DOSSIÊ: ESCRAVIDÃO, COTIDIANO E DINÂMICAS DE MESTIÇAGENS NOS MUNDOS IBÉRICOS (SÉCULOS XVI-XVIII): ESPAÇOS, MOBILIDADE, ACORDOS E CONFLITOS
Apresentação Escravidão, cotidiano e dinâmicas de mestiçagens nos mundos ibéricos (séculos XVI-XVIII): Espaços, mobilidade, acordos e conflitos
Presentation Slavery, Everyday Life and Dynamics of Miscegenation in the Iberian Worlds (16th-18th Centuries): Spaces, Mobility, Agreements and Conflicts
Apresentação Escravidão, cotidiano e dinâmicas de mestiçagens nos mundos ibéricos (séculos XVI-XVIII): Espaços, mobilidade, acordos e conflitos
Varia Historia, vol. 41, e25036, 2025
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais
Received: 16 December 2024
Revised document received: 9 January 2025
Accepted: 6 March 2025
A ideia de ordem foi central para a articulação dos mundos ibéricos dos séculos medievais e modernos. Essas sociedades eram concebidas e representadas como um conjunto ordenado de partes autônomas, desiguais e hierarquizadas. A qualidade e a condição jurídica de seus membros constituíam elementos fundamentais. Não por acaso, a diferença consistia em uma desigualdade política que definia uma posição e uma função naquele mundo (Hespanha, 2010). Portanto, a instituição da escravidão, enquanto se apresentava como “la más vil et la más despreciada cosa que entre los homes puede ser” (Las Siete Partidas, Partida IV, Título V), teve espaço no imaginário social e cultural e na prática jurídico-política das monarquias ibéricas.
Ao contrário da coroa de Aragão, cujos portos estavam mais conectados com os fluxos provenientes do Mar Negro, o fenômeno da escravidão nos reinos de Portugal e Castela esteve, durante os séculos medievais tardios, basicamente relacionado à captura e venda de escravos muçulmanos provenientes da guerra e das incursões (Armenteros Martínez, 2012). No entanto, a expansão oceânica dos portugueses e castelhanos a partir de meados do século XV propiciou a mobilização progressiva de escravos de diferentes origens e grupos étnico-linguísticos. Assim, juntamente com a persistência da escravização dos infiéis, ou seja, de moriscos do reino de Granada, berberiscos do norte da África e turcos otomanos, houve a chegada impressionante de escravos negroafricanos e, embora em menor medida, de naturais das Ilhas Canárias, das Américas e das costas asiáticas do Índico e do Pacífico. A estrutura cultural, social e demográfica da Península Ibérica e do Novo Mundo, portanto, não poderia permanecer imutável. Muito pelo contrário. A presença de mulatos, loros e membrillos cochos na cidade de Sevilha constituía uma das “consequências mais visíveis da frequência da mestiçagem” desde, pelo menos, o último terço do século XV (Franco Silva, 1979). As misturas biológicas e culturais entre índios, europeus e africanos foram ainda mais expressivas nas Américas, com o surgimento de grupos de mestiços, mulatos, zambos, pardos, cabras ou mamelucos desde o início da conquista (Bernard; Gruzinski, 2005).
A renovação metodológica gerada pela historiografia nos últimos anos tem contribuído para aprofundar este campo de estudo. As sociedades ibéricas, especialmente nos ambientes mais urbanizados, constituíram um universo cultural caracterizado por
um amplo conjunto de diferentes e diferenças, em movimento constante, misturando-se, mas, também, chocando-se, antagonizando-se, superpondo-se, em ritmos que às vezes são lentos e outras vezes são velozes, de maneira harmoniosa e/ou conflituosa, dependendo de épocas e de regiões, dos protagonistas e de seus objetivos. Fusões, superposições e recrudescimento de diferenças, tudo isso se processa, claro, numa espécie de via de mão dupla, para continuar usando figuras de retórica. Isto é, esse processo não corre em um único sentido, mas é constituído a partir de intervenções dos vários grupos sociais, que se influenciam continuamente, mesmo que um ou alguns entre eles imponham-se, mais frequentemente e a partir de seu maior poderio, sobre os outros (Paiva, 2022, p. 86).
Nesse sentido, o conceito de dinâmicas de mestiçagens permite abordar o fenômeno como processos complexos e multifatoriais de misturas biológicas e culturais, e não apenas como um produto resultante da desigualdade e da dependência jurídica (Paiva, 2015). Logo, conhecer os espaços nos quais essas populações se desenvolveram e as formas de sociabilidade produzidas neles é fundamental. Caminhos, portos e barcos. Moradias, ruas, praças, alamedas e fontes. Oficinas, hortas, cartórios, minas e mercados. Igrejas e capelas, irmandades e cultos religiosos. Pousadas, tabernas e prostíbulos. Instituições judiciais e prisões... São alguns exemplos de espaços nos quais puderam se desenvolver relações entre agentes sociais de diferentes qualidades e condições jurídicas, em um cenário infinito de circunstâncias e possibilidades (Pérez García, 2018; González Arévalo, 2022). Neles se forjou a amizade e o amor, a hostilidade e o desapego. Ocorreram situações de aprendizado da língua e dos códigos culturais, de reelaboração das vestimentas, da culinária, das danças, dos cantos, da música... mas também de reafirmação das identidades e das práticas socioculturais. Nestes espaços, laboratórios das mestiçagens, encontravam-se, em última instância, experiências próprias e alheias, as quais podiam ser trocadas, ampliadas, transformadas ou repelidas.
Este dossiê reúne especialistas de vários países para aprofundar no cotidiano das sociedades escravistas nos mundos ibéricos. O objetivo consiste em investigar os espaços e as formas de sociabilidade que se desenvolveram neles. Assim, o desafio proposto é analisar os episódios de negociação e conflito, as situações de mobilidade, convivência, coexistência e sobreposição, bem como os discursos e as representações que serviram para distinguir ou hierarquizar essas sociedades. Para isso, são apresentados artigos que, situados nos territórios das monarquias espanhola e portuguesa entre os séculos XVI e XIX, incorporam linhas de pesquisa como a reconstrução de trajetórias individuais e familiares, constituição e tipologia de famílias mestiças, o mundo do trabalho e atividades econômicas, a formação de redes de sociabilidade e solidariedade em escala regional e global, formas de acesso à liberdade, participação em litígios civis e eclesiásticos, discursos e representações políticas, devoções e vida religiosa, cultura material e dimensões culturais e artísticas, além de perspectivas conectadas-comparadas.
As contribuições, originais e inéditas, baseiam-se em uma sólida base documental, incluindo um conjunto metodológico-conceitual que busca recuperar, utilizar e situar no tempo as palavras e seus significados para compreendê-las historicamente, evitando anacronismos, visões simplistas e estereotipadas, bem como preconceitos morais, contando com um aparato crítico que dialoga e problematiza os resultados obtidos com os debates historiográficos sobre o tema. A inclusão de espaços geográficos distantes e de um arco temporal amplo enriquece a proposta do dossiê, pois possibilita uma aproximação ao cotidiano das sociedades escravistas ibéricas a partir de diferentes tempos e espaços. Porque, apesar de estarem inseridos em processos globais, apresentaram suas próprias especificidades locais e regionais.
Começando pela Península Ibérica, o artigo de Javier Fernández analisa um meio de liberação utilizado por escravos e suas famílias, como as ações legais movidas nos tribunais civis ao sul da Coroa de Castela, um território caracterizado nos séculos XVI e XVII por abrigar uma parte significativa da população escrava na Península Ibérica. Os processos de liberdade coletados nas fontes judiciais constituem um exemplo da integração social dos escravos envolvidos, além de revelar as tensões presentes em suas vidas diárias, especialmente em suas relações com seus senhores. Do outro lado do Atlântico, e sem abandonar o conflito, Claudia Rodrigues e Anderson José Machado de Oliveira examinam, principalmente por meio de fontes paroquiais, os desentendimentos que surgiram entre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e a Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro durante os séculos XVII e XVIII sobre privilégios relacionados a procissões fúnebres. Como indicam os autores, as associações religiosas dos negros não eram indiferentes ao litígio entre irmandades presentes nas sociedades dos mundos ibéricos.
Continuando com o estudo da escravidão através de fontes paroquiais, o artigo de Roberto Guedes e Moisés Peixoto aprofunda-se na análise dos registros de batismo e óbito da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Iguaçu ao longo das últimas décadas do século XVIII e dos primeiros anos do século XIX. Com um estudo centrado na figura do Capitão Luciano Gómes Ribeiro, proprietário de um engenho de açúcar que tinha 155 escravos sob seu comando, os autores apresentam um exemplo de como membros das elites escravistas presentes em áreas agrícolas podiam ser libertos que passaram a ocupar seu próprio espaço de poder dentro da comunidade.
Neste universo de mobilidade social marcado pela liberdade, o artigo de Eduardo Corona aprofunda-se nas características sociodemográficas de Vila Rica de Ouro Preto no primeiro terço do século XVIII. Através de uma análise exaustiva de fontes paroquiais e municipais, o autor fornece informações sobre a estrutura social e laboral da vila, destacando o papel das escravas na estrutura da sociabilidade familiar e as dinâmicas das mestiçagens.
Retornando ao século XIX e continuando com a emancipação dos escravos, o artigo de Alex Andrade Costa analisa as diversas estratégias empregadas pelos escravos nas regiões costeiras da Bahia durante as primeiras décadas do século. A profusão de detalhes frequentemente encontrada na documentação judicial reflete-se neste estudo nos múltiplos testemunhos de escravos apresentados, que demonstram as tensões, lutas e resistências vivenciadas por alguns para superar uma realidade que consideravam fatídica.
Dessa forma, esperamos que o dossiê, que visa aprofundar e oferecer uma visão mais complexa da escravidão, vida cotidiana e dinâmicas de miscigenação nos mundos ibéricos dos séculos XVI a XVIII, possa tornar-se uma referência para especialistas e novas gerações de historiadores.
REFERENCIAS
ARMENTEROS MARTÍNEZ, Iván. La esclavitud en Barcelona a fines de la Edad Media (1479-1516): El impacto de la primera trata atlántica en un mercado tradicional de esclavos. Tesis de doctorado, Universitat de Barcelona, Barcelona, 2012.
BERNARD, Carmen; GRUZINSKI, Serge. Historia del Nuevo Mund o, II: los mestizajes (1550-1640). Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2005.
FRANCO SILVA, Alfonso. La esclavitud en Sevilla y su tierra a fines de la Edad Media. Seville: Diputación Provincial de Sevilla, 1979.
GONZÁLEZ ARÉVALO, Raúl. La vida cotidiana de los esclavos en la Castilla del Renacimiento. Madrid: Marcial Pons, 2022.
HESPANHA, António Manuel. Imbecillitas: As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades do Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010.
PAIVA, Eduardo França. "Por meu trabalho, serviço e indústria": Histórias de africanos, crioulos e mestiçados nas Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.
PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: Uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
PÉREZ GARCÍA, Rafael M. Esclavitud y dinámicas de mestizajes en Andalucía occidental. Siglos XV-XVII. In: PÉREZ GARCÍA, Rafael M.; FERNÁNDEZ CHAVES, Manuel F.; BELMONTE POSTIGO, José Luis (coords.) Los negocios de la esclavitud: Tratantes y mercados de esclavos en el Atlántico Ibérico, siglos XV-XVIII. Seville: Editorial Universidad de Sevilla, 2018. p. 237-262.
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