Resumo: O artigo discute, numa longa duração histórica e priorizando-se alguns países da América Latina, as relações entre os contextos de elaboração e difusão do racismo, os processos de exclusões e opressão sociorracial, mesmo nos períodos pós-independências de organização dos governos constitucionais, enquanto colonialidade do poder, e os processos democratizantes/desdemocratizantes presentes nessas interconexões. Por meio da abordagem da história global e da perspectiva decolonial, o objetivo principal é refletir sobre a prática da divisão racial da educação e demonstrar como, desde as suas origens, o processo de difusão da escola foi desdemocratizante. Como procedimentos metodológicos, destaca-se a investigação documental em obras de época, e a realização de diálogos conceituais com autores como Quijano (2005) e Pacheco (2017), além da interlocução com historiadores da educação.
Palavras chaves: Subalternidade, opressão, exclusão.
Resumen: El artículo analiza, en un largo período histórico y priorizando algunos países latinoamericanos, las relaciones entre los contextos de elaboración y difusión del racismo, los procesos de exclusión y opresión socio-racial, incluso en períodos de organización de gobiernos constitucionales posteriores a la independencia, como colonialidad del poder, y los procesos democratizadores/desdemocratizadores presentes en estas interconexiones. A través de un enfoque de historia global y una perspectiva decolonial, el objetivo principal es reflexionar sobre la práctica de la división racial en la educación y demostrar cómo, desde sus orígenes, el proceso de difusión escolar fue desdemocratizante. Como procedimientos metodológicos destacan la investigación documental en obras de época y los diálogos conceptuales con autores como Quijano (2005) y Pacheco (2017), además del diálogo con historiadores de la educación.
Palabras clave: Subalternidad, opresión, exclusión.
Summary: The article discusses, in a long historical period and prioritizing some Latin American countries, the relationships between the processes of elaboration and diffusion of racism; the processes of exclusion and socio-racial oppression, even in post-independence periods of organization of constitutional governments, as coloniality of power; and the democratizing/(dis)democratizing processes present in these interconnections. Through a global history approach and a decolonial perspective, the main objective is to reflect on the practice of racial division in education and demonstrate how, since its origins, the process of school diffusion was (dis) democratizing. As methodological procedures, documentary research in period works stands out, and conceptual dialogues with authors such as Quijano (2005) and Pacheco (2017), in addition to dialogue with education historians.
Keywords: Subalternity, oppression, exclusion.
Artículos
Racismo, colonialidade e (des) democracia na história da educação latino-americana
Racism, coloniality and (dis) democracy in the history of latin american education
Received: 11 November 2023
Accepted: 14 March 2024
Na comemoração dos 40 anos de democracia na Argentina, o que celebramos? Antes de tudo, há de se destacar que essa não é uma comemoração isolada, por dois motivos: trata-se de uma nação latino-americana, que, como todas as demais, desde a colonização, foi saqueada ao longo do processo civilizador/colonizador europeu (Veiga, 2022); por sua vez, se a Argentina comemora a democracia, juntos celebramos as lutas históricas pelo compromisso com o estado de direito e pela manutenção das conquistas cidadãs. Levando-se em consideração que a democracia é um processo dinâmico e sempre incompleto, e que não é apenas uma forma de governo, mas um modo de viver em sociedade, proponho, inicialmente, questionar na sua dinâmica, a naturalização histórica de lastros excludentes, com significativas consequências para os dias atuais.
Ou seja, pretende-se problematizar a origem eurocêntrica da democracia, marcada historicamente pela exclusão e opressão de diferentes agrupamentos humanos, com destaque, na modernidade, para o acréscimo da exclusão étnico-racial. Como sabemos, na tradição da história eurocêntrica, a Grécia clássica é o berço da democracia. Não obstante, ao se tomar a democracia grega como referência, reporta-se também, de modo naturalizado, as exclusões presentes na história grega, quando estiveram excluídos das deliberações políticas os escravizados, os pobres, os estrangeiros e as mulheres. Naquele contexto, de 500 a 300 a.C., metade da população da Grécia era de escravos e somente os homens adultos livres eram detentores de cidadania (Tilly, 2013, p. 40)1. É necessário questionar o modo historicamente desigual do acesso à cidadania na história política da democracia, pois, desde sua origem, o modelo de democracia grega foi também o da desdemocracia2. Acresce-se que, além da naturalização da desigualdade fundadora, a maioria dos estudiosos confirma a afirmação de Charles Tilly de que, “(...) os gregos criaram um modelo de cidadania que não tem nenhum precedente conhecido” (Tilly, p. 40). Será mesmo? Não haveria a possibilidade de encontramos outras experiências, não europeias, de organização social do tipo de uma democracia?
Destaca-se que as exclusões de origem se repetiram nos séculos XVII e XVIII, com os atos do Bill of Rights, na Inglaterra, de 1689; após a independência e promulgação da Constituição dos Estados Unidos, de 1787; na Revolução Francesa e edição da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Ou seja, escravizados, indígenas, não proprietários, não alfabetizados e mulheres estiveram de fora da organização das novas nações democráticas. No caso dos Estados Unidos, além das pessoas escravizadas, indígenas e pessoas pretas livres também foram excluídos. Nos séculos XIX e XX, o mesmo se repete na América Latina, após a independência das colônias e os debates constitucionais.
Apesar da abolição da escravidão no século XIX, ocorrida em tempos diferenciados nos diversos países latino-americanos, em alguns países a população afrodescendente foi invisibilizada, em outros, a exclusão do direito de voto, por exemplo, se fez valer pela condição de pessoa não alfabetizada, por sua vez, por um longo tempo, os povos indígenas também foram excluídos da condição de cidadania. Acresce-se que no século XIX e início do XX disseminaram-se políticas eugênicas de branqueamento para a alteração dos traços fenótipos de pessoas não brancas, ainda que a caracterização étnica e racial de uma pessoa seja irreversível. Desse modo, o racismo espalhou-se por todo o mundo, principalmente após a abolição da escravidão, e, inclusive, elegendo, democraticamente, governos racistas.
Devido a essas práticas políticas, historicamente excludentes, partimos da premissa de que não é possível falar de democracia sem discutir a desdemocracia, enquanto processos dialéticos que se complementam e se contradizem, embora com diferenças a cada lugar e tempo histórico. Minha hipótese é de que, em sua origem histórica, a democracia já traz em seu embrião a desdemocracia. Portanto, o termo desdemocracia aqui, não está sendo tomado com o significado de retrocesso, de crise, de disfuncionalidade, etc., pois, não se refere a uma concepção linearizada de história, na perspectiva de uma história única.
Trata-se da abordagem da história global, em que é possível problematizar que no contexto do Bill of Rights, de divulgação da Constituição dos Estados Unidos, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tal como na Grécia clássica, os debates e atos sobre democracia e direitos, se fizeram marcados pela exclusão das mulheres, dos não proprietários e dos não alfabetizados. Entretanto, nesse novo contexto, a situação se agravou, porque trouxe a inovação de ter sido um debate ocorrido concomitante à prática extensiva da racialização do trabalho escravo com a mercantilização de indígenas e de africanos, tanto nas metrópoles, como nas colônias. Esse fato franqueou a naturalização da histórica exclusão política desses grupos sociais, com consequências humanas desastrosas para a organização política mundial.
Destaco que, a abordagem da história global aqui pretendida, não se refere apenas a uma dimensão espacial, mas, principalmente, à necessidade de se problematizar as várias ações globais de naturalização da exclusão política e social de povos indígenas e de pessoas pretas, de modo que a defesa pelos direitos e pela igualdade jurídica das pessoas brancas pudesse se efetivar. Importa lembrar que todo o mundo, a partir do século XVI, de uma maneira ou de outra, participou do tráfico de escravizados africanos e da escravização de povos nativos. Em contrapartida, desde então, também identificamos uma ampla movimentação de lutas e de resistências desses povos aos processos excludentes desdemocratizantes.
Tais processos excludentes também podem ser detectados no contexto dos debates de democratização da escola e do direito à educação, pois, estiveram em total sintonia com os processos democratizantes/ desdemocratizantes na organização das sociedades. Ou seja, na mesma perspectiva indicada anteriormente, quer-se destacar aqui que o debate sobre a institucionalização da escola pública, desde sua origem, se fez com exclusões. No caso da Europa, o recorte foi mais comum de acordo com as classes sociais, havendo diferenças no acesso e permanência escolar das crianças trabalhadoras; mas, em toda a América, acresce-se à condição de classe, a exclusão étnico-racial. Nesse aspecto, é importante destacar que nas Américas encontramos diferentes situações, desde a negação/ocultação da existência de populações afrodescendentes e de indígenas, por exemplo, na Argentina e Chile, à expressa segregação racial, até recentemente, no caso dos Estados Unidos3.
Portanto, embora possa parecer uma especificidade peculiar das Américas, o racismo é uma produção global, alimentado desde o início pelo processo civilizador/colonizador na modernidade, não apenas porque envolveu diferentes localidades, mas devido à divisão racial do trabalho (Quijano, 2005). Acresce-se que no período pós-colonial, no âmbito dos debates sobre cidadania e direitos, foram reforçadas, senão ampliadas, as práticas racistas excludentes, o que possibilitou a vigência da colonialidade do poder, do saber e do ser (Quijano, 2005).
Especificamente no caso de América Latina pretende-se articular, nesse texto, a geopolítica de produção do lugar subalternizado da América Latina com a história da educação e o processo desdemocratizante do acesso à escola, marcado pela divisão racial da educação4. Tal processo foi semelhante às políticas educacionais segregacionistas praticadas nos Estados Unidos, contudo, diferentemente da América Latina, a história desse país foi marcada pelo enaltecimento de uma suposta superioridade da raça branca dos colonizadores originais, os anglo-saxões, e, também, por “não se misturarem” aos indígenas e à população africana escravizada. Destaca-se que, os Estados Unidos se tornou o novo modelo de democracia, a despeito do genocídio indígena e da segregação racial, o que não é propriamente um paradoxo5. Como já afirmado, tanto na Europa como nos Estados Unidos, a prática da exclusão de direitos foi recorrente nas discussões constitucionais. Mas esse debate adquire maior gravidade no caso da exclusão étnico-racial por ter consolidado o ódio e o preconceito racial de modo inusitado historicamente, ao se referir aos traços fenotípicos das pessoas.
Ressalta-se que, embora o largo uso do trabalho escravizado, de indígenas e africanos, tenha sido praticado em toda a América, por no mínimo 4 séculos, o processo civilizador/colonizador de espanhóis e portugueses, aconteceu num tempo/espaço radicalmente distinto. Isso se deu, principalmente, devido à exploração do ouro e prata e às práticas agrícolas ocorridas logo nos anos iniciais da ocupação, diferentemente da colonização inglesa, alterando significativamente a dinâmica colonial. Acresce-se que a abundância da exploração mineral e agrícola nas colônias espanholas e portuguesas, logo no início do século XVI, foi essencial para o empoderamento das cortes europeias, e não apenas dos espanhóis e portugueses, mas também dos ingleses, dinamarqueses, holandeses e franceses, bem como da ascensão da burguesia.
Contudo, devido as dinâmicas coloniais assimétricas e diferenciadas daquelas dos espanhóis e portugueses, ao longo do processo civilizador/ colonizador, e principalmente após a independência, os Estados Unidos se impôs como superior. Propagava-se naquele contexto que tal superioridade era devida a suposta genialidade inata da “população americana”, originária da raça anglo-saxônica, ao passo que a América do Sul se tornou América Latina, racialmente subalterna.
É certo que, na geopolítica da inferioridade da América Latina, em escolas e universidades dos países latino-americanos, estuda-se pouco a América Latina, tomando em conjunto o Brasil e os países de língua espanhola. Mais especificamente, nos cursos de Pedagogia, em geral, não se tem no currículo a disciplina História da Educação Latino-americana. Por sua vez, no campo da história da educação, os temas de pesquisa e os diálogos teóricos e conceituais, são, principalmente, de inspiração eurocêntrica. Somente recentemente, em alguns eventos da área, apareceram temas como história da educação e relações étnico-raciais, história da educação e racismo, história da educação decolonial, etc.6
Pouco se problematiza a história da educação latino-americana na perspectiva da geopolítica, mesmo nas edições do Congresso Ibero Americano de História da Educação. Raras publicações trazem como título História da Educação latino-americana e, como nos alerta os professores Nicolás Arata e Myriam Southwell (2014), na obra Ideas en la educación latinoamericana. Un balance historiográfico, o risco de se organizar coletâneas com somatório de relatos nacionais é grande.
Corroboro com esses autores que não basta estudar a história da educação deste ou daquele país latino-americano, mas também não é suficiente compará-los. Antes de tudo, defendo a tese de que é necessário problematizar os acontecimentos globais que produziram a América Latina e sua população como inferiores, ou melhor, discutir a geopolítica que lhe conferiu historicamente um lugar inferior na ordem mundial, ou ainda como apêndice da história do dito ocidente. Além do mais, faz-se necessário investigar as consequências do eurocentrismo e do americanismo estadunidense pedagógico no âmbito da formação geopolítica da América latina e da história da educação de sua população.
Tais problemáticas me estimularam a pensar a divisão racial da educação associada à desdemocratização do direito à escola. Minha hipótese inicial é a de que a categoria desigualdade de classe social é insuficiente para explicar o lugar inferiorizado da América Latina e de seus habitantes na configuração mundial. Para melhor desenvolver tais questões organizei o texto em três tópicos: história única / história global; organização das nações e (des) democratização; (des) democratização do direito à escola e divisão racial da educação.
Nos últimos anos, diferentes debates teóricos e conceituais vêm sendo feitos para romper com a concepção da história única eurocêntrica, tais como as abordagens das histórias interconectadas, cruzadas, transnacionais, caracterizadas, principalmente, por uma perspectiva relacional7. Para os estudos da América Latina acho interessante pensar também na perspectiva da história global -não no sentido das escalas local, regional e global. Mas, pensar a história global na perspectiva decolonial, ou seja, problematizar os acontecimentos de origem global que alteraram e descaracterizaram populações locais, ou melhor, nas palavras de Perla Pacheco (2017) investigar “(...) sujetos y objetos locales que son transformados por processos globales” (Pacheco, 2017, p. 154).
Antes de tudo, temos que a denominação de América Latina, cunhada no século XIX, não é regional ou geográfica, como, por exemplo, América do Sul. Esse é um caso exemplar do movimento político-intelectual racista desencadeado no século XIX, pois se fez em contraponto a identificação da América do Norte como América anglo-saxônica, povoada predominantemente por pessoas brancas, supostamente superiores. Nessa geopolítica, a diferença na identificação das Américas se fez pautada pelo argumento da hierarquia racial, no propósito de fortalecer o eurocentrismo e a ascensão de poder do americanismo estadunidense na América Latina. A existência de uma América Latina em contraposição a uma América anglo saxônica, consolidou os estereótipos de sua população, pois a “raça latina” foi associada com malandragem, ignorância, falta de cultura, etc. ao passo que a “raça anglo saxônica” foi entendida como civilizada, empreendedora e inteligente (Veiga, 2022).
Essa história de classificação e hierarquização das pessoas pela raça/cor da pele teve longa trajetória e se inicia com a chegada dos europeus na América, quando os processos civilizadores/colonizadores desencadeados no século XVI em diante alterou profundamente o equilíbrio de poder mundial ao instituir a economia-mundo capitalista, e a mundialização do comércio de pessoas para a escravização de seu trabalho. Nesse contexto foram forjadas as identidades fictícias de índio, negro e mestiço, anulando radicalmente a extraordinária diversidade dos povos originários, agora “índios” e, também dos vários povos africanos aqui transplantados, os “negros” (Quijano, 2005). A ideia de raça, diferentemente de casta ou linhagem, passou a distinguir as pessoas pela cor da pele e pelos traços fenotípicos, estabelecendo uma nova relação de poder como estruturante da dominação colonial. Nessa nova perspectiva de dominação, aqueles nomeados como pertencentes às raças negra, mestiça e indígena foram identificados como um grupo humano inferior em relação aos colonizadores, categorizados como brancos (“os da raça caucasiana”), estabelecendo uma balança de poder extremamente desequilibrada.
No processo colonizador/civilizador, a prática de associação entre a “raça” e a posição dos sujeitos na nova ordem econômica mundial instituiu uma sistemática divisão racial do trabalho (Quijano, 2005). Fundamental destacar que a dependência da mão de obra escravizada dos africanos e/ou dos indígenas, variou de acordo com as regiões e os períodos históricos, considerando fatores como o tipo de integração das economias locais com a exportação internacional8. De qualquer modo, ao se estabelecer como fonte legitimadora das relações de dominação e poder, a categoria raça deu origem ao racismo, pois implicou também na inferiorização e desqualificação, não somente da estética, da aparência, mas também dos costumes, das línguas, dos valores e dos saberes dos povos dominados, pela imposição de modelos sociais, educacionais, culturais e estéticos europeus -principais fontes do eurocentrismo e da perspectiva da história única.
Diferentes autores defenderam a subalternização de pessoas pela origem étnico-racial ao tomaram a categoria raça como origem natural das desigualdades humanas, tal qual desenvolvido pelas teorias de eugenia a partir de meados do século XIX. Devido a isso, pelas diferenças étnico-raciais se elaboraram outras qualificações sociais, na intenção de reforçar uma suposta inferioridade dos grupos submetidos, tidos como ignorantes, inertes, degenerados, viciosos etc., características naturalizadas porque coladas à cor da pele. Tal construção histórica, de origem geopolítica eurocêntrica, universalizou a experiência europeia de população branca como modelo de humanidade superior.
Numa pesquisa recente (Veiga, 2022) em meio a tantas representações estereotipadas das populações não brancas, me deparei com a propaganda de uma gráfica chilena, o anúncio assim perguntava (Imagen 1):

El negocio del gobierno es mejorar la calidad del ciudadanos. El negocio del industrial es mejorar la calidad y el aspecto de su producto. Si el industrial cree que su producto es bueno, debe etiquetarlo debidamente. Nosotros producimos buenas etiquetas. Es nuestro negocio. (SUCESOS, n. 977, 1921)
As imagens e o texto que compõem o folheto da propaganda nos desconcertam profundamente. A disposição das imagens sugere uma comparação entre pessoas providas de humanidades distintas, e a pergunta, “Qual desses cidadãos vocês preferem?”, confirma. Qual é a história dessa pergunta?
Trata-se de uma história global, das viagens transatlânticas, que provocou profundas alterações nas dinâmicas políticas, sociais e econômicas da organização dos povos. Essa história global conta as vidas de pessoas que tiveram suas terras invadidas e foram escravizadas, subjugadas e oprimidas, mas também fala da formação de ricas cortes e impérios, constituídos numa dinâmica global que transformou o trabalho e a terra em mercadorias (Polany, 2000). Nesse novo sistema econômico, as pessoas e suas identidades foram submetidas à lógica da economia de mercado.
A organização das sociedades coloniais pela divisão racial do trabalho e pela escravização de pessoas introduziu novos processos globais de classificação social, em que trabalho, gênero, idade e raça se apresentaram de modo articulado, seja na comercialização dos escravizados, seja na definição do tipo de trabalho. Embora a tendência seja naturalizar essa conjunção de qualidades, elas foram historicamente constituídas. Se gênero, idade e trabalho eram relações que já se faziam articuladas há mais tempo, a introdução da cor de pele nas relações de trabalho distinguiu radicalmente o novo tempo histórico, onde a América definitivamente não se configurou como simples apêndice da história da Europa. Como afirmou em 1879 o político cubano José Antonio Saco,
Sin negros, que ¿hubieran hecho los europeos conquistadores? ¿Habrian echado todos los trabajos sobre la raza indígena? Muy probable es que esta hubiese toda perecido, como pereció en las islas, y menguó mucho en el centinente, aun auxiliada de los negros. ¿Hubieran dejado vivir á los indios por su cuenta y en completa independencia? Suponiendo que así fuese, ¿habríanse entónces los castellanos entregado al trabajo para labrar su fortuna con el sudor de su frente? (Saco, 1879, p. 51)
No âmbito da abordagem de uma história global, desde então, populações de todo o mundo passaram também a ser identificadas pelas marcas raciais, centradas nos traços fenotípicos, fenômeno cujo ápice se deu no século XIX, quando se consolidaram as representações do branco superior e das “pessoas de cor” inferiores. Contudo, essa inferiorização só foi possível porque vinculada ao estabelecimento de relações de trabalho históricas bastante específicas: servidão indígena e escravização de indígenas e africanos. Observa-se que acontecimentos históricos de nível global fizeram com que a cor da pele de uma pessoa deixasse de ser um mero atributo biológico, passando a ter uma dimensão política e cultural, o que possibilitou que o racismo se tornasse um novo padrão de poder mundial.
Simón Bolívar (1783-1830), em discurso no Congresso de Angostura de 1819, no ato de instalação do segundo congresso constituinte da Venezuela, afirmava:
Seja-me permitido chamar a atenção do Congresso para uma matéria que pode ser de uma importância vital. Tenhamos presente que nosso povo não é o europeu, nem o americano do norte; que antes é um composto da África e América do que uma emancipação da Europa; pois que até a Espanha mesma, deixa de ser europeia pelo seu sangue africano, por suas instituições e por seu caráter. É impossível determinar com propriedade a que família humana pertencemos. A maior parte do indígena foi aniquilada, o europeu mesclou-se com o americano e com o africano, e este mesclou-se com o índio e com o europeu. Nascidos todos no seio de uma mesma mãe, nossos pais, diferentes em origem e em sangue são estrangeiros, e todos diferem visivelmente na epiderme, esta dessemelhança traz uma consequência da maior transcendência. (ApudBellotto; Corrêa, 1979, p.164, grifos meus)
Bolívar comungava com o pensamento da época ao antever que as diferenças visíveis na epiderme teriam como consequência alcances para além da razão humana, pois, como sabemos, os sentimentos de ódio e evitação étnico-racial se espalharam por várias partes do planeta. Desse modo, o acúmulo histórico de subalternização das populações afrodescendentes e indígenas se tornou o centro dos debates independentistas do século XIX, quando, mais do que nunca, a comparação com a Europa foi recorrente, o que influenciou o entendimento de um tempo histórico latino-americano em permanente descompasso.
Na verdade, a ordem surgida com a ruptura das estruturas coloniais não se mostrou totalmente nova, pois deu continuidade aos antagonismos raciais numa rotina de violência, favorecida pela expansão do armamento, militarização e formação de milícias locais. Nas palavras do historiador peruano Alberto Galindo (1997), o racismo foi além do menosprezo e marginalização e se estabeleceu como uma ideologia justificadora da dominação social. É certo que, o processo de organização dos governos constitucionais na América Latina, ao longo do século XIX, acirrou as desigualdades étnico-raciais, uma vez que oficializou a invisibilização dos povos originários e afrodescendentes, cujos direitos foram negados das mais diferentes formas. No geral, os indígenas foram tutelados, entendidos como pessoas de incapacidade moral, já os negros libertos, tiveram a cidadania restringida, seja pela não contabilização nos censos (invisibilização), seja pelas dificuldades de acesso à propriedade e à alfabetização. Estava em curso o processo de democratização/desdemocratização latino-americano.
Após as independências, a emancipação indígena e a abolição da escravidão negra, políticos atordoados se perguntavam sobre qual seria o lugar dos povos indígenas e da população afrodescendente livre nas novas nações. Fundamental destacar que a independência política e os debates constituintes ocorreram, na maioria das vezes, bem antes da abolição total da escravidão (Veiga, 2022).
Por sua vez, a dessemelhança na epiderme, como anunciava Bolívar, foi um dos principais motivos para se colocar em dúvida as possibilidades de existência de governos democráticos na América latina. As diferenças raciais entre as pessoas se apresentava como contraditória aos “princípios democráticos”. Em 1823, o peruano Bernardo Monteagudo, ministro da guerra, assim afirmava,
La diversidad de condiciones y multitud de castas, la fuerte aversión que se profesan una á otras, el carácter diametralmente opuesto de cada una de ellas, en fin, la diferencia en las idéas, en los usos, en los costumbres, en las necessidades, y en los médios de satisfacerlas; presentan un cuadro de antipatias é intereses encontrados, que amenazan la existência social [...] Es necesario concluir de todo, que las relaciones que existen entre amos y esclavos, entre razas que se detestan, y entre hombres que forman tantas subdivisiones sociales, cuantas modificaciones hay en su color, son enteramente incompatibles con las idéas democráticas. (Monteagudo, 1823, pp. 18-19, grifos meus)
Ressalta-se que o problema do que fazer com os indígenas e a população preta liberta, não se colocou da mesma maneira para todas as nações, levando-se em consideração, principalmente, o contingente populacional desses grupos em relação a população denominada como branca, em cada nação. Mas, de qualquer modo, a questão estava posta, o peruano Santiago Távara, em 1856, se perguntava: “(...) y estos índios á quienes llamamos ciudadanos¿De que servirán á la República? Lejos de serle útiles le son perjudiciales” (Távara, 1854, p. 20), o mesmo entendimento pode ser aplicado a população afrodescendente livre.
A questão central aqui é que, se durante muito tempo a condição de pessoa escravizada de cor parda ou preta, definia claramente o seu lugar social, a nova condição jurídica de pessoa liberta implicou na necessidade de invenção de mecanismos mais sofisticados de exclusão, pois a cor da pele denunciava a sua origem. Como sabemos, desde o período colonial, em toda a América Latina, acumularam-se restrições e desvantagens de povos indígenas e afrodescendentes em relação à população branca, tais como: desintegração territorial; proibição de uso de determinados vestuários, de danças e festas, da prática de determinadas profissões, do acesso às instituições educacionais, sociais e culturais dos brancos; proibição da prática de cultos religiosos não católicos; dentre várias outras restrições -motivos de muitas tensões, mas também de lutas e resistências (Veiga, 2022).
Como justificar a manutenção dessas restrições nos novos governos constitucionais do período pós-independência? A ciência eugênica, desenvolvida por europeus e estadunidenses, se apresentou como justificativa plausível. No século XIX e início do século XX, as elites se dedicaram aos estudos racialistas, por meio da eugenia buscou-se não somente a justificativa para a restrição de direitos, mas também a explicação para a condição social de pobreza, indigência e violência na qual se encontravam as populações negras e indígenas naquele contexto. Se, ao longo do processo civilizador/ colonizador, a falta da cor branca foi se tornando característica poderosa de dominação, no século XIX, a ciência estabeleceu a naturalização da hierarquia racial, fundamentou as campanhas de branqueamento e as políticas de imigração europeia e consolidou o racismo.
Devido a esses fatores, é possível identificar duas direções básicas nas práticas de exclusão dos povos originários e dos povos africanos: a via da barbarização dos seus costumes -predominante no período colonial; e a via da sua criminalização- mais hegemônica no contexto após as independências, com a abolição do trabalho escravo, supressão do pagamento do tributo indígena e promulgação das cartas constitucionais, promovedoras de igualdade jurídica, mas, que, em sua grande parte não atingia nem a população indígena e nem a afrodescendente. Ou seja, esses povos, ainda que emancipados, não foram reconhecidos como iguais à população branca. A posição deles se fez profundamente diferente nas novas sociedades de governos constitucionais, que, devido a declaração da igualdade jurídica, tiveram que buscar novos modos de lidar com as diferenças raciais.
Por exemplo, no caso do México, da Guatemala e de populações do maciço andino, em geral, foi prudente manter as comunidades indígenas em seus territórios devido à produção agrícola, mas, ao mesmo tempo foram mantidas as ameaças de expropriação, privando-as de documentação escrita que comprovasse o seu direito à propriedade das terras. Em outros países, como Argentina, Chile, Colômbia, além do genocídio indígena, a estratégia foi o seu ocultamento, com deslocamentos dos povos indígenas e afrodescendentes para regiões distantes, numa espécie de confinamento (Veiga, 2022).
No caso do Brasil, habitado em sua maior parte por afrodescendentes, com significativa mestiçagem, além da longa duração do sistema escravista, o “problema da raça” foi debatido reiteradamente, pois, não havia como esconder a grande massa da população negra e mestiça. Os indígenas sobreviventes do genocídio colonial, permaneceram sendo tutelados pela Igreja, e continuaram sendo forçados a trabalhar em fazendas e na extração da borracha, madeira e minério. Quanto à população negra, durante o período imperial (1822-1889), não havia restrições explícitas para participação política devido a cor, mas era taxativo quanto a condição jurídica (somente pessoas livres) e posse de bens, destacando-se que nessa época, as pessoas não alfabetizadas não eram impedidas de votar9. Após a abolição em 1888 e a Proclamação da República em 1889, a constituição republicana de 1891 determinou a condição de pessoa alfabetizada para qualificação do eleitor. No novo contexto republicano observa-se a adoção imediata de medidas criminalizadoras para a população preta, como foi o caso do Código Penal de 1890, instituído pelo decreto 847. Nele foi determinado, entre outras, o recolhimento de crianças “vadias”, de 9 a 14 anos, em instituições industriais; a prisão de pessoas por prática de espiritismo, magia, cartomancia, uso de talismãs; a prisão de pessoas por alcoolismo, mendicância e prática de capoeira. A partir de fins do século XIX, o avanço da urbanização no Brasil e as barreiras de toda a ordem para o acesso à educação, à propriedade e ao trabalho digno, fez com que a população negra ficasse cada vez mais excluída e vulnerável a criminalização.
Já no processo de organização das ex-colônias espanholas como nações independentes, além do movimento anti-indígena, associado a entrega deles aos religiosos e também ao trabalho forçado, foi comum o ocultamento da população afrodescendente, seja por sua ausência nos censos, seja por ficarem reclusas em determinadas zonas. Vejamos alguns poucos exemplos. Na Colômbia, as elites se autodenominaram como “mestiços branqueados”; sendo que, na costa do Pacifico, em Chocó, vivia uma população predominantemente afrodescendente. Desde o início do século XX apregoaram a ideologia da democracia racial, não obstante, recentemente, em 2017, o diplomata Sabas Pretelt de la Vega, no intuito de dissuadir um jornalista de visitar Chocó, dizia, ¿Para qué vas a Chocó, si allá solo hay negros y mosquitos? De acordo com Jaime Alvear, do Las2Orellas (maio, 31, 2017), esta foi apenas uma, de outras tantas falas depreciativas direcionadas às pessoas afro-colombianas, e cita como exemplo, a afirmação, em 1928, do conservador Laureano Gómez: El predominio de los negros en una nación la condena al desorden y la inestabilidad política y económica. Em meados dos anos de 1950, o General Gustavo Rojas Pinilla, dizia, (...) el pueblo chocoano es una especie de minusválido e incompetente que requeriría ser desmembrado y entregado a los departamentos vecinos (https://www.las2orillas.co/vas-choco-alla-solo-negros-mosquitos-racismo-sabas-pretelt-otros-politicos-ese-departamento/)
Na Bolívia, o último censo que colheu dados da população afro-boliviana foi o de 1900: 3.945 pessoas, reaparecendo novamente, somente em 2012, com a opção de auto pertencimento étnico, totalizando 10% da população (Veiga, 2022). Destaca-se que a população afro-boliviana se concentrava principalmente na região de Los Yungas onde é falado a língua afro-yungueña, uma mescla de castelhano, quéchua, aimará e um pouco de português. Já no Chile, os afrodescendentes habitavam a região de Cuyo, tido como um local de festas, farras, alcoolismo e jogos de azar.
Na Argentina, além do genocídio indígena, desde o início do século XIX as elites afirmavam categoricamente: Negros, Aqui no hay!, como parte do processo de elaboração do mito da homogeneidade racial argentina e da ausência de racismo (Orsi, 2022). O autor apresenta dados da população afro-argentina, bem como as justificativas elaboradas sobre o seu “desparecimento”: epidemias, guerras, miscigenação entre índio, negros e europeus, endossado pelo silenciamento das estatísticas e da história (Orsi, 2022). Orsi demonstra que na Argentina, os negros tornaram-se brancos: morenos ou trigueños podem ser identificados como brancos de pele escura, por sua vez, uma pessoa de pele clara, mas pobre, pode ser reconhecida como um negro ou negro villero (favelado).
No período pós-independência e no âmbito do processo barbarizador/criminalizador da América Latina, no caso do tratamento dos povos originários podemos identificar a trilogia ideológica das políticas indigenistas: política de aldeamento ou criação de reduções com segregação e confinamento geográfico; política de suposta proteção, pela caracterização de incapacidade moral; e política de instrução, a cargo de religiosos, com a supressão dos saberes originários.
Em relação aos afrodescendentes, a prática de seu ocultamento/invisibilização, ou mesmo da forte criminalização, como no caso do Brasil, se fez acompanhada de ampla estigmatização desse grupo social denunciadores de sua incapacidade para a vida democrática. Os estigmas promovedores do racismo e da subalternização da cor preta, se fez de modos variados, destaco especialmente aqui a ridicularização da aparência; da fala (solecismo) e das manifestações culturais. No caso da ridicularização da aparência, ressalto a representação de pessoas negras com traços exagerados e deformados, destacando-se o formato da boca e a exuberância no caso dos corpos femininos. Quanto ao solecismo, os “vícios” e “barbarismos” da língua eram motivos de piadas na imprensa. No caso das manifestações culturais, destaco o esforço em eliminar o africanismo das danças e festas. No Brasil, o samba foi criminalizado e marginalizado, e os sambistas poderiam ser interceptados pela polícia e terem seus instrumentos apreendidos, especialmente o pandeiro (Neto, 2017). Destaca-se ainda o branqueamento do carnaval, pela introdução de novos festejos, tais como, desfiles em carros alegóricos, bailes em clubes fechados, etc., onde os pretos eram excluídos.
Os aspectos aqui brevemente elencados servem de motivo para discutir os processos democratizantes/desdemocratizantes das sociedades latino-americanas, desde o período pós-independência, com a elaboração das constituições. Não há dúvida de que a tradição excludente eurocêntrica foi o alicerce desses processos, sendo que, no caso da exclusão étnico-racial, ela se fez acompanhada de um rol de depreciações de comportamento, com vistas a justificar a exclusão dos direitos civis e políticos.
É certo que, ao longo do século XIX, todas as nações organizadas com base constitucional se estabeleceram com exclusões dos direitos civis e políticos de amplos grupos: mulheres, pessoas escravizadas, indígenas, não proprietários, não alfabetizados. Por sua vez, o neocolonialismo dos séculos XIX e XX, praticado pelos países europeus e Estados Unidos, que subjugou diferentes grupos populacionais na África e Ásia, não perturbou a imagem de democracia desses países. Como essa referência pode ter sido mantida, e, até se fortalecido, se levarmos em consideração as profundas mudanças e conquistas políticas e sociais dos últimos séculos?
Essa permanência confirma que democracia, democratização e desdemocratização são acontecimentos interdependentes, e sempre em movimento. Como exemplo temos o fato de que foi necessária a luta de mulheres e afrodescendentes para adquirir o direito de votar, ainda que permaneça desigual a ocupação de lugares políticos e a ascensão profissional e salarial. Por outro lado, as desigualdades categóricas (raça, gênero, classe, geração, alfabetismo, religião, etc.) são transferidas para os processos políticos (misoginia, homofobia, discriminação), o que promove disparidades nos recursos de poder e gatilho para autoritarismos.
Levando-se em consideração que, nos tempos contemporâneos, as pessoas não alfabetizadas foram impedidas de participação política; que, a oferta escolar para os diferentes grupos sociais foi muito desigual, poderíamos indagar se a institucionalização da escola pública, desde sua origem, foi de caraterística desdemocratizante.
Qual deveria ser o melhor tipo de educação a ser ministrado às diferentes raças, considerando-se as suas diferenças primordiais? [...] Não temos a menor dúvida de que as atividades humanas vinculadas às raças de cor seriam dirigidas com muito maior sensatez se, em nosso contato com elas, tivéssemos plena consciência das diferenças reais que existem entre elas e nós, e tratássemos de fomentar as disposições que mais se sobressaem nelas, em lugar de tratá-las em pé de igualdade. (AGASSIZ apudGOULD, 1991, p.35, grifos meus)
Estaria o zoólogo suíço Louis Agassiz (1807-1873), no século XIX, propondo uma divisão racial da educação? A afirmação do autor traduzia, naquele contexto, uma questão já debatida desde o final do século XVIII: a necessidade de instrução para todos, mas combinada com uma oferta escolar desigual. Sendo assim, seguindo o autor, quais seriam, então, as “disposições” das crianças afrodescendentes e indígenas que mais se sobressaíam e poderiam, porventura, ser o alvo de sua educação?
A oferta escolar desigual esteve na origem dos debates europeus relativos à implantação da escola pública, desde o século XVIII. Os governos absolutistas já previam as escolas diferenciadas para as crianças dos súditos pobres. Já nos governos constitucionais, quando se fixou a condição de cidadão e a escola pública como direito, esse procedimento diferenciador foi ainda mais reforçado, por meio da proposição de escolas primárias com currículos e tempo de duração escolar diferenciado, de modo a atender as famílias pobres que necessitavam do trabalho de suas crianças (Veiga, 2019).
Por exemplo, nos debates da constituição francesa de 1791, Condorcet se perguntava, “(...) em sendo as condições de vida dos homens muito desiguais, como definir o que é necessário para todos?” Assim ele admitiu que, “É impossível submeter, a uma educação rigorosamente igual, homens cuja destinação é tão diferente” (Condorcet, 2008, p. 43). A naturalização da oferta escolar desigual na Europa para crianças filhas de cidadãos pobres acabou por se difundir em outras nações. O principal e fundamental diferencial no praticado nas suas ex-colônias, é que tal procedimento se fez associado também à origem racial das crianças, às cores de suas peles. Em minha pesquisa (Veiga, 2022) foi possível comprovar a divisão racial da educação implícita no processo desigual de implantação de escolas, presente em todo o continente americano.
Destaco que a principal diferença entre Europa e América, no processo de imposição da escola pública universal, esteve no fato de que os reformadores americanos tiveram que se haver não somente com as diferenças de classe, como os europeus, mas também de “raça”, e inclusive, tornando a desigualdade escolar um mecanismo poderoso de subalternização das pessoas não brancas, seja nos Estados Unidos, seja na América Latina. Diferentemente da Europa, a questão que se apresentava não era apenas como integrar ao mercado capitalista as populações brancas pobres dos campos e das cidades, mas, como fazer as populações negras, indígenas e mestiças se integrarem na nova ordem da sociedade capitalista?
Isso posto, podemos indagar sobre a pertinência de se pensar acerca da divisão racial da educação, como característica da história da educação na América, constituída no cruzamento entre divisão racial do trabalho, pobreza e universalização da escola. Em crítica à história da educação eurocêntrica, entendo que os problemas da educação na América extrapolam a dicotomia escola pública versus escola privada, ou os conflitos entre crianças de famílias pobres e crianças de famílias abastadas. Várias fontes indicam para essa confirmação. Nas Américas, a regulamentação da escola primária para todas as crianças deu visibilidade, não somente às diferenças de classes social, mas também às diferenças das cores das crianças.
Foi essa diversidade de clientela que organizou a oferta desigual: escolas públicas, escolas privadas, escolas urbanas, escolas primárias rurais (sempre ofertadas com o tempo e conteúdo escolar reduzidos), instituições religiosas/educativas para crianças indígenas, instituições especiais para as crianças pobres e abandonadas. De acordo com vasta legislação educacional pesquisada, a desigualdade pode ser identificada na estruturação em níveis de ensino e currículos diferentes, cujas justificativas poderiam ser o local de instalação da escola, o número de habitantes e/ou o tipo de criança a ser atendida. Além da legislação, na afirmação dos políticos e intelectuais da época, publicadas em periódicos, teses e livros, era generalizado a concordância com a dúvida de Condorcet sobre a institucionalização da escola universal.
Ao longo do processo civilizador/colonizador, é evidente a construção histórica de uma divisão racial da infância. Essa constatação ficou mais visível após as independências e difusão dos discursos relativos a necessidade de escolarizar as populações, quando não foi possível escapar daquelas indagações já feitas sobre os adultos: qual o lugar das crianças indígenas nas novas nações e o que fazer com as crianças afrodescendentes livres? Destaco obras como a do argentino Domingo Sarmiento (1811-1888). No livro clássico, de 1849, Educación popular, ele destaca que, nos países colonizados, exceto nos Estados Unidos, “cuja população não se miscigenou”, a necessidade da instrução era ainda mais severa, pois se corria o risco de perpetuar as culturas dos selvagens. Na tradição de ocultamento da população afrodescendente e indígena da Argentina, ele se pergunta:
¿Qué porvenir aguarda a México, a Perú, Bolivia y otros estados sudamericanos que tienen aún vivas en sus entrañas, como no digerido alimento, las razas salvajes o bárbaras indígenas que absorbió la colonización y que conservan obstinadamente sus tradiciones de los bosques, su odio a la civilización, sus idiomas primitivos y sus hábitos de indolência y de repugnancia desdeñosa contra el vestido, el aseo, las comodidades y los usos de la vida civilizada? ¿Cuántos años, si no siglos, para levantar aquellos espíritus degradados a la altura de hombres cultos y dotados del sentimento de su propia dignidad? (Sarmiento, 2011, p. 50)
Destaco a iniciativa do governo chileno, que, em parceria com a Universidade do Chile, lançou um concurso em 1853 (adiado para 1855) aberto para chilenos e estrangeiros, no objetivo de estabelecer critérios para organização e financiamento da escola pública primária naquele país. Venceu o concurso Miguel Amunátegui, que teve sua monografia editada em 1856 “De la instrucción primaria en Chile: lo que es, lo que debería ser”, nela a perspectiva racista é clara: Los hijos de los blancos son blancos; Los hijos de los negros son negros; Los de los instruidos, instruídos; Los de los ignorantes, ignorantes (Amunátegui, 1856, p. 391), sendo que, em várias outras partes do livro, o racismo se repete.
Também Sarmiento concorreu ao prêmio, com a monografia “Memoria sobre a educação comum”, onde argumenta que o problema da educação no Chile era o seu povo mestiçado. Ainda assim afirma que, o tempo das “lutas de raças” era coisa do passado, pois a América Latina estava ingressando na era da “luta de indústrias” -saíam os povos afrodescendentes e indígenas e se iniciava uma nova era, em que todos deveriam ser tomados como operários do capitalismo. Em sua monografia sugeria, por exemplo, que as senhoras abastadas do Chile fundassem escolas para o treinamento de serviçais e empregas domésticas. Ressalta-se a prática comum, em todas as nações latino-americanas, do emprego, pelas famílias abastadas, da população afrodescendente indígena e mestiça em trabalhos domésticos, como amas, cozinheiras e mucamas.
Outros autores corroboravam com o mesmo tipo de educação racista, tais como, Jose Pedro Varela no Uruguai; o venezuelano Cecilio Acosta; o boliviano Felipe Guzmán. Guzmán em La educación del carácter nacional, livro de 1910, defendia que a Bolívia deveria ter uma pedagogia especial, devido ao fato de sua população “ser diferente” daquela da Europa e dos países hispano-americanos, referindo-se aos povos quéchua e aymara, e defendia estudos sobre a psicologia desses povos para saber quais eram as suas reais condições de educabilidade (Veiga, 2005). Por sua vez, a legislação educacional latino-americana contemplava plenamente a desigualdade na oferta escolar, com níveis de ensino, tempo de duração da escolarização e conteúdos diferenciados; propostas de escolas para crianças sob o encargo de religiosos ou leigos, com preparação de trabalho no campo e serviços domésticos, realizadas em internatos.
A historiadora Anny Loango (2016) também demonstrou em sua pesquisa, a invisibilização e exclusão da população indígena e afrodescendente da Argentina e da Colômbia nos debates sobre cidadania e direitos. No caso da Colômbia, destaca um aspecto interessante, que também constatei em minha pesquisa, que foi a parceria, em fins do século XIX, entre o Estado e a Igreja Católica como agentes civilizadores, e o fim da laicidade, sendo que a Igreja continuou com a pedagogia de doutrinação católica junto aos povos indígenas e a população rural negra, tendo sido a população afrodescendente urbana invisibilizada.
Investigar tais ofertas escolares em seu conjunto, nos diferentes contextos, nos possibilita compreender melhor a problemática da divisão racial da educação. Seguindo essa perspectiva, trago como hipótese o entendimento de que a maioria das crianças negras, indígenas e pobres, ao longo do século XIX e no XX, quase nunca teve sua escolarização feita em uma escola primária comum, e, aquelas que ingressaram numa delas, tiveram frequência muito irregular, devido a pobreza e ao trabalho, como atesta a documentação.
Era mais provável terem recebido escolarização em outros tipos de instituições, cujo diferencial foi a combinação de pouca instrução e muito trabalho, tais como, as companhias de aprendizes nos arsenais da Guerra e da Marinha, os liceus de artes e ofícios, as colônias, patronatos e institutos agrícolas e os asilos. No caso das crianças indígenas, destacaram-se as escolas das missões, mas com o mesmo perfil, de associar trabalho, doutrinação religiosa e alguma instrução. É importante destacar que, se o Estado monopolizou a gestão da escola pública regular, o mesmo não aconteceu para o trato das crianças indígenas e das crianças pretas e pobres, pois a educação foi tratada como filantropia e assistência religiosa.
O que se pode verificar é que, a difusão da escolarização, devido a característica de oferta escolar muito desigual, contribuiu ainda mais para inferiorizar as populações indígenas, negras e pobres, que, por muito tempo foram taxadas de ignorantes, porque não alfabetizadas, ou ainda atrasadas, por não poderem frequentar a escola regularmente. De outro lado, a sua presença mais regular em instituições educativas especiais ou assistencialistas, contribuiu para reforçar a segmentação da infância de acordo com a origem étnico-racial das crianças.
A perspectiva racista das elites governamentais explica a precariedade do funcionamento das escolas públicas e das instituições assistencialistas, associado aos questionamentos quanto às condições de educabilidade dessas populações. Desse modo, acertar em políticas educacionais que favorecessem a combinação entre ensino mínimo e controle dos lugares sociais das pessoas, se tornou a principal meta das elites governantes, ao longo dos séculos XIX e XX.
A oferta escolar desigual, a prática de combinar pouca instrução e muito trabalho em instituições tais como asilos, instituições de regeneração, patronatos agrícolas, companhias militares de aprendizes, institutos de aprendizes artífices, bem como as escolas das missões para indígenas, caracterizadas pela opressão religiosa, marcaram indelevelmente a subjetividade das crianças que por elas passaram como práticas da colonialidade do ser. A oferta escolar desigual, a exploração do trabalho de crianças em instituições educativas assistencialistas e a não frequência à escola, foram fatores que contribuíram para o avanço de processos desdemocratizantes, o acirramento das desigualdades sócio-raciais e o fortalecimento do racismo.
Seriam as escolas públicas desdemocratizantes desde a sua origem?
O processo de popularização da escola no século XIX integrou as dinâmicas sociais de formação das nações e dos governos constitucionais, por isso os argumentos sobre a eficácia das nações e da educação no desenvolvimento dos povos foram similares. Ernest Renan, no clássico “O que é uma nação?”, de 1882, afirmava que, embora as consequências “sejam benéficas”, nenhuma nação se organiza “(...) sem violência, sem extermínio de pessoas, sem aniquilar crenças e culturas, e isto se faz pela imposição do esquecimento de certo passado” (Renan, 1997, pp. 161-162). Segundo o autor, “(...) o esquecimento, e mesmo o erro histórico, são um fator essencial na criação de uma nação [...]. Ora, a essência de uma nação está em que todos os indivíduos tenham muito em comum, e também que todos tenham esquecido muitas coisas” (Renan, 1997, pp. 161-162).
Também a escola universal, em sua origem eurocêntrica, se apresentou como lugar de violência e “extermínio” de pessoas, pela supressão das tradições dos povos submetidos e da invenção de uma outra memória, ou seja, da colonialidade do saber. A construção do nacionalismo, fundamental para o engendramento das nações, previu essa violência, pois se constituiu pela imposição de uma cultura homogênea a toda a população, estruturada por um agrupamento de conhecimentos a serem adquiridos na escola: “[...] alfabetização, cálculo, hábitos de trabalho e fundamentos sociais básicos, e familiarização com os fundamentos técnicos” (Gellner, 1994, p. 45).
Nesse sentido, a escola se tornou a principal difusora da concepção estática das noções de cultura e civilização, controlando, portanto, o entendimento do que deveria ser o aperfeiçoamento e progresso da humanidade. A ação global de instituir e disseminar padrões de moral e costumes, considerados civilizados para todas as populações, alterou radicalmente as culturas locais, por sua vez, a monopolização estatal da disseminação do ensino foi um fator decisivo para a organização dos estados-nação, mas realizada de modo controlado, pela oferta escolar desigual.
Constata-se que, no mesmo contexto em que a escola foi defendida como fator de progresso e de desenvolvimento social, além da alfabetização ter sido um dos quesitos para o direito ao voto, a escolarização indígena foi tratada como questão à parte, e a inferiorização das pessoas negras foi reforçada. Apesar do apelo à ampla escolarização como fator de democratização, crianças pretas e indígenas foram encaminhadas para escolas fora do padrão regular, além de que tiveram dificuldades de frequência devido à pobreza e ao trabalho infantil.
Pode-se afirmar que durante séculos vigorou na história da educação latino-americana a oferta escolar desigual, mas, precisamos ampliar as nossas pesquisas de modo a dar maior visibilidade aos tipos de desigualdades, de modo a interrogar sobre a divisão racial da educação. Tal situação favoreceu a subalternização e opressão sociorracial das populações negras, indígenas e mestiças, e, principalmente, a acentuação do racismo, com forte repercussão na atualidade.
A perspectiva da desdemocratização do direito à escola se fez historicamente, de modo rotineiro e naturalizado, no entendimento de que as crianças pobres, indígenas, negras e mestiças estariam destinadas ao aprendizado de um ofício de pouca qualificação e a trabalhos de baixos salários, de modo a não perturbar a hierarquia sociorracial estabelecida. Como vimos, o racismo é uma construção de longa data, problematizar no âmbito da história da educação as estratégias pedagógicas de sua produção é fundamental para avançarmos nos debates relativos à condição de efetivação da democracia, mas também, estarmos atentos aos processos desdemocratizantes, entre eles, os riscos de se eleger democraticamente governos liberais-autoritários, uma ameaça crescente na atualidade, em diferentes partes do mundo.

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