ENTREVISTA
Gruzinski no Pará Entrevista com Serge Gruzinski
Gruzinski in Pará Interview with Serge Gruzinski
Gruzinski no Pará Entrevista com Serge Gruzinski
Varia Historia, vol. 41, e25038, 2025
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais
Received: 1 October 2024
Revised document received: 6 March 2025
Accepted: 13 November 2024
Em uma manhã acalorada de setembro, na cidade de Marabá (PA) - Brasil, o historiador e paleógrafo francês Serge Gruzinski concedeu uma entrevista a um dos membros do grupo GEPAM (Grupo de Ensino e Pesquisa Americanistas).1 Diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris) e do Centre Nationale de la Recherche Cientifique (CNRS-Paris), curador do Museu Quai Branly-Paris e autor de uma volumosa produção que circula em francês e em diversas outras línguas conectando diferentes públicos leitores,2 Gruzinski esteve em Marabá para apresentar uma conferência no “III Colóquio Internacional de História das Américas. Continente Conectado: Fontes e Metodologias”, realizado entre os dias 10 e 12 de setembro de 2024, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA).3
Durante os três dias intensos de conferências encenadas por ele e por um grupo de historiadores brasileiros e estrangeiros4 que conectaram em suas pesquisas as quatro partes do mundo, bem como de debates e de conversas que ultrapassaram o espaço acadêmico da UNIFESSPA para ocorrerem também durante uma visita ao rio Tocantins e à Terra Indígena Mãe Maria habitada pelo grupo Gavião Akrãtikatêjê, demonstrando, assim, que a construção do conhecimento inclui interlocutores que ocupam outros lugares de saber – como o guia que nos conduziu no curso do rio e a cacica que nos recebeu em sua terra –, foi possível travar um proveitoso diálogo com o professor Serge Gruzinski. A cada fato novo que o cenário amazônico nos apresentava naqueles poucos dias em Marabá, como, por exemplo, as atuais conexões do Pará com a China, a exploração mineral perpetrada pela Vale e os impactos de sua ação na vida dos indígenas locais e no meio ambiente, era uma possibilidade para aprendermos um pouco mais sobre o que esse historiador teria para dizer fora de seus livros.
As perguntas sobre os caminhos teóricos trilhados por ele ao longo de sua trajetória acadêmica e que, uma vez explicitados, nos ajudam a entender a arquitetura de suas obras e o modo como as históricas contadas se conectam e revelam nexos mapeados em diferentes espaços e temporalidades foram, contudo, deixadas para a entrevista final que o leitor acompanha a seguir.
PALAVRAS INICIAIS
Dos temas, das fontes e do seu recorte histórico, a América no século XVI, temos contato por meio de seus densos e volumosos livros. Mas, das suas escolhas teóricas e do percurso para pensar e construir esse recorte, bem como o modo como você lê e utiliza a documentação da época é o que nos interessa saber um pouco mais nessa breve entrevista.
Por isso, gostaríamos de partir de dois conceitos ou chaves de leitura que atravessam toda a sua produção, a saber, “mestiçagem” e “mundialização”, a fim de entendermos um pouco sobre como você estrutura o fazer história. Nós temos algumas pistas deixadas no livro As quatro partes do mundo de que você faz uma “história cultural descentrada, atenta ao grau de permeabilidade dos mundos e aos cruzamentos de civilizações”.5
Bem, diante dessa introdução, gostaríamos de concentrar a nossa pergunta inicial retomando uma passagem presente nesse mesmo livro, que diz que: “Para tentar penetrar nas relações ambíguas da mundialização e das mestiçagens, retomarei o caminho do passado, como fiz em La pensée métisse”.6 Nessa escolha teórica de voltar a uma espécie de início, isto é, quando o “jogo começou a ser jogado”, não estamos diante de uma história teleológica em que todos os eventos e trajetórias individuais partem de um começo – o século XVI, com a mundialização ibérica – e estão interligados rumo a um mesmo fim, que seria mostrar um mundo articulado?
Serge Gruzinski: Bom, concordo com essa magnífica apresentação, mas eu gostaria de insistir sobre o início da curiosidade e da construção, uma palavra muito ambiciosa teoricamente, e o início de tudo isso e, curiosamente, uma coisa brasileira: os filmes de Glauber Rocha. Estou na França, fazendo meu mestrado sobre história cultural do norte da França e dos países baixos e uma coisa que interessou e me interessa muito é o cinema. Para mim, a descoberta dos anos 1971 e 1972 foram os filmes de Glauber Rocha. Por que falo de Glauber Rocha? Porque há um conceito fundamental, para mim, que é de “aculturação”, ou seja, a ideia da transformação de uma cultura e de uma sociedade em outra sociedade. Esse material que eu observava nos filmes de Glauber Rocha deu-me a ideia de que era muito mais fácil ou interessante e rico estudar o encontro das sociedades e das culturas na América Latina do que na Europa. Então, essa relação forte entre o cinema e o conceito de aculturação...e também era a época da história das mentalidades e Alphonse Dupront introduziu na França esse conceito que provém da antropologia norte-americana e germânica. Outro elemento fundamental que devo destacar é que quando tento entender o meu trabalho e a minha trajetória não é unicamente sobre a minha relação com o passado, é um triângulo, é a minha relação com o presente e com o passado, ou seja, a maior parte das minhas intuições ou curiosidades provêm do mundo contemporâneo. Isso quer dizer que eu não posso conceber, tentar entender, descrever, explicar o passado sem partir de uma pergunta contemporânea, para mim essa é uma dimensão fundamental. Você falou da minha preocupação com a mestiçagem...e por que a mestiçagem? Porque, bem, eu morei no México muitos anos, um país mestiço como todos os países latino-americanos, mas voltando para minha terra, e o que encontro? Mudanças, ou seja, gente que fala árabe, gente que tem outra religião, ou seja, uma realidade que já não é a realidade clássica da França de um país branco com uma tradição nacional, absolutamente não europeia, mas francesa, mas outra coisa que emerge...então, a vontade de entender essa emergência faz com que eu utilize o passado como uma forma de espelho para sempre entender o presente. No México, eu aprendi o náuatle que é a língua dos índios, dos astecas, e, voltando a minha terra, depois de uma viagem longa da Cidade do México para Paris e de Paris para o norte da França, encontrei gente que fala árabe e eu não posso entender o árabe, ou seja, o exotismo para mim não é no México, mas o exotismo é no mundo e no europeu, em particular, lugar de nascimento. Uma coisa aconteceu e queria entender e viajar no passado para encontrar textos e documentos sobre esse processo de mistura da mestiçagem em um contexto absolutamente distinto, justamente essa distância entre o passado e o presente para mim é o que me ajuda sempre a entender o que é o mundo presente. Nós estamos agora em Marabá e a situação atual é que Marabá é um dos polos da mundialização do século XXI e, a partir disso, posso pensar em termos de mundialização e sobretudo de história global, bem, essa é a minha trajetória particular, não pretendo que seja um modelo, mas não posso separar a minha vida individual da minha vida intelectual.
Você mencionou a “mundialização” e a próxima pergunta seria justamente saber se esse conceito como chave de leitura histórica permite abordar quebras e rupturas.
Serge Gruzinski: Acho que...bem, é um instrumento e eu não utilizo unicamente a palavra mundialização. Para mim é muito importante distinguir mundialização de globalização. Nós temos em português, francês, espanhol e italiano duas palavras e o norte-americanos, não têm. Em termos, para mim, há dois processos, não conceitos, porque, para mim é uma mecânica e um processo...uma ferramenta para ler de outra maneira o passado, sempre entender que serve para a boa leitura e para uma leitura adaptada sobre as urgências do momento atual, ou seja, a ideia de que seria a verdade histórica ou a essência do passado para mim é absolutamente estúpida, a mundialização é um tipo de ferramenta, uma forma de luz, que podemos utilizar não tanto para entender o passado e para descrever o passado, mas para definir o que é hoje a mundialização, a partir das semelhanças e das diferenças. Quando eu escrevi As quatro partes do mundo, observei muito dois tipos de processo: um que chamei de mundialização, que é a difusão em todas as partes do mundo de elementos que são ocidentais, mas também a difusão de elementos da China, ou seja, a mundialização são fluxos entre todos os continentes, e outro que é a globalização, que é uma coisa distinta, é um processo planetário e a imposição dos mesmos paradigmas para o resto do mundo. Para entender essa palavra “globalização”, muitas vezes eu utilizo uma comparação com os algoritmos, ou seja, hoje a globalização se faz através dos algoritmos já que nós todos temos que utilizar – os chineses, os japoneses, os latino-americanos etc. – a mesma ferramenta que o algoritmo. E o que é a globalização no século XVI? A imposição do latim, porque o latim é uma língua obrigatória para a religião, para o direito e o latim não pode mestiçar-se com outros idiomas...o aristotelismo que o algoritmo intelectual filosófico do século XVI se difunde com os jesuítas, com outros grupos na América e em certas partes de África, ou seja, o pensamento aristotélico nunca se mescla com outras formas de pensamento. Por que distingui entre mundialização e globalização? Porque hoje é muito importante para nós sabermos as coisas que se difundem no mundo inteiro e que parte dessas coisas podem ser transformadas, aculturadas, mestiçadas, adaptadas e acomodadas...outras partes resistem. Ao recebermos conteúdos da China e, vocês, latino-americanos, da Europa, podemos mesclar e misturar elementos do Brasil e da sua própria história, mas quando são elementos globalizados é impossível negociar uma mestiçagem, porque há um poder irresistível dos elementos globalizados. Para imaginar e para desenvolver uma leitura crítica da mundialização é muito importante saber fazer a distinção entre as coisas com as quais podemos lutar, resistir ou apropriar e as outras coisas que arrasam e destroem o que não pertence a esse mundo da globalização. Outro exemplo para tornar as coisas mais claras para os historiadores é o direito, o direito europeu imposto às Américas, ou seja, não há negociação possível entre os costumes indígenas, africanos e o direito europeu. O direito europeu, o direito romano se globaliza e, agora, quando falamos dos direitos humanos sabemos que são valores aceitos em todo o mundo. A globalização, então, é um modelo que todos têm de aceitar sem modificar o modelo.
Quando a gente pensa em um modelo, utilizando esse exemplo do direito que você deu, é possível trabalharmos com essa ideia de globalização. Mas, como utilizar historicamente essa palavra? Porque, quando o direito surge com Francisco de Vitoria, no século XVI, com a questão em torno da natureza dos indígenas, há uma problemática religiosa por trás, mas quando falamos dos direitos humanos no século XX, com a proclamação da carta de 1948, estamos falando de direitos humanos que emergem em uma outra época e a partir de uma problemática política. Então, são duas práticas diferentes, embora carreguem o mesmo nome...
Serge Gruzinski: Sim e não, porque o cristianismo, os valores inventados pela Revolução Francesa e os droits de l’homme, bem, é uma produção ocidental, é sempre Ocidente, é outra forma da dominação ocidental e sempre é a ideia de que a maneira de pensar, a maneira de organizar as normas de vida provêm da Europa para o resto do mundo. Podem ser religiosas ou antirreligiosas, mas o discurso sempre tem a mesma origem.
Ah, então você quer dizer que se formos analisar a história de vários séculos, há por trás sempre essa questão da dominação, ou seja, em qualquer época que formos analisar há essa leitura da dominação...
Serge Gruzinski: Em particular, sim, para os problemas relacionados à mestiçagem, porque na mestiçagem não há uma relação igualitária. Para entender a mestiçagem como globalização sempre temos que pensar em relações de força.
Mas, então, se pensarmos assim, a partir dessa leitura de relações de força, não estamos escrevendo uma história como se fossem semelhantes de uma época a outra? Porque essas relações de força, segundo você, estão presentes em todos os momentos históricos...e aqui volto à pergunta inicial da entrevista: não estamos diante de uma leitura teleológica ou de uma história com sentido entendendo sempre essa relação de força como pano de fundo?
Serge Gruzinski: Eu não sei, mas as relações de força não são relações estáveis, elas mudam continuamente. Por exemplo, em um grupo dominante indígena e uma minoria de espanhóis há uma relação de força a favor dos índios, já na cidade do México, a favor dos espanhóis, na China, quando os espanhóis e os portugueses chegam há uma relação de força a favor dos chineses, e que com o tempo mudam. No século XIX os europeus finalmente conseguem estabelecer uma forma de colônia em Xangai etc. e a relação de força é a favor dos europeus. Nós temos que pensar que...bem, para mim, é fundamental dominados e dominadores, só que os papéis mudam constantemente até no meio familiar, não? Há famílias com patriarcado e depois famílias dominadas pelas mulheres, não? Depende de certos contextos e o trabalho do historiador é restabelecer esses contextos. Agora, o problema se a história é ou não teleológica não é a minha perspectiva, ou seja, eu quero entender hoje a questão da colonização digital, isso é que me interessa hoje e o que venho mostrando nos meus trabalhos atuais, ou seja, como funciona a colonização digital, qual é a forma de poder? Esse é um ponto de partida para tentar pensar no século XVI como funcionou a colonização alfabética, isto é, como o contexto da colonização alfabética no processo da colonização ibérica no século XVI pode ajudar a entender essa atual colonização digital. Acho que o meu conceito de história é tentar organizar o pensamento crítico com relação a nossa realidade e acho que o último livro que eu publiquei Quand les Indiens parlaient latin7 mostra esse esforço para entender até que ponto, finalmente, a imposição da escrita alfabética às sociedades indígenas e à toda a América anuncia a imposição para todo o planeta da língua digital, a tecnologia distinta, a intenção, ou seja, a dominação tem uma continuidade. O caráter invisível desta forma de poder é fundamental para mim...a colonização alfabética é a maior colonização, mas é uma colonização que a gente aceita, uma colonização invisível, não tem lugares, e ao entrar o mundo alfabético toda a gente se transforma completamente, assim como para nós, ao entrar no mundo digital, o nosso pensamento está completamente colonizado. Então, essa parte me parece fundamental e complica muito a nossa vida, porque vejo pouca oposição à colonização digital. Dessa forma, utilizando esse passado colonial para insistir sobre essa dimensão de imposição e para saber as consequências intelectuais muito profundas, porque nós sabemos que os jovens que estão constantemente utilizando essas formas e essas máquinas têm o pensamento fragmentado e pouca capacidade para fixar a atenção, ou seja, não se trata unicamente de uma mudança de código, não é simplesmente passar do alfabeto para o digital, mas, sim, de mudança dos mecanismos cerebrais, e essa é a razão dessa exploração do passado, ou seja, se há uma perspectiva teleológica não posso dizer, mas refletir sobre as formas de colonização, e em particular sobre as formas de colonização que são ignoradas pelo decolonial, porque o discurso decolonial tem uma visão absolutamente primária do passado, e acho que não temos que fazer constantemente a crítica da colonização, mas saber quais são as formas definitivas de colonização, nós aqui estamos falando o português e estamos utilizando a escrita alfabética que é o triunfo total dessa forma de colonização europeia, a imposição de uma língua europeia inventada pelos europeus por um meio de expressão de um alfabeto que é europeu também e que isso significa a exterminação de quaisquer outras formas de pensamento e de comunicação. Então, acho que temos que utilizar obviamente a escrita alfabética como a escrita digital, mas também temos que saber que é uma forma de dominação e talvez a inconsciência ou a falta de...acho que é preciso falar de alienação que é um obstáculo enorme para nossa sociedade também no ensino da história, ou seja, hoje essa colonização digital faz parte das formas de dominação que a história tem que desconstruir.
Bom, vou continuar nesse tema porque é o que atravessa toda a nossa conversa. Desdobrando essas questões colocadas até agora, interessa saber que se ao estabelecer uma relação entre mundos que se cruzam ou que se penetram – não perdemos o “chão histórico”, isto é, não perdemos as particularidades ou identidades culturais de cada época? Quando falamos de mundos conectados, onde estão essas particularidades culturais de uma época?
Serge Gruzinski: A particularidade é a conexão. Justamente, as identidades não existem e nunca existiram, isso é parte da retórica intelectual e também da forma de degradação das ciências sociais. Falar de identidade para mim é absolutamente absurdo.
Então vamos falar de singularidades culturais...
Serge Gruzinski: Ah sim, as singularidades são as formas de conexão. O que passa no século XVI, bem, as culturas indígenas...é muito difícil entrar nas culturas indígenas, ou melhor as sociedades indígenas, porque eu não gosto da palavra cultura, mas podemos observar o que se passa quando nós europeus chocamos com outros grupos...e ontem nós falamos muito de histórias conectadas e é um absurdo, porque são as conexões que são importantes, não as histórias conectadas. Temos aí outra vez o discurso historiográfico do Brasil. O gosto brasileiro pelas teorias faz com que vocês não veem onde fica o problema ou a dimensão interessante, porque cada momento tem uma forma de conexão distinta. A conexão entre a nobreza indígena do México no século XVI e os missionários e os fidalgos é onde está a singularidade, e é essa singularidade que nós podemos explorar porque temos documentos que nos falam dessa conexão. Bom essa conexão, na época das Luzes é absolutamente distinta, porque é uma conexão entre o absolutismo ilustrado, as reformas bourbônicas, ou seja, uma outra administração com outra realidade mexicana que já não é mais uma realidade indígena, pois o mundo criou uma outra forma de conexão. Com a independência temos outra forma de conexão e mais formas de conexão, como a conexão dos países latino-americanos com a França – porque já não é unicamente a conexão ibérica – então, fazer histórias conectadas é fazer a história das conexões, das formas de conexões e do rechaço das conexões, e considerar essas conexões como processos absolutamente instáveis, porque dependem da situação e da relação de força. Para mim, então, eu tento considerar ao mesmo tempo esse jogo das relações de força com as formas de conexões que se estabelecem...e falar de identidade espanhola ou ibérica é o auge da estupidez, assim como falar de identidade indígena é a mesma coisa. Eu nunca encontrei identidade na rua ou nos textos, mas a conexão sim. E todos os documentos escritos que nós temos sobre o mundo americano – como você estudou a visão do Novo Mundo – é produto dessas conexões, ou seja, de um capital intelectual, europeu, medieval e renascentista que encontra outra realidade...e a outra realidade não podemos conhecer, mas podemos conhecer o efeito dessa realidade americana sobre os mecanismos de pensamento sobre as referências e os efeitos que são muito mais fortes sobre os ibéricos do que sobre os franceses ou ingleses. Porém, no século XVII, aparece a conexão entre os holandeses e a Ásia portuguesa e, como aparecem os ingleses no jogo, os franceses estabelecem outras formas de conexão com outros elementos. É uma história muito complicada porque isso exige um conhecimento bastante erudito dos mundos indígenas e também da parte europeia. A conexão entre a França de Andrés Thevét e de Jean de Lery no Brasil é uma coisa absolutamente singular que não tem nada a ver com a conexão que tinham os espanhóis, os andaluzes com o Peru, Chile e com outro, são conexões simultâneas cronologicamente, mas são outras formas de conexões. A conexão ibérica é uma conexão muito duradoura até hoje, de certa maneira, a conexão francesa com o Brasil é absolutamente efêmera e episódica, mas é uma conexão também, então, são essas conexões que a história conectada explora, não são as trajetórias e sim o ponto no qual duas trajetórias se encontram a partir – e isso é fundamental para mim – de documentos.
Nessas conexões que você mapeia, onde estão as relações de força?
Serge Gruzinski: Depende do contexto. Nós temos um documento que é o produto de um encontro, de um choque, então, quando se trata de um documento entre missionários jesuítas e grupos indígenas do norte do México ou do Chile, a relação de força pode ser a favor dos índios porque os missionários são a minoria e os grupos indígenas são quem resistem à colonização. Quando a relação é entre franciscanos evangelizando a Mesoamérica, ou seja, o Vale do México – uma zona absolutamente controlada – o poder dos missionários é muito mais forte do que o poder de um jesuíta no Chile ou no Norte. Depende do contexto, porque na mesma época temos situações e até localmente no México na época colonial, quando muitas vezes vemos e observamos que entre o padre, o missionário e a comunidade indígena há força do lado dos caciques... ou seja, o mundo indígena é muito complexo como o mundo europeu, neste contexto os caciques e as lideranças indígenas são fundamentais. No meu último livro (Quand les Indiens parlaient latin), tentei mostrar como grande parte da produção dos missionários – vocabulários, catecismos – provém dessa gente que são os caciques latinizados e cristianizados, ou seja, a gente que circula e navega constantemente entre o mundo indígena e o mundo europeu. Ontem nós visitamos uma aldeia indígena8 perto de Marabá e vimos como a senhora cacica foi capaz de fazer um discurso absolutamente acadêmico e universitário e ao mesmo tempo ela pôde falar da realidade indígena, das crenças indígenas e do que nós chamamos mitos – ali também temos essa conexão que é encarnada por uma pessoa, essa mulher, que tem uma superioridade enorme, porque ela tem uma informação sobre o mundo indígena, ela sabe também o que é a universidade, a academia, sabe como falar com seus compatriotas indígenas e sabe como falar quando recebe professores estrangeiros. Na relação de força, temos aí um caso de núcleo de saberes que dá a ela – e não aos índios, porque ela é quem tem o poder – um domínio do saber muito maior do que eu e os meus colegas do Brasil porque ela domina os dois mundos.
A próxima pergunta seria sobre o uso das palavras. Há uma historiografia que nos recomenda o cuidado vocabular com as palavras, ou seja, cada época tem o seu próprio jogo vocabular que deve ser historicizado. Em uma conferência realizada na UFMG, em junho de 2007, ao falar sobre a mundialização ibérica, você sustentou que se tratou da “primeira mundialização europeia que pretendeu reduzir o planeta às normas, aos valores e aos interesses ibéricos”.9 Considerando esse cuidado com as palavras, a minha pergunta é em que medida devemos ler esse processo, não como uma mundialização, mas como um processo de cristianização do mundo, entendendo que naquela época se trabalhava para alcançar uma cristandade unida partilhando dos mesmos valores?
Serge Gruzinski: Bom, para mim, as palavras não seriam as coisas importantes. As palavras são sempre discutíveis e a forma de processo, contexto e conexão é o que nos interessa descrever. Agora, temos que transmitir conhecimentos e usar palavras. E o problema de utilizar cristianização – e eu concordo totalmente com você – é que para nossos contemporâneos cristianização quer dizer religião e não abrange outras formas como sexualidade, família, política e sabemos que no primeiro mundo moderno da Idade Média, a cristianização é como o islã e abrange toda a vida pessoal coletiva, então, as palavras são sempre complicadas. Para mim, acho que é sempre melhor precisar...bem, é arbitrário usar mundialização e globalização porque é importante saber que tipo de diferença eu faço nos dois processos. A mesma coisa ocorre com a mestiçagem. O problema da universidade e do mundo acadêmico ocidental é esse prazer de jogar com palavras. Eu penso que não, porque, uma coisa é descrever situações de mestiçagem ou de hibridação e, outra, como propus fazer em O pensamento mestiço é tentar ver quais são as dinâmicas dos mecanismos sempre em um contexto particular. Porque a singularidade é muito importante, então, esse contexto singularizado e essas formas de poder, essas particularidades e, depois, para explicar o campo ao falar da mestiçagem, da hibridação e do sincretismo, mas, em regra geral, a universidade perde sempre o seu tempo e energia jogando com as palavras. É melhor e não unicamente dar essa importância de descrever o processo, mas sim seguir as fontes.
As palavras definem práticas e não aparecem sem se historicizar o contexto em que elas surgiram. Vou dar um exemplo: a palavra “mulato” aparece nos documentos da época, mas não tem sido bem-vista nos estudos atuais, o mesmo ocorre com a palavra “índio” que aparece nos documentos da época, mas, atualmente, tem sido substituída nos estudos pela palavra “indígena”. Por isso, minha pergunta sobre qual o cuidado vocabular que teremos de ter para não incorrer em anacronismos ou pelo menos para nos mantermos fiel à época em que estudamos.
Serge Gruzinski: Concordo completamente. O problema é que os estudos decoloniais têm invadido o mundo acadêmico. Esses estudos começaram com uma perspectiva absolutamente positiva que é a crítica ao eurocentrismo, mas ele passou a ter um problema, ou seja, é feito, muitas vezes, por gente que não tem nenhuma formação de historiador, no sentido de historiador que lê textos e que conhece os textos. Nas obras dos especialistas decoloniais há, muitas vezes, uma ignorância absoluta das fontes e uma visão absolutamente confusa. Então temos que distinguir entre uma perspectiva decolonial – absolutamente indispensável para a crítica da tradição europeia, ou seja, os brasileiros não devem fazer a história seguindo padrões ou modelos norte-americanos –, e o decolonial como um modelo norte-americano que se apresenta como outra forma de colonização. Só que o nível de erudição, o nível de formação e de cultura histórica é muito baixo nos estudos decoloniais e isso também é outra preocupação, sobretudo porque há uma tendência a esquecer a complexidade e a ambiguidade do passado e, finalmente, a desenvolver uma crítica do passado, quando nossos esforços críticos devem atingir a ambiguidade contemporânea...pois é absolutamente inútil criticar o mundo do século XVI como um mundo escravista porque Bartolomé de las Casas já fez a crítica muito melhor do que nós e com uma informação que nós não temos. Dessa forma, temos que reservar todos nossos esforços e empreender todas as nossas forças para criticar o mundo atual, isso porque é inútil refazer a história...e, bem, as palavras aparecem nos textos e temos que utilizar essas as palavras. Obviamente explicando, ou seja, contextualizando e para entender...bem, como entender o racismo? Temos de partir das palavras utilizadas, não? E saber também o que as palavras querem dizer, para nós historiadores, palavra escrita e as palavras são um mínimo reflexo da realidade e não podemos considerar que o discurso dos textos e dos arquivos seja a realidade, daí o trabalho do historiador ser muito difícil porque ele tem de reconstituir 75% ou 80% da realidade a partir dos textos. E nós temos um problema, porque os universitários e acadêmicos produzem textos, para nós o texto é absolutamente sagrado, a nossa trajetória e o nosso futuro dependem dos livros publicados e dos textos escritos. Porém, entre a realidade e as palavras escritas há uma diferença gigantesca e aí está a dificuldade, porque temos que imaginar e aceitar que o passado que tentamos reconstituir pode ser absolutamente equivocado, mas é a única maneira, porque muitos grupos do passado não utilizam as palavras escritas e até a escrita alfabética não pode dar conta da realidade do momento.
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