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Os métodos digitais e as possibilidades de aproximação da arte medieval a partir da exposição Thomas Becket. Assassinato e a Criação de um Santo
Digital Methods and the Possibilities of Approaching Medieval Art from the Exhibition Thomas Becket. Murder and the Making of a Saint
Varia Historia, vol. 41, e25008, 2025
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais

DOSSIÊ: HISTÓRIA CONECTADA: INOVAÇÕES DIGITAIS NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO HISTÓRICO


Received: 31 March 2024

Revised document received: 23 October 2024

Accepted: 14 October 2024

DOI: https://doi.org/10.1590/0104-87752025v41e25008

RESUMO: Entre maio e agosto de 2021, o British Museum promoveu a exposição Thomas Becket: murder and the making of a saint, com o intuito de marcar os oitocentos e cinquenta anos do brutal assassinato do Arcebispo de Cantuária (1128-1170). A mostra contou com diversos objetos relacionados a sua vida e morte, em um arco temático que aborda desde o culto ao santo – canonizado em 1173 – até a ideia de “traidor” aos olhos de Henrique VIII. Neste artigo, procurarei abordar como o catálogo, o site da exposição, os vídeos especialmente elaborados pelos curadores e disponibilizados no Youtube, os projetos de reconstrução em 3D e alguns repositórios de universidades configuram-se como métodos digitais que podem ajudar a aproximar e sensibilizar para as artes elaboradas nas sociedades pré-modernas. Pensar a arte e a história da arte a partir desses métodos digitais pode definir-se como uma ferramenta para a expansão dos estudos desse campo no Brasil.

Palavras chave: Métodos digitais, Thomas Becket, história da arte.

ABSTRACT: Between May and August 2021, the British Museum promoted the exhibition Thomas Becket: murder and the making of a saint, with the aim of marking the eight hundred and fifty years of the brutal assassination of the Archbishop of Canterbury (1128-1170). The exhibition featured several objects related to his life and death, in a thematic arc that addresses everything from the cult of the saint – canonized in 1173 – to the idea of “traitor” in the eyes of Henry VIII. In this article, I will try to address how the catalogue, the exhibition website, the videos specially prepared by the curators and made available on Youtube, the 3D reconstruction projects, and some university repositories are configured as digital methods that can help to bring together and raise awareness of the arts elaborated in pre-modern societies. Thinking about art and art history from digital methods can become a tool for the expansion of art studies in Brazil.

Keywords: Digital methods, Thomas Becket, art history.

Em 2013, ao refletir sobre a possibilidade de uma história da arte “digital”, Johanna Drucker avaliava como e de que forma ela seria possível. A primeira fase desse processo repousaria na construção de distintos repositórios a partir das coleções e acervos de museus, bibliotecas, galerias e outras instituições culturais, que se encarregariam de criar um grande corpus online, a história da arte “digitalizada, uma construída a partir do uso de fontes online” (Drucker, 2013, p. 7).1 Apesar de facilitar o acesso às mais diversas imagens, isso não implicaria “em nenhuma mudança particular de pensamento ou postura crítica” (Drucker, 2013, p. 7). Para ela, é preciso prestar atenção “entre o uso de repositórios e imagens online, que é a história da arte digitalizada, e o uso de técnicas analíticas possibilitadas pela tecnologia computacional que é o domínio próprio da história da arte digital” (Drucker, 2013, p. 7). Ou seja, a história da arte digital não oferece apenas “ferramentas para aceder aos materiais online, mas formas de pensar com processos digitais” (Drucker, 2013, p. 7).

Pensar a história da arte com métodos digitais pode ser uma ferramenta bastante útil para a expansão do campo em nosso país. Essa abordagem seria aplicada na reflexão crítica e na construção de conhecimento sobre a história da arte e seus contextos nas sociedades pré-modernas. Diferenciar aquilo que está digitalizado, fornecido pelos repositórios, e o que podemos interpretar a partir deles pode se transformar em uma riquíssima ferramenta.

No Brasil, ensinar e promover pesquisas no campo da história da arte medieval não é fácil. Os motivos são diversos: desconhecimento, preconceitos, ausência de acervos em museus e bibliotecas. Por isso, nos últimos anos, tenho, ainda que timidamente, buscado a aproximação de alguns métodos digitais para utilizar nas aulas e em outras oportunidades de pesquisa e ensino para, quem sabe em um futuro não muito distante, desenvolver alguns produtos que possam ser apropriados não só por discentes como por pesquisadores da área e pelo público em geral.2

Assim, é preciso estar atento a outras alternativas para aproximar os e as discentes da produção artística das sociedades pré-modernas. A internet fornece dados e projetos realizados por pesquisadores e instituições estrangeiras que contam com vultuosos financiamentos de suas agências de fomento e que precisam/podem ser colocadas em uso. A reflexão crítica a partir dos métodos digitais não pode se limitar aos repositórios online, pois é preciso trazer outros elementos visuais para complementar a análise, como textos, mapas, áudios e filmes.

Neste artigo, partirei da exposição Thomas Becket: murder and the making of a saint, aberta ao público entre os meses de maio e agosto de 2021, no British Museum, em Londres. Promovida com o intuito de marcar os oitocentos e cinquenta anos do assassinato do Arcebispo de Cantuária (1128-1170), foi considerada pelo museu como uma mostra “cinco estrelas”. Essa afirmação baseia-se tanto na construção historiográfica e hagiográfica ao longo dos séculos, como também não deixa de ser uma chamada atraente para o público. Os objetos ali expostos procuravam explorar o assassinato que chocou a Idade Média a partir da vida, morte e legado de Thomas Becket.

Logo que soube da exposição, pensei que a mostra seria uma excelente oportunidade para criar um material de apoio para as pesquisas e aulas. Comprei o catálogo, vasculhei o site da exposição e do museu e assisti aos vídeos especialmente elaborados pelos curadores. Encontrei outros promovidos pelo Center for the Study of Christianity and Culture, da Universidade de York. Descobri um mundo de informações em outros sites, como o The Becket Story, voltado para a vida, obra e as influências de Thomas Becket; o Digital Pilgrim Project, da Universidade de Cambridge, entre outros. A coleta de informações nesses produtos mostrou-se como um excelente caminho para ajudar a aproximar, sensibilizar para a história da arte e - tão importante quanto - aproximar brasileiros e brasileiras das experiências que os peregrinos medievais poderiam ter ou ver.

THOMAS BECKET

Thomas Becket nasceu entre 1118 e 1120, filho de Gilbert e Matilde, migrantes de origem normanda que se mudaram para Londres acompanhando os diversos fluxos pós-conquista do trono inglês por Guilherme, o Conquistador. À época, a cidade estava em expansão, configurando-se como um dos grandes centros comerciais das Ilhas Britânicas. A família Becket ocupava, então, uma posição bastante privilegiada, fosse no âmbito dos negócios, fosse no âmbito político e administrativo, fator que também propulsionou relações com a Coroa (Staunton, 2001).

Em seus primeiros anos de vida, Becket foi educado em casa. Aos dez anos, foi enviado para estudar em Surrey, onde permaneceu algum tempo. Entre 1138 e 1141, esteve em Paris para aprimorar seus conhecimentos nas artes liberais. De volta a Londres, dedicou-se por um período às atividades financiárias, até que, em 1145, ingressou na cúria a serviço de Teobaldo (ca.1090-1161), Arcebispo de Cantuária. Assumiu, nesse momento, algumas missões em Roma, acompanhando o arcebispo. Ao ter reconhecida suas tantas habilidades, foi enviado a Auxerre e Bolonha para estudar direito civil e romano na universidade. Os trabalhos como secretário e as missões de estudo trouxeram-lhe muitos benefícios, permitindo “ver o mundo além da Inglaterra e Paris, aprender assuntos jurídicos e diplomáticos práticos e interagir com acadêmicos jurídicos e futuros líderes religiosos” (Beer; Speakman, 2021a, p. 23).

Sob Teobaldo, Becket ocupou um lugar bastante avantajado, já que, como membro do clero secular (ele só foi ordenado diácono mais tarde), não precisava respeitar todas as regras e votos de obediência impostos aos monges em geral. Apesar da obrigação em trajar vestimentas litúrgicas, o clero secular podia carregar armas e ter propriedades (Beer; Speakman, 2021a, p. 23). Em 1154, Teobaldo nomeou Becket como arquidiácono da Cantuária e o responsável pela diocese, posição muito privilegiada na hierarquia da igreja, logo abaixo daquela do Bispo.

Ao longo dos anos da formação e atuação de Becket, o trono inglês vivenciou vários reveses políticos. Em novembro de 1120, Guilherme (1103-1120), filho legítimo e herdeiro de Henrique I (c. 1068-1135), morreu afogado, lançando o reino em uma situação sensível de sucessão. Henrique nomeou herdeira sua filha mais velha, Matilde (1102-1167), e fez com que os barões lhe jurassem fidelidade. Para assegurar ainda mais a posição da filha, Henrique I a casou em segundas núpcias com Godofredo (1113-1151), duque de Anjou, com quem teve três filhos: Henrique - mais tarde Henrique II - (1133-1189), Godofredo (1134-1158) e Guilherme (1136-1164).

Depois da morte de Henrique I, Estevão, conde de Blois (um dos barões que havia jurado fidelidade à Matilde), rebelou-se e tomou o trono para si (1135-1154); todavia, sua inabilidade para governar levaria o reino à desordem. Em 1153, após a morte de seu filho Eustácio, os barões impuseram a Estevão um tratado em que este manteria o trono, mas a sucessão passaria a Henrique, filho de Matilde e Godofredo (Staunton, 2001, p. 12).

Durante o reinado de Estevão, Teobaldo tanto sofreu com algumas inconstâncias políticas como conseguiu conciliar alguns dos membros dos grupos em disputa, sempre tendo Becket ao seu lado. Em 1154, Henrique Plantageneta, Duque de Anjou foi coroado rei da Inglaterra, juntamente com Leonor de Aquitânia (c. 1122-1204), com quem havia se casado dois anos antes. Além de coroar os novos monarcas na Abadia de Westminster, Teobaldo recomendou Becket para ocupar um dos cargos mais importantes do reino: o de chanceler de Henrique II, da Inglaterra. Com a morte de Teobaldo, Henrique nomeou Becket para ser o Arcebispo de Cantuária, cuja cerimônia de consagração ocorreu em junho de 1162.

Algum tempo depois, Becket renunciou ao cargo de chanceler e opôs-se ao rei ao defender alguns privilégios da Igreja, desintegrando, assim, a relação entre eles. Por seis anos viveu em exílio. Em 2 de dezembro de 1170, depois de algumas tentativas de fazer as pazes, retornou à Inglaterra, mas a trégua logo se mostrou desastrosa. Em 29 de janeiro desse mesmo ano, para tentar mostrar lealdade ao rei, quatro cavaleiros dirigiram-se à Catedral da Cantuária a fim de interpelar e prender Becket, chegando logo após o jantar.

Depois de muita discussão, a situação se descontrolou: Becket recebeu vários golpes na cabeça até que um deles cortou a ponta do crânio, fazendo com que partes do cérebro jorrassem para fora. Seu corpo ficou no chão por algumas horas. Não demorou para que algumas pessoas começassem a colher os fragmentos da massa encefálica e do sangue para salvaguardá-los como relíquias. Algumas pessoas os misturaram com água e beberam, dando azo aos primeiros milagres a ele atribuídos.

Antes mesmo da canonização, em 21 de fevereiro de 1173, o túmulo de Becket já atraía um número significativo de peregrinos, oriundos de distintas regiões. Em virtude de suas muitas viagens e missões a serviço de Teobaldo ou de Henrique II, Becket formou uma rede significativa de contatos e amizades, entre os quais o Papa e o rei Luís VII da França. Tais conexões acabaram por “reforçar o apoio à sua rápida canonização e à difusão de seu culto como santo” (Beer; Speakman, 2021a, p. 74). A morte na catedral foi presenciada por cinco pessoas que logo passaram a escrever os fatos. Foi o caso de João de Salisbury (c. 1115-1120), que, pouco depois do assassinato, enviou uma carta para João da Cantuária, bispo de Poitiers, na qual descrevia o corrido com muitos detalhes. Não tardaria para que imagens também fossem elaboradas em distintos suportes a fim de glorificá-lo

O culto ao santo sofreu altos e baixos durante os séculos seguintes. Sua tumba serviu como ponto de peregrinação para milhares de fiéis de todas as regiões e de comerciantes que afluíam das costas inglesas a caminho a Londres. Durante trezentos e cinquenta anos, o santuário de São Thomas Becket se transformou em um dos cultos mais dinâmicos da cristandade ocidental, até que a Henrique VIII o destruísse e removesse as relíquias para sempre. Uma onda de iconoclastia se abateu sobre as imagens de Becket, apagando-as, assim como seu nome, de manuscritos, esculturas etc. De santo mártir, um decreto real transformou-o em traidor; “mesmo assim, para aqueles que resistiam às mudanças, ele permaneceu como uma das figuras a serem emuladas. Um modelo de oposição à tirania” dos reis ingleses (Beer; Speakman, 2021a, p. 241). Graças a isso, suas relíquias corporais foram preservadas. Nas Ilhas Britânicas e em outras regiões do continente europeu, as imagens, os objetos pessoais ou litúrgicos atrelados ao seu culto continuavam a ser motivo de devoção por fiéis de distintas localidades.

MÉTODOS DIGITAIS COMO FORMA DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

A formação e transformações do culto ao santo foram o tema da exposição Thomas Becket: murder and the making of a saint, no British Museum, e do catálogo de capa dura redigido pelos curadores Lloyd de Beer e Naomi Speakman. Como argumentou Beatrice Joyeux-Prunel, “catálogos de exposição, como tipo literário, tornaram-se uma forma de contar uma história, de criar um universo ficcional no qual o leitor pode mergulhar” (Joyeux-Prunel, 2025, p. 86). Importante mencionar que, se o conhecimento produzido pela exposição é temporário, o catálogo é um meio de torná-lo perene. Em sua forma impressa, ele só está disponível ao público por compra ou consulta física em bibliotecas. Outra forma de aproximação seria sua digitalização e livre acesso no site do museu, mas isso não ocorre. Isso não é exatamente uma falha, já que nem todos os catálogos são digitalizados pelas instituições, com exceção daqueles produzidos pelo The Metropolitan Museum of Art, em Nova York.3 Beatrice Joyeux-Prunel indicou dois motivos para tal lacuna no campo da história da arte: por um lado, a digitalização tem focado em periódicos acadêmicos; por outro, há o problema dos direitos autorais de fotógrafos, instituições e autores que precisam ser pagos novamente, já que cada suporte prevê um tipo de remuneração (Joyeux-Prunel, 2015, p. 91).

Se não é possível contar com a digitalização do catálogo, o site da instituição pode ser uma das portas de entrada para a aproximação com as obras.4 Ao rolar para baixo e passar do texto introdutório, as diferentes entradas possibilitam vislumbrar: uma linha do tempo; quem matou Thomas Becket; como seus ossos foram trasladados; como Henrique VIII destruiu o santuário; o envolvimento do santo com a Magna Carta; e, por fim, o assassinato. A esta altura do texto, convido os leitores que as explorem, dando especial importância às obras inseridas; em breve, voltarei a essa ferramenta digital.

Além do site, há um vídeo no YouTube com aproximadamente vinte e três minutos de duração, em que os curadores Lloyd de Beer e Naomi Speakman (2021b) se dedicam a contextualizar as obras e tantos outros elementos. Esse tipo de ferramenta é extremamente profícuo por diversos motivos, entre os quais destaco: a visualização dos próprios curadores, que deixam de ser nome da capa e dos textos no catálogo para se transformarem em pessoas de carne e osso que se dirigem ao espectador; a importância de se encontrarem frente às vitrines, aproximando o público da “real” dimensão dos objetos, da volumetria, dos jogos de luz e sombra e de alguns detalhes, elementos extremamente importantes subtraídos das imagens impressas nos catálogos ou disponibilizadas nos repositórios digitais.5

A partir do primeiro contato com o site do museu e com o vídeo no YouTube, surgiram as seguintes perguntas: o que “privilegiar” dessa amostragem? Como articular as redes, imagens e objetos que contribuíram para a formação do culto a Thomas Becket? Como perceber essa circulação? Quais imagens podem ser utilizadas para a aproximação e sensibilização nas artes elaboradas nesse período? E, sobretudo, por que olhar para o passado a partir dos métodos digitais, se a “própria noção de digital parece falar somente do bravo mundo do futuro”, segundo Jaskot (2020, p. 9) uma problemática que ele mesmo buscou resolver: porque “prometem novos resultados radicais, modos de análises, e publicação”. A proposta de Jaskot é a de procurar responder a algumas das questões e não todas em sua complexidade, “eliminando alguns assuntos em detrimento de outros e promovendo áreas intelectuais específicas da disciplina” (Jaskot, 2020, p. 13). Ou seja, para essa reflexão, é melhor que nos concentremos em duas questões: a criação ao culto a Becket e sua promoção junto ao túmulo, lugar de afluência dos peregrinos.

De volta ao site, a primeira investigação ocorreu na aba da linha do tempo, a vida e o legado de Becket. Um dos motivos é que essa entrada não somente se encontra à esquerda do site (já induzida pelo movimento de leitura), como é um convite inicial para a exploração. O manuscrito, iluminado com o assassinato na Catedral, mostrou-se como um ponto ideal de partida, tendo em vista que, já na década seguinte, foram redigidas por volta de quinze Vidas, junto a outras compilações sobre os eventos relativos à Becket. Os primeiros elementos para a construção de seu culto repousavam na rápida compilação e difusão desses textos e também no fato de que muitos vinham redigidos ou compilados por contemporâneos e pelas testemunhas oculares do martírio. Para Harris (2005, p. 249), o imediatismo da escrita e do testemunho foi

tão performativo quanto probatório: performativo por causa das sensações corporais vívidas, especialmente na narrativa de Edward Grim que foi ferido durante o ataque do martírio descrito no texto, e probatório por causa da impressão de prova incontestável de ouvir a história de alguém que esteva presente no momento crucial do evento.6

Da mesma forma, as miniaturas que acompanhavam os textos e apresentavam o martírio transformavam o público em “testemunha ocular” (Harris, 2005, p. 249). É o caso de uma delas pertencente ao volume organizado por Alan de Tewkesbury, Collection of St Thomas Beckets Letters, de 1184.7 Na aba da linha do tempo, é impossível abri-la ou encontrar maiores informações. Voltando à página inicial do site, outro fragmento da imagem aparece na aba Thomas Becket e a Magna Carta, mas com a mesma limitação. Em nova procura, ela está na íntegra na aba dos Destaques [Highlights]. A legenda que a acompanha explica que na “cena superior, os cavaleiros interrompem Becket [...]. Abaixo, eles o atacam na Catedral de Cantuária. À direita, peregrinos se ajoelham ao lado de seu túmulo na cripta”.8

O site permite fazer zoom na imagem e isso facilita muito a visualização dos detalhes, mesmo que não apresente a miniatura na íntegra; assim, o passo seguinte seria fazer uma busca por ela na British Library. Contudo, no momento da escrita deste artigo, a biblioteca não disponibiliza o manuscrito porque está sofrendo com um ataque cibernético (The British Library, 2024). É importante mencionar a questão, pois isso demonstra a fragilidade dos métodos digitais frente a tais ataques.9

Dividida em quatro cenas (Figura 1), o impacto da imagem já é apresentado a partir de sua grande dimensão: ela ocupa quase metade do espaço destinado à escrita no fólio. No canto esquerdo do registro superior, Becket, Edward de Grim e outro homem estão jantando. Sobre um fundo dourado, Becket aparece como santo antes mesmo de sua canonização, e a dimensão de sua santidade vem dada pelo nimbo ao redor da cabeça, que ultrapassa a linha superior que limita a cena. Chama a atenção a mesa disposta na frente desses três personagens, pois, segundo os curadores da exposição, nesse período já havia a construção de um paralelo entre Becket e a Última Ceia do Cristo.


Figura 1
: Alan de Tewkesbury. Collection of St Thomas Becket’s Letters, ca. 1180. Manuscrito. The British Library Cotton MS Claudius BII, f. 341r).
Fonte: https://www.britishmuseum.org/exhibitions/thomas-becket-murder-and-making-saint. Acesso em: 30 mar. 2024.

Na extremidade direita da mesa, o bispo se dirige ao homem que entra por uma porta vermelha. A gesticulação das mãos dos dois homens mostra a conversa agitada entre eles, pois era o anúncio dos quatro cavaleiros que aguardavam na catedral. Sobre o fundo azul que faz a vez do espaço da igreja, o cavaleiro à esquerda volta-se para Becket com a mão em gesto de fala – talvez chamando-o para fora –; outros dois conversam entre si, enquanto o quarto somente observa os companheiros.

A tensão e a movimentação crescentes têm seu ápice no canto direito do registro inferior: já na catedral, Edward de Grim segura uma cruz atrás de Becket ajoelhado e com as mãos em prece enquanto recebe os golpes de Reginald Fitzurse (identificado pela cabeça de lobo em seu escudo). Ao atingir a cabeça, a espada se divide e parte dela cai no chão junto a um fragmento do crânio (Figura 2). Na verdade, segundo os relatos das testemunhas oculares, a espada não se rompeu com golpe, mas com queda no chão (Beer; Speakman, 2021a, p. 72). Ora, mesmo não correspondendo aos fatos, a inserção desse elemento trazia maior dramaticidade ao momento.


Figura 2
: Alan de Tewkesbury. Collection of St Thomas Becket’s Letters, ca. 1180. Manuscrito (detalhe). The British Library Cotton MS Claudius BII, f. 341r).
Fonte: https://www.britishmuseum.org/exhibitions/thomas-becket-murder-and-making-saint. Acesso em: 30 mar. 2024.

Em 1171, a cripta na Catedral de Cantuária em que Becket estava enterrado foi aberta aos fiéis. Assim, “o que começou como um truque de milagres logo se tornou uma torrente” deles (Beer; Speakman, 2021a, p. 72). Na miniatura (Figura 1), a afluência dos peregrinos é demonstrada na cena à direita do registro inferior. Nela estão quatro deles ajoelhados frente ao túmulo, com velas acesas complementando o cenário. Como o culto a Becket se espalhou rapidamente, a catedral passou a receber a visita de centenas de peregrinos, vindos de distintas regiões.

Em 1173, junto às medidas para a canonização, o Papa Alexandre III (r. 1159-1181) decretou que o corpo santo fosse trasladado para um local maior e mais apropriado para seu culto, mesmo não tendo fundos suficientes para isso. Em 5 de setembro de 1174, um enorme incêndio destruiu grande parte do lado leste da igreja. As obras de reconstrução somente ocorreram entre os anos de 1180 a 1220.

É preciso atentar para a visualização do espaço da catedral, e a apropriação de mapas vem nesse sentido. Logo após a morte na capela, assinalada em azul na figura 3, o corpo de Becket foi disposto em uma tumba na cripta que se encontrava na cabeceira da igreja, abaixo da Capela da Trindade [Trinity Chapel], destacada em amarelo. Mas como se parecia o santuário? Como seria sua ornamentação? E qual era o apelo para atrair tantos fiéis ao longo de séculos? E aqui, mais uma vez, recorro aos métodos digitais para tentar compreendê-lo em sua magnitude.


Figura 3
: Montagem da autora a partir do plano da Catedral da Cantuária.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=r-t7M9A3R24&ab_channel=Christianity%26Culture. Acesso em: 30 mar. 2024.

Um projeto financiado e elaborado pelo Departamento de História, juntamente com o Centre for the Study of Christianity and Culture da University of York, reconstruiu o túmulo de Becket. A proposta baseou-se em várias evidências, como relatos contemporâneos de testemunhas oculares, fragmentos sobreviventes e informações sobre materiais utilizados, bem como a acessibilidade e localização do santuário dentro da igreja. Embora não haja comparações contemporâneas exatas, também analisamos o trabalho e o estilo dos criadores do santuário e exemplos semelhantes de santuários em outros lugares (University of York, 2020).10

O projeto levou trinta anos para ser concluído, e a equipe envolvida decidiu por reconstruir o santuário como poderia se parecer em 1408, quando aproximadamente cem mil peregrinos o visitavam anualmente (University of York, 2020). É possível acessar o resultado de forma universal.11 Segundo John Jenkins, responsável pelo projeto na Universidade de York, o modelo digital procura “ajudar os peregrinos e visitantes modernos não apenas a ver o que os peregrinos medievais teriam visto – o suntuoso santuário dourado –, mas também, através dos vídeos animados, entender como eles interagiam com isso”; além de procurar ajudar “os visitantes e peregrinos de hoje a entender como eles se encaixam em uma longa tradição de busca de significado e conforto nas catedrais” (Solly, 2020).

Em 7 de julho de 1220, sob a organização de Stephen Langton (ca. 1150-1228), Arcebispo da Cantuária, houve a trasladação das relíquias da cripta para a Capela da Trindade, situada atrás do altar principal. Na figura 3, a planta inicial é colocada ao lado da final. Em azul, assinalei a capela em que ocorreu o martírio; em amarelo, o local original do túmulo na cripta; em verde, o lugar do novo santuário; em rosa, a modificação da planta. Podemos, então, perceber a expansão: a Capela da Trindade deixou de ser uma absidíola da cabeceira e foi integrada no corpo da catedral.

Na cripta, o túmulo vazio continuou a ser venerado como um local que havia abrigado o corpo do santo (Figura 4). Na reconstrução elaborada pela Society for Church Archeology, vê-se um peregrino ajoelhado em prece na frente do túmulo que apresentava, em sua lateral, dois orifícios que permitiam ver o caixão. Acima, há dois castiçais com velas acesas. Em apêndice, há uma espécie de altar coberto por um tecido e cujo frontal possui imagens pintadas à frente.


Figura 4
: Society for Church Archeology - SCA Lecture. Dr. John Jenkins – Reconstruction Thomas Becket’s Medieval Shrine at Canterbury Cathedral.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=klcUJNix5UQ&ab_channel=ChurchArchaeology . Acesso em 25 de ago. de 2022.

A recriação procurou também mostrar como os fiéis se comportavam próximo ao túmulo. O homem citado acima é observado por um religioso enquanto, à esquerda, três pessoas conversam em pé. Outros fiéis sentam-se em vigília em lugares distintos, como em bancos ou no chão. A busca por milagres por parte das pessoas com deficiência pode ser percebida pelo homem que está sobre um carrinho – no vídeo, ele usa as mãos para impulsionar o objeto. Os agradecimentos pelas graças encontram-se pendurados nas colunas, tais como muletas ou ex-votos em cera na forma de partes do corpo humano.

O santuário de Becket na Cantuária não existe mais, pois foi saqueado pelos comissários de Henrique VIII, em 1538. Hoje, uma vela sinaliza o espaço original que ocupava (Figura 5). O frame do vídeo da palestra de John Jenkins, realizado pela Society for Church Archeology - disponível no YouTube -, procura recriar o túmulo. Na Figura 5, é possível ter uma ideia melhor de sua dimensão dentro da igreja, com alguns fiéis ajoelhados na lateral do altar. Já no vídeo, a movimentação de pessoas é maior, com algumas delas se dirigindo ao altar a fim de depositar suas oferendas.


Figura 5
: Society for Church Archeology - SCA Lecture. Dr. John Jenkins – Reconstruction Thomas Becket’s Medieval Shrine at Canterbury Cathedral.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=klcUJNix5UQ&ab_channel=ChurchArchaeology. Acesso em: 25 ago. 2022.

Em outro frame do vídeo, aparece a reconstrução do santuário realizada a partir da arqueologia e de outras evidências como em manuscritos, vitrais, insígnias ou distintivos de peregrinos. Da mesma maneira, vários relatos contemporâneos procuravam descrever sua aparência e o impacto que causava. O cronista da Abadia de St Albans, Mathew Paris (c. 1200-1259) declarou que tinha sido elaborado com o mais fino e refinado ouro e pedras preciosas (Beer; Speakman, 2021a, p. 122). Por volta de 1500, um visitante anônimo italiano escreveu que

a magnificência da tumba de São Tomás Mártir, Arcebispo de Cantuária, é aquela que supera toda crença. Este, apesar de seu grande tamanho, é inteiramente coberto com placas de ouro puro; mas o ouro é pouco visível pela variedade de pedras preciosas com as quais é cravejado, como safiras, diamantes, rubis, balas-rubis e esmeraldas; e de todos os lados que o olhar se volta, aparece algo mais bonito que o outro. E essas belezas da natureza são realçadas pela habilidade humana, pois o ouro é esculpido e gravado em belos desenhos, grandes e pequenos, e ágatas, jaspes e cornalinas colocados em relevo [sic], alguns dos camafeus sendo de tal tamanho, que não me atrevo a mencioná-lo: mas tudo é deixado para trás por um rubi, não maior que a unha do polegar de um homem, que é colocado à direita do altar (Beer; Speakman, 2021a, p. 123).12

O caixão dourado para o qual os restos mortais de Becket foram transladados se encontrava no centro da capela, em um túmulo disposto sobre três degraus e em uma base de mármore (Figura 5). Acima do caixão, uma tampa de madeira ricamente ornamentada era içada ou baixada por cordas e polias, em horários específicos (Beer; Speakman, 2021a, p. 122). Esse jogo de revelar e esconder o conjunto tinha dois motivos. O primeiro, quando o santuário não estava em uso, evitava os roubos tanto das relíquias quanto das pedras preciosas que ornavam esse imenso caixão-relicário.

O segundo motivo tinha a ver com a performance que envolveu tantas das imagens medievais, fossem elas retábulos de altar, esculturas e objetos litúrgicos, ou seja, o infinito ato do abrir e fechar que ampliava “ainda mais as relações simbólicas, na medida em que cria[va]m um jogo entre o que se vê e o que não se vê, entre aquilo que fica visível e o que permanece oculto, proporcionando uma multiplicidade de significados” (Tatsch, 2021). Alguns pequenos sinos presos às cordas que seguravam a tampa soavam quando esta era levantada, alertando os peregrinos sobre a possibilidade de visão total do santuário (Beer; Speakman, 2021a, p. 122). Podemos ter uma ideia do impacto dessa performance a partir da visita que Erasmo de Roterdã fez à Catedral de Cantuária:

[um] baú de madeira esconde um baú de ouro; quando este é puxado por cordas, revela um tesouro inestimável... Quando a tampa foi removida, todos nós adoramos... O prior apontava cada joia tocando-a com uma vara branca, acrescentando seu nome em francês, seu valor e o nome do doador... ele costuma fazer isso (University of York, The Centre for the Study of Christianity & Culture, 2022).13

O santuário estava protegido por grades para controlar o número de peregrinos que dele se aproximavam e para mantê-los afastados na celebração de missas particulares. Sempre é importante chamar a atenção para a luminosidade das igrejas e para os artifícios dos quais se lançava mão para a iluminação de seus espaços e ornamentações, sobretudo daqueles mais importantes. Daí as velas cuidadosamente dispostas sob os arcos em ogiva, provavelmente doadas pelos peregrinos e elaboradas em cera de abelha, o que poderia deixar um cheiro adocicado no ar.

A reconstrução, como mencionado, baseou-se em fontes visuais e textuais. Aqui, vale mencionar que é preciso ampliar a busca por outros campos de investigação e repositórios online para compreendermos como as insígnias ou distintivos de peregrino (pilgrim badge, em inglês; enseigne de pelerinage, em francês) também ajudaram nessa operação. Os distintivos ou insígnias eram objetos muito populares, produzidos em massa em ligas de cobre, latão, peltro; os fiéis mais ricos poderiam encomendar exemplares em ouro, prata ou prata dourada a partir de uma liga de cobre (Blick, 2005; Koldeweij, 2012).

Vendidas nos locais de peregrinação, as insígnias vinham costuradas na parte externa da roupa ou em seus chapéus, penduradas no pescoço, colocadas em ponta de cajados ou inseridas em manuscritos (Figura 6). As insígnias e distintivos eram importantes por dois motivos. Primeiro porque “o tamanho desses pequenos objetos não tem relação com sua importância e é gratificante ver que agora eles estão sendo incorporados à corrente principal da pesquisa medieval. Eles têm o potencial de oferecer insights significativos sobre a vida e a cultura medievais” (Koldeweij, 2012, p. 216). Em segundo lugar, por longo tempo as insígnias foram consideradas como uma forma “menor” de arte se comparada a outros objetos e suportes que mostrei até o momento.

Nas últimas décadas, as insígnias passaram a receber muita atenção por parte dos pesquisadores, resultando em projetos de digitalização, como o Kunera, da Radboud University, Nijmegen, Países Baixos (Radboud Univesity), e o The Digital Pilgrim Project, da Universidade de Cambridge, Cambridge, Inglaterra (University of Cambridge, 2024). Neste, inclusive, há algumas disponibilizadas em 3D.

Entre as milhares de insígnias existentes, algumas apresentam a imagem do santuário de Thomas Becket. É o caso do exemplar que se encontra no The Metropolitan Museum, em Nova York (Figura 7), da segunda metade do século XIV. Na entrada relativa ao objeto que está no site do museu, encontramos a seguinte explicação:


Figura 7
: Insígnia de peregrino com o santuário de S. Thomas Becket. Inglaterra, 1350-1400. Liga de estanho e chumbo, 7,9 x 6,4 x 0,3 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova York (2001.310).
Fonte: Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/473470. Acesso em: 31 mar. 2024.

a estrutura dourada, como pode ser vista no emblema, foi encomendada pelo arcebispo Stephen Langton e dedicada em 7 de julho de 1220. Criada pelo famoso ourives Walter de Colchester, o túmulo, apoiado em quatro baias, continha uma efígie de Thomas Becket em paramentos eclesiásticos. Aqui, erguido acima dele, está o santuário de empena, incrustado de joias em um solo em treliça e encimado por dois modelos de navios, um dos quais foi danificado. Uma pequena figura aponta para um rubi, considerado o maior que existe e dado em 1179 pelo rei da França. Este emblema é um dos melhores documentos visuais sobreviventes do santuário. Sua precisão é atestada por descrições de embaixadores, clérigos e teólogos, como Erasmo. A insígnia é uma adição importante ao nosso conhecimento das imagens que cercam esse santo mártir e se junta à nossa coleção incomparável de objetos associados a ele.14

Não podemos pensar que as insígnias eram uma mimese do santuário, mas essa falta de precisão não se apresentava como um problema. Os detalhes nela inseridos são preciosos e procuravam revelar o enriquecimento do santuário a partir dos diversos presentes (Figura 8), como os navios que foram oferecidos à catedral pelo rei Eduardo I, em 1285, dispostos na parte superior do conjunto – um deles, o da esquerda, está quebrado. Também as gemas – mencionadas anteriormente na transcrição do relato do visitante anônimo italiano – foram figuradas no interior de pequenos círculos que faziam a vez dos cabochões que ornamentavam desde as vestimentas do santo e da figura na lateral direita até a tampa de madeira que cobria o caixão.


Figura 8
: Montagem da insígnia de peregrino com o santuário de S. Thomas Becket. Inglaterra, 1350-1400.
Fonte: Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/473470. Acesso em: 31 mar. 2024.

Nessa tampa há uma gema em especial, que se encontra bem no centro da parte inferior: trata-se do grande rubi que teria sido presenteado, em 1179, pelo rei Luís VII de França quando visitou a catedral. O rubi destaca-se das outras gemas a partir da ação de uma pessoa - da qual se vê apenas a parte superior do tronco - que aponta para ele. A imagem dessa personagem está muito distante daquela de um clérigo; mas é possível que ela remetesse à ação dos religiosos que indicavam as joias e as explicavam aos fiéis durante as cerimônias – como descreveu Erasmo de Roterdã (Beer; Speakman, 2021a, p. 201). Ainda sobre o rubi, a representação na tampa de madeira não estaria de acordo com sua posição original, ou seja, do lado direito do altar como narrado pelo visitante anônimo italiano. Nesse sentido, houve claramente uma liberdade por parte dos responsáveis por elaborar a insígnia de forma a ressaltar a gema, talvez sendo uma forma de trazer à mente o vermelho da pedra em alegoria ao vermelho do sangue derramado por Becket.

A cerimônia relativa ao momento de revelação do túmulo encontra-se à direita da insígnia: uma figura levanta a tampa do santuário com cordas e uma roldana. Por fim, vale mencionar a “efígie reclinada de Becket em seu centro. Isso faz com que a estrutura pareça mais a tumba tradicional de um arcebispo do que o santuário de um santo, e é improvável que tal efígie de São Thomas tenha estado presente em Canterbury”. Assim, é “provavelmente uma imagem idealizada do santuário, e a figura reclinada de Becket foi incluída para demonstrar o objetivo de todo peregrino: a proximidade física com o corpo de São Thomas, que permaneceu fora da vista e do alcance” de todos (Beer; Speakman, 2021a, p. 124).

ALGUNS COMENTÁRIOS FINAIS

Neste artigo, procurei perceber como os métodos digitais podem auxiliar nos processos de transformação da produção de conhecimento. Parti da exposição Thomas Becket: murder and the making of a saint, ampliando a pesquisa para o catálogo e vídeos disponibilizados no YouTube tanto pelo British Museum quanto por outros centros de pesquisa, como o Center for the Study of Christianity and Culture, da Universidade de York. Também lancei mão de algumas bases de dados, como o Digital Pilgrim Project, da Universidade de Cambridge, e o Kunera, da Radboud University.

Essa multiplicidade demonstra o alto apoio financeiro que as instituições do hemisfério norte recebem para a digitalização de seus acervos e para os projetos desenvolvidos nas suas universidades. A escolha pelos temas e formas de abordagem revelam que os produtos se encontram conectados diretamente com instituições/acervos nacionais (British Museum, British Library) ou com diretrizes de análise de centros de pesquisa na Inglaterra e nos Países Baixos. Ainda que sejam distintos em seu conteúdo, eles mostram a importância do tema sobre o qual se debruçam. Para os investigadores e o público em geral, a disponibilização desses conteúdos ocorre de forma universal e gratuita.

Tendo como premissa que o campo de estudo da história da arte das sociedades pré-modernas se encontra em plena expansão no Brasil, a apropriação das ferramentas digitais expostas nesta pesquisa aponta para uma mudança na forma como nos aproximamos das artes desse período, para além do uso de fontes literárias e visuais. Como? Segundo Drucker (2013, 6), “se a epistemologia constitui seus objetos, em vez de apenas descrevê-los, quais são as maneiras de pensar sobre obras de arte que surgem de métodos digitais e reconfiguram nossa compreensão fundamental do que constitui uma obra de arte?”.15

A princípio é preciso apontar a distinção crucial entre a simples digitalização de materiais (do British Museum e da British Library) e o uso de técnicas analíticas possibilitadas pela tecnologia computacional, o que ressalta a importância de não apenas acessar repositórios online, mas também de explorar e interpretar os dados neles disponíveis. Nesse ponto, a interdisciplinaridade das ferramentas aqui indicadas é fator relevante para ampliar as possibilidades de análise, pois situa os objetos artísticos em um maior sistema de circulação, valores econômicos e simbólicos, de peregrinação, performance, entre outros âmbitos, proporcionando aproximações de forma sincrônica e diacrônica.

Mais do que oferecer acesso online, a história da arte a partir dos métodos digitais oferece uma série de ferramentas de análise e aproximação que não são encontradas nos livros, artigos ou materiais tradicionalmente utilizados em sala de aula. Daí a escolha de cada um dos produtos abordados e o vasto potencial de análise que propiciam. O vídeo com os curadores aproxima o público dos objetos de uma forma diferenciada de quando são observados nas imagens dos sites, catálogos ou projetadas nas paredes. As plataformas em que estão as insígnias de peregrinos apresentam exemplares diretamente ligados a Thomas Becket. Da mesma forma também reúnem outras, indicando a importância, a apropriação e uso desses objetos apotropaicos que circularam nos corpos, nas vestimentas ou nos acessórios dos peregrinos, muito além do espaço original em que se encontravam as relíquias.

As dinâmicas das imagens em movimento chamam a atenção para os personagens, o espaço arquitetônico em que se encontram, as dimensões dos corpos e a gestualidade frente ao túmulo; a iluminação a partir de velas; o jogo do que era revelado ou escondido no subir ou descer da caixa de madeira que recobria o túmulo. Todos esses elementos precisam fazer parte das análises. Os objetos artísticos não são estanques, mas sim agenciadores de uma série de crenças, costumes, jogos de poder etc. Ao adotar uma abordagem conectiva, que combina recursos digitais com a análise crítica e contextualizada, é possível ampliar o alcance e o impacto do estudo das sociedades pré-modernas, promovendo uma apreciação mais ampla e profunda da herança cultural global.

REFERÊNCIAS

BEER, Lloyd de; SPEAKMAN, Naomi. Thomas Becket: murder and the making of a saint. Londres: The British Museum Press, 2021a.

BEER, Lloyd de; SPEAKMAN, Naomi. Curators' tour of Thomas Becket: murder and the making of a saint exhibition. Londres: The British Museum, 17 de junho de 2021b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pAN9MqPsGcA&t=1252s. Acesso em: 25 mar. 2024.

BLICK, Sarah. Popular and Precious: Silver-Gilt & Silver Pilgrim Badges. Peregrinations: Journal of Medieval Art and Architecture, v. 2, n. 1, p. 1-7, 2005.

BLICK, Sarah. Bringing Pilgrimage Home: The Production, Iconography, and Domestic Use of Late-Medieval Devotional Objects by Ordinary People. Religions, v. 10, n. 6, p. 1-26, 2019.

DRUCKER, Joahha. Is There a "Digital" Art History? Visual Resources, v. 29, n. 1-2, p. 5-13, 2013.

HARRIS, Anne F. Pilgrimage, Performance, and Stained Glass at Canterbury Cathedral. In: BLICK, Sarah; TEKIPPE, Rita. Art and Architecture of Late Medieval Pilgrimage in Northern Europe and the British Isles. Leiden-London: Brill, 2005. p. 243-281.

JASKOT, Paul B. Digital Methods and the Historiography of Art. In: BROWN, Katherine (ed.) The Routledge Companion to Digital Humanities and Art History. Nova York e Londres: Taylor & Francis, 2020. p. 9-17.

JENKINS, John. Modelling the Cult of Thomas Becket in Canterbury Cathedral. Journal of the British Archeological Association, v. 173, n. 1, p. 100-123, 2020.

JOYEUX-PRUNEL, Béatrice. Exhibition Catalogues in the Globalization of Art. A Source for Social and Spatial Art History. Atl@s Bulletin, v. 4, n. 2, p. 79-104, 2015.

KOLDEWEIJ, Jos. Notes on the Historiography and Iconography of Pilgrim Souvenirs and Secular Badges. In: HOURIHANE, Colum (ed.). From Minor to Major: The Minor Arts in Medieval Art History. Pensilvania: Pennsylvania State University Press, 2012. p. 194-216.

RADBOUD UNIVERISTY. Kunera: Late Medieval Badges and Ampullae. Nijmegen, The Netherlands. Disponível em: https://kunera.nl/en/about-kunera. Acesso em: 25 mar. 2024.

SOCIETY FOR CHURCH ARCHEOLOGY - SCA Lecture. Dr. John Jenkins - Reconstruction Thomas Becket's Mecieval Shrine at Canterbury Cathedral. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=klcUJNix5UQ&ab_channel=ChurchArchaeology. Acesso em: 25 ago. 2022.

SOLLY, Meilan. Researchers Digitally Reconstruct Thomas Becket's Razed Canterbury Cathedral Shrine. 9 de julho de 2020. Smithsonian Magazine. Disponível em: https://www.smithsonianmag.com/smart-news/researchers-digitally-reconstruct-thomas-beckets-lost-canterbury-cathedral-shrine-180975280/. Acesso em: 24 mar. 2024.

STAUNTON, Michael. The Lives of Thomas Becket: Selected Sources translated and annotated. Manchester: Manchester University Press, 2001.

STAUNTON, Michael. Thomas Becket and his Biographers. Woodbridge: The Boydell Press, 2006.

TATSCH, Flavia Galli. O visível e o oculto: os múltiplos significados nas virgens abrideiras. 26 de março de 2021. Disponível em: https://sacralidadesmedievais.com/textos/f/o-vis%C3%ADvel-e-o-oculto?blogcategory=ARTE+MEDIEVAL. Acesso em: 26 ago. 2022.

THE BRITSH LIBRARY. Cyber incident update. Disponível em: https://www.bl.uk/cyber-incident/. Acesso em: 29 mar. 2024.

THE BRITISH LIBRARY. Medieval manuscript blog: Thomas Becket's martyrdom. 29 de dezembro de 2017. Disponível em: https://blogs.bl.uk/digitisedmanuscripts/2017/12/thomas-beckets-martyrdom.html. Acesso em: 22 jun. 2022.

THE BRITISH MUSEUM. Thomas Becket. Murder and the Making of a Saint. Exposição de 20 de maio a 22 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.britishmuseum.org/exhibitions/thomas-becket-murder-and-making-saint. Acesso em: 25 mar. 2024.

UNIVERSITY OF CAMBRIDGE. The Digital Pilgrim Project. Disponível em: https://www.hoart.cam.ac.uk/research/past-projects/the-digital-pilgrim-project. Acesso em: 25 mar. 2024.

UNIVERSITY OF YORK. Researchers reconstruct medieval shrine of Saint Thomas Becket. 7 de julho de 2020. Disponível em: https://www.york.ac.uk/news-and-events/news/2020/research/thomas- becket-shrine/. Acesso em: 22 jun. 2022.

UNIVERSITY OF YORK. The Centre for the Study of Christianity & Culture. Disponível em: https://www.christianityandculture.org.uk/. Acesso em: 31 mar. 2024.

UNIVERSITY OF YORK/THE CENTRE FOR THE STUDY OF CHRISTIANITY & CULTURE. The Becket Story. The Life, Death and Influence of St Thomas Becket. Disponível em: https://thebecketstory.org.uk/canterbury/visiting-cathedral. Acesso em: 26 ago. 2022.

Notes

1 O itálico é da própria Joahanna Drucker.
2 Essa é a proposta do Projeto Temático Uma História Conectada da Idade Média. Comunicação e Circulação a partir do Mediterrâneo (FAPESP 2021/02912-3), no qual sou Pesquisadora Associada.
4 The British Museum. Thomas Becket: murder and the making of a saint, 2021. Disponível em: https://www.britishmuseum.org/exhibitions/thomas-becket-murder-and-making-saint. Acesso em: 23 out. 2024.
5 Apesar de todas essas vantagens, o vídeo apresenta um problema para aqueles que não dominam o inglês, pois a ferramenta de inserção de legenda não a possibilita em português.
6 Trad. livre da autora: “The immediacy of the eyewitness is both performative and evidentiary: performative because of the vivid bodily sensations, especially in the account of Edward Grim who was wounded during the attack of the martyrdom described in the text, and evidentiary because of the impression of incontestable proof of hearing the story from someone who was present at the crucial moment of the event”.
7 British Library Board Cotton MS Claudius BII, f. 341r
9 Felizmente, em 2022 quando da primeira aproximação com o tema, já tinha salvaguardado a imagem.
10 Trad. livre da autora: “This includes contemporary eye-witness accounts, surviving fragments and information on the materials used and the accessibility and location of the shrine within the church. While there are no exact contemporary comparators, we also looked at the work and style of the shrine’s creators and similar examples of shrines elsewhere”.
12 Trad. livre da autora: “But the magnificence of the tomb of St. Thomas the Martyr, Archbishop of Canterbury, is that which surpasses all belief. This, notwithstanding its great size, is entirely covered with plates of pure gold; but the gold is scarcely visible from the variety of precious stones with which it is studded, such as sapphires, diamonds, rubies, balas-rubies, and emeralds; and on every side that the eye turns, something more beautiful than the other appears. And these beauties of nature are enhanced by human skill, for the gold is carved and engraved in beautiful designs, both large and small, and agates, jaspers and cornelians set in rilievo [sic], some of the cameos being of such a size, that I do not dare to mention it: but everything is left far behind by a ruby, not larger than a man’s thumb-nail, which is set to the right of the altar”.
13 Trad. livre da autora: “[a] wooden chest conceals a golden chest; when this is drawn up by ropes, it reveals inestimable treasure... When the cover was removed, we all adored...The prior pointed out each jewel by touching it with a white rod, adding its French name, its worth, and the name of the donor... he often does this.”
14 Trad. livre da autora: “The golden structure, as seen on the badge was ordered by Archbishop Stephen Langton and dedicated on July 7, 1220. Created by the famed goldsmith Walter of Colchester, the tomb, supported on four bays, contained an effigy of Thomas Becket in ecclesiastical vestments. Here, raised above it, is the gabled shrine, encrusted with jewels on a trellis-like ground and surmounted by two ship models, one of which was damaged. A small figure points to a ruby, claimed to be the largest in existence and given in 1179 by the king of France. To the right another figure raises the cover of the shrine with ropes and a pulley. This badge is one of the best surviving visual documents of the shrine. Its accuracy is attested to by descriptions from ambassadors, clergy, and theologians, such as Erasmus. The badge is an important addition to our knowledge of the imagery surrounding this martyr-saint and joins our unrivaled collection of objects associated with him”.
15 Trad. livre da autora: “If epistemology constitutes its objects, does not just describe them, then what are the ways of thinking about works of art that arise from digital methods and reconfigure our fundamental understanding of what constitutes a work of art?”.

Author notes

Editor responsável: Ely Bergo de Carvalho


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