DOSSIÊ: FORMAS TEXTUAIS, IMAGINAÇÃO E HISTORICIDADE

Preparações para o futuro: A extravagante teoria de Charles Fourier

Preparations for the future: Charles Fourier’s extravagant theory

HENRIQUE ESTRADA RODRIGUES
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Preparações para o futuro: A extravagante teoria de Charles Fourier

Varia Historia, vol. 41, e25022, 2025

Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais

Received: 30 April 2024

Revised document received: 24 November 2024

Accepted: 14 October 2024

RESUMO: O artigo analisa a imaginação de futuro de Charles Fourier, pensador comumente alocado na tradição utópica da primeira metade do século XIX. Minha hipótese é que essa imaginação é extravagante à luz do contexto intelectual de seu tempo, marcado pela temporalização da história a partir de uma ideia de futuro como produto da consciência. Essa fora a marca, por exemplo, de epistemologias iluministas e das filosofias da história então nascentes. Meu argumento específico é que Fourier, notadamente no livro Teoria dos quatro movimentos, de 1808, desenha uma paixão pelo porvir (enraizada nas paixões humanas) que resiste a ser integrada à ideia reguladora da razão prática ou ao labor do espírito hegeliano no processo dialético de sua formação. Antes de inventar conteúdos utópicos ou ideias reguladoras para os progressos da civilização, fora autor de um particular “discurso em estado utópico”. Esse discurso não é enquadrável na ordem de conceitos tão encadeados quanto o curso da história que epistemologias progressistas buscavam representar. Por isso, concluo que Fourier fora um pensador incomum, embora muito lido em contextos de crise das filosofias da história – não como precursor de regimes de historicidade presentistas, mas como pensador de uma imaginação de futuro articulada à multiplicidade das paixões.

Palavras chave: Fourier, Futuro, Utopia.

ABSTRACT: The article analyzes Charles Fourier’s imagination of the future, a thinker commonly placed in the utopian tradition of the first half of the 19th century. My hypothesis is that this imagination is extravagant in the light of the intellectual context of his time, marked by the temporalization of history based on an idea of the future as a product of consciousness. This had been the hallmark, for example, of Enlightenment epistemologies and the then nascent philosophies of history. My specific argument is that Fourier, notably in his 1808 book The Theory of the Four Movements, draws a passion for the future (rooted in human passions) that resists being integrated into the regulating idea of practical reason or the labor of the Hegelian spirit in the dialectical process of its formation. Before inventing utopian contents or regulatory ideas for the progress of civilization, he was the author of a particular “discourse in a utopian state”. This discourse cannot be framed in the order of concepts as chained as the course of history that progressive epistemologies sought to represent. I therefore conclude that Fourier was an unusual thinker, although he was widely read in the context of the crisis of philosophies of history - not as a precursor of presentist regimes of historicity, but as a thinker of an imagination of the future articulated to the multiplicity of passions.

Keywords: Fourier, Future, Utopia.

Certa feita, Charles Fourier (1771-1837) resumiu todas as suas invectivas contra a ciência e a filosofia de seu tempo assim: “estes sábios creem impossível tudo o que eles jamais viram” (2009, p. 123). Nessa diatribe, o escopo é especulativo: esses sábios que creem impossível o que jamais viram são os mesmos que descreem de qualquer imaginação de futuro não regrada pela verossimilhança. Como inverossímil contraponto, imagina, por exemplo, uma extravagante cosmologia, segundo a qual a ação humana, em sua complexa estrutura passional, seria capaz de influir nos astros, modificar o clima do planeta, fecundar os polos e temperar os trópicos. Essa extravagância apenas hoje é dotada de algum eco teórico e social, ainda que em sinal trocado, distópico, perante a atual emergência climática.

Em outro momento, porém, Fourier volta a crítica aos sábios de seu tempo de um modo mais ponderado: “eles estão interessados em dar por insolúvel todo problema que não sabem resolver” (2009, p. 124). Nesse registro, um pouco cortante, embora pé no chão, Fourier já lidaria com dados mais realistas. Ele se referia a algo sem rodeios: a incapacidade do mundo civilizado e de seus pensadores resolverem o problema da miséria (em meio à abundância da sociedade industrial nascente) ou da infelicidade pública (prometida, mas não realizada, pelas experiências revolucionárias modernas). Entre os vários temas abordados nessa incipiente teoria social, fez história, por exemplo, sua tese radical sobre a emancipação amorosa, material e jurídica das mulheres naquele início do século XIX, retomada por feministas utópicas como Flora Tristan (1803-1844), a singular autora de Peregrinações de uma paria (de 1838).

Toda a obra de Fourier, pode-se dizer, parece oscilar por entre esses dois extremos: de um lado, é profundamente realista na leitura e interpretação de uma vida social insatisfatória; de outro, reivindica o impossível e formula excentricidades como contrapontos às patologias do presente. Mas “oscilar” talvez não seja uma boa palavra para descrever sua teorização, como se os dois lados fossem polos independentes, cabendo ao autor apenas escolher o momento mais propício para desenvolvê-los. Em Fourier, verossímil e inverossímil caminham juntos em sua estrutura argumentativa, numa zona de difícil distinção. Motivo pelo qual, com certa frequência, temos dificuldade em reconhecer onde ele estaria sendo literal ou irônico, quando estaria sugerindo metas para a ação ou imagens curiosas para provocar o imaginário. Entretanto, numa leitura retrospectiva, à luz dos exemplos dados acima, caberia perguntar: o futuro utópico de Fourier teria lidado com dados impossíveis por princípio ou improváveis apenas no presente de sua enunciação? Dizendo de outra maneira, dessa feita com Paul Ricouer (2017, p. 352-354): o núcleo de sua imaginação não estaria, justamente, em abrir uma franja indecisa entre o possível e o impossível, às margens de ciências e filosofias condescendentes com as infelicidades do presente, com uma ideia de realidade coincidente com a atualidade?

É sabido que, no tempo de vida de Fourier, e mesmo um pouco antes, epistemologias iluministas e filosofias da história (como bem resume Koselleck em Crítica e crise, 1999, ou no ensaio A temporalização da utopia, 2014) já vinham pensando utopias futuristas e filosofemas progressistas como registros estilísticos e filosóficos de indignação moral com um presente insatisfatório. A partir desse ponto, e cada qual à sua maneira, foram pródigos em elaborar quadros completos para os progressos da história, como se o seu curso fosse adequado a fins racionais. De fato, utopistas como Louis-Sébastian Mércier, na fábula O ano 2440 (de 1771, mesmo ano de nascimento de Fourier), ou filosofias da história orientadas por ideias reguladoras da razão prática (como em Kant) ou pela formação do espírito no tocante à autoconsciência e liberdade (como em Hegel) parecem dar razão ao argumento do historiador.1

Entretanto, com Fourier, seria possível identificar uma imaginação do futuro que, na tensão entre o possível e o impossível, não encontra um lugar adequado no contexto intelectual de seu tempo e, também, na descrição historiográfica de Koselleck (1999; 2014). E isso por duas razões. Em primeiro lugar, penso que a tensão entre o possível e o impossível, enunciado por Fourier (2009) desde sua primeira obra – A teoria dos quatro movimentos, de 1808 –, tem uma dimensão que resiste a ser integrada à ideia reguladora da razão prática ou ao labor do espírito hegeliano no processo dialético de sua formação. Em segundo lugar, porque Fourier, antes mesmo de inventar conteúdos utópicos, foi o autor de um particular “discurso em estado utópico”, ou seja, de uma lógica formal exuberante, não enquadrável na ordem clara e distinta de conceitos tão encadeados quanto o curso da história que epistemologias progressistas buscavam representar.

Por tudo isso, Fourier fora um pensador incomum em seu tempo, embora muito lido em contextos de crise das filosofias da história – não como precursor de regimes de historicidade presentistas, mas como pensador de uma imaginação de futuro articulada à multiplicidade das paixões humanas. Mas como pensara, nessa articulação, uma singular paixão pelo porvir? Este texto pretende analisar, precisamente, esta questão.

UMA EXTRAVAGÂNCIA ASSAZ CURIOSA

Charles Fourier, de fato, foi um pensador incomum. Em vida, chegou a criar um significativo círculo de discípulos e, ao longo do século XIX, foi um dos ativistas mais influentes no Ocidente. Mas isso não bastou para atenuar qualificativos tais como “extravagante”, “excêntrico” e mesmo “louco”, atribuídos ao autor e à sua obra. E assim o foi desde cedo, quando esse filho de um comerciante bem-sucedido começa a se dedicar ao estudo e à polêmica científica e filosófica, deixando a atividade herdada do pai num segundo plano. Não abandonou o velho trabalho de pronto ou totalmente. Em certo momento até pareceu bem assentado numa casa comercial de Lyon. Em 1793, porém, a cidade, cercada e conquistada pelos jacobinos, o faz perder grande parte de seus investimentos e da herança paterna. Num país convulsionado pela experiência revolucionária, chegou mesmo a conhecer a prisão e o alistamento militar. Mas quando volta ao comércio, em 1796, seus interesses pareciam outros.

Desde então, do trabalho comercial e da revolução restaram, sobretudo, os motes para desenvolver uma energia crítica e reflexiva a respeito da vida política convulsionada e da civilização industrial em estado nascente. Trata-se de uma energia passional, como gostava de nomeá-la, que começa a se fazer conhecida a partir de 1803. Esse parece ser, de fato, o ano de batismo de um pensador excêntrico e de um polemista inveterado, como nos conta a excelente biografia escrita por Jonathan Beecher (1993), a quem segui no parágrafo acima e continuo aqui. Nesse início de século, um desconhecido comerciante de província pede passagem, nos meios científicos e literários, marcando sua diferença.

Num artigo para o Bulletin de Lyon, de dezembro de 1803, ele rouba a cena com uma singular “teoria matemática das destinações de todos os globos e seus habitantes” (apudBeecher, 1993, p. 122), sobre a qual vinha meditando desde a virada do século. Logo após, prevendo atritos com a censura napoleônica, escreve uma carta ao “Grande Jure” (instituição com poderes de justiça e polícia) solicitando proteção para sua maior descoberta, algo a lhe render (a seus olhos) a fama de Isaac Newton do mundo moral: a lei da atração passional (análoga à lei da atração gravitacional) como cerne do equilíbrio das paixões humanas e eixo da harmonia de todos os animais, vegetais e minerais. Mais tarde, em 1814, quando escreve outra carta, endereçada a um Napoleão já destituído e exilado, é preso e interrogado. Mas o diretor de polícia da monarquia restaurada assim conclui:

o prefeito do Rhône está convencido que este Fourrier [sic.] é um visionário, um louco inocente, de quem não se tem nada a temer [...]. Seu interrogatório [...] é de um gênero de extravagância assaz curiosa, para que o Rei se digne a lhe lançar os olhos (apudBeecher, 1993, p. 155).2

“Um gênero de extravagância assaz curiosa”: para a França napoleônica de 1803 ou para a monarquia restaurada de 1814, um pensamento assentado no equilíbrio das paixões humanas, com influências nas destinações da vida animal e mineral de todos os globos, só poderia ser mesmo excêntrico ou, pejorativamente falando, utópico. Razão pela qual a expressão do diretor de polícia inaugura o museu das citações pitorescas que, aos poucos, foram se juntando em torno da obra desse pensador, que nunca abaixou a guarda diante da polêmica e pouco recuou diante das críticas à sua teorização incomum. Entretanto, o que há de mais interessante na posterior recepção de Fourier, dos seus primeiros discípulos à longa e diversificada fortuna crítica estabelecida ao longo do século XX, é que ela, curiosamente, continuou seguindo as pistas do chefe de polícia, embora sem sinal de desqualificação.

Extravagância, de fato, continua a ser o cerne de tantas leituras que não deixaram passar em branco as bizarrices do escritor, embora tenham valorizado o que, muitas vezes, fora signo de desdém: um gênero de escrita e pensamento elaborado de outro ponto de vista que o da policialesca manutenção da ordem e dos poderes instituídos. O que para um olhar soberano não seria digno de atenção, talvez o fosse para leitores interessados em valorar uma forma de pensamento utopicamente excêntrica porque à “distância absoluta” desses sábios, repitamos com Fourier, que creem “impossível tudo o que eles jamais viram” (2009, p. 123). Ainda no século XIX, por exemplo, Marx e Engels (2005) reconheceram, numa forma de pensamento habitada por designações fantásticas (mais irônicas que realistas, sugeriram), uma rede de intuições geniais e uma potente imaginação crítica do social.

Walter Benjamin (1993, p. 659) retoma essa leitura, nos anos 1930, num longo capítulo dedicado a Fourier no livro das Passagens. Atento aos elementos excêntricos da utopia fourierista, coleciona citações e mais citações representativas de certa habilidade em cobrir propostas as mais racionais com considerações plenas de imaginação. Na década de 1960, Simone Debout-Oleszkiewicz (2016) compila manuscritos inéditos e novos artigos para uma edição atualizada das obras completas de Fourier. Ela se insurge contra a censura de discípulos oitocentistas que atenuaram ou mesmo apagaram, na publicação do mestre, seus elementos os mais excêntricos, da singular ideia de um cosmos atravessado por fluxos desejantes a um “novo mundo amoroso”, no qual imaginou a excentricidade, no início do XIX, de mulheres emancipadas da tutela marital.

A edição de Simone Debout-Oleszkiewicz foi um marco na recepção de Fourier. Com esse novo material às mãos, Roland Barthes, no início da década de 1970, admirou-se com um autor que retirava “a sua felicidade” de uma espécie de expressão “excêntrica, deslocada, [que] vive sozinha à margem de seu contexto” (2005, p. 102). Paul Ricouer, por sua vez, em cursos ministrados em Chicago em 1975, publicados em 1986, dera outra nuance à expressão “deslocada” do utopista. Para o autor, como já visto, Fourier pensava na franja entre o realizável e o impossível, ou seja, no lugar preciso onde se manifestaria a função excêntrica da imaginação utópica (2017, p. 34): a possibilidade de imaginar um lugar-nenhum (ou / topos, etimologicamente, não / lugar). “Espetacular conjunto de permutações utópicas” (2021, p. 51): esse é o modo como Fredric Jameson, na primeira parte de suas Arqueologias do futuro (publicada em 2005), introduz a teoria de Fourier sobre a “multiplicidade de paixões subjetivas”, não sem antes destacar a excentricidade utópica não como fruto “do capricho pessoal” (2021, p. 42), mas de uma situação social à qual caberia interrogar.3

A lista dos autores e citações poderia se alongar. Mas fico por aqui pois, dificilmente, sairíamos do ponto que esses exemplos descortinam. Malgrado diferenças específicas, todos eles sugerem o triplo alicerce que parece dar o tom da extravagância de Charles Fourier: ora ela se situa no plano enunciado (os conteúdos excêntricos de sua utopia), ora se situa no plano da enunciação (num tipo de expressão deslocada de seu contexto), ora no campo das faculdades (a imaginação em função excêntrica, vale dizer, à margem de conceitos do entendimento regulados por experiências possíveis ou demonstráveis). Fourier, a bem da verdade, tinha plena consciência desse elemento tripartite, e fez uso dele quando isso lhe convinha. Na interpretação de um dos seus tradutores para o inglês, tal persona o teria, inclusive, ajudado a fugir da perseguição e da censura.4 Pelo relatório daquele antigo chefe de polícia, a hipótese não deixa de ser plausível.

Entretanto, reduzir a complexidade de sua extravagância a essa motivação é muito pouco. Antes de periférica ou de apenas reativa, talvez ela nos revele uma linguagem articulada e com inteligência própria, ao mesmo tempo rigorosa e passional, coerente e extravagante, incapaz de ver a excentricidade como uma inimiga a ser vencida pela ordem das razões claras e distintas. Antes de disciplinado por um cogito cartesiano, o sujeito que pensa, na estrutura textual de Fourier, não cessa de aparecer e de se automodelar segundo um estilo extravagante de exposição. Talvez seu aspecto mais evidente esteja nas permanentes remissões aos leitores, instruindo-os sobre os propósitos de suas fabulações, prevenindo-os quanto ao papel de sua excêntrica forma discursiva, interpelando-os a participar de seu jogo imaginativo.

Trata-se de uma forma evocativa que, porém, nunca ficou restrita às introduções ou discursos preliminares, como seria de supor. Ou melhor, quase sempre ficou, se nos atermos a esta singular extravagância textual (e que é o cerne do que este texto pretende investigar): mesmo suas obras mais densas e caudalosas foram tomadas, pelo autor, como “introduções”, “prospectos”, “discursos preliminares”. E isso aconteceu a tal ponto que, com frequência, quando parecia se encaminhar para conclusões, assim o fazia para, mais uma vez, interpelar o leitor quanto ao aspecto preliminar da exposição, a ser desenvolvida numa próxima obra que, porém, chegava qual um prospecto para novos e futuros desenvolvimentos.

Mas não seria essa disposição para o inacabado o traço mais característico de uma utopia em movimento, extravagante, naquele início do século XIX, não apenas aos olhos do poder, mas também para um contexto europeu “em esclarecimento”? Fourier não estaria a contrapelo de uma utopia futurista como a de Louis-Sébastien Mercier, que, no livro O ano 2440 (de 1771), alicerça sua utopia, enquanto compensação moral a um presente insatisfatório, em filosofemas progressistas modelados na consciência do autor? Não estaria, também, às margens de filosofias da história como a de Hegel, seu contemporâneo, que buscava corresponder a linguagem ordenada dos conceitos aos desdobramentos necessários da formação do espírito no curso da história?5 Não seria por isso que Fourier, desaparecido quando Marx publicava seus primeiros textos, dera o que pensar a autores como Walter Benjamin, Roland Barthes e tantos outros, céticos quanto a grandes narrativas interessadas em descortinar regularidades da história e predições de futuro? Mas, então, que “gênero de extravagância assaz curiosa” teria introduzido Fourier?

QUAL O TOM DA TEORIA?

Disse acima que a extravagância de Fourier tem tripla dimensão: aloja-se nas ordens do enunciado, da enunciação e da faculdade imaginativa. Mas tenho para mim que, talvez, o núcleo duro dessas três dimensões possa ser assim descrito: a extravagância de um discurso permanentemente introdutório como fruto de uma imaginação excêntrica. Nesse modo discursivo, ele até chega a enunciar estruturas regulares de transformação do mundo e predição de um futuro utópico. Porém, ao mesmo tempo, adia o sistema completo de uma possível filosofia da história com as evidências racionais do progresso. Nesse permanente “adiamento” está o principal.

É certo que Engels (1984, p.39), em Do socialismo utópico ao socialismo científico, chegou a dizer que Fourier, ao descrever as misérias da civilização em meio à abundância da revolução industrial, seria um dialético à altura de Hegel. Minha hipótese de leitura, porém, é outra. Se ele interpela o leitor para prometer, e sempre adiar, o plano completo de um filosofema progressista, não o fizera como um modo assaz curioso de representar singularidades e excentricidades nunca inteiramente integradas à ordem do necessário? Não é por isso que termina construindo um modo curioso de escrita, que nunca cessa de introduzir novas introduções?

Antes de ser insuficiência da razão dialética, penso que essa linguagem tem uma artimanha muito própria: a de um discurso que se quer, decididamente, à margem de epistemologias do Iluminismo e de filosofias da história que quiseram fazer da utopia, alojada no futuro ideal, um produto do espírito a se desdobrar no mundo em sua necessidade e universalidade. Fourier (2009, p. 119-120) não era dado a moderações quando se pretendia às margens da herança iluminista:

os homens vão aprender [diz em 1808] que as luzes adquiridas mal chegam a um quarto daquelas que restam a adquirir [....] eh! pode-se ver outra coisa nos escritos desses sábios, que, após empregar vinte e cinco séculos a aperfeiçoar suas teorias, após ter reunido todas as luzes antigas e modernas, engendraram desde o início tanta calamidade quanto mais prometiam benefícios, fazendo declinar a civilização num estado bárbaro?6

Fourier, a bem da verdade, não parou de pensar nos benefícios da civilização rumo a um futuro ideal. Porém, se buscou enunciar o quadro completo de uma utopia futurista ou de uma incipiente filosofia da história, foi notável ao perceber tudo o que essa modalidade de esclarecimento fica devendo às suas próprias promessas. Seria tentador ver, nesse movimento de idas e vindas, não o precursor da dialética hegeliana, mas o de uma incipiente “dialética do esclarecimento”, tal como desenvolvida por Adorno e Horkheimer (1986) em meados da década de 1940. No sentido mais amplo dos progressos do pensamento, disseram esses autores, a divisa esclarecida do saber como poder não conheceu barreira, “nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo” (Adorno, Horkheimer, 1986, p. 20).

Entretanto, o que parece singularizar Fourier não é o de ter sido “precursor” deste ou daquele, mas o notável inventor de uma utopia extravagante e – sobretudo – de uma forma discursiva, ela própria, em estado utópico – em “lugar nenhum” nos quadros das epistemologias da história que lhe eram contemporâneas. Se Fourier imaginou representar o quadro completo do curso da história, termina lidando com demandas excêntricas, incapazes de serem reguladas pelos conceitos da razão prática ou subsumidas como polos negativos na formação dialética do espírito. Em outras palavras, a utopia de Fourier (2009, p. 368) vem à cena, conscientemente, para embaralhar a ordem das razões. “Minha meta não é melhorar a civilização, mas confundi-la e fazer desejar a invenção de um melhor mecanismo social”, afirma no mesmo ano de 1808.

De fato, entre aquele artigo de 1803 e o ofício do chefe de política de 1814, 1808 foi um ano crucial em sua trajetória. Nesse ano ele publica a Teoria dos quatro movimentos, a primeira exposição completa de sua doutrina, com a qual pretendia jogar por terra 25 séculos de besteiras filosóficas. A Teoria dos quatro movimentos foi a obra em que Fourier (2009), ainda razoavelmente desconhecido no mundo intelectual de então, decidiu confundir tudo e todos. E assim o fez nem tanto em um discurso confuso, mas compondo uma estrutura incomum em seu movimento sistematicamente preliminar. É com esse livro de 1808, pois, que deveremos prosseguir.

Mais que qualquer outro que veio depois, a Teoria dos quatro movimentos não cessa de falar do próprio livro. Numa escrita que indaga, o tempo todo, sobre os modos como ele deveria proclamar as suas teses, é como se Fourier estivesse atento à necessidade de justificar suas extravagâncias. O problema é que essa recorrente justificativa, ou melhor, esse tipo de metadiscurso (um discurso incansável em falar sobre si próprio) termina constituindo mais um ponto, e talvez o principal, dessa textualidade permanentemente introdutória, que faz da linguagem preliminar o cerne de uma abertura às complexidades de um mundo aberto e contingente. Como visto, tolo para olhares ordenados e ordenadores, esse traço estilístico teria dado o que pensar a tantos intérpretes sensíveis a formas de configuração do mundo e da história mais introdutórias que conclusivas, mais abertas a contingências do que fechadas em cadeias necessárias e inflexíveis.

Linguagem introdutória, mas não menos tempestuosa. Nesse livro de 1808, Fourier pede passagem, em seu “Discurso preliminar”, dessa maneira:

qual tom devo tomar para anunciar a tempestade que vai desabar sobre os velhos ídolos da civilização, sobre as incertas ciências? é necessário colocar as longas vestes do luto, para declarar aos políticos e moralistas que a hora fatal está tocando, que suas imensas galerias de volumes vão cair no nada; que os Platões, os Sênecas, os Rousseaus, os Voltaires e todos os corifeus da incerteza antiga e moderna, irão todos juntos para o rio do esquecimento? (Fourier, 2009, p. 131).7

“Qual tom devo tomar?” O interessante dessa pergunta é que o seu complemento, a despeito de continuar na forma interrogativa, já é uma resposta. O tom do complemento, pode-se dizer, é o do entusiasmo. O entusiasmo enquanto um tom, ou seja, enquanto uma qualidade de sua arte da escrita, parece agenciar muitos dos dados da obra de Fourier. Esse seria o caso, por exemplo, de um entusiasmo de tipo religioso, bastante presente no texto do autor. E poderíamos mesmo dizer de tipo cristão, próprio de um herói vindo de baixo, um provinciano às margens da esfera pública letrada e dos círculos burgueses e aristocráticos. Fourier é, aqui, astucioso. Ele tem perfeita consciência da figuração cristã tanto da sua subjetividade como da linguagem da providência divina (irônica ou literal?): trata-se de “Deus se servindo do humilde para abaixar o soberbo” (2009, p. 218).

Essa palavra, pois, tem o tom da “anunciação”: a verdade sobre o mundo civilizado viria do alto, de uma autoridade, da palavra do fundador de uma nova utopia, que se coloca no lugar do próprio movimento social. Miguel Abensour (1990) nota, aqui, certa contradição em Fourier: uma arte do discurso que deseja abaixar o soberbo fazendo uso da própria soberba. Esse desconhecido e entusiasmado provinciano arrombaria a porta da esfera pública letrada de então representando o papel de um fundador solitário, à distância das pessoas comuns. Um “eu” solitário, de fato, teria descoberto uma nova lei, a da atração passional, análoga à lei da atração material de Leibniz e Newton. Se esta explica a lei da gravitação e o movimento dos mundos material e orgânicos, aquela daria inteligibilidade à atração passional como núcleo do movimento dos corpos animais e humanos:

Desde o momento em que adquiri as duas teorias da atração [material e passional] [...] eu comecei a ler o grimório da natureza; seus mistérios se explicavam sucessivamente, e eu havia removido o véu dito impenetrável. Eu avançava num novo mundo científico, e foi assim que vim gradativamente até o cálculo das destinações universais, ou determinação do sistema fundamental sobre o qual foram regradas as leis de todos os movimentos presentes, passados e futuros (Fourier, 2009, p. 129-130).8

Difícil não notar certa bizarrice nesse modo de enunciação. Ainda mais se pensarmos que, para Fourier (2009, p. 129), analogamente ao mundo humano, sua teoria chega a examinar as – é isso mesmo – “relações sexuais dos astros” via aromas conhecidos e desconhecidos, qual germes de todas as espécies criadas. Mas, por detrás dessa extravagância cosmológica ou daquela enunciação religiosa, o que também chama a atenção é fundamento último da teoria. Num exemplar anotado e retificado pelo autor, de acordo com a edição crítica de Simone Debout-Oleszkiewicz, na mesma passagem em que fala do sexo dos astros, ele também anota qual seria o pivô de sua excêntrica teoria: “movimento pivotal: o social ou passional” (2009, p. 129).

Em outras palavras, Fourier notava a irrupção do prazer sensual como pivô de todos os mundos conhecidos e desconhecidos. Há algo de grandioso aqui, que rebaixa até mesmo sua imaginada distância das pessoas comuns. Trata-se de fundamentar a vida social e a felicidade humana não a partir do céu das ideias, mas desde o rés do chão, bem rente ao domínio das paixões humanas. Esse dado é central em sua singular teoria, fundamentada num amplo arco passional, dos cinco sentidos do corpo a afetos como o amor e a amizade. Não cabe, aqui, identificar e descrever esse arco, que abarca, ao todo, doze paixões e um escopo ainda maior de combinatórias entre elas. Importa destacar, apenas, este fato: para Fourier, a felicidade futura é inimaginável com paixões da alma tiranizando as paixões do corpo.

Fourier alicerça, pois, sua teoria dos quatro movimentos no chão de um particular “materialismo antropológico”, melhor dizendo, de certo “materialismo hedonista”, diria Benjamin (1993, p. 642), contraposto a imperativos categóricos ou a filosofemas progressistas que fazem das paixões algo a ser domesticado ou subsumido às ordens da razão. Em outros termos, essa excêntrica teoria tem um paradoxal realismo: em vez de corrigir a estrutura passional inerente a elos sociais, busca analisar “os motivos da natureza para dar às paixões uma marcha tão diferente dos deveres” (Fourier, 2009, p. 188). Trata-se de pensar os homens como eles são – sem elidir a multiplicidade de suas paixões –, e não como eles deveriam ser segundo uma ideia de racionalidade descarnada que não existiria em lugar nenhum.9

Esse singular hedonismo talvez seja o coração pulsante de uma obra dedicada a pensar, entre o possível e o impossível, um novo estado social, fundado na multiplicidade de paixões humanas nunca domesticadas. Mas para o leitor de sua obra, o que primeiramente pulsa nessa teoria é o seu prenúncio, ele próprio, com tonalidade passional. Esta, talvez, seja a figura principal de seu entusiasmo: uma arte da escrita cuja forma não procura conter sua paixão, mas transfigurá-la num afeto pensante ao mesmo tempo rigoroso e emocional. Esse afeto parece ser o nascedouro de uma modalidade de escrita transbordante, hiperbólica, mas justamente por isso com enunciados sempre aquém ou além da possível assimilação a conceitos da razão, a ideias reguladoras para o curso da história.

Não seria essa escrita passional, pois, uma modalidade discursiva feita para provocar o afeto pensante de seus leitores? É isso que me cabe, agora, desdobrar. Pois sob o pivô das paixões, nos diz um transbordante Fourier,

Seremos testemunhas de um espetáculo que não se pode ver senão uma vez em cada globo [...]. Cada ano durante essa metamorfose valerá por séculos de existência, e oferecerá uma multidão de eventos tão surpreendentes, que não convém fazê-los entrever sem preparação. [...] Quanto às particularidades sobre a ordem societária, quanto aos prazeres que ela deve nos atingir, será preciso, eu repito, usar de deslocamentos para anunciá-los aos civilizados. [...] seus espíritos se agitariam se se expusesse sem precauções a perspectiva de delícias que eles gozarão em pouco tempo (2009, p. 134, destaques meus).10

DESEJAR O DESEJO: PREPARAÇÕES

Interessante arte da escrita ao mesmo tempo hiperbólica e precavida; povoada de excentricidades que seriam estudados deslocamentos; de anúncios que seriam preparações; de delícias futuras que incitam o leitor a desejá-las. Fourier, como dito, permanentemente flertou com o anúncio completo de uma filosofia progressista da história, mas suas extravagâncias sempre minaram o anúncio de um curso da história segundo leis de ferro nascidas de sua consciência. Razão pela qual faz o leitor participar dos movimentos do texto deslocando-o das expectativas comuns, preparando-o para a complexidade de elos sociais inassimiláveis a imperativos categóricos. Não estaria nesse movimento textual o cerne de um discurso extravagante, ou seja, votado a “fazer desejar” as delícias de um mundo novo? Atuar na ordem do desejo (fazer desejar), mais do que desejar dar ordens (fazer obedecer): não seria esse o núcleo de um discurso em estado utópico?

Repitamos passagem já citada: “Minha meta não é melhorar a civilização, mas confundi-la e fazer desejar a invenção de um melhor mecanismo social” (2009, p. 368). É preciso levar ao pé da letra essa passagem. Mas talvez não seja bom, o tempo todo, interpretar assim um autor dado a sátiras e ironias como Fourier. De fato, não é sem ironia que, ainda no “Discurso preliminar” da Teoria dos quatro movimentos, diz escrever um livro e anunciar suas descobertas com muitas reservas e num tom “glacial”:

Eu seria mais bem acolhido se anunciasse um bem-estar medíocre; é o que me leva a atenuar bastante os quadros da felicidade que se aproxima. Quando se conhecer toda sua extensão, serão surpreendidos que eu tenha tido a paciência de temporizar e postergar a publicação; que eu possa colocar tanta reserva, e tomar um tom tão glacial no anúncio de um evento que deve excitar tanto entusiasmo (Fourier, 2009, p. 136; destaques meus).11

Como já pudemos perceber, a tonalidade de seu discurso é tudo, menos glacial. Porém, a passagem não deixa de ir ao coração do que estou aqui discutindo: o de um livro que não cessa de falar do próprio livro – um “metalivro”, disse Barthes (2005, p. 99) –, o de uma teoria que não cessa de indicar seu estatuto preparatório. Fourier é bastante claro nesse sentido, e tratou de reiterar o ponto em diversos momentos do livro. Logo em sua primeira página, afirma: “antes de publicar minha teoria [...] eu dou no presente volume uma breve panorama” (2009, p. 117). O que se deseja é “preparar os caminhos, e familiarizar o espírito humano ao excesso de felicidade que se prepara”, afirma no “Discurso preliminar” (2009, p. 140). Se dermos um pulo e adentrarmos na segunda parte de uma obra dividida em três, Fourier ainda reitera: “eu vou produzir pouco a pouco minha teoria [...] para administrar a surpresa, e proceder por gradação” (2009, p. 220).12

A ideia do breve panorama, da preparação de caminhos ou das gradações ajuda a entender a singular estrutura de um livro que, na reedição de 2009, a cargo de Simone Debout, se estende por quase 300 páginas. A Teoria dos quatro movimentos começa com uma “Introdução” de apenas uma página, na qual Fourier (2009, p. 117) enuncia sua meta: fazer pressentir a existência de uma “Ciência certeira, que vai confundir as Ciências filosóficas”. Essa introdução é seguida por um “Discurso preliminar” com cerca de 20 páginas. O subtítulo surpreende:

sobre a teimosia das nações civilizadas que esqueceram ou desdenharam os dois ramos de estudos que servem de encaminhamento à teoria das destinações: o estudo da Associação Agrícola e da Atração passional. E sobre os fúnebres resultados dessa teimosia que prolonga inutilmente desde 2300 anos a duração do caos social, ou seja, das sociedades civilizada, bárbara e selvagem, que não são a destinação do gênero humano (Fourier, 2009, p. 118).13

Esse “Discurso” é seguido por um “Plano” no qual Fourier resume, em duas páginas, as três partes principais da obra, cada uma delas introduzida, por sua vez, por um “Argumento” e por definições gerais que orientam o desenvolvimento dos textos. O “Plano” geral, porém, afirma: mesmo nas três partes principais, o que o leitor terá em mãos é, quando muito, um prospectus, um vago panorama, “que mesmo no caso de extrema claridade não será o suficiente para iniciar os leitores, uma vez que eu não faço senão preludiar sobre cada assunto” (Fourier, 2009, p. 143). 14 E isso não é tudo. Esse vago panorama não seria outra coisa que, ele próprio, um prelúdio a um segundo prospectus, a ser escrito após os comentários dos leitores ao primeiro (Beecher, 1993, p. 136). Curiosa exposição de uma teoria que, se flerta com a solidão do fundador e com uma tonalidade religiosa em sua anunciação, também buscara um modo rigorosamente pouco pedagógico de se dirigir ao público, mais favorável às ambivalências dos leitores e do próprio processo de escrita.

Porém, como se sabe, a leitura desejada e o segundo prospectus imaginado não vieram. Nem mesmo os seis volumes de 150 páginas que, enfim, apresentariam o quadro completo da teoria. Durante a vida de Fourier, pouquíssimos compraram a obra. Um título esquisito, para teses inusitadas oriundas de um desconhecido provinciano não parecem ter ajudado a primeira recepção da Teoria dos quatro movimentos. Já seu primeiro livreiro em Paris teria reagido aos aspectos incomuns do título e da obra, que afastavam possíveis interessados. Fourier teria respondido: o título da obra (e seu conteúdo) é um “enigma” que só se explicará num momento conveniente (Beecher, 1993, p. 135). Esse momento, na vida de Fourier (2001), chegou efetivamente em 1829, quando publica um livro razoavelmente bem-sucedido de divulgação – O novo mundo societário e industrial. Como de costume, o que deveria ser um abreviado simplificador ganha corpo e contorno nunca inteiramente ordenado. Mas talvez seja a melhor obra para quem deseja chegar, pela primeira vez, à sua teoria societária. Não sem alguns volteios. O livro tem sete partes, precedidas de “Introdução” e “Prefácio”, sucedidas de “Epílogo” e “Posfácio” – Fourier tinha dificuldade em começar e finalizar.

Seja como for, quanto ao livro de 1808, o que incomoda o livreiro de Paris (mas não somente) parece ser, justamente, o que mais anima este texto e o que me encaminha a sua conclusão: a tonalidade enigmática de uma teoria cujo plano dos enunciados mistura o sério e o cômico, o literal e o irônico; cujo plano da enunciação elabora um discurso sem contornos estáveis ou um gênero muito definido; cujos conteúdos verossímeis foram travestidos com considerações imaginativamente inverossímeis. Mas, por que assim? Fourier, aparentemente (se é que há algo aparente em seu texto) queria algo muito específico. “Convido as diversas classes de leitores”, diz no “Plano”, a se lembrarem “que, em um prospectus eu não posso me deter em nenhuma demonstração, e que anunciando tantos eventos maravilhosos, tantos resultados incompreensíveis, eu não pretendo excitar a credulidade: eu tento somente apelar à curiosidade” (2009, p. 143).15

Curioso prospectus: entre “Introdução”, “Discurso preliminar”, “Plano”, “Argumentos” e “Definições”, desenha uma infinitude de perspectivas voltados a fazer o leitor desejar novas possibilidades de pensamento e, sobretudo, de imaginação do futuro:

Tanto é impossível desenraizar do coração humano a paixão de conhecer o porvir! Eh! por que Deus, que não faz nada em vão, nos teria dado esse ardente desejo, se ele não tivesse prevenido quanto aos meios de satisfazê-lo um dia? Enfim, este dia é chegado, e os mortais vão partilhar com Deus a presciência dos eventos futuros: eu vos dei este breve panorama [...], nada é mais digno de despertar vossa curiosidade que esta teoria da associação e da atração que vos será comunicada nas memórias seguintes, e que vos abrirá o grande livro dos decretos eternos (2009, p. 215).16

A curiosidade pelo futuro de que fala Fourier – uma curiosidade que é também pelos seus livros futuros, por seis volumes com demonstrações que, sabemos, não vieram – quer abrir um espaço imaginável entre o possível e o impossível, o verossímil e o inverossímil. Mas se há um plano nessa inacabada “presciência” do porvir, talvez seja, apenas, o de instalar a imaginação do futuro numa ordem entusiasmadamente passional. Nesse sentido, “a utopia deixa de ser um discurso que emana do saber para esclarecer a ignorância, ela se torna um apelo que a passionalidade múltipla lança à multiplicidade das paixões” (Abensour, 1990, p. 120).

Em outras palavras, com suas preparações, Fourier prospecta não um plano exterior às paixões do público. No “Plano” geral da obra, chegou até mesmo a dizer que seu livro estaria estruturado em três partes desiguais para chegar às diversas classes dos leitores, especialmente os “curiosos”, os “voluptuosos” e os “críticos”. Para os primeiros, reservou sua extravagante cosmologia; para os segundos, as delícias de um novo mundo amoroso e de uma gastronomia como veículo para a educação dos cinco sentidos e aprendizado do gosto da socialização; para os críticos, reservou, entre outros, sua aguda análise sobre a decadência de uma civilização que produzia miséria em meio à abundância do comércio e da nascente sociedade industrial.

Para todos, prelúdios que os fizessem desejar: “vocês perderam tudo, por terem desejado tão pouco” (Fourier, 2009, p. 247). Numa forma discursiva ela própria passional – em estado utópico –, Fourier não entrega planejamentos, mas um chamado, sobretudo, à paixão da descoberta. Não sem alguma extravagância:

haverá sobre o globo trinta e sete milhões de poetas como Homero, trinta e sete milhões de geômetras como Newton, trinta e sete milhões de teatrólogos iguais a Molière, e assim para todos os talentos imagináveis. [...] É pois um grande erro acreditar que a natureza seja avara em talentos; sua prodigalidade está bem além de nossos desejos e necessidades; mas resta a você saber descobrir e desenvolver os germes (2009, p. 200).17

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos colegas da “Comum” (Comunidade de Estudos de Teoria da História da UERJ), que, por intermédio do Eduardo Ferraz, discutiram os argumentos deste texto a partir da palestra “Pensar o impossível”, em 06 de junho deste ano.

REFERÊNCIAS

ABENSOUR, Miguel. William Morris: utopia libertária e novação técnica. In: O novo espírito utópico. Campinas: Ed. Unicamp, 1990. p. 115-175.

ADORNO; HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. São Paulo: Jorge Zahar Editore, 1986.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BEECHER, Jonathan. Fourier: Le visionnaire et son monde. Paris: Fayard, 1993.

BENJAMIN, Walter. Passages: Paris capitale du XIXe siècle. Paris: Lés éditions du Cerf, 1993.

BRETON, André. Ode à Charles Fourier. Paris: Fata Morgana, 1994.

CASSIRER, Ernst. A filosofia de iluminismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1994.

DEBOUT-OLESZKIEWICZ, Simone. Dans l´orbe du surréalisme. Charles Fourier redécouvert. Cahier Charles Fourier, Paris, n. 27, 2016. Disponível em: https://www.charlesfourier.fr/spip.php?rubrique123. Acesso em: 9 nov. 2024.

ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. Rio de Janeiro: Editora Global, 1984.

FOURIER, Charles. Théorie des quatre mouvements. Paris: Les press du réel, 2009.

FOURIER, Charles. Le nouveau monde industrial et sociétaire. Paris: La press du réel, 2001.

FOURIER, Charles. The theory of the four movements. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Prosa do mundo: Denis Diderot e a periferia do iluminismo. São Paulo: Ed. Unesp, 2022.

JAMESON, Fredric. Arqueologias do futuro: o desejo chamado Utopia e outras ficções científicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

KONDER, Leandro. Fourier, o socialismo do prazer. São Paulo: Civilização Brasileira, 1998.

KOLELLECK, Reihardt. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. UERJ, 1999.

KOSELLECK, Reinhart. A temporalização da utopia. In: KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2014.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

RODRIGUES, Henrique Estrada. Utopia bem temperada: Fourier e o equilíbrio das paixões. In: CARRIS, Lucienne; COSTA, Amanda. A cidade e o poeta: diálogos com o historiador Edmilson Martins Rodrigues. Rio de Janeiro: Telha, 2023. p. 109-122.

Notes

1 Malgrado o resumo aqui esquemático e o apagamento das nuances entre os exemplos dados, implícita, nesse argumento historiográfico, está a identificação de uma ideia de história iluminista como formadora, e passo necessário, das filosofias da história do XIX. Nesse sentido, valeria a pena comparar A filosofia do Iluminismo, de Ernst Cassirer, com Crítica e crise, de Koselleck, o que evidentemente não será feito aqui. A esse respeito, embora em outro contexto, ver: Hans Gumbrecht, A prosa do mundo: Denis Diderot na periferia do iluminismo (2002, p. 50-51). Voltarei a esse livro, importante para o argumento desenvolvido neste artigo (introduzido no próximo parágrafo), mais adiante.
2 Trad. livre do autor: “Le préfet du Rhône s´est convaincu que ce Fourrier est un visionaire, un fou très innocent, de qui l´on n´a rien à craindre [...]. Son interrogatoire [...] est d´un genre d´extravagance assez curieux pour que le Roi daigne peut-être y jeter un coup d´ oeil,”.
3 Não menos importante fora a recepção dos surrealistas, notadamente de André Breton, que em meio às angústias do final da Segunda Guerra Mundial, começa a pensar num longo poema as paixões fourieristas e suas esperanças de futuro. Em 1947, publica a Ode à Charles Fourier. Sobre essa recepção, porém, já há uma bibliografia consolidada. A título de exemplo, ver, de Simone Debout-Oleszkiewicz, (2016).
4 A esse respeito, ver a introdução dos editores da obra, Gereth Jones e Ian Patterson, para a edição de 2006 de Fourier: The Theory of the four movements (2006).
5 Sobre Mercier e sua relação com as epistemologias do iluminismo e as filosofias da história, ver a conhecida análise de Koselleck em “A temporalização da utopia”, originalmente publicado em 1982. In: Estratos do tempo: 2014, p. 124-125. O argumento de um Fourier “às margens”, por sua vez, segue, em outro contexto, a hipótese de Hans Gumbrecht (2002) no já citado Prosa do mundo: Denis Diderot e a periferia do iluminismo, de 2020. Nesse livro, o autor analisa a obra deslocada do autor de O sobrinho de Rameau, com contornos instáveis e sem um gênero definidor, como abertura a tudo o que interrompe a pressão da necessidade. Fourier teria uma disposição semelhante, embora a “pressão da necessidade” lhe falasse mais alto.
6 Trad. livre do autor: “[...] les hommes vont apprendre que les lumières acquises s´élèvent à peine au quart de celles qui restaient à acquerir [...] eh ! peut-on voir autre chose dans les écrits de ces savants, que aprés avoir employé vingt-cinq siècles à perfectionner leurs théories, aprés avoir rassemblés toutes les lumières anciennes e modernes, engendrent pour leur début autant de calamités qu´ ils ont promis de bienfaits, e font décliner la société civilisée vers l´état barbare?”
7 Trad. livre do autor: “[...] quel tom dois-je prendre pour annoncer l´ orage qui va fondre sur les vieilles idoles de la civilization, sur les sciences incertaines ? faut-il revêtir les longs habits de deuil, pour déclarer aux politiques e moralistes que l´ heure fatale est sonnée, que leurs immenses galeries de volume vont tomber dans le néant ; que les Platon, les Sénèque, les Rousseau, les Voltaire e tous les coryphées de l´ incertitude ancienne e moderne, iront tous ensemble au fleuve d´ oubli?”
8 Trad. livre do autor: “Du momento ù je possédai les deux théories de l´ attraction [...] je commençai a lire dans le grimoire de la nature ; ses mystères s´ expliquaient successivement, et j´ avais enlevés le voile réputé impénétrable. J´ avançais dans un nouveau monde scientifique, ce fut ainsi que je parvins gradativement jusqu´ au calcul des destinnées universelles, ou détermination du système fondamental sur lequel furent réglées les lois de tous les mouvements présents, passés et à venir.”
9 Para essa teoria das paixões, retomo os termos, modificando-os ligeiramente, do meu texto “Utopia bem temperada: Fourier e o equilíbrio das paixões”, capítulo do livro A cidade e o poeta: diálogos com o historiador Antonio Edmilson Martins Rodrigues, organizado por Luciene Carris e Amanda Costa e publicado em 2023. Por outro lado, uma boa introdução da dimensão hedonista aqui exposta pode ser lida no livro de Leandro Konder intitulado, não por acaso, Fourier, o socialismo do prazer, publicado em 1998.
10 Trad. livre do autor: “Nous allons êtres témoins d´ un spectacle qui ne peut se voir qu´ une fois dans chaque globe [...]. Chaque année, pendant cette métamorphose, vaudra des siècles d´existence, e offrira une foule d´ événements si surprenants, qu´ il ne convient pas de les faire entrevoir sans préparation [...]. Quant aux particularites sur l´ ordre sociétaire, quant aux jouissances qu´ il doit nous procurer, il faudra, je le répète, user de ménagements por les annoncer aux civilisés. [...] leurs esprits se soulèveraient si on leur exposait sans précaution la perspective des délices dont ils vont jouir sous très peu de temps.”
11 Trad. livre do autor: “Je serais mieux accueilli, si j´ annonçais un bien-être médiocre ; c´ est ce que me décide à atténuer beaucoup les tableaux du bonheur prochain. Lorqu´ on en connaîtra toute l´ étendue, on s´ étonnera que j´ ai eu la patience de temporiser et différer la publication ; que j´ ai pu mettre tant de réserve, e prendre un ton si glacial dans l´ annonce d´ un événement que doit exciter tant d´enthousiasme.”
12 Trad. livre do autor: “Je ne veux produire que peu à peu ma théorie [...] pour ménager la surprise, et procéder par gradation.”
13 Trad. livre do autor: “Sur l´étourderie des nations civilisées qui ont oublié ou dédaigné les deux branches d´études servant d´acheminement à la théorie des destinées : l´étude de l´Association agricole et de l´Attraction passionée. Et sur les funestes résultats de cette étourderie qui prolonge inutilement depuis 2300 ans la durée du chaos social, c´est-à-dire, des sociétés civilisée, barbare et sauvage, qui ne sont point la destinée du genre humains ”
14 Trad. livre do autor: “qui même dans ce cas d´extrême clarté ne suffiraient pas à initier les lecteurs, puisque je ne fais que préluder sur chaque sujet.”
15 Trad. livre do autor: “que dans un prospectus je ne puis m´arrêter à aucune démonstration, et qu´en annonçant tant d´événements merveilleux, tant de résultats incompréhensibles, je ne prétends pas exciter la crédulité ; j´essaie seulement d´appele la curiosité.”
16 Trad. livre do autor: “Tan til est impossible de déraciner du coeur humains la passion de connaître l´ avenir ! Eh ! pourquois Dieu, que ne fait rien en vain, nous aurait-il donné cet ardent désir, s´ il n´ avait avisé aux moyen de le satisfaire un jour ? Enfin ce jour est arrivé, et les mortels vont partager avec Dieu la prescience des événements futurs : j´ en donné ce léger aperçu [...] rien n´ est plus digne de piquer votre curiosité que cette théorie de l´ association et de l´ attraction qui vous sera communiquée dans les mémoire suivantss, et qui vous ouvrira le grand livre des décrets éternels.”
17 Trad. livre do autor: “[...] il y aura habituellement sur le globe trente-sept millions de poètes égaux à Homère, trente-sept millions de gèomètres égaux à Newton, trente-sept millions de comédiens égaux à Molière, et ainsi de tous les talents imaginables. [...] C´ est donc une grande erreur de croire que la nature soit avare de talents ; ele en est prodigue bien au-delà de nos désirs et de nos besoins ; mais il vous reste à savoir découvrir et dévelloper les germes.”

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Editor responsável: Ely Bergo de Carvalho
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