DOSSIÊ: HISTÓRIA CONECTADA: INOVAÇÕES DIGITAIS NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO HISTÓRICO

Apresentação História Conectada: Inovações digitais na produção de conhecimento histórico

Presentation Connected History: Digital Innovations in the Production of Historical Knowledge

MARIA CRISTINA CORREA LEANDRO PEREIRA
Universidade de São Paulo, Brasil
SYLVIE JOYE
Université de Lorraine, France

Apresentação História Conectada: Inovações digitais na produção de conhecimento histórico

Varia Historia, vol. 41, e25032, 2025

Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais

Received: 6 December 2024

Revised document received: 29 January 2025

Accepted: 6 December 2024

O dossiê História Conectada: inovações digitais na produção de conhecimento histórico, apresentado nesta edição da revista Varia Historia, propõe explorar como ferramentas digitais estão transformando as práticas de pensar, produzir e ensinar história.

De fato, esta não é uma novidade dos anos 2020. A relação entre as áreas de História e Métodos Digitais pode ser datada, pelo menos, dos anos 1950, com a parceria entre o jesuíta Roberto Busa e a empresa de informática IBM, que deu origem ao Index Thomisticus, uma base de dados que compilava a concordância de cerca de 11 milhões de palavras dos escritos de Tomás de Aquino (m. 1274)1. Desde então, a informatização de acervos, o desenvolvimento de softwares de análise de texto e imagem, e o acesso a ferramentas de mapeamento digital abriram novas possibilidades para o estudo do passado. Além da análise textual ou documental tradicional, o historiador hoje pode explorar questões complexas envolvendo grandes volumes de dados, padrões espaciais e temporalidades amplas. Obviamente, é importante ressaltar que a integração dos métodos digitais à pesquisa histórica não substitui as abordagens tradicionais, mas deve, sim, oferecer formas inovadoras no trato e estudo dos documentos em análise.

Nesse sentido, diversos debates sobre esta “História Digital” vêm sendo travados a fim de compreender os lugares que tanto a História quanto o digital ocupam nesta interlocução.

Uma das primeiras (e mais influentes) obras a este respeito é o livro Digital History: A Guide to Gathering, Preserving, and Presenting the Past on the Web de Daniel Cohen e Roy Rosenzweig, originalmente publicado em 2005. Trata-se, como o título sublinha, de um guia prático para historiadores e interessados na área que desejam integrar ferramentas digitais em suas pesquisas e ensino. Cohen e Rosenzweig destacam, por exemplo, como os recursos digitais que permitem o acesso direto a materiais históricos digitalizados podem ser usados para engajar estudantes e, consequentemente, para desenvolver habilidades de pesquisa. Embora publicado há duas décadas, o que em termos de desenvolvimento informático significa uma diferença significativa – a título de exemplo, o primeiro smartphone, o IBM Simon que se destacava por ser um telefone fixo com tela sensível ao toque, foi lançado em 1994; e o primeiro iPhone, produto que revolucionou o mercado de comunicação móvel, data de 2007 –, o texto continua relevante ao abordar princípios que permanecem fundamentais na relação entre produção de conhecimento histórico e meios digitais, como a importância da acessibilidade dos documentos históricos.

As transformações tecnológicas, comentadas anteriormente, também impactaram a relação dos profissionais da História com suas metodologias, fontes e com a própria maneira de escrever história. Duas obras se destacam por fazerem da discussão dessas questões o seu propósito. Uma é o livro editado por Jack Dougherty e Kristen Nawrotzki, intitulado Writing History in the Digital Age, de 2013. Trata-se de uma coletânea de ensaios que explora como a produção historiográfica mudou com as ferramentas digitais: colaborações online (por meio de blogs, wikis ou redes sociais voltadas para o público acadêmico), revisão aberta por pares e a integração de mídias interativas nos materiais são exemplos de novas possibilidades para a compreensão dos processos históricos.

Já em Big Data in History, de Patrick Manning, publicado também em 2013, tem-se uma introdução aos desafios e oportunidades do uso de big data – nomenclatura utilizada para se referir a conjuntos de dados de grande volume – na história, argumentando que esta (nova) escala de informações permitiria formas diversas de análise histórica. Como decorrência desse processo, Manning aponta a importância de desenvolver ferramentas que possam processar e interpretar esses dados. Tal postura dialoga com a iniciativa de Tiago Luís Gil, em How to Make a Database in Historical Studies (2021), no qual o autor demonstra e exemplifica como a criação de bases de dados em história requer que nós, historiadores, organizemos e tratemos nossos objetos de estudo de modo a tornar possível codificá-los em linguagens informáticas de maneira satisfatória.

Por fim, mas não menos importante no conjunto de discussões apresentado, encontra-se o tema do Ensino de História. Afinal, as transformações digitais também têm impacto nesta área. Com isso em mente, T. Mills Kelly propôs, em Teaching History in the Digital Age (2013), estratégias concretas para incorporar ferramentas digitais no ensino de História. Mills Kelly enfatiza o aprendizado ativo, encorajando os professores a envolver os alunos em atividades que utilizem tecnologias digitais para criar conhecimento histórico – ainda que suas metodologias, como a criação de notícias falsas como prática de aprendizado, possam ser controversas (Appelbaum, 2012). Um dos aspectos mais inovadores da obra é a discussão sobre “história participativa”, em que os estudantes não apenas consomem história, mas também contribuem para sua produção. Isso pode incluir a criação de páginas na Wikipedia, produção de podcasts históricos ou participação em projetos de crowdsourcing que envolvam transcrição e análise de documentos.

Em Handbook of Digital Public History, editado por Serge Noiret, Mark Tebeau e Gerben Zaagsma em 2022, é discutido como historiadores podem engajar audiências por meio de ferramentas digitais, de exposições virtuais até redes sociais como espaços para compartilhar conhecimento histórico. Para o ensino, a história pública digital oferece um caminho para conectar estudantes com suas comunidades e com audiências maiores. Professores podem propor projetos em que os estudantes desenvolvam exposições digitais ou criem conteúdos educativos para plataformas como Instagram e TikTok. Isso potencialmente motivaria os estudantes, bem como promoveria uma compreensão mais ampla da relevância da história na vida cotidiana.

A conexão entre História e o digital, pois, não apenas transforma a maneira como os historiadores conduzem suas pesquisas (individuais ou coletivas), como também oferece novas ferramentas e abordagens pedagógicas para a prática docente.

Isso pode ser exemplificado por meio dos quatro artigos aqui selecionados, que, com objetos e abordagens bastante diversos, ilustram o potencial das metodologias digitais para ampliar os horizontes da pesquisa histórica, ao mesmo tempo que fomentam debates teórico-metodológicos sobre suas aplicações.

No primeiro artigo, Do manuscrito à edição digital: os percursos de uma investigação interdisciplinar sobre forais medievais portugueses, Filipa Roldão, João Paulo Silvestre e Joana Serafim apresentam o desenvolvimento do EDICOLAB, uma plataforma digital voltada para a edição de manuscritos históricos, especificamente os forais régios portugueses (séc. XII-XV). O trabalho se destaca por seu caráter interdisciplinar e pela reflexão crítica sobre escolhas editoriais, intervenções textuais e limitações práticas, como financiamento e tempo. Ao discutir como a integração entre tecnologia e história pode transformar práticas editoriais e tornar fontes antes restritas amplamente acessíveis, o artigo também aponta os desafios técnicos – como a necessidade de habilidades específicas – e financeiros – como a dependência de recursos externos – associados à adoção dessas inovações.

O segundo artigo, Os métodos digitais e as possibilidades de aproximação da arte medieval a partir da exposição Thomas Becket: Murder and the Making of a Saint, de Flávia Galli Tatsch, investiga o uso de recursos digitais na museologia e na história da arte. A autora analisa como catálogos digitais, vídeos, reconstruções 3D e repositórios universitários foram utilizados na exposição Thomas Becket: Murder and the Making of a Saint para sensibilizar o público em relação às sociedades pré-modernas. O artigo evidencia o papel das tecnologias digitais na democratização e ampliação do acesso ao conhecimento histórico-artístico, mas alerta para a desigualdade no acesso às tecnologias, especialmente em contextos educacionais periféricos, como no Brasil.

No terceiro artigo, História Medieval e Ciência de Dados: a inovação na produção de conhecimento histórico auxiliada pelas tecnologias da informação, Thiago Juarez Ribeiro da Silva e Márcio Augusto Diniz demonstram como a Ciência de Dados pode enriquecer os estudos históricos, apresentando resultados de uma pesquisa sobre a pobreza na Alta Idade Média (séc. VI-IX) que resultou em um banco de dados, um programa de análise em R (PaupeR) e um repositório público das informações levantadas. O artigo não apenas amplia a compreensão sobre o tema da pobreza medieval, mas também oferece ferramentas replicáveis para outras áreas da história. Contudo, levanta o desafio da formação técnica necessária para que historiadores aproveitem plenamente esses recursos.

Por fim, no artigo O passado a um click de distância: fontes históricas e educação científica para uma (re)construção das aprendizagens históricas sobre o Local/Regional na EPT, de Paulo de Oliveira Nascimento, aborda o uso de acervos digitais no contexto educacional amazônico. O papel desses acervos para compensar a escassez de materiais didáticos é enfatizado, além de destacar a promoção de uma educação integrada ao tripé Ensino/Pesquisa/Extensão. O artigo também sublinha a relevância dos acervos digitais para a história regional e local, ressaltando seu potencial pedagógico. Contudo, aponta para o risco de perpetuar desigualdades no acesso à tecnologia, especialmente em regiões mais isoladas.

O dossiê oferece, pois, uma visão abrangente sobre as possibilidades trazidas pelas ferramentas digitais para a pesquisa e ensino de história, exemplificando a diversidade de abordagens possíveis, desde edições textuais até pedagogias regionais. A riqueza dos estudos apresentados destaca avanços significativos no campo, mas também evidencia desafios importantes, como a necessidade de uma formação mais ampla e capacitação técnica dos pesquisadores para operar com as ferramentas vinculadas a essas metodologias inovadoras; a dependência de financiamento para a implementação e manutenção das ferramentas digitais, que suscita questões sobre a sustentabilidade de iniciativas deste tipo a longo prazo; e a própria democratização do acesso, pois, apesar de permitirem o acesso a conteúdos antes inacessíveis, as ferramentas digitais podem, paradoxalmente, acentuar desigualdades, especialmente em locais onde a infraestrutura tecnológica é limitada.

Assim, o dossiê História Conectada: inovações digitais na produção de conhecimento histórico busca contribuir para o debate sobre o uso de inovações digitais nos estudos históricos. Ele apresenta casos concretos e bem-sucedidos, ao mesmo tempo em que estimula reflexões críticas sobre os desafios que ainda precisam ser superados para que essas metodologias sejam acessíveis e impactantes de maneira mais ampla. Trata-se de uma iniciativa que enriquece o campo da história e aponta caminhos promissores para sua renovação metodológica e epistemológica.

REFERÊNCIAS

APPELBAUM, Y. How the Professor Who Fooled Wikipedia Got Caught by Reddit, The Atlantic. 15 maio 2012. Disponível em: https://www. theatlantic.com/technology/archive/2012/05/how-the-professor- who-fooled-wikipedia-got-caught-by-reddit/257134/. Acesso em: 14 jan. 2025.

COHEN, D. J.; ROSENZWEIG, R. Digital History: A Guide to Gathering, Preserving, and Presenting the Past on the Web. Philadelphia (Pa.): University of Pennsylvania Press, 2005.

DOUGHERTY, J.; NAWROTZKI, K. Writing History in the Digital Age. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2013.

GARDINER, E.; MUSTO, R. G. The Digital Humanities: A Primer for Students and Scholars. Cambridge, UK; New York: Cambridge University Press, 2015.

GIL, T. L. How to Make a Database in Historical Studies. Berlim: Springer Nature, 2021.

KELLY, T. M. Teaching History in the Digital Age. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2013.

MANNING, P. Big Data in History. Berlim: Springer, 2013.

NOIRET, S.; TEBEAU, M.; ZAAGSMA, G. Handbook of Digital Public History. Berlim: Walter de Gruyter GmbH & Co KG, 2022.

NYAHN, J. Hidden and Devalued Feminised Labour in the Digital Humanities: On the Index Thomisticus project 1954-67. New York: Routledge, 2023.

Notes

1 Atualmente a base pode ser consultada em: https://www.corpusthomisticum.org/it/index.age. Acesso em: 7 fev. 2025. Há pesquisas que apontam a participação de outros autores, principalmente mulheres, no projeto. Ver: Nyhan, 2023.

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Editor responsável: Ely Bergo de Carvalho
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