RESUMO: O objetivo deste estudo é discutir sobre mestiçagem, maternidade e casamento em propriedades beneditinas do Rio de Janeiro, entre os séculos XVII e XVIII. Nos interessa também discutir sobre a formação de um mundo de trabalho altamente qualificado e autossuficiente, pautado em um sistema centralizado e corporativista de base cristã. Todos os elementos apresentados neste estudo se entrelaçam com questões indissociáveis, hoje, de quaisquer pesquisas sobre miscigenação no Brasil: mobilidade, ascensão social, hierarquização, negociação e conflito dentro da comunidade escravizada. As fontes para este estudo foram coletadas no Arquivo Distrital de Braga, em Portugal. Tratam-se dos “Estados”, relatórios trienais produzidos pelos mosteiros e enviados para o Abade Geral, em Tibães. São vinte e cinco volumes sobre o Rio de Janeiro, produzidos entre 1623 e 1793. O fio condutor de todo este sistema era o conceito de Família Beneditina, do qual também fazia parte a massa de pessoas escravizadas. Por isso, casamento, maternidade e infância estavam no cerne da gestão escravista beneditina, interessada na formação de uma comunidade ligada por laços de longa duração, montada sob pilares fincados em gerações de descendentes de escravos que se beneficiavam da proteção da Congregação, mesmo quando conquistavam a liberdade.
Palavras chave: Mestiçagem, Rio de Janeiro, beneditinos.
ABSTRACT: The objective of this study is to discuss miscegenation, motherhood and marriage in Benedictine properties in Rio de Janeiro, between the 17th and 18th centuries, also discussing the formation of a highly qualified and self-sufficient world of work, based on a centralized and corporatist system of Christian basis. All the elements presented in this study are intertwined with issues that are inseparable today from any research on miscegenation in Brazil: mobility, social ascension, hierarchization, negotiation and conflict within the enslaved community. The sources for this study were collected at the Braga District Archive, in Portugal. These are the “Estados”, triennial reports produced by the abbots of each monastery and sent to the Abbot General. There are twenty-five volumes about Rio de Janeiro, produced between 1623 and 1793. As a guiding thread throughout this system was the main concept: the Benedictine Family, which also included the mass of enslaved people. Therefore, marriage, motherhood and childhood were at the heart of Benedictine slave management, interested in the formation of a community linked by long-lasting ties, built on pillars rooted in generations of descendants of slaves who benefited from the protection of the Congregation, even when they conquered the freedom.
Keywords: Miscegenation, Rio de Janeiro, Benedictines.
ARTIGO
“Uma eugenia astuciosa”? Maternidade, casamento e miscigenação em propriedades beneditinas, séculos XVII e XVIII
“A Cunning Eugenics”? Motherhood, Marriage and Miscegenation on Benedictine Estates, 17th and 18th Centuries
Received: 27 March 2024
Revised document received: 29 January 2024
Accepted: 13 November 2024
Em 1936, Gilberto Freyre publicou o segundo volume de sua importante trilogia: “Sobrados e Mocambos”. Nesta obra, o autor dedicou algumas palavras sobre uma das mais importantes e ricas ordens religiosas do Brasil: a Ordem de São Bento. Chamou-lhe a atenção a forma com a qual os monges administravam as propriedades. Utilizando-se como principal referência o diário de viagem do inglês George Staunton (que visitou o Rio de Janeiro em 1798), o sociólogo concluiu: “frades argutos no Brasil andavam sempre a fazer experiências genéticas com os seus escravos, para chegarem à conclusão, no século XVIII, de que os melhores, os mais dotados de inteligência e de talento, eram os mulatos” (Freyre, 1998, p. 604).
Essas polêmicas palavras ecoaram no tempo, reapropriadas por outros escritores do século XX. Em 1967, o jornalista Vivaldo Coaracy (1965, p. 365-366) escreveu: “eram muito conhecidos os ‘escravos brancos’ de São Bento”. Contudo, nos diz o autor, “brancos, de fato, não eram; mas caprichavam os monges em selecionar para os serviços do mosteiro mulatos tão claros que poderiam passar por brancos, não fosse a sua condição de cativos; e por eles pagavam alto preço”. Mais tarde, na década de 1990, o historiador Luiz Gonzaga Piratininga Jr., apropriando-se das palavras de Freyre e Coaracy, afirmou: “o propósito da miscigenação [nas propriedades beneditinas] obedecia a uma ‘eugenia astuciosa’ que visava, ao que parece, obter mais vantagens sobre o trabalho dos escravos mais saudáveis” (Piratininga Jr, 1991, p. 30).
Mas o que de fato teria dito o viajante inglês George Staunton, ponto de partida para esta intrigante polêmica? Em uma breve referência aos beneditinos, Staunton afirmou que os monges do Rio de Janeiro consideravam os escravizados mulatos dotados de muita inteligência e engenhosidade. Por isso, alguns deles eram criados cuidadosamente e instruídos com certo sucesso (Staunton, 1792, p. 174-175). Nada mais que isso. Todo o resto, ou seja, “experiências genéticas”, branquitude dos escravizados e “eugenia astuciosa”, são frutos unicamente das interpretações dos autores. Até porque, não há quaisquer trabalhos sobre mestiçagem em propriedades beneditinas do Brasil.
Mas a polêmica da miscigenação não se limita a Freyre e seus seguidores. Este é um tema que ainda incomoda e perturba militantes, acadêmicos e estudantes, e que vem ganhando novos contornos com as discussões sobre cotas, autoidentificação e comissões de heteroidentificação. No entanto, o desafio não tem afastado os historiadores do debate. Muito pelo contrário. Temas como raça, cor, etnia e miscinegação têm nos últimos anos chamado a atenção de inúmeros estudiosos de diferentes áreas do conhecimento. Este artigo pretende contribuir para esta instigante e importante discussão.
Tomando a polêmica iniciada por Freyre como ponto de partida e a exagerada declaração de Piratininga Jr., este estudo visa reduzir a escala de observação e centrar-se em um debate minucioso e aprofundado sobre mestiçagem, maternidade e casamento em propriedades beneditinas do Rio de Janeiro. Como parte não menos importante, discutiremos sobre a formação de um mundo de trabalho altamente qualificado e autossuficiente, pautado em um sistema centralizado e corporativista de base cristã. Todos os elementos apresentados neste estudo se entrelaçam com questões indissociáveis, hoje, de qualquer pesquisa sobre miscigenação no Brasil: mobilidade, ascensão social, hierarquização, negociação e conflito.
Apesar de focar especificamente em uma organização religiosa, estamos falando de uma instituição que tem raízes antigas, considerada o modelo do monasticismo ocidental. A Ordem de São Bento, apesar de ter surgido no século VI, transformou-se em uma poderosa corporação apenas no século XVI, quando os vários mosteiros espalhados por Portugal decidiram se reunir em uma Congregação, fruto das orientações do Concílio de Trento. Pouco tempo depois, os primeiros beneditinos chegaram ao Brasil, fundando o seu primeiro mosteiro fora de Portugal, em 1581 (Salvador, Bahia). Essa conexão atlântica se manteve até 1827, quando os monges da recém-nação independente decidiram se separar, fundando uma congregação autônoma (Endres, 1980, p. 24; p. 29; p. 40-41).
Durante todo esse tempo, a Congregação Beneditina acumulou um rico patrimônio, espalhado por várias capitanias/províncias do Brasil, incluindo aproximadamente quatro mil pessoas escravizadas. Pautados em um Paternalismo Institucional, os monges geriam as propriedades seguindo as diretrizes deixadas pelo patrono, São Bento (por meio de sua famosa Regra), e, também, por leis que eram periodicamente atualizadas através de assembleias trienais, chamadas Capítulos Gerais. Apesar de adaptadas aos novos tempos e realidades locais, as novas leis sempre se pautavam nos três pilares ensinados por Bento de Núrsia: família, castigo e obediência.1
Para adentrar nesse universo particular, utilizarei uma rica documentação disponível no Arquivo Distrital de Braga, em Portugal, onde se localizava a antiga sede da Congregação: o Mosteiro de Tibães. Trata-se dos “Estados”, relatórios trienais produzidos pelos abades de cada mosteiro e enviados para o Abade Geral. Essas fontes trazem uma riqueza de detalhes não encontrada em outras fontes. São doze volumes no total, sendo dois sobre o Rio de Janeiro, produzidos entre 1623 e 1793. Utilizei também outros documentos, como as Atas dos Capítulos Gerais (realizados em Portugal) e Juntas Gerais do Brasil.
Estes “Estados” não são fontes inéditas. Alguns historiadores já as utilizaram para investigar aspectos da escravidão que não aparecem detalhadamente em outros tipos de fontes. No entanto, os autores, destacadamente Schwartz (1983) e Sweet (2003), não se preocuparam em entender o funcionamento complexo da Congregação, que possuía normas e leis próprias, fundamentais para entender o porquê da potência corporativa na qual esta ordem se transformou. O sistema de gestão escravista peculiar construído pela corporação não pode ser apenas pano de fundo. Não considerar os Capítulos Gerais, a Regra de São Bento e outras particularidades beneditinas pode levar o pesquisador a equívocos ou à análise limitada. Os historiadores também acabam analisando jesuítas e beneditinos em perspectiva comparada, evidenciando principalmente as suas particularidades enquanto organizações religiosas, em contraposição às propriedades de leigos. No entanto, jesuítas e beneditinos têm histórias, trajetórias e organizações diferentes, apesar de possuírem muitas semelhanças.
Outra questão importante está nas generalizações dos dados, ao analisarem um número significativo de informações referentes a diversas propriedades espalhadas por capitanias que tiveram experiências diferentes ao longo de sua história, tornando-se necessário estudar a fundo cada região e suas devidas particularidades. Não cabe, em um mesmo artigo, uma análise tão ampla incluindo dados sobre o Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Paraíba. É sempre possível, claro, apontar as conexões e os vínculos que ligavam todos os mosteiros e sua dinâmica. Mas é preciso olhar de perto, reduzindo a escala de observação para revelar aspectos que o macro não permite ver, para evitar cair em generalizações nem sempre verdadeiras (Revel, 1998).
Por fim, tanto Sweet quanto Schwartz tiveram objetivos diferentes do meu. Enquanto o foco de Schwartz era principalmente os aspectos econômicos da produção de açúcar e da escravatura nos engenhos beneditinos, Sweet estava preocupado com a transmissão das culturas africanas para as Américas. Neste estudo, o objetivo é entender melhor as unidades produtivas escravistas sob a gestão de uma organização religiosa que mesclava princípios corporativistas e empresariais com doutrinação cristã, sob uma estrutura altamente centralizada e hierarquizada. Foi nesse universo particular que se formou uma comunidade de pessoas escravizadas que experimentou vivências diferentes de outras controladas por senhores leigos.
Nenhum estudo sobre ordens religiosas destacaram o papel da mestiçagem em suas propriedades. De forma geral, os pesquisadores enfatizaram a importância do casamento e da reprodução endógena, incentivada por monges e frades de diferentes congregações. Estas conclusões podem ser encontradas em vários estudos sobre os jesuítas, a exemplo de Márcia Amantino (2014, p. 250-273), Denise Demétrio (2008, p. 149) e Carlos Engemann (2002, p. 61). Os estudos sobre os beneditinos seguem a mesma perspectiva. Não abordam de forma aprofundada a mestiçagem, apenas evidenciam a importância do casamento e do alto índice de crescimento vegetativo (Franco, 2021; Piratininga Jr, 1991; Schwartz, 1983). Já sobre os carmelitas, Sandra Molina (2006, p. 203) afirma não ter encontrado orientações institucionais que incentivassem o casamento entre pessoas escravizadas. O mesmo pode ser dito sobre os franciscanos, considerando os estudos de Venâncio Willeke (1976) e Marcos Almeida (2016). No entanto, em ambos os casos, o matrimônio estava fortemente presente entre os cativos. Apenas não há evidência de uma política deliberada, como entre os beneditinos e os jesuítas.
Contudo, a historiografia sobre mestiçagem no Brasil é extensa e tem raízes antigas. Mas vale aqui apontar os caminhos mais recentes que indicam novos olhares sobre o tema. Ronald Raminelli (2012), ao analisar uma série de documentos produzidos entre 1640 e 1750, nos ajuda a entender melhor como diversos agentes do Império português vinculavam a cor da pele a hábitos e qualidades dos indivíduos. Seu objetivo é refletir sobre as classificações sociais no Brasil colônia analisando as ideias sobre hierarquias da cor e ideias de raça, em um contexto marcado pela dicotomia entre branco/nobre e negro/vil. Gian Carlo Silva (2018, p. 40), utilizando-se dos registros de batismo da freguesia de Santo Antônio do Recife no final do século XVIII, traz importantes reflexões sobre cor, qualidade e escravidão, analisando as transformações em torno de termos e qualificações que impediam livres e libertos de se afastarem das “máculas do cativeiro”.
Em seu artigo mais recente, Eduardo Paiva (2023, p. 19) também evidencia (em estudo comparativo sobre mestiçados em Minas Gerais e Buenos Aires) a relação entre cor e qualidade, direcionando sua análise às diversas categorias de mestiços descritas em uma variada documentação. Isnara Pereira Ivo (2023) analisou as atividades comerciais desenvolvidas por escravizados e forros durante o século XVIII nos sertões do Norte de Minas Gerais e do Centro-Sul da Bahia. O foco do seu artigo está na demonstração do papel desses indivíduos no abastecimento das áreas mineradoras, evidenciando as diferentes composições sociais formadas a partir de diferentes processos de mestiçagens.
Outros estudos evidenciaram a importância de incluir os indígenas nessa discussão. Certamente o estudo de Stuart Schwartz (2003) é um desses trabalhos que não podem deixar de ser citados. O autor nos apresenta importantes discussões e reflexões sobre confrontos e relacionamentos resultantes do contato entre negros e indígenas na Bahia, ajudando-nos a compreender melhor as diferentes formas de mestiçagens no Brasil e sua relação com o regime colonial em construção.
Mais recentemente, vários estudos têm apontado caminhos semelhantes. Bruna Portela (2021, p. 02), em seu estudo sobre a Comarca de Paranaguá, pertencente, no século XVIII, à Capitania de São Paulo, analisou vinte e um processos judiciais que possibilitaram à autora discutir sobre “distanciamentos e aproximações sociais existentes entre indígenas e negros”. Essas relações foram o resultado tanto de imposições da justiça e da legislação portuguesas, quanto do entendimento dos próprios sujeitos investigados. Maria Regina Almeida (2021, p. 02-03) nos oferece um interessante estudo sobre as construções de classificações étnicas e sociais entre os séculos XVIII e XIX e as apropriações dos próprios sujeitos que assumiram ou rejeitaram essas identidades. Segundo a autora, africanos, indígenas e seus descendentes tinham consciência dos possíveis ganhos ou perdas políticos, econômicos e sociais em torno dessas categorizações, resultando em constantes processos de ressignificações, controvérsias e reconstruções de identidades.
Roberto Guedes e Silvana Godoy (2023, p. 76) também discutem o emprego de diferentes termos usados em São Paulo ao longo do século XVII, utilizados pelos contemporâneos para hierarquizar e “dar sentido ao seu mundo”. Os autores propunham a problematização de expressões de mestiçagem muito comuns na documentação analisada, interessados principalmente nas categorias mameluco, pardo e mulato.
Este estudo irá contribuir para este amplo debate, trazendo como novidade a análise de propriedades sob a administração peculiar de uma Ordem religiosa que não recebeu a mesma atenção que os historiadores deram aos jesuítas. As propriedades beneditinas foram um grande caldeirão multicultural, cujas possibilidades de mobilidade e ascensão social ganharam um capítulo à parte da sociedade escravista. O casamento foi incentivado e fiscalizado, enquanto a maternidade se transformou em uma estratégia de barganha feminina. Africanos, crioulos, indígenas e uma diversa camada de mestiços brotam da rica documentação, possibilitando-nos adentrar em um mundo ainda pouco conhecido da historiografia.
Diferentemente dos jesuítas, os beneditinos não deixaram códigos de conduta ou “manuais” que tentavam justificar a posse dos escravizados ou ensinar os proprietários leigos a “governarem” os seus cativos.2 No entanto, apesar de evitarem publicizar as suas ideias sobre a escravidão, a vasta documentação sobre essa poderosa ordem religiosa revela um pensamento altamente elaborado sobre gestão, paternalismo e controle de corpos e mentes, com raízes nos escritos deixados pelo patriarca Bento de Núrsia. Mas era preciso adaptar-se à realidade que encontraram no Novo Mundo. Os monges que desembarcaram no Brasil logo incorporaram a exploração da mão de obra escravizada. Em 1718, eles compartilhavam a ideia de que “tudo quanto se possui nesta América é incerto por penderem das vidas dos escravos” (Citado por Rocha, 1991, p. 90). Para Mateus Rocha (1991, p. 90), importante historiador beneditino, “com os escravos nasceu e cresceu o patrimônio do Mosteiro do Rio de Janeiro. E o fim da sua escravatura em 1871 também selou-lhe a decadência final”.
A Ordem de São Bento chegou a contar com 130 mosteiros espalhados por Portugal. Mas foi apenas em 1569 que os monges decidiram se reunir em uma poderosa Congregação, tendo a cidade de Tibães como sede. Em 1581, o Capítulo Geral decidiu fundar um mosteiro no Brasil, escolhendo a cidade de Salvador, Bahia, para ser a primeira casa beneditina construída fora da Europa (Endres, 1980, p. 24; p. 29; p. 40-41).
Entre os séculos XVI e XVII foram construídos outros dez mosteiros, localizados no Rio de Janeiro, Pernambuco, Espírito Santo, Ilhéus, Paraíba, São Paulo, Santos, Sorocaba, Jundiaí e Brotas (Endres, 1980, p. 216). Contudo, nem todos os mosteiros prosperaram. Um relatório elaborado pelo Abade Provincial (1737-1739) informava que, apesar das casas de Sorocaba, Jundiaí e Parnaíba também terem terras, não havia escravizados para trabalhar nelas, “que são a gente com que no Brasil todo se cultiva as terras”3. À semelhança das demais casas monásticas construídas no século XVI, os monges do Rio enfrentaram grandes dificuldades, devido à pobreza da região onde se instalaram. No início, havia apenas seis religiosos vivendo no mosteiro (Rocha, 1991, p. 28-32).
Paulatinamente, os monges construíram um sistema peculiar e bem-sucedido de gestão altamente corporativista e centralizado, pautado em princípios cristãos e paternalistas. Diferentemente da proposta inicial do patriarca São Bento, os abades beneditinos perderam o poder absoluto e vitalício em 1570, dando lugar a um sistema de eleições trienais que impediam a permanência de um indivíduo no mesmo posto por vários anos. Esse sistema valia tanto para o alto escalão (Abade Geral, em Tibães, e Abade Provincial, na Bahia), quanto para os abades de cada mosteiro (Souza, 2007, p. 19-20).
Com a ajuda de colonos abastados da colônia, os beneditinos acumularam um diversificado patrimônio rural e urbano. Por meio de doações e heranças, devotos transferiram parte de suas propriedades, algumas com um número significativo de escravizados. Entre o final do século XVI e final do XVIII, o patrimônio incluía casas e terrenos na cidade do Rio de Janeiro e propriedades rurais em Inhomirim, Iguaçu, Campo Grande, Ilha Grande, Angra dos Reis, Cabo Frio, Maricá, Campos, Camorim, Ilha do Governador e Pastos de São Domingos. Em 1787, eles possuíam 183 casas térreas e de sobrado localizadas na cidade (Rocha, 1991, p. 77).
Em meados do século XVII, os beneditinos adquiriram vários currais, onde criavam gado vacum e cavalar. Nesse tempo, nos currais da Paraíba, Cabo Frio, Maricá e Campo Grande havia apenas 54 cabeças de gado vacum e vinte e seis cavalar, sob o cuidado de 80 escravizados. Eles começaram também a investir em fazendas para o abastecimento do mosteiro e das propriedades, onde havia um número maior de pessoas escravizadas, vindo “da Guiné” e “da terra”, somando 159 “almas”. Com a compra de outros cativos, o triênio 1648-1652 terminou com 250 escravizados, entre indígenas e africanos4. Para administrar esse patrimônio, o mosteiro contava com trinta religiosos5.
Neste ponto, é importante apresentar alguns aspectos gerais sobre as principais propriedades beneditinas no Rio. Em 1616, os monges construíram o seu primeiro engenho de açúcar, localizado em Iguaçu. Em meados do século XVII, o engenho possuía 109 escravizados, 93 bois de carro e roda, duas barcas e uma canoa (Rocha, 1991, p. 60). Essa fazenda estava localizada no Recôncavo da Guanabara, região onde a produção de alimentos sempre foi a principal especialidade. A grande maioria das unidades agrícolas eram formadas por pequenas e médias propriedades, mas com número de escravizados bastante expressivo. No século XVIII, a região se transformou em um importante ponto de conexão “entre a cidade do Rio de Janeiro e outras regiões brasileiras, como as Minas Gerais no período aurífero”. No século XIX, a conexão se expandiu para as zonas cafeeiras (Franco, 2021, p. 21). Em 1787, a fazenda possuía 127 cativos. Um dado interessante foi bem colocado por Vitor Franco. A média de escravizados por senhores da Guanabara era em torno de onze cativos por senhor, demonstrando que as propriedades beneditinas do Rio de Janeiro superaram em muito o número de escravizados da região (Franco, 2021, p. 75).
A fazenda de Campo dos Goitacazes também ocupava um lugar de destaque, tendo como principal atividade, até meados dos XVIII, a pecuária. Em 1652, já havia 4.350 cabeças de gado vacum, sob os cuidados de 62 cativos. Em 1660, o número de cabeças de gado quase dobra, chegando a 8.443, aumentando também o número de cativos: 89 pessoas. A partir de 1763, a propriedade de Campo dos Goitacazes diversificou a produção, contando com um engenho (Rocha, 1991, p. 69). Esse foi um processo que fazia parte da própria dinâmica da região, que se transformou, em meados do século XVIII, na principal área agroexportadora do Rio de Janeiro. O número de engenhos mais que duplicou, passando de cinquenta para 113, e a produção açucareira teve um crescimento surpreendente: 235% (Florentino, 1997, p. 30).
A diversidade produtiva dos monges beneditinos fazia parte de uma estratégia de gestão que visava construir uma complexa engrenagem entre as propriedades que possuíam. O lucro não era o seu principal objetivo, mas sim a autossuficiência e o bom funcionamento de todo o corpo organizacional da instituição. Por isso, tudo estava interligado, funcionando em rede, conectando diferentes setores econômicos de acordo com o interesse da corporação.
Fazendas eram usadas como entrepostos entre uma propriedade e outra (gado, por exemplo, para descanso e engorda). O gado saía de Campos, Cabo Frio e Maricá em direção ao Rio. Os monges transportavam os animais em barcas, com destino ao curral da Ilha das Cobras ou até o cais do Mosteiro, onde eram vendidos ou levados para o seu próprio açougue (Rocha, 1991, p. 76). À medida que o número de escravizados e outros agregados crescia, a necessidade de produzir mais alimentos também preocupava os monges. Por isso, na década de 1760, incorporaram ao patrimônio a fazenda de Vargem Grande, “destinada a mantimentos”. Para o bom funcionamento da propriedade, foi necessária a compra de 66 novos escravizados, que produziam mandioca e farinha, além de feijão, milho, arroz e legumes6.
Os produtos também circulavam entre os mercados locais, tendo como principais atividades produtivas açúcar, aguardente, gado, tijolos, telhas, couros. Mas grande parte da renda vinha de aluguéis, arrendamentos e aforamentos. De forma geral, a relação entre receita e despesas foi quase sempre constante, restando pequeno saldo de triênio para triênio, aumentando a margem somente a partir de 1789 (Rocha, 1991, p. 80).
As propriedades beneditinas também eram construídas de forma a facilitar o controle da movimentação dos cativos. Na Fazenda da Vargem foram construídas casas no cume de um oiteiro, “donde se descobre toda a fazenda, de sorte que não [podia] entrar nem subir pessoa alguma sem que [fosse] vista das janelas”. Assim, os padres fazendeiros poderiam “registrar as ações dos escravos, que trabalham nos canaviais”7. Autonomia e controle marcaram a ambiguidade da gestão beneditina.
Em meados do século XVI, como dito, o mosteiro possuía 250 escravizados. No final do século XVIII eles somavam 1.176 “almas”, um crescimento surpreendente. Esse número era bem superior às propriedades beneditinas de outras capitanias, a exemplo de Pernambuco, com 408 cativos8, Bahia, com cerca de 300 (Rocha, 1991, p. 83–84) e Paraíba, com apenas 66 (Castro, 1864, p. 136-137). Um ponto importante a destacar: enquanto em Pernambuco e Bahia os monges recorreram bem menos ao tráfico (Costa, 2020; Schwartz, 1983;), o Mosteiro do Rio continuou comprando cativos regularmente até o início dos oitocentos. Contudo, tudo indica que, no decorrer do século XIX, todas as propriedades beneditinas do Brasil eram autossuficientes.
No entanto, no caso do Rio de Janeiro, havia uma demanda mais ativa que perdurou até pelo menos as primeiras décadas do século XIX. O estudo de Vitor Franco, sobre a Fazenda do Iguaçu, nos dá boas pistas sobre o tema. Apesar de as fontes analisadas nem sempre mencionarem a cor/qualidade ou procedência do cativo, o autor constatou que, de um total de 137 batismos realizados entre 1824 e 1835, 13,1% envolviam africanos adultos. Isso significa que os monges continuavam a recorrer ao tráfico para abastecer as propriedades, talvez com menos regularidade que no século anterior. Apesar dos limites das fontes, Franco, analisando também os livros de óbitos, já aponta que o número de africanos certamente era bem maior, “camuflados entre os muitos mortos sem identificação de cor ou procedência” (Franco, 2021, p. 163-166). Esta análise corrobora os meus argumentos sobre as propriedades beneditinas do Rio de Janeiro, que seguiram uma tendência diferente de outras fazendas administradas pela Congregação. Ou seja, também em propriedades beneditinas “o tráfico atlântico constituía-se em variável fundamental para a reprodução física da mão-de-obra cativa” (Florentino, 1997, p. 27). No entanto, diferentemente das propriedades leigas, os monges conseguiram incrementar o trabalho dos escravizados com outras fontes de renovação.
Vejamos alguns números gerais sobre essas propriedades. Em 1787, as fazendas beneditinas do Rio de Janeiro variavam bastante em número de cativos, devido ao perfil de cada uma delas. A fazenda de Cabo Frio possuía apenas 18. Maricá, 43. O Engenho da Ilha, 81. A propriedade de Iguaçu estava dividida em três fazendas, compostas por 84 cativos. Em uma dessas propriedades havia uma olaria de telhas, onde vinte cativos trabalhavam. Havia ainda um engenho de farinha, com 23 escravizados. O Engenho de Camorim, 105. Em Campos havia uma grande fazenda com dois engenhos de açúcar, quatro currais de gado vacum e vários lotes de bestas moares e cavalares. Era a maior propriedade, com “mais de 450 escravos”9. Outras pequenas propriedades, denominadas de “currais”, às vezes possuíam apenas um, dois ou quatro cativos.
Mas é preciso entender as peculiaridades no processo de formação da mão de obra cativa da Ordem de São Bento. De forma minuciosa, os beneditinos registraram as frequentes aquisições de escravizados, revelando-nos a dinâmica que levou à ampliação gradual do número de pessoas escravizadas ao longo dos séculos XVII e XVIII. A necessidade de compras regulares era justificada por três fatores: alta mortalidade, alforrias e aquisição de novas propriedades. Por exemplo, em meados do século XVII, dezoito “Negros da Guiné” morreram, além de “dez peças e três crianças” do “Gentio da Terra”. Para recompor a mão de obra, “meteram” outros nas propriedades que perderam escravos10. Evidentemente que os custos com novas aquisições eram um problema que pesava na receita do mosteiro. Em 1739, o Abade Provincial elaborou um relatório sobre as abadias do Brasil, onde destacava que as propriedades do Rio de Janeiro eram as melhores. No entanto, apesar de possuírem dinheiro suficiente para cobrir todos os gastos, o mosteiro precisava comprar regularmente cativos11.
Apesar do número de escravizados de origem africana ser superior, os indígenas ocupavam um papel importante no trabalho e na formação de uma sociedade miscigenada. Nas propriedades beneditinas, os relatórios deixam claro que eles eram cativos assim como os africanos. Mas não está clara na documentação a aquisição desses indivíduos. Apenas no triênio 1648-1652, eles informam que foram comprados “43 escravos de Angola”, oito da “Guiné” e “cinco do Gentio da Terra”, além de um cabra que sabia ler e escrever. Contudo, eles são citados em todos os relatórios do século XVII, certamente, incorporados ao mosteiro por meio de doações e heranças. No Engenho do Iguaçu (1648-1652) havia dezessete “peças” do sexo masculino do “Gentio da Terra”. Do “Gentio da Guiné e crioulos mulatos”, trinta homens. As “escravas de Guiné” somavam vinte e oito mulheres, e as indígenas, oito. Havia ainda oito rapazes e moleques12. No triênio seguinte, os monges compraram mais quarenta e um escravizados “da Guiné”13.
Os indígenas quase sempre aparecem nos registros beneditinos com a expressão “da terra” após o seu nome próprio. Em outros casos, outros termos como “carijó”, “caboré” e “colomim” ajudam a identificar esses sujeitos, cada vez mais raros ao longo do século XVIII14. Os beneditinos também usavam o termo “mameluco”, também fruto de casamentos mistos envolvendo indígenas.
Tanto índios quanto negros e mestiços escravizados aparecem nas doações e heranças deixadas por colonos abastados e monges falecidos, prática que contribuiu significativamente para a formação de um número tão elevado de cativos em suas propriedades. Por exemplo, no século XVI, um casal de moradores devotos doou cem braças de terras no distrito de Cabo Frio, incluindo duas casas e dezoito cativos. Em 1667, D. Vitória de Sá (prima de Salvador Correia de Sá) deixou para o mosteiro as suas terras de Camorim, onde havia um engenho, incluindo “mais os escravos do gentio da Guiné, crioulos e crioulas, mulatos e mulatas, e mamelucos e mamelucas, e alguma gente da terra”. Em 1695, o Capitão Manoel Franco doou ao mosteiro umas terras, que possuía na Ilha do Governador, onde havia um engenho “moente e corrente de fazer açúcar [...] com toda a sua fábrica de escravos, bois, cobres e o mais necessário para moer, além de um segundo engenho [...] desfabricado [e mais] uma morada de casas de sobrado [...]” (Rocha, 1991, p. 65; p. 71; p. 75). Infelizmente, não é possível determinar com precisão o número de doações e heranças, pois nem sempre os registros informam a quantidade de escravizados que faziam parte da propriedade incorporada.
Os monges falecidos também tiveram uma parcela importante na formação desse patrimônio. Em meados do século XVII, quando o Fr. Manoel Batista morreu, deixou para o mosteiro um “colomim da terra por nome João”. O Fr. Bernardo deixou uma mulher por nome Valéria da Terra15. No triênio 1663-1666, mais trinta cativos foram deixados como herança, todos pertencentes a um único monge: o Fr. Francisco de Jesus16. No triênio 1720-1723, o mosteiro herdou mais um escravizado pela morte de Fr. José de Jesus17. Já o Fr. Diogo Rangel deixou dois “negros”18 e o Fr. Pedro da Conceição, dez cativos. Outros quatorze escravizados foram herdados do falecido Fr. Luiz e mais quatro do Fr. Bento da Encarnação. Como era de costume, os monges ficavam “obrigados” de rezar missas pelas almas dos irmãos falecidos19. Em 1766, o mosteiro herdou outro valioso patrimônio, deixado pelo Fr. Francisco de São José. O monge possuía uma propriedade composta por trinta e oito escravizados, gados e toda estrutura montada para a fabricação de telhas (Rocha, 1991, p. 62). Ao longo dos séculos XVII e XVIII, pelo menos noventa e sete cativos foram incorporados ao patrimônio beneditino deixado por monges falecidos.
É curioso o fato de o escravizado Manoel Barbeiro também ter “deixado” dois cativos para o mosteiro, certamente por não ter herdeiros diretos20. Outros estudos têm demonstrado que escravizados possuindo escravizados era um fenômeno comum nas propriedades beneditinas, inclusive do Rio de Janeiro (Costa, 2020; Franco, 2021). Pelo menos sete escravizados-senhores são citados nos livros de óbitos do século XVIII, um claro indício de mobilidade no interior das propriedades beneditinas fluminenses. Francisco Teles, destacado mestre artesão do Mosteiro, era senhor de pelo menos três cativos: Rita, enterrada em 1784; Germano, morto em 1785; e Maria, sepultada em 1794. Em 1807, o mestre André, do Iguaçu, sepultou “um inocente”, seu cativo (Fragoso, 2013, p. 17-18).
Apesar do grande número de aquisições por meio de compra, doações e heranças, não devemos reduzir o papel da reprodução endógena na formação da comunidade escravizada. Essa estratégia não se resumia a apenas uma política deliberada de reposição de mão de obra. O que estava em jogo era um mecanismo eficiente para manter a “paz nas senzalas”, sob a ótica de uma doutrinação cristã e do controle paternalista. O casamento não era apenas permitido, mas incentivado e fiscalizado. Em 1780, o Capítulo Geral recomendava a todos os mosteiros que se empenhassem em “promover o casamento dos escravos, sobretudo em vista da moralidade, boa conduta [e] boa ordem nas fazendas” (Rocha, 1988, p. 20).
Além do casamento, havia, entre os monges beneditinos, uma preocupação constante em oferecer benefícios às mulheres escravizadas que procriassem muitos filhos. Uma forma de “ascensão” pela maternidade. Em 1780, monges do Brasil, reunidos em Tibães, decidiram declarar forras todas as escravizadas que haviam concebido pelo menos seis filhos frutos de legítimo matrimônio. Contudo, a medida foi logo frustrada pelo alto comando da Congregação, que mandou anular a proposta. Segundo o Abade Geral, essa determinação acarretaria “gravíssimos prejuízos”, tanto aos mosteiros, quanto às próprias cativas, pois elas “ficariam sem o amparo dos respectivos mosteiros e estes privados de preciosa mão-de-obra” (Rocha, 1988, p. 20). Apesar da reprimenda, os monges do Brasil insistiram em “premiar” as mulheres escravizadas que procriassem muitos filhos, declarando, em 1783: “que fiquem isentas de todo serviço aquelas escravas que tiverem dado e criado seis filhos de legítimo matrimônio”21.
Logo, tráfico, doações, heranças e reprodução endógena foram estratégias complementares e bem-sucedidas de reposição e ampliação do número de pessoas escravizadas. E, apesar da intensa miscigenação, a presença africana manteve-se sempre renovada até meados do século XIX, em paralelo ao crescente número de cativos crioulos e mestiços.
A estratégia do casamento e estímulo à reprodução foi sem dúvida uma política de sucesso. O número de casais, crianças e jovens nas propriedades é surpreendente. Esse sucesso foi possível também, graças à preocupação de sempre manter o equilíbrio entre os sexos. Se, para a grande maioria das propriedades leigas o “matrimônio sancionado pela Igreja Católica não estava aberto a todos os escravos que o requisitassem” (Slenes, 1999, p. 73), entre os cativos das propriedades beneditinas o casamento era uma obrigação moral e religiosa. Logo, o estímulo à união matrimonial era parte integrante da política escravista beneditina. E a procriação, uma dádiva de Deus.
Quando havia uma desproporção, o mosteiro logo tomava providências. No triênio 1783-1787, os monges compraram trinta e seis novos escravizados. Deste total, trinta e três eram mulheres. Este é um dado que chama bastante a atenção e, certamente, incomum no mundo da escravidão brasileira. Ao informar esse dado, o abade enfatizou que, desse total, “alguns” já estavam devidamente casados22. Esses arranjos familiares são facilmente identificados nas listas nominativas disponíveis nos “Estados”. No triênio 1648-1652, o Engenho do Iguaçu possuía 47 cativos do sexo masculino (17 indígenas e 30 “negros”), além de nove moleques e rapazes. As mulheres somavam 36 (8 indígenas e 28 “negras”). Por fim, 17 crianças de ambos os sexos23. No triênio seguinte, o mesmo engenho possuía 44 escravizados do sexo masculino e 42 mulheres, além de jovens e crianças (número não informado)24.
Algumas fazendas evidenciam mais claramente o peso dos casais. Na fazenda de Inhomirim, com 18 cativos, encontramos os seguintes casais: Álvaro e sua mulher, Francisco e sua mulher, Domingas e seu marido, Pedro e sua mulher, Antônio e sua mulher, Manoel da Terra e sua mulher. Ou seja, do total, apenas seis eram solteiros. No mesmo período, em um dos seus currais, havia oito casais, quase todos com filhos: Diogo, sua mulher e sete filhos; Manuel e sua mulher; Jorge, sua mulher e seus dois filhos; Gonçalo e Mônica forra25.
No curral dos Campos dos Goitacazes havia, no triênio 1657-1660, oitenta e nove escravizados26. O monge responsável pelo registro fez questão de enfatizar que nessa fazenda havia vinte e três casais de cativos, totalizando quarenta e seis pessoas, e apenas quinze solteiros. Impressiona também o número de crianças: um total de 28 “crias”. Entre os solteiros, havia ainda quatro viúvos, um homem e três mulheres. Já na fazenda que existia em Campos dos Goitacazes, havia 74 escravizados (quatro nomes não foram registrados)27, a saber:
Dos 74 cativos, 24 eram crianças (10 meninos e 14 meninas). Havia 28 homens e 22 mulheres. Trinta e oito pessoas casadas e três viúvas, ou seja, 41 pessoas que em algum momento da vida realizaram o matrimônio. Ficam apenas nove pessoas adultas solteiras. Mas havia ainda quatro pessoas com filhos, mas não registradas como casadas, ampliando o número de famílias. Apenas onze pessoas não foram registradas com vínculos familiares.
Apesar do número reduzido de indígenas citados de forma explícita (três pessoas), lembremos que os beneditinos estavam contrariando a legislação portuguesa. A partir de 1609, todos os “gentios” do Brasil foram declarados livres, “conforme o direito, e seu nascimento natural”, fossem eles ainda “gentios” ou cristãos. Eles deveriam, a partir de então, ser tratados como pessoas livres, proibindo-se quaisquer constrangimentos que os forçassem ao serviço, como até então ocorria (Guedes; Godoy, 2023, p. 83). Como se sabe, essa determinação encontrou resistência de grande parte dos colonos, provocando conflitos principalmente com os jesuítas. Mais tarde, novas leis (1611, 1755, 1758) tentaram efetivar e redefinir os termos daquela legislação. Nas propriedades beneditinas do Rio de Janeiro, eles foram paulatinamente desaparecendo em um processo natural de substituição pelos africanos e seus descendentes. Mas estavam lá, registrados como qualquer outro cativo.
Mas a presença de indígenas na lista acima não surpreende. Eles foram encontrados também em inventários e testamentos, arrolados como escravizados, inclusive no século XVIII, em outras capitanias, como São Paulo, Minas Gerais, Amazônia e Rio Grande do Norte (Portela, 2021, p. 05-06). Alguns estudos demonstram, inclusive, casos em que indígenas e mestiços precisaram entrar na justiça para reivindicar a sua liberdade, mesmo que fossem, perante a lei, considerados livres (Portela, 2021, p. 06).
A partir de 1755/1757, a nova legislação deu um passo ainda maior no processo de afastamento dos indígenas da escravidão e de qualquer relação com os africanos e seus descendentes. A partir dessa data, eles não poderiam mais ser tratados como escravizados, nem mesmo chamados de “negros”. Contudo, e apesar do uso da justiça contra os colonos, muitos proprietários continuaram burlando a lei, mantendo indígenas no trabalho forçado. A mestiçagem foi um fator frequentemente utilizado contra os descendentes de indígenas com africanos, uma estratégia senhorial para justificar a escravização de mestiços, muitas vezes classificados como mulatos (Portela, 2021, p. 07; Schwartz, 2003, p. 15-16).
Vários escravizados traziam ao lado de seu nome designações de procedência ou termos raciais, muitos deles evidenciando o processo de miscinegação ainda mais evidente entre os beneditinos, devido ao equilíbrio entre os sexos e a política de estímulo ao casamento e procriação. As fontes beneditinas nos revelam, com riqueza de detalhes, que as suas propriedades eram um caldeirão multirracial e cultural. Mas, como tantas outras comunidades de cativos, a miscigenação e a exploração andavam juntas.
Para entender melhor o surgimento e a atribuição de termos e as designações, é preciso entender o olhar classificador de autoridades e senhores durante o processo de mestiçagem no Brasil. Tudo girava em torno de dois conceitos muito comuns no Antigo Regime: Qualidade e Condição. As “qualidades” atribuídas a indivíduos e grupos tinham por objetivo classificar as pessoas de acordo com a cor de sua pele, sua origem/procedência, posição social ou termos de mestiçagens que variaram no tempo e no espaço. Essas qualificações definiam o seu lugar na hierarquia social em construção: branco, preto, negro, índio, mulato, pardo, crioulo, caboclo, curiboca, cabra, mameluco, entre outros. Já “condição social” era um termo que muitas vezes acompanhava a qualidade, e dava um sentido jurídico aos indivíduos, definidos como livres, escravizados ou forros. Evidentemente que outros elementos contribuíam para definir o termo atribuído, como critérios morais, religiosos, políticos, fisionômicos e econômicos (Ivo, 2023, p. 104).
Nas propriedades beneditinas, encontramos o seguinte: negros (muitas vezes como sinônimo de escravizado), mulatos, cabras e mamelucos eram a maioria. No entanto, há um grande número de categorias e termos muitas vezes vagos e imprecisos. Outros são mais comuns e bem conhecidos da historiografia. Como exemplo, temos: Antônia da Terra, Francisco Mameluco, Domingues Colomim, Isabel Crioula, Julião Cabra, Valéria Mulata. Outros traziam como “sobrenomes” termos de origem africana: Pedro Cajinga30, Luzia Angola, Miguel Benguela, João Cabuta. Outros termos também nos chamam a atenção: Francisco Dendê, Antônio Carimbamba31, Matheus Fulo, Mandu Mirim da Terra, Catarina Carijó.
Ao longo do século XVIII, os termos genéricos africanos (Guiné e Angola) começaram a desaparecer dos registros. Ao descreverem a compra de dezessete cativos no triênio 1737-1739, consta apenas que foram seis negros, dois mulatos e nove negras. No entanto, no mesmo triênio, eles compraram mais dez “escravos Minas”32. Além disso, os termos africanos ainda estavam presentes nos nomes dos cativos, como vimos.
Mas, sem dúvida, no século XVIII, o termo mestiço mais usado na documentação é o de “mulato” (ao invés de pardo, citado apenas três vezes). Como se sabe, a expressão é mais usada para se referir à mistura biológica entre brancos e negros. Contudo, há estudos que indicam o seu uso para os filhos de africanos com indígenas, indivíduos que também poderiam receber os termos de “pardo” ou “cabra” (Ivo, 2023, p. 109-100). Em alguns momentos, a ênfase a esses cativos nos chama a atenção, como no triênio 1743-1746, quando os monges haviam comprado dois carpinteiros, destacando-se que: “um destes, que é pardo, é muito bom oficial e bem-procedido”33. O termo “cabra” aparece cinco vezes.
Neste ponto, há muitas questões que podemos aprofundar sobre a relação entre mestiçagem, trabalho e mobilidade. De fato, a historiografia já demonstrou que escravizados mestiços tiveram mais oportunidades do que os negros. Quanto mais distante da africanidade, mais portas se abriam. Contudo, seria arriscado, neste estudo, tentar quantificar a relação entre mestiçagem e mobilidade social, dadas as lacunas na documentação. Até porque, os “negros” também ocupavam espaços importantes, em grande parte não citados claramente, já que esta definição era muitas vezes utilizada como sinônimo de escravizado. Por isso, não é possível concluir se os monges beneditinos consideravam os mulatos como mais inteligentes e habilidosos, como afirmaram Freyre e seus seguidores. Mas não podemos negar que o termo aparece com bastante frequência, muitas vezes associado a trabalhos especializados e cargos de poder.
Todavia, não pretendo, aqui, reproduzir o “mito” freyriano sobre a preferência pelos mulatos. Esta nem é uma ideia original, já presente em obras clássicas como a de Antonil, onde afirmou: “o Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e mulatas” (Antonil, 1982, p. 90 citado por Paiva, 2023, p.18). Mas não podemos deixar de destacar que esta foi uma ideia que reverberou ao longo dos séculos. Segundo Paiva, não apenas os mulatos, mas também outras categorias mestiçadas, “experimentaram mobilidade social extraordinária”, notadamente em áreas mais urbanas, como Minas Gerais. No entanto, o autor alerta que a vida desses indivíduos estava longe de ser um paraíso. Todavia, as novas dinâmicas desenvolvidas ao longo do século XVIII possibilitaram a muitos deles alcançarem alforria, ascensão social e até mesmo fortuna, resultado de negociações que promoviam e preservavam “distinções e hierarquias sociais” (Paiva, 2023, p. 18).
Segundo Schwartz, o processo de classificação estava diretamente relacionado a um processo de hierarquização étnica. A colonização seguiu uma tendência de criar novas categoriais, com termos étnicos e, nas palavras do autor, “pseudorraciais”. Os termos e definições variavam no tempo e no espaço. Mas todos seguiam uma ideia de “ordenamento hierárquico próprio da sociedade colonial” (Schwartz, 2003, p. 15).
Neste ponto, interessa-nos entender a dinâmica interna das propriedades beneditinas em torno do trabalho dos escravizados e suas possibilidades de ascensão social, sem perder de vista os conflitos, as disputas e as vulnerabilidades. A preparação para o mundo do trabalho dos cativos da Congregação fazia parte de seu universo particular e sua quase obsessão pela autossuficiência. Os monges estavam sempre atentos a cativos que demonstravam alguma habilidade específica ou inclinação artística. Um cativo com determinado talento era logo enviado para aprender um ofício. Isso porque, a necessidade beneditina de mão de obra especializada era fora do comum. Havia muitas demandas nas diversas propriedades urbanas e rurais, além do próprio mosteiro. Oficinas eram construídas e ampliadas constantemente, enquanto um número significativo de cativos era treinado nas mais variadas profissões.
A preparação para o mundo do trabalho requeria uma boa dose de paternalismo, compreensão dos benefícios do novo cargo e possibilidades abertas resultantes do empenho, da confiança conquistada e negociações em torno de melhorias, privilégios e outros benefícios. Como os ideais beneditinos giravam em torno do trabalho coletivo e do bem comum, todos eram doutrinados para entender que todos faziam parte de uma grande família. Logo, os obedientes seriam premiados, enquanto os indisciplinados, punidos.
Reparos e grandes obras ocupam muitas páginas dos relatórios. Eram trabalhos que exigiam grandes investimentos, inclusive em mão de obra especializada. Por isso, os beneditinos foram paulatinamente investindo na formação de escravizados, revelando-nos um número surpreendente de cativos artífices. Na cidade do Rio, onde os monges possuíam vários estabelecimentos, havia, entre 1652 e 1657, treze cativos trabalhando nas obras, a saber: Matheus Fulo, Antônio, Jorge Crioulo, Ambrósio, Manoel Tatu, Bento Mulato, Antônio Carimbamba, Francisco Dendê, Francisco Catenguela, Paulo Garcia, Domingues Carneiro, Lourenço34.
Entre as propriedades beneditinas do Rio de Janeiro, o mosteiro era o espaço onde havia mais escravizados ocupando trabalhos especializados. Em meados do século XVII, já havia “14 almas” dedicadas a diferentes atividades. Os homens eram os seguintes: Diogo cozinheiro, “o cabra alfaiate”, José mulato rapaz, Domingues colomim rapaz, Domingues mulato (carreiro), Miguel da terra (carreiro), Matheus da horta, Amaro e Pascoal mulato. Havia ainda dois ferreiros: Aleixo e João da terra. E um barbeiro: Bastião. As mulheres eram: Maria (lavadeira), esposa de Pascoal, com duas filhas e um filho; Maricota, Benta e Antônia da terra (lavadeira), com sua filha Isabel35. Pelo menos cinco são indígenas.
No triênio 1711-1714, o número de escravizados especializados trabalhando no mosteiro é surpreendente: 51 pessoas36. No triênio 1737-1739, eles somavam 66 trabalhadores. Dedicados exclusivamente aos serviços do mosteiro estavam: doze carpinteiros mulatos e negros serradores; nove oficiais de pedreiro mulatos; dois mulatos ferreiros; dois mulatos sapateiros; cinco alfaiates entre mulatos e negros; três mulatos barbeiros; dois mulatos aprendizes na arte de pintar. Na cozinha havia três negros. Havia ainda uma barca usada em diferentes serviços, empregando-se cinco cativos. Na horta, “três negros velhos”. Como as mulheres não podiam ficar próximas ao mosteiro, havia uma “senzala de fora”, onde três “negras lavadeiras” dormiam. Havia ainda um negro enfermeiro. Há o registro ainda de outros dezessete “negros” que estavam trabalhando nas obras do mosteiro37.
Devido à constante preocupação com a saúde dos cativos, o mosteiro estava sempre buscando aprimorar a enfermaria, sua estrutura e seu pessoal de apoio. Isso possibilitou o emprego de escravizados especializados tanto nas obras e reparos quanto no trabalho direto com os doentes. Por isso, além de cativos trabalhando como enfermeiros e enfermeiras, havia uma botica “com mais de cinquenta vidros e vasilhas com remédios para curar os escravos”38, sob os cuidados de um cativo39.
Nas propriedades também havia investimento em oficinas e oficiais especializados em diversas atividades. Entre 1766 e 1770, os monges construíram, em Campo dos Goitacazes, uma fábrica de tecer algodão com quatro teares. Para essa oficina, os beneditinos haviam mandado três escravizadas e um escravizado aprenderem o ofício de tecelão. No final do triênio, eles já estavam “peritos no ofício”. Nesse mesmo período, eles investiram na formação de outros dois cativos: um aprendendo o ofício de tanoeiro e outro de aguardenteiro. A justificativa para esse investimento bem revela a visão dos monges sobre o papel dessas especializações: “para evitar o gasto que se faz com os oficiais estranhos nestas oficinas”40. Apesar de investirem mais na formação de pessoas do sexo masculino, havia também a preparação de jovens mulheres para a realização de certas atividades. Entre 1711 e 1714, “duas mulatinhas” estavam sob os cuidados de “mestras” aprendendo a coser41.
Nas propriedades rurais, o cargo mais importante ocupado por um escravizado era o de feitor. No engenho da Ilha, por exemplo, onde as terras eram quase totalmente cercadas pelo mar, havia furtos contínuos das madeiras que lá existiam. “Para evitar este prejuízo”, nos diz o abade, levantou-se uma casa na contra costa, sob a direção de um “feitor escravo com seus negros”, com o objetivo de fazer lenha para o mosteiro. A medida, segundo o abade, foi um sucesso, permitindo ao mosteiro aumentar a venda desse produto42. Também na fazenda da Vargem Grande havia um feitor escravizado, que geria a propriedade destinada a mantimentos. Sob o seu poder estavam trinta e dois outros cativos43. Na olaria de tijolos de Iguaçu também havia um feitor cativo, comandando outros 84 escravizados. Já o engenho de Iguaçu era administrado por um pardo forro44, o que poderia indicar um ex-escravizado da própria Congregação.
Apesar dos privilégios do cargo, escravizados em posição de poder e liderança poderiam se tornar alvo dos próprios pares, demonstrando que a mobilidade e a hierarquização das senzalas poderiam trazer também consequências negativas. No triênio 1711-1714, o feitor Pascoal foi morto por outros dois cativos, que fugiram após desferir nele uma facada. Nas palavras do abade, eles deveriam ser capturados e ser bem castigados45.
Outro ponto importante é bem explicado por Isnara Pereira Ivo, ao afirmar que a mobilidade social não pode ser confundida com enriquecimento. Muitos desses indivíduos foram capazes de melhorar suas vidas, circulando entre grupos hierárquicos superiores, obtendo privilégios, proteção ou oportunidades econômicas. Essa ideia de mobilidade nos ajuda a entender que muitos desses indivíduos alcançaram uma inserção social muitas vezes transmitida para as gerações futuras, legando aos seus descendentes um status que lhe conferia uma posição não necessariamente de poder ou riqueza, mas apenas melhor que aquela vivida por seus antepassados (Ivo, 2023, p. 105-106).
Há outros registros surpreendentes sobre a mobilidade dos escravizados por meio de atividades antes desempenhadas exclusivamente por monges. Em 1763, o livreiro contratado para ficar responsável pela Casa da livraria foi incumbido também de instruir um cativo na arte do restauro e conservação dos livros. O livreiro trabalhou por oito meses, limpando e encadernando livros danificados. Com o término deste trabalho, ele foi despedido e, em seu lugar, foi colocado um “mulato” que havia aprendido o ofício. Devido à importância desse trabalho, o mosteiro construiu uma oficina completa, “com todos os seus estojos de letras, ferros e o mais de preciso para o ofício de livreiro” (Fragoso, 2013, p. 27).
Aqui vale mais um momento para pensarmos nos conflitos e nos limites do paternalismo beneditino. Isso porque, é preciso ter em mente que falar em mestiçagem não significa “ausência de conflito e de hierarquia”. É preciso sempre ter em mente os diferentes usos, hierarquização dos vocábulos e as experiências dos indivíduos em um dado tempo e lugar (Guedes; Godoy, 2023, p. 76-77). Apesar dos benefícios concedidos pelos monges, os escravizados fugiam com frequência, inclusive trabalhadores especializados. No triênio 1737-1739, fugiram “três negros do serviço do mosteiro”, além do “mulato pedreiro por nome Plácido”46. Dez anos depois, Plácido continuava fugido, “do que não há notícia alguma”. Em 1748 foi a vez do sapateiro Antônio Antunes, que também se “ausentou” sem deixar rastros47.
Além das especializações citadas, havia outras atividades desempenhadas por cativos: ferradores, oleiros, mestres-de-açúcar, banqueiros (encarregados das caldeiras no turno da noite), correeiros, marceneiros, canteiros, cirurgiões, organistas e maquinistas. Os ofícios ensinados às mulheres eram poucos: cozinheiras, fiadeiras, teceloas, aguardenteiras, refinadeiras de açúcar (Rocha, 1991, p. 84-85). Muitos desses ofícios eram passados de pai para filhos. Membros de uma mesma família conseguiam preservar entre os seus quadros o status de “mestre”, a exemplo dos pintores Francisco Teles, Pedro Teles e Antônio Teles, pintores que ganharam destaque no Mosteiro do Rio de Janeiro (Fragoso, 2013, p. 30-31).
A historiografia já demonstrou que as relações interétnicas e sociais resultaram em uma multiplicidade de processos de mestiçagens, quase sempre associadas a diferentes caminhos que resultaram em mobilidades sociais. Falar sobre cor, qualidade e categorias ajuda a refletir sobre como essas definições ajudaram a determinar, ou influenciar, o lugar social que o indivíduo ocuparia em determinada sociedade. Evidentemente que essas classificações ganharam significados e pesos diferentes de acordo com cada tempo e espaço. Devemos ainda considerar o papel dos próprios agentes classificadores, com seus valores, interesses e lugar que ocupavam (Almeida, 2021, p. 02).
O que salta aos olhos da documentação beneditina é a formação de uma comunidade ligada a laços que remontam aos princípios e valores medievais, com raízes no monasticismo ocidental, cujos princípios estavam diretamente ligados ao trabalho manual, ao compartilhamento do alimento e dos saberes sobre os diversos ofícios. Havia ainda a obediência a um “pai” (Abba) que representava o Santo patriarca na terra. Esses princípios foram adaptados ao Novo Mundo, resultando na velha justificativa da inevitável mão de obra cativa. Logo, o paternalismo, a doutrinação e o controle dos corpos presentes na Regra de São Bento foram reelaborados e aprimorados para dar conta da gestão de centenas de escravizados, fossem eles “da terra” ou de África.
Todos esses elementos foram fundamentais para a construção de uma poderosa corporação religiosa que conseguiu, com sucesso, montar um sistema eficiente e complexo de gestão escravista. Sua necessidade constante de mão de obra cativa levou a Congregação a diversificar as estratégias de reposição e ampliação da população escravizada, resultando em uma comunidade bastante peculiar, originada a partir de doações, heranças, tráfico e um complexo sistema de estímulo à procriação.
O fio condutor de todo este sistema estava no conceito de Família Beneditina, da qual também fazia parte a massa de pessoas escravizadas. Por isso, casamento, maternidade e procriação estavam no cerne da gestão escravista beneditina, interessada na formação de uma comunidade ligada por laços de longa duração, montada sob pilares fincados em gerações de descendentes de escravizados que se beneficiavam da proteção da Congregação, mesmo quando conquistavam a liberdade.
Por fim, devemos pensar que a formação de trabalhadores especializados certamente também contribuiu para a construção de laços fortes e duradouros entre os escravizados, forçados a trabalhar juntos em grandes obras e reparos recorrentes. Eles realizavam trabalhos que exigiam o esforço em equipe, resultando em uma comunicação afinada, pautada na confiança mútua, no companheirismo. A hierarquização não necessariamente dividia, mas trazia riscos para quem se afastava da comunidade, ocupando posições que estavam no limite da solidariedade entre cativos privilegiados, senhores astutos e comunidade desconfiada.
A “astúcia” beneditina não estava em sua suposta “eugenia”, em suas “experiências genéticas”. O corporativismo de base cristã resistiu ao tempo e às investidas da Coroa portuguesa e da monarquia brasileira. A atitude “filantrópica” que resultou na libertação total dos escravizados em 1871 arrastou todo o sistema até então eficiente para um caminho sem volta. A família beneditina ruiu diante da saída em massa dos seus “filhos”, selando, como bem afirmou Mateus Rocha (1991, p. 90), a sua “decadência final”.


Agradeço ao Instituto Federal de Pernambuco (onde o autor é docente) e ao Centro de História da Universidade de Lisboa pelo apoio institucional.

