subsídios para a investigação histórica dos izibongo, os “poemas de aclamação” (praise poems), gênero literário difundido entre comunidades falantes de isizulu, isinNebele, ou siSwati e com gênero correlatos em comunidades de línguas sotho-tswana (onde são conhecidos como maboko ou lithoko) (Gunner; Gwala, 1991, p.1), numa vasta região de fronteiras entre os atuais territórios da África do Sul, Moçambique e Eswatini.Nesta análise,daremos ênfase aos contextos de registro escrito dessa produção oral, realizados por administradores coloniais entre fins do século XIX e início do século XX. Ao “aclamar” um indivíduo ou ancestral, os “poemas de aclamação” contribuíam para a construção das memórias coletivas por meio dos “enquadramentos de memória” (Pollak, 1989), a partir de complexas relações entre lembrar e esquecer. No que se refere às comunidades falantes de isizulu, nas quais a poesia é um elemento tão recorrente quanto a fala cotidiana (Kunene, 1993, p. 212), os izibongo adotaram, ao longo do tempo, uma “forma artística altamente política” (Gunner, 1989, p. 49), capaz de compatibilizar formas de aclamar e, ao mesmo tempo, de contestar a legitimidade da autoridade política de chefes.
De acordo com Kai Kresse (1998), os izibongo constituem um gênero de poesia oralizada, que se difundiu como resultado de processos históricos e de contatos interculturais entre diversas comunidades no sudeste africano. O termo izibongo, por sua vez, deriva do verbo bonga em isizulu, que pode significar “aclamar” ou “venerar”, ao mesmo tempo em que pode ser utilizado para designar os nomes (isibongo) das comunidades linhageiras – o qual, comumente, confunde-se com os nomes do antepassado patrilinear fundador da comunidade. Desse modo, esse termo congrega a capacidade de utilização da palavra falada (ou escrita) para marcar uma relação com a ancestralidade, produzir senso de genealogia, e também evocar a memória individual e coletiva de uma linhagem a partir da evocação do nome de um indivíduo. Os izibongo formam um gênero poético que cumpre a função de nomear, identificar e atribuir significado ao nome de uma pessoa, animal ou objeto. Podem assumir diversas formas, mas os izibongo zamakhosi (“poemas aclamatórios dos chefes”) ocupam um lugar especial na consolidação da unidade política das comunidades linhageiras, por meio da evocação das trajetórias de chefaturas do presente e do passado, integrando o discurso político e as relações de poder (Gunner; Gwala, 1991, p. 28-29). Os izibongo zamakhosi podem comemorar os feitos e qualidades de uma autoridade tradicional e simultaneamente reverberar os sentimentos da comunidade acerca desta mesma autoridade: insatisfação, incerteza, inquietação e outros ritos de contestação podem ser articulados no poema aclamatório. Assim, formam uma “tradição flexível, capaz de interligar arte e política na vida social, baseada numa tradição de reflexão que é, por si própria, flexível: […] a política, por si própria, é parte da estética do izibongo”2 (Kresse, 1998, p. 172-175).
Os izibongo são compostos e recitados pelos izimbongi (“aclamadores” – ou, no singular, imbongi, “aclamador”), função que poderia ser adotada por qualquer membro da comunidade, embora os poemas dedicados a chefes sejam atribuídos a um grupo específico de poetas, que mobilizam performances baseadas em uma linguagem corporal, por meio de gestos, mímicas e o uso de um ritmo acelerado de voz. A declamação dos izibongo ocorria em contextos de sociabilidade e ritualística política e religiosa, a exemplo de casamentos, funerais, cerimônias de divinação ou invocação de ancestrais, em festivais que envolviam ampla participação da comunidade, instâncias nas quais a recitação dos izibongo se transformava em elemento constitutivo do ritual. A historiografia demonstra que os izibongo seguem uma estrutura básica: pela declamação de uma série de versos que formam uma lista de feitos e “praise-names” do indivíduo aclamado pelo poema. Os izibongo apresentam “estruturas repetitivas, tais como aliterações e diversas formas de paralelismos. Assonâncias são predominantes […], e uma marca da qualidade literária são as suas diversas formas de ‘conectivos’, isto é, frases longas e aposições conectadas ao nome aclamado”3 (Kresse, 1998, p. 175).
Um exemplo dessa estrutura recorrente pode ser observado em um imbongo dedicado a Shaka (c. 1787-1828), o chefe (inkosi) responsável pelo processo de consolidação e ampliação do centro de poder Zulu na década de 1810, por meio da mobilização de guerreiros organizados em regimentos etários (amabutho) e pelo assujeitamento voluntário (ukukhonza) de dezenas de comunidades linhageiras na região entre os rios Thukela, Mhlatuze e Phongolo (atual província de KwaZulu-Natal, na África do Sul), a exemplo dos abaQwabe, amaButhelezi, amaNdwandwe, entre outros. De autoria desconhecida, o izibongo zeNkosi uTshaka foi coletado por Robert Samuelson na década de 1920:
[…] Ele pacificou todas as nações
Quanto tempo irá demorar?
Hho! Hho! Eya Ehhe!
Ele conquistou os inimigos.
Ele conquistou nações. […]
O estrondoso-enquanto-sentado, filho de Menzi.
O pássaro que voa acima dos outros.
O leão que domina sobre outros leões
(Samuelson, In: Malaba, 1986, p. 23-26).4
Longe de apresentá-lo como um tirano e déspota, conforme afirmavam muitos viajantes e colonos europeus ao longo do século XIX que perpetuaram a ideia de um “Napoleão Negro” responsável pelo esvaziamento populacional e migração forçada em um vasto território (Hamilton, 1998), o imbongo nomeia uma série de características associadas às proezas militares de Shaka, articulando a natureza predatória de um leão com a velocidade e agilidade de um pássaro. O termo “ilembe” pode ser, alternativamente, traduzido como “machado” ou “lança”, retomando a ideia de mobilidade e agilidade enquanto proezas aclamadas e associadas à Shaka e, simultaneamente, à sua linhagem paterna: a referência a Menzi, termo em isizulu que significa “criador”, está relacionado a Senzangakhona, reforçando, pela patrilinearidade, a legitimidade política de Shaka. O imbongo lista ainda chefaturas dominadas ou subjugadas por Shaka, reafirmando proezas militares:
Ele devorou uMtusi, filho de Makedama,
Ele devorou uNjiya, filho de Lutuzula
Ele devorou Mvakela, filho de Dhlaba
Ele devorou Duluzana, filho de amaChube
E os amuletos são devorados por Zokufa e Sigananda […]
O trovão que soou por trás do [assentamento] eKuqobekeni
e arrebatou os escudos do [regimento] Maphela
Ele devorou Sikhunyane
Filho de Zwide
Ele devorou Mphepha
Filho de Zwide
Ele devorou Dayingubo
Filho de Zwide. […]
(Samuelson, In: Malaba, 1986, p. 29-30).
A recorrência aos termos “Wadhla” ou “Wamudhla” (derivados do verbo Ukudhla, isto é, “comer” ou “devorar”) assume um sentido metafórico, referindo-se às chefaturas que foram dominadas por Shaka e seus guerreiros, e cujas comunidades, longe de serem aniquiladas ou forçadas a migrar, foram incorporadas ao centro de poder Zulu. O poema aclamatório também nomeia autoridades tradicionais anteriormente assujeitados a Zwide kaLanga, o inkosi abakwaNdwandwe cuja derrota, em 1820, marcou, na memória coletiva, a consolidação da esfera de poder político Zulu na região do rio Mhlatuze. Ao fornecer uma listagem de nomes de chefaturas conquistadas ou assujeitadas, o imbongo estabelecia mais do que informações factuais acerca do processo de formação do centro de poder Zulu nas primeiras décadas do século XIX, pois produzia um discurso altamente político voltado a lembrar e ressignificar um contexto de reconfiguração de poderes e formação de novas formas de assujeitamento político, metaforizadas, no poema, pela imagem do predador que devora suas presas.
Conforme Gunner e Gwala (1991), izibongo como esse desempenham o ato de “nomear” um indivíduo, “identificar uma pessoa, encarnar a sua personalidade e […] fornecer um vínculo com a sua comunidade, linhagem e origens”5, e também exercem funções políticas: afinal de contas, a “nomeação é um processo de objetificação, de modo que, uma vez que o nome seja aclamado, ou auto aclamado, a sua contestação ou remoção escapa ao controle do indivíduo”6 (Gunner; Gwala, 1991, p. 3). Além disso, convém frisar que a década de 1920, isto é, o período no qual esses e outros izibongo foram coletados, foi um período marcado pela formação dos primeiros movimentos nacionalistas zulus, a exemplo do Inkatha, o qual recuperou certa idealização de Shaka como figura fundacional e força motriz no processo de transformação social e política no sudeste africano e promoveu uma ideia de “nação zulu” e “zuluness” visando o reestabelecimento de sua autonomia política (COPE, 1990). Desse modo, é possível que, ao “nomear” Shaka e suas proezas, o aclamador em questão reatualizava/ressignificava a memória do inkosi para novos contextos políticos.
Entrelaçado ao seu papel político, os izibongo marcavam uma relação contínua do passado e presente, marcando a continuidade da existência de ancestrais, e desempenhavam funções religiosas. Afinal , o “conceito de uma contínua presença de ancestrais é fundamental à visão de mundo zulu”7 (Ngcobo, Rycroft, 1988, p. 25), por meio de vínculos de interdependência entre os ancestrais, seus descendentes vivos e aqueles que ocupam posição de senioridade dentro da linhagem. Dessa forma, os izibongo desempenhavam um papel de intermediação entre os vivos e os mortos, por meio da nomeação e aclamação. A declamação dos izibongo, no entanto, não formava um evento isolado, e seus contextos usualmente envolviam outros rituais como, por exemplo, libação e sacrifício animal, principalmente em situações de crise e doenças, para evocar a intercessão ou aprovação de ancestrais nas colheitas e em outros ritos, como por exemplo em casamentos. Outro ritual religioso no qual os izibongo desempenhavam um papel importante era o ukubuyisa, cerimônia fúnebre realizada cerca de um ano após o enterro dos mortos, com o objetivo de reconciliar com o indivíduo morto e trazê-lo de volta ao lar, momento que marcava a transformação social do familiar morto em ancestral.
“AGORA OUÇAM! O ELEFANTE DESTRUIU TUDO; NÃO HÁ NADA MAIS!”: MEMÓRIA E ORALIDADE NOS TESTEMUNHOS DE MTSHAYANKOMO KAMAGOLWANA
Conforme Ndlovu (2017), os izimbongi responsáveis pela produção dos poemas aclamatórios dos chefes das linhagens dominantes do centro de poder Zulu entre as décadas de 1810 a 1860, a exemplo de Magolwana kaMkhathini Jiyane e Mshongweni, ocupavam a função de “intelectuais públicos”, fornecendo “ideias e materiais arquivísticos” concernentes às “percepções e histórias de vida dos monarcas zulus”8 (Ndlovu, 2017, p. 34), tais como Shaka e seu sucessor e meio-irmão, Dingane kaSenzangakhona (c. 1795-1840), ou produziam aclamações a membros das linhagens dominantes, como as amakhosikazi (mulheres da elite), tal qual Mnkabayi kaJama (c. 1750-1843). A performance pública desses izimbongi mobilizava um “discurso intelectual, ao utilizar izibongo como uma forma de história pública. As suas performances […] davam expressão a momentos de intensa ou elaborada contestação historiográfica, notavelmente concentrando-se nas disputas sucessórias ou crises políticas”9 (Ndlovu, 2017, p. 37) que marcaram o processo de consolidação do centro de poder Zulu na primeira metade do século XIX.
Desse modo, os imbongi produziam um tipo de discurso semelhante ao que Jordan Ngubane (1974) descreve como umlando (“história”), e que designa uma “forma de narrativa utilizada pelos antigos zulus quando falavam para si mesmos, sobre si mesmos. Umlando era um veículo para desenvolver a sabedoria coletiva, ou a força de uma família, de uma linhagem ou uma nação. […] O narrador, ou umlandi, é [visto pelo seu público] como uma testemunha da história”10 (Ngubane, 1974, p. 2-3). Enquanto uma forma de narrativa ou discurso sobre o passado, os izibongo podem ser vistos como uma manifestação de tradição oral – considerando, destarte, o conceito de “tradição” como “um discurso por meio do qual se estabelecem interesses do presente em termos do passado”11 (Spear, 2003, p. 6). Os poemas sãoaltamente suscetíveis a transformações e ressignificações em novos contextos políticos ou culturais, e cujos versos, além de fornecer informações mais factuais, promovem interpretações sobre as culturas políticas e as formas de lembrar as reconfigurações de poder que afetavam as comunidades linhageiras zulus.
Uma possibilidade de análise das performances políticas dos izibongo zamakhosi produzidos por homens e mulheres falantes de isizulu nas primeiras décadas do século XIX, e transmitido por seus descendentes, encontra-se nos registros realizados, entre as décadas de 1890 e 1920, pelo administrador colonial e funcionário civil James Stuart (1868-1942), nas regiões ocupadas pela Colônia de Natal e Zululândia. A trajetória de James Stuart coincide com um momento de expansão das políticas colonialistas no sul da África, sobretudo em decorrência da exploração de minérios preciosos (ouro e diamantes) e por esforços mobilizados pela elite colonial e o colonato branco em controlar a mão de obra e as terras das populações no sul e sudeste africano. O período em questão foi marcado pela invasão dos territórios zulus, que, até o final da década de 1870, haviam preservado a sua autonomia política a partir de uma série de relações diplomáticas tensas com os poderes coloniais na região. A invasão e anexação, empreendida pelos britânicos no final da década de 1880, levou à proletarização forçada de parte da população zulu, implementação de taxas e impostos coloniais, imposição da autoridade colonial e cooptação das chefaturas como parte do sistema de governo indireto (Bhebe, 2010; Chanaiwa, 2010). Isso ocorreu na medida em que “as autoridades coloniais buscavam incorporar formas políticas preexistentes, com suas próprias estruturas de autoridade e processos políticos, em estruturas coloniais, as quais, por sua vez, em processo de constituição em resposta às condições locais”12 (Spear, 2003, p. 4).
James Stuart, que nasceu em Pietermaritzburg (na então Colônia de Natal, atual África do Sul), passou boa parte de sua infância em Greytown e Ixopo, onde seu pai ocupava a função de magistrado colonial. Ao longo de sua trajetória, Stuart, que recebeu instrução formal em instituições locais e na metrópole, tornou-se fluente na língua isizulu, e atuou a serviço da administração colonial no Departamento de Assuntos Nativos: como magistrado britânico em Eshowe (Zululândia), posteriormente como intérprete na Suazilândia e magistrado em Ingwavuma, na Tongolândia. Também trabalhou temporariamente em diversos centros da colônia de Natal (Stanger, Umzinto, Pietermaritzburg, Howick, Mpendle e Ladysmith), e, em 1909, foi nomeado para o cargo de secretário-assistente no Departamento de Assuntos Nativos. Com a unificação sul-africana em 1910, Stuart foi transferido para Pretória, onde permaneceu até sua aposentadoria, dois anos depois (Wright, 2019; Hamilton, 2011).
Ao longo desse período, Stuart iniciou um projeto intelectual que o ocupou entre as décadas de 1890 e 1920: a coleta e registro escrito de testemunhos orais fornecidos por homens e mulheres falantes do isizulu, especialmente no que dizia respeito à história e aos “costumes” zulus. Assim, Stuart entrevistou aproximadamente duzentos informantes, intercalando passagens em inglês e isizulu, e registrou informações meticulosas e elementos paratextuais, tais como local e datas das entrevistas e, em alguns casos, notas biográficas dos seus entrevistados. O projeto de Stuart era marcado por uma ambiguidade fundamental, vinculada à sua trajetória enquanto parte da administração colonial: ele acreditava que a codificação de leis costumeiras voltadas ao controle das populações africanas exigia um conhecimento adequado, por parte dos funcionários coloniais, das culturas e formas de organização sociopolítica dos grupos africanos, especialmente dos zulus, para elaborar políticas nativas mais eficazes. Assim, na visão do administrador colonial, as “respostas para a ‘questão nativa’ residiam em um conhecimento histórico da sociedade africana. Não apenas era preciso realizar pesquisas, e uma investigação detalhada, mas também registrar e preservar, tanto para os africanos interessados quanto para os administradores”13 (Hamilton, 1998, p. 142). No período posterior à sua aposentadoria, Stuart passou a defender, de modo mais evidente, a manutenção de um “sistema tribal” para as populações categorizadas como nativas, o que ele considerava como a pedra fundamental para uma política nativa adequada, baseando-se numa interpretação “tribal” das sociedades africanas (Mamdani, 2012) – o que demandava, sua perspectiva de Stuart, profundo conhecimento dos passados vistos como tradicionais a partir de seus informantes falantes de isizulu (Wright, 2015).
Dentre a miríade de informações coletadas por James Stuart ao longo de centenas de conversações sobre o passado e o presente, o administrador colonial registrou dezenas de izibongo, além de informações sobre as vidas dos principais izimbongi vinculados ao centro de poder zulu. Convém frisar que, pelo menos do ponto de vista de James Stuart, ganhava espaço uma interpretação da história do centro de poder zulu: como um reino que, fortemente centralizado desde sua fundação entre as décadas de 1810 e 1820, teria sido o epicentro de transformações sociais, políticas e econômicas que reverberaram por parte significativa do sudeste africano. O interesse de Stuart por Shaka e seus sucessores também incluía certa noção de “grandes vultos” como figuras representativas de um determinado período histórico (Richner, 2005). No entanto, os homens e mulheres entrevistados por Stuart, muitos dos quais não necessariamente se identificavam como zulus, forneceram informações que suplantavam estas balizas temporais, remontando principalmente ao século XVIII, e a processos de formação de outros centros de poder no sudeste africano – a exemplo dos amaNdwandwe, abakwaMthethwa, abaQwabe – demarcando, portanto, uma multiplicidade de experiências que foram, posteriormente, suplantadas por uma historiografia concentrada na ideia do reino Zulu como epicentro de mudanças políticas e econômicas. Diante disso, a historiografia sul-africana recente (Hamilton, 2011; Wright, 2015) tem apontado ao modo como os registros de Stuart foram produzidos a partir da interação e do diálogo – ainda que nem sempre horizontalizado – entre um agente do colonialismo e seus informantes falantes de isizulu, em uma situação de contato, e também de dissonâncias, na interlocução de práticas do registro escrito e de expressões culturais da oralidade.
Um exemplo dessas conversações pode ser localizado nas entrevistas realizadas com Mtshayankono kaMagolwana, da linhagem Jiyana. Seu pai, Magolwana kaMkhathini, foi um dos principais izimbongi na primeira metade do século XIX, e diretamente vinculado ao centro de poder zulu, tendo atuado como imbongi para os chefes (amakhosi) da linhagem dominante: Shaka e seus sucessores Dingane e Mpande kaSenzangakhona (1798-1872). Stuart encontrou-se com Mtshayankomo kaMagolwana em diversas ocasiões em janeiro de 1922, com interesse especial nos relatos intergeracionais acerca do processo de formação e expansão do centro de poder Zulu, e os diferentes izibongo declamados por Magolwana e transmitidos por seus filhos – afinal de contas, além de Mtshayankomo declamar os izibongo para Cetshwayo kaMpande (1826-1884), o último inkhosi zulu independente, afirmava que “seu irmão Ngwegweni, que morreu pouco depois de Cetshwayo, era um excelente imbongi. Ele aclamava Mpande e Cetshwayo, e poderia fazê-lo da manhã até o meio-dia. Ele também aclamava Dingane, embora não na mesma extensão”14 (Stuart, 1986, p. 141, grifos do autor). Com relação ao seu pai, Magolwana, complementa que ele detinha a capacidade de declamar os izibongo dedicados à rememorar a genealogia dos principais chefes zulus, e de outros membros da linhagem dominante, especialmente as amakhosikazi: Magolwana “declamava as aclamações de Mageba, Punga, Ndaba, Jama, Senzangakhona, Tshaka, Dingana, Mnkabayi, Mpande, Cetshwayo, Nzibe, Gqugqu, Mbuyazi, Tshonkweni, Somklwana, Dabulesinye, Mantantashiya, Mdumba […], Bibi, Nandi, Mpikasi, Songiya, Langazana, Mtembazi […]”15 (Stuart, 1986, p. 144, grifos do autor).
Com base nos testemunhos fornecidos a James Stuart, sabe-se que Magolwana nasceu por volta do final do século XVIII, na região de kwaCeza, e descendia da linhagem Ntombela – que foi, parcial e gradativamente assimilada à linhagem Jiyana por meio de casamentos. De acordo com o testemunho de Mtshayankono, “o grande chefe dos Jiyana era Kondhlo do povo Ntshali” (Stuart, 1986, p. 114), indicando, portanto, que os Jiyana também estavam originalmente vinculadas ou assujeitadas às chefaturas amaNtshali, que foram atacadas e assujeitadas pelos zulus por volta de 1817 (ELDREDGE, 2014). Desse modo, Magolwana foi incorporado por Shaka ao regimento (ibutho) Bekenya, no assentamento (isigodlo) Dukuza e, conforme os testemunhos fornecidos por outro informante de Stuart, Baleni kaSilwana, Magolwana foi executado sob ordens de Mpande em decorrência de disputas por gado no início da década de 1860 (Stuart, 1976, p. 30).
Mtshayankomo, também, foi incorporado aos grupos amabutho durante a chefatura de Cetshwayo kaMpande, tendo sido parte do regimento inGobamakhosi. Sabe-se que o inGobamakhosi foi o primeiro regimento composto por Cetshwayo após assumir o poder em 1872, e foi responsável, conforme os relatos de Mtshayankomo, por expedições punitivas contra chefaturas que, naquele período, tentavam romper com as interferências da linhagem dominante zulu nas relações de parentesco locais (Stuart, 1986, p. 133). O regimento lutou durante a guerra Anglo-Zulu em 1879, e foi dissolvido após a derrota zulu e a incorporação do território às posses britânicas. Desse modo, pode-se lançar a hipótese de que Mtshayankomo teve o mesmo destino de inúmeros guerreiros zulus entre os anos de 1870 e 1880: forçados a converter-se em trabalhadores nas fazendas controladas por proprietários brancos, na condição de trabalho sazonal e migrante nos campos de mineração, ou ainda incorporados à administração colonial, por exemplo, em funções de policiamento ou na coleta de impostos. Esses processos, intensificados entre as décadas de 1880 e 1890, contribuíram para reforçar certa sensação de crise política e da ordem moral representada por noções tradicionais de autoridade e nas relações das chefaturas zulus com as linhagens dominantes. No período em questão, marcado pela institucionalização de chefaturas designadas pela administração colonial, e submetidas a uma autoridade colonial distante, homens e mulheres da geração de Mtshayankomo muito possivelmente compartilhavam de um senso de inquietação e incerteza frente aos avanços do Estado colonial.
Além disso, vale relembrar que o período em que Mtshanyankomo narrou suas histórias a Stuart, isto é, a primeira metade da década de 1920, também foi marcada – como mencionado acima – pela formação dos primeiros movimentos nacionalistas zulus, a exemplo da Zulu National Congress (mais tarde renomeado de Inkatha), e que, reunidos em torno do novo inkosi Solomon kaDinuzulu (1891-1933), “claramente observavam que a unidade zulu iria ressuscitar o poder político da linhagem real zulu” (Cope, 1990, p 434)16. Conforme Nicholas Cope (1990), tal sentimento de pertencimento à “nação zulu” estava relacionado a um contexto de influência da cristianização e da educação formal (principalmente em grupos zulus assimilados, os kholwa), difusão de ideias pan-africanistas, crescimento da pobreza rural e perda de terras decorrente da legislação segregacionista, e diminuição do poder político e social das autoridades tradicionais, identificadas cada vez mais com a estrutura administrativa colonial. Símbolos políticos e discursos sobre o passado zulu foram recuperados nesse período como representativos de uma ideia de “nação zulu”, cuja manutenção era necessária diante de um estado de crise política e moral. Assim, é possível que, direta ou indiretamente, ao evocar uma visão do passado zulu centrada em figuras como Shaka e seus sucessores, Mtshayankomo estivesse em diálogo com novas experiências políticas da década de 1920, integrando portanto o conjunto de “processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias” (Pollak, 1989, p. 4) – e indo ao encontro de algumas das convicções de Stuart acerca do passado “tribal” das sociedades falantes da língua zulu e dos “grandes vultos” (como Shaka) que teriam moldado a “nação zulu”.
Conforme os testemunhos de Mtshayankomo, além de ter desempenhado funções guerreiras, Magolwana tornou-se um dos principais izimbongi de seu tempo, reunindo, em seus poemas, instâncias de aclamação mas também de críticas e denúncias aos chefes nomeados, resultando em “complexas formulações culturais e interpretações da história do reino Zulu pelas lentes do izibongo”17 (Ndlovu, 2017, p. 37). Desse modo, ainda segundo Ndlovu (2017), Magolwana promoveu uma série de inovações nas fórmulas dos izibongo, articulando, além de descrições de características físicas dos indivíduos nomeados e aclamados, elementos sociopolíticos ao declamar as trajetórias das chefaturas zulus. Um exemplo disso fica evidente nos poemas dedicados a Dingane, que é simultaneamente aclamado como o salvador de um povo oprimido por seu antecessor (Shaka), mas também atribuindo a ele a responsabilidade por um estado de incerteza política e insegurança:
[“Escute esta pessoa chorando!
Escute esta pessoa chorando!
Por que você está chorando?
Ele está chorando.
Pelo que você está chamando?
Ele está chamando pelo gado.
Você está chamando pelo seu gado?
Então, eles estão vindo buscá-lo, em Bulawayo?
Você vê que eles agora estão sendo levados?”]
(Stuart, 1925, p. 108, tradução livre).
O imbongo em questão está associado a um contexto no qual Dingane ascendeu à chefatura zulu após envolver-se no assassinato de seu antecessor, Shaka, e em meio a conflitos sucessórios com outro meio-irmão, Mhlangana kaSenzangakhona, morto em 1828. Diversos izibongo produzidos nesse período alinhavam-se aos novos contextos políticos, e caracterizavam Dingane como uma espécie de “salvador”, o qual teria resgatado as chefaturas zulus da “tirania” de Shaka. Contudo, o poema em questão também alude à violência que marcou as disputas sucessórias em sua ascensão e os conflitos gerados entre os chefes zulus ao longo desse processo – sendo Bulawayo uma referência ao assentamento principal de Shaka, assassinado por ordens de seus irmãos Dingane e Mhlangana. A perda de gado, nesse e em outros poemas, era interpretado como um sinal de que “deveria haver guerra” (Stuart, 1976, p. 30).
Outros episódios durante a chefatura de Dingane, como, por exemplo, a execução de lideranças bôeres que adentravam o território zulu na metade da década de 1830 também eram rememoradas pelos izibongo em tons contestatórios. Na perspectiva de diversos “poemas aclamatórios” produzidos no período em questão, essas ações somavam-se a um conjunto de medidas atribuídas a Dingane, e que suscitavam críticas de outras chefaturas zulus, a exemplo de uma série de expedições punitivas em territórios adjacentes à esfera de influência política zulu, ou ainda execuções de proprietários de gado com o objetivo de incorporar o gado ao seu assentamento principal (isigodlo) de Dingane, uMgungundlovu. Os izibongo compostos e declamados por Magolwana durante a chefatura do sucessor de Dingane, Mpande, e registrados por James Stuart a partir dos testemunhos de Mtshayankomo, também incluíam os versos a seguir:
Ele se aproxima, o bigodudo de Mgungundlovu!
Ele se aproxima, o bigodudo de Mgungundlovu!
Você matou os bôeres!
Você lançou uma lança maligna na terra dos Zulus!
Você lançou uma lança maligna!
Você lançou-a em nossos próprios corações, não foi?
É esse um coração corajoso?
(Stuart, 1925, p. 110, tradução livre)
Outro elemento que ressalta dos relatos de Mtshayankomo, assim como registrado por James Stuart, diz respeito à performance dos izibongo, enfatizando um contexto social no qual os chefes (amakhosi) integravam uma parte fundamental do público ouvinte em rituais como o umkosi, a celebração dos “primeiros frutos”, e que, ao longo do Oitocentos, foi mobilizada como estratégia política para consolidar a autoridade das linhagens dominantes zulus. Desse modo, Magolwana, por meio dos seus poemas, aclamava e reforçava o prestígio dos chefes, representando-os diante do público, mas também atuando como um intermediário entre os amakhosi e suas comunidades:
Quando ele estava prestes a iniciar a aclamação, meu pai Magolwana declamava:
Agora ouçam!
O elefante destruiu tudo; não há nada mais!
O elefante destruiu tudo; hão há nada mais!
Os galhos das árvores foram quebrados, não há nada mais!
Apenas restavam os tocos arrancados para se ver,
Eles haviam sido virados de cabeça para baixo!
E enquanto foram virados, tantos homens morreram!18
Isto era o que ele gritava quando estava prestes a iniciar a aclamação [“bonga-ing”], depois de finalizar a introdução […]. Ele costumava começar com os mais antigos reis e continuar em ordem, finalizando com o rei atual. No final de cada aclamação ao rei, ele dizia ‘O elefante o devorou! Você é o silencioso, grande leão! Você é o silencioso, o grande céu acima! […]” (Stuart, 1986, p. 105, grifos do autor).19
Ao evocar a metáfora de um “elefante” que “destruiu tudo”, e, além de destruir “galhos das árvores”, arranca seus caules de “cabeça para baixo”, o izibongo caracteriza as chefaturas zulus como forças responsáveis por profundas transformações políticas e pela constituição de novas configurações de poder e relações políticas. Isso contrapõe a capacidade de ação guerreira, por meio das metáforas do “elefante” e do “grande leão”, com outras formas de assujeitamento, afinal, Magolwana, como relatado por seu filho Mtshayankomo, afirmava a capacidade dos amakhosi serem “silenciosos”. Aqui, assim como em outras instâncias, o imbongi desempenha um papel político evidente, ao produzir um discurso normativo, voltado à legitimação da autoridade política dos amakhosi pertencentes à linhagem dominante. Ao rememorar essa ritualística de poder em um contexto marcado pelo avanço dos sistemas de governo indireto mas, também, pelos primeiros movimentos nacionalistas zulus, poemas como esse possivelmente tentavam marcar na memória uma certa ordem política concentrada no poder de autoridades tradicionais – uma ordem moral esfacelada diante da expansão colonial – buscando, nas ações de chefes como Dingane e Mpande, quadros explicativos para a desestabilização dessa mesma ordem política.
Além disso, Mtshayankomo descreve, com maiores detalhes, a performance do imbongi em ação, ao afirmar que “Magolwana não pausava para descansar antes de terminar as aclamações de um rei em particular […]. Logo após finalizar os louvores ao rei […] ele exclama duas ou três dessas frases e ele pisoteia o chão com seus pés, como se estivesse giyaing [avançando com sua lança e escudo], mas pisoteia no mesmo ponto, com força, de modo que todas suas vestes se movem para frente e para trás” (Stuart, 1986, p. 107)20. O imbongi, continua Mtshayankomo, “está vestido nas suas melhores [vestes]”, e “caminha enquanto ele declama. O rei escuta com sua assembleia o tempo todo, e de vez em quando assovia com aprovação; mas não diz nada.”21 (Stuart, 1986, p. 107, grifos do autor). Mtshayankomo acrescenta:
Magolwana costumava nomear [ou aclamar, i.e. bonga] Dingane completamente antes de Mpande, embora eles tenham lutado juntos. Mpande gostava de ouvir as aclamações de Dingane, pois ele não estava mais vivo. Mpande se recusava a deixar Magolwana voltar para casa; ele queria que Magolwana ficassem junto a ele o tempo todo. Quando Magolwana estava prestes a iniciar as aclamações de Mpande, ele gritava ‘Vá e relate a Mapita e Tokotoko e Nzobo que o animal selvagem chegou em Ngungundhlovu’ (referindo-se a Mpande). Ele dizia isso porque este umuzi [assentamento] era agora de Mpande, pois ele havia condenado Dingane a morte. Mapita e Tokotoko então tampavam seus ouvidos, pois ele os invocaria na sua presença. Eles não ouviriam mais nada até começar a aclamar Mpande. Quando ele terminou as aclamações de Mpande, ele gritava ‘Saúdem, agora, alvo das troças feitas pelos amanduna’ [amaNduna, chefes guerreiros] (todos aqueles que foram mortos, muitos deles). ‘Eles não gostam de você; você os derrotou com azagaias!’ Ele então pisotearia com força no chão. 22(Stuart, 1986, p. 107, grifos do autor).
No conjunto, essas e outras evidências coletadas nos testemunhos de Mtshayankomo kaMagolwana apontam a formas de (re)lembrar, por meio da poesia oralizada, um contexto político perpassado por conflitos entre membros da linhagem dominante zulu. Afinal de contas, o período entre o final da década de 1830 e início dos anos de 1840 foi marcado por disputas entre o inkosi Dingane, que ocupava a chefatura zulu desde 1828, e seu meio-irmão, Mpande. As disputas pelo poder entre Dingane e Mpande intensificaram-se a partir de 1838, momento em que o território zulu passou a ser invadido por milhares de voortrekkers, famílias bôeres que migraram da Colônia do Cabo rumo ao interior e que entraram em conflito com as forças de Dingane. Na tentativa de compensar a perda de terras diante do avanço dos voortrekkers, Dingane promoveu, sem sucesso, incursões militares no vale do rio Lubuye, com o objetivo de assujeitar comunidades swazi estabelecidas na região. Poucos meses depois, Mpande recorreu à alianças políticas com personagens influentes na elite política zulu, a exemplo de Maphita kaSojiyisa, o chefe da linhagem Mandlakazi e figura extremamente importante na sociedade zulu do período; e também buscou apoio dos migrantes bôeres instaurados na recém-fundada República de Natália. Como resultado dos avanços dos regimentos aliados a Mpande e tropas bôeres, Dingane foi forçado a fugir de seu assentamento principal, uMgungundlovu, rumo ao norte, nas montanhas Magudu e Lebombo, onde foi morto por guerreiros nywao, aliados dos swazi (Silva, 2023; Shamase, 1999).
A performance descrita por Mtshayankomo parece recuperar o contexto de transição política, evocando não apenas os nomes de Dingane e Mpande – e a ocupação de uMgungundlovu pelas forças de Mpande – como também de Maphita, seu irmão Tokotoko, e Nzobo kaSobadli, da linhagem Ntombela, isto é, de chefaturas que pertenciam a linhagens que tiveram papel central no processo de expansão e consolidação do centro de poder Zulu, e que apoiaram Mpande nas disputas sucessórias. Convém lembrar que a geração de Mtshayankomo vivenciou não apenas a derrota dos zulus na guerra contra os britânicos em 1879, e a dissolução de seus regimentos de guerreiros, como também a repartição do território zulu em treze unidades menores – e as disputas entre as novas chefaturas designadas pela administração colonial, que mergulhou toda a região em uma violenta guerra civil na década de 1880. Por isso, ao rememorar as disputas entre Dingane e Mpande, e a cisão provocada entre os chefes zulus, Mtshayankomo possivelmente recuperava os episódios do passado sob a luz dos conflitos que ele mesmo, assim como muitos homens e mulheres de sua geração, haviam vivenciado pós-1879: o filho e sucessor de Maphita, Zibhebhu kaMaphita, se tornou um dos principais oponentes do inkosi Cetshwayo durante a guerra civil. Assim, além de utilizar dos izibongo como espaço de contestação da autoridade política (“Eles não gostam de você; você os derrotou com azagaias!”), poemas como esse possibilitavam revisitar certas lembranças relacionadas a conflitos sucessórios em busca de explicações para a crise política e esfacelamento do poder político zulu na sua contemporaneidade.
Até mesmo as relações estabelecidas entre Mpande e seus vizinhos brancos, especialmente os bôeres e as autoridades britânicas na Colônia de Natal, poderiam ser alvo de questionamentos do imbongi – o qual alerta Mpande acerca do risco de perder sua autoridade sobre as comunidades zulus ao lidar com o avanço das populações brancas sobre as terras na região. Essas reflexões, convém demarcar, eram relembradas por Mtshayankomo justamente num período em que se consolidava a legislação segregacionista na África do Sul, marginalizando e excluindo as populações zulus de terras e direitos políticos. Assim, recuperando o passado sob a luz de problemáticas do presente, o poema descreve as negociações entre Mpande e as autoridades coloniais recorrendo ao verbo “sabela”, que poderia ser traduzido simultaneamente como “ter medo” ou “responder, na condição de servo, ao ser chamado” (Colenso, 1905, p. 588):
[Ele foi disputado pelos ingleses e pelos bôeres.
Ele que desafiou a nação, ele desafio por isso.
Ele disse que seria atravessada [dominado?] pelos brancos e pelos bôeres
Mdayi [Mpande], responda a terra do outro lado [litoral?]
Quem poderia convocar Mdayi aqui, entre o nosso povo zulu?]
(Stuart, 1925, p.109)
Adicionalmente, em outros momentos de seu testemunho, Mtshayankomo relembra os processos de violência política que marcaram as disputas entre Dingane e Mpande, reforçando o caráter contestatório no poema:
Ele (Mpande) dizia, ‘Por que é que eles não se juntaram a meu irmão mais velho ou a mim?’ Os Bekeyahlulwayo foram então condenados a morte. Eles foram executados nas suas cabanas, e suas crianças também; nada mais restou. Outros se dispersaram e atravessaram o rio rumo ao país do povo branco. Muitos dos Mbata atravessaram o rio acima e foram rumo às [montanhas] iLenge e ao [rio] Indaka. Seu chefe, Lukwabiti ka Nkomo, foi morto; ele foi morto nas [colinas] iSihlalo, no Umhlahlane, o qual desemboca no [rio] White Mfolozi (Stuart, 1986, p. 108).23
Ao referenciar os chefes Mbatha que “atravessaram o rio acima e foram rumo à iLenge e ao Indaka”, Mtshanyankomo estava aludindo a processos internos de migração e deslocamento que marcaram as relações entre comunidades falantes de isizulu pelo menos desde a metade do século XVIII. A historiografia recente (Etherington, 2001; Wright, 2006) tem demonstrado que, longe de configurar um esvaziamento populacional, esses deslocamentos e migrações integravam os processos de reconfigurações de poder na região. Isso ocorria na medida em que certas chefaturas, ao afastar-se deste ou daquele centro de poder, tentavam consolidar novas alianças políticas e relações de assujeitamento, especialmente durante contextos de conflito ou de transformação política, quando antigos vínculos tornavam-se frágeis. Como exemplo , temos o período que marcou a morte de Shaka e a ascensão de Dingane, ou, posteriormente, nas disputas que levaram Mpande à chefatura zulu. Os izibongo de Magolwana kaMkhathini, ao aclamarem chefes zulus como Dingane e Mpande, desempenhavam múltiplas funções, prestando-se a questionar a legitimidade política enquanto parte dos “rituais de rebelião” (Kresse, 1998; Gluckman, 1954), ou ainda aconselhar os chefes, na condição de transmissor das insatisfações ou anseios compartilhados pela comunidade. Nas dinâmicas políticas zulus consolidadas nos tempos de Shaka, Dingane e Mpande, “governar demanda aderência à certa opinião pública socialmente definida; se for ignorada ou violada, a ordem social se tornava instável. […] A influência política do izibongo – e do imbongi que compõe e performa – nas dinâmicas políticas não pode ser subestimada”24 (Kresse, 1998, p. 179).
Em suma, os poemas declamados por Magolwana, e transmitidos por seu filho, Mtshayankomo, vinculavam-se diretamente à construção da noção de poder nas sociedades zulus, nas quais os chefes, dentre outras prerrogativas, eram responsáveis pela proteção da comunidade ou de outras linhagens assujeitadas. Mas, ao mesmo tempo, se aproximavam de impasses vivenciados pela geração de Mtshayankomo, sobretudo os conflitos que marcaram o esfacelamento do território zulu e a perda de sua autonomia, perda de terras e acirramento da legislação segregacionista, bem como a crise política e moral decorrente da expansão colonial e transformação nas noções tradicionais de autoridade. Desse modo, ao relembrar os conflitos sucessórios entre Shaka e Dingane, ou a guerra civil entre Dingane e Mpande, os izibongo poderiam simultaneamente recuperar a capacidade do poema em estabelecer contestações à autoridade política, buscando talvez reestabelecer uma ordem política em processo de esfacelamento – como também interpretar, à luz do passado, os conflitos sucessórios e guerra civil vivenciados pós-1879 pela geração de Mtshayankomo kaMagolwana.
Testemunhos coletados por Stuart ao longo de sua trajetória, incluindo dezenas de exemplos de izibongo produzidos com o objetivo de nomear e aclamar os chefes zulus, tais como Shaka, Dingane e Mpande, evidenciam as instâncias marcadas pelas “zonas de contato” (Pratt, 1999) geradas pelos encontros coloniais, especialmente por remeterem às dimensões interativas desses encontros coloniais. Isso ocorre mesmo em documentos construídos com o fito de demarcar distinções e hierarquias entre colonizadores e colonizados. A documentação gerada nos encontros de James Stuart e de seus narradores falantes de isizulu, no entrelaçamento da escrita e da oralidade, possibilita pensar nos “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação”, ao exemplo do “colonialismo, o escravismo ou seus sucedâneos ora praticados em todo o mundo” (Pratt, 1999, p. 27). Por um lado, o projeto intelectual de James Stuart, ao registrar suas conversações sobre os passados zulus com seus informantes, estava fortemente vinculado à sua carreira como administrador colonial e funcionário civil, e também à sua crença de que, para melhor controlar as populações nativas, era preciso um profundo conhecimento das suas formas de organização sociopolítica. Por outro lado, as entrevistas registradas e coletadas por Stuart também possibilitam vislumbrar, ainda que de forma fragmentada e parcial, indícios das motivações e protagonismos dos seus informantes – que recorriam ao administrador colonial para ter suas histórias e memórias registradas por escrito.
Convém lembrar que o período no qual Stuart empreendeu o registro das suas conversações com homens e mulheres falantes de isizulu foi marcado por uma aceleração nos processos de expropriação de terras e nos esforços promovidos, pela elite colonial e pelo colonato branco, para controlar a mão de obra na região conhecida, na época, como Zululândia. O contexto em questão foi marcado pela multiplicação de leis de caráter segregacionistas, como o Native Land Act de 1913 que proibia a população nativa sul-africana de comprar ou arrendar terras, exceto em áreas designadas como “reservas nativas”, efetivamente negando a essas populações direitos políticos e negando espaços identitários (Gomes, 2015). Essas e outras legislações, aprovadas no contexto da unificação nacional por meio da União Sul-Africana (1910), transformaram profundamente a natureza das relações de poder nas comunidades tradicionais, e limitaram a autonomia das chefaturas sobre questões fundiárias. Além disso, as entrevistas com Mtshayankomo kaMagolwana foram realizadas logo após a promulgação da Native Affairs Act de 1920, o qual levou à criação de um sistema de unidades “tribais”, cujas chefaturas eram formalmente designadas por conselhos distritais, concentrando o poder em lideranças indicadas pelas autoridades coloniais (Houston; Mbele, 2011, p. 77).
Essa situação política, marcada pela expansão das legislações segregacionistas no sul da África, impactou diretamente as relações de poder em nível local. Afinal de contas, nos tempos de Shaka, Mpande e Dingane, as autoridades dos chefes (amakhosi) eram derivadas de uma série de fatores, que incluíam sua descendência de um ancestral patrilinear comum; a capacidade em estabelecer relações de troca e assujeitamento com outras linhagens, por meio de um entrelaçamento de reciprocidades e hierarquias de poder; pelos vínculos com os homens mais velhos da linhagem, considerados mais próximos dos antepassados; e, ainda, pela capacidade do chefe interceder junto aos ancestrais da linhagem dominante (Santos, 2017, p. 43-45). A natureza do poder nas comunidades zulus também era aberta a “rituais de rebelião”, que, mesmo em nível simbólico, abriam espaço para contestação ou crítica direcionada aos chefes – tal qual exemplificado pelos izibongo (Kresse, 1998, p. 185). Essas relações foram drasticamente alteradas com a implementação de sistemas de governo indireto e pela incorporação dos chefes à estrutura colonial, já que uma “autoridade externa”, a exemplo dos governos coloniais, “[…] era incompatível com o modelo político tradicional: ele tampouco poderia ser representar a comunidade [...] e tampouco se sentiria obrigado a seguir a vontade do povo expressa com sensibilidade e formulada pelos imbongi”25 (Kresse, 1998, p. 187).
Mtshayankomo, muito possivelmente, estava fazendo o que outros guardiões da oralidade sempre fizeram em sociedades africanas: envolver-se em discussões e ressignificações sobre o passado para promover interesses (frequentemente políticos) no presente (Wright, 2019, p. 6). Ao recorrer ao registro escrito de James Stuart, é possível que homens como Mtshayankomo kaMagolwana, para além de saciar os questionamentos levantados pelo funcionário civil e administrador colonial, estavam ressignificando antigas práticas culturais em novos contextos políticos, para garantir que os izibongo fossem registrados por meio de práticas implementadas pelo sistema colonial no sul da África, a saber, pela cultura escrita, a qual, conforme Isabel Hofmeyr (1993) era uma das principais instituições culturais do mundo colonial. Por meio dessa inserção, mesmo que indireta, no mundo da cultura escrita, Mtshayankomo e as dezenas de pessoas entrevistadas por Stuart, estavam “simultaneamente modificando os significados e os usos dos documentos [escritos]. Ao mergulhar esses documentos no fluxo da oralidade, eles os subordinavam às práticas e procedimentos do mundo oral”26 (Hofmeyr, 1993, p. 62).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em janeiro de 1922, o funcionário civil James Stuart registrou, por escrito, as conversações que teve com Mtshayankomo kaMagolwana, um homem falante de isizulu, pertencente à linhagem Jiyane, e filho de um dos principais imbongi na primeira metade do século XIX: Magolwana kaMkhathini. Sua trajetória situava-se no processo de consolidação e expansão do centro de poder zulu, especialmente nas chefaturas de Shaka e seus sucessores, Dingane e Mpande. Ao longo de diversos encontros, Mtshayankomo relatou a Stuart uma série de episódios, tais como as histórias de diversas chefaturas, a exemplo dos “Mbata, Butelezi, Ntombela, Mtetwa, Ndwandwe, Qabe, eLangeni, Mpungose e eMbo” (Stuart, 1986, p. 122), que foram assujeitados ou incorporados pelos chefes zulus no início do século XIX, ou rituais e práticas culturais, como o festival umkosi. Dentre as histórias contadas nessas conversações sobre o passado zulu, incluíam-se os relatos sobre a trajetória de seu pai, cujos izibongo, tal qual transmitidos por Mtshayankomo, foram transcritos por Stuart.
As performances dos izibongo de Magolwana, ao nomear e aclamar chefes zulus como Dingane e Mpande, desempenhavam um evidente papel político: por um lado, exerciam funções normativas, já que para legitimar a autoridade, enfatizavam as proezas das chefaturas, sobretudo em caráter militar; por outro lado, também atuavam como intermediários entre as comunidades e os amakhosi, transmitindo incertezas e insatisfações, sobretudo em circunstâncias marcadas por insegurança política como nos contextos das disputas pelo poder entre Dingane e Mpande. Ao contestar as ações e decisões desses chefes, os izibongo de Magolwana conectavam-se diretamente com a natureza das relações de poder nessas comunidades linhageiras, baseadas em certo princípio de reciprocidade, isto é, o reconhecimento da autoridade dos chefes em troca de garantia de proteção para as comunidades assujeitadas. Aclamar também abria espaço para “rituais de rebelião” (Kresse, 1998), mesmo que em níveis simbólicos, nos quais os chefes, por meio dos poemas oralizados, eram relembrados de suas prerrogativas junto às linhagens incorporadas. Nesse sentido, os izibongo, para além de lembrar de episódios sociopolíticos, formulavam um discurso político, pertinente à compreensão das relações de poder nas chefaturas.
Essas conversações sobre o passado, incluindo o registro dos izibongo por meio da escrita, ocorreram em um momento marcado pela expansão das políticas coloniais no sul e sudeste da África, a difusão de legislações segregacionistas, que, no conjunto, transformaram radicalmente as relações de poder em nível local. Indivíduos como Mtshayankomo kaMagolwana, que vinha de uma linhagem vinculada diretamente ao centro de poder zulu, possivelmente compartilhavam de uma sensação de incerteza diante do esfacelamento das formas tradicionais de organização sociopolítica, na medida em que suas funções socioculturais, enquanto “poetas aclamadores”, eram minadas pela difusão da cultura escrita como resultado da expansão colonial (Hofmeyr, 1993). Também é possível que, para Mtshayankomo, assim como para muitos outros homens e mulheres que forneceram seus testemunhos para James Stuart, o conhecimento sobre o passado servia a outras funções: contar histórias e compartilhar memórias intergeracionais para garantir a sobrevivência da “ordem moral da comunidade na qual vivia”27 (Wright, 2015, p. 165) – e não para fornecer subsídios aos sistemas de governo indireto implementados pelo regime colonial e segregacionista.
REFERÊNCIAS
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Notes
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