Resumo: Neste estudo, examinam-se características materiais e de divulgação da literatura infantojuvenil de Erico Veríssimo, que se dedicou a escrever para crianças e jovens ao longo da segunda metade da década de 1930, e teve os livros publicados pela Editora do Globo, de Porto Alegre. Como recorte cronológico, considera-se os anos de 1935 a 1939, quando os livros chegaram às vitrines da Livraria do Globo e às páginas de publicidade de inúmeros periódicos. A hipótese central é de que tais livros tenham sido um espaço de educação não institucionalizada para crianças e jovens, quanto a aspectos científicos e históricos, dadas as temáticas selecionadas pelo autor: história, história do Brasil, história natural e ciências da saúde. As análises teóricas e a abordagem metodológica do estudo ancoram-se em pressupostos extraídos da História do Livro, da Leitura e da Edição com destaque para a materialidade dos impressos e dos protocolos de leitura, capazes de mobilizar a interpretação dos leitores, e que acompanhavam os livros ou os apresentavam em outros suportes textuais, como os periódicos. Conforme os resultados alcançados, os livros escritos por Erico Veríssimo, por um lado, valorizam os conhecimentos históricos e prescrevem o autocuidado como forma de conhecimento e preservação da saúde e, por outro, configuram-se como um projeto do escritor e da própria Livraria e Editora do Globo com vistas à difusão da leitura e dos conhecimentos histórico-científicos.
Palavras-chave: Erico Veríssimo, Leitura infantojuvenil, Conhecimento histórico e científico.
Resumen: Este estudio examina las características materiales y la difusión de la literatura infantil de Erico Veríssimo, que escribió para niños y jóvenes a lo largo de la segunda mitad de la década de 1930 y publicó sus libros en la Editora do Globo, en Porto Alegre. Como corte cronológico, se consideran los años de 1935 a 1939, cuando los libros llegaron a los escaparates de la Livraria do Globo y a las páginas publicitarias de innumerables publicaciones periódicas. La hipótesis central es que estos libros fueron un espacio de educación no institucionalizada para niños y jóvenes, en lo que se refiere a los aspectos científicos e históricos, dados los temas seleccionados por el autor: historia, historia de Brasil, historia natural y ciencias de la salud. Los análisis teóricos y el abordaje metodológico del estudio se anclan en presupuestos extraídos de la Historia del Libro, de la Lectura y de la Edición, con énfasis en la materialidad de los impresos y en los protocolos de lectura capaces de movilizar la interpretación del lector, que acompañaban a los libros o los presentaban en otros soportes textuales, como las publicaciones periódicas. De acuerdo con los resultados alcanzados, los libros escritos por Erico Veríssimo, por un lado, valorizan el conocimiento histórico y prescriben el autocuidado como forma de conocimiento y preservación de la salud y, por otro, se configuran como un proyecto del escritor y de la propia Livraria e Editora do Globo con vistas a la divulgación de la lectura y del conocimiento histórico-científico.
Palabras clave: Erico Veríssimo, Lectura infantil, Conocimiento histórico y científico.
Abstract: This study examines the material characteristics and dissemination of children’s literature by Erico Veríssimo, who wrote for children and young people throughout the second half of the 1930s and had his books published by Editora do Globo, in Porto Alegre. As a chronological cut-off, the years from 1935 to 1939 are considered, when the books reached the windows of Livraria do Globo and the advertising pages of numerous periodicals. The central hypothesis is that these books were a space for non-institutionalized education for children and young people, in terms of scientific and historical aspects, given the themes selected by the author: history, history of Brazil, natural history and health sciences. The study’s theoretical analysis and methodological approach are based on assumptions drawn from the History of the Book, Reading and Publishing, with emphasis on the materiality of printed matter and reading protocols, capable of mobilizing readers’ interpretation, which accompanied the books or presented them in other textual supports, such as periodicals. According to the results achieved, the books written by Erico Veríssimo, on the one hand, value historical knowledge and prescribe self-care as a form of knowledge and health preservation and, on the other, are configured as a project by the writer and by Livraria e Editora do Globo itself with a view to spreading reading and historical-scientific knowledge.
Keywords: Erico Veríssimo, Children’s reading, Historical and scientific knowledge.
Articulo Original
A literatura infantojuvenil de Erico Veríssimo: apontamentos sobre a disseminação de conhecimentos históricos e científicos
La literatura infantil de Erico Veríssimo: apuntes sobre la divulgación del conocimiento histórico y científico
Erico Veríssimo’s children’s literature: notes on the dissemination of historical and scientific knowledge
Received: 06 June 2024
Accepted: 31 October 2024
O filme Mirad los lirios del campo estreou na Argentina em 1947. Dirigido por Ernesto Arancibia, foi baseado no livro Olhai os lírios do campo (1938)1, do escritor gaúcho Erico Veríssimo, também reconhecido por sua rica produção de contos, romances e novelas, além dos livros infantojuvenis, a que se dedicou ao longo da segunda metade da década de 1930.
Neste estudo, examinam-se características materiais e de divulgação de quatro destes livros: A vida de Joana d’Arc (1935), As aventuras de Tibicuera (1937), Viagem à aurora do mundo (1939) e Aventuras no mundo da higiene (1939). Portanto, o recorte temporal aqui enfocado compreende os anos de 1935 a 1939, quando os livros foram publicados pela Editora do Globo.2 A hipótese central é que os livros tenham sido um espaço de educação não institucionalizada para crianças e jovens, quanto a aspectos históricos e científicos.
No que tange às análises teóricas e à abordagem metodológica do estudo, ancoram-se nos pressupostos extraídos da História do Livro, da Leitura e da Edição, notadamente, nas pesquisas realizadas por Chartier (1990, 2001), com destaque para a materialidade dos impressos e dos protocolos de leitura, capazes de mobilizar a interpretação dos leitores. Os estudos relativos aos intelectuais e à mediação cultural, tais como aqueles fundamentados em Sirinelli (1996) e em Gomes & Hansen (2016), também se mostraram relevantes.
Com a leitura dos livros de memórias3 de Erico Veríssimo, permite-se entender um pouco melhor o escritor gaúcho, reconhecido pelo sistema literário como um dos mais importantes autores brasileiros. Em tais livros, ele apresenta, ainda que rapidamente, os livros infantojuvenis a que se dedicou ao longo da segunda metade da década de 1930, período de grande incentivo à produção de literatura para crianças e jovens. Para tanto, contribuíram os concursos promovidos pela Comissão Nacional de Literatura Infantil, criada pelo ministro Gustavo Capanema, que selecionavam e premiavam livros por categorias e faixas etárias. O ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema também incentivou a publicação de cartilhas de conselhos higiênicos e cívicos (Carvalho, 2021).
Erico Veríssimo, ainda criança, na cidade de Cruz Alta (RS), foi bastante influenciado pelas inúmeras leituras de aventuras que realizou, o que pode ser percebido na sua produção literária para a infância e para a juventude, marcada pela aventura e pelas viagens (Carvalho, 2016 e 2021). Os livros de memórias de Veríssimo foram acionados neste estudo, na medida em que oferecem indícios sobre a conformação de sua literatura para crianças e jovens.
Ao longo de sua carreira literária, Erico se dedicou a várias frentes, atuando como tradutor, escritor, jornalista, professor. Circulou por inúmeros espaços, onde pôde tecer uma rede de contatos e amizades que ultrapassava as fronteiras geográficas do país (Carvalho, 2021). Em uma definição, baseada em estudos, como os de Gomes & Hansen (2016), o escritor gaúcho se envolvia na produção de bens simbólicos, voltando-se para práticas culturais de difusão e transmissão, fazendo circular os produtos culturais em grupos sociais mais amplos, assumindo uma posição de vulgarizador de conhecimentos antes restritos a núcleos especializados.
Sendo assim, os quatro livros ora estudados, em certa medida, buscavam aproximar crianças e jovens de conhecimentos científicos e históricos por meio de narrativas envolventes e cheias de aventuras. Entretanto, não só os livros físicos, com suas características editoriais, contavam estas histórias, os protocolos de leitura (Chartier, 2001) que acompanhavam o lançamento e a divulgação destas obras se configuravam como parte crucial do projeto de disseminação destes conhecimentos.
Logo, observar, como os quatro livros selecionados para este estudo foram divulgados e analisados à época, é um importante meio para compreender este projeto do Erico Veríssimo e da Editora do Globo. Para tanto, realizou-se pesquisa na Hemeroteca Digital Brasileira, da Fundação Biblioteca Nacional. Então, ao lançar na ferramenta de busca os descritores “Erico Veríssimo”, “A vida de Joana D’Arc”, “As aventuras de Tibicuera”, “Viagem a aurora do mundo”, “Aventuras no mundo da higiene”, “1930 - 1939” e “1940 - 1949”, alguns dados retornaram, como propagandas e textos enunciativos. Outra importante fonte de informações acerca destes livros é a Revista do Globo, periódico de grande circulação da casa editora.
Dessa forma, os textos, de diferentes gêneros, publicados em jornais e revistas, serviram como prescrições de leitura, que pretendiam guiar os leitores, as crianças e os jovens que se interessaram pela narrativa proposta por Veríssimo, assim como seus responsáveis, aqueles que, realmente, poderiam adquirir a obra, uma vez que detinham o controle financeiro para isso.
A partir da pesquisa realizada na Hemeroteca Digital Brasileira foi possível, ainda, observar a rede de circulação de textos críticos e noticiosos sobre a obra, conforme mapa das regiões brasileiras4 a seguir (Figura 1):

Por meio deste mapeamento é possível observar que quatro regiões brasileiras receberam notícias sobre os livros infantojuvenis de Erico Veríssimo. Contudo, por um lado, a não localização de textos de divulgação em periódicos de circulação na Região Norte pode, somente, explicitar a falta de arquivos de periódicos desta região em acervos presentes em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, atualmente5. Por outro lado, enfatiza a Região Sul, que contava com Rio de Janeiro e São Paulo, como base de grande divulgação dos livros de Erico Veríssimo.
Conforme os resultados alcançados, os livros escritos por Veríssimo, por um lado, valorizam os conhecimentos históricos e prescrevem o autocuidado como forma de conhecimento e preservação da saúde e, por outro lado, configuram-se como um projeto do escritor e da própria Livraria e Editora do Globo com vistas à difusão da leitura e dos conhecimentos histórico-científicos.
Entre 1935 e 1939, Erico Verissimo publicou os livros infantojuvenis A vida de Joana d’Arc (1935), Aventuras do avião vermelho (1936a), Os três porquinhos pobres (1936b), Rosa Maria no Castelo Encantado (1936c), Meu ABC (1936d), Aventuras de Tibicuera (1937), O urso com música na barriga (1938), A vida do elefante Basílio (1939a), Outra vez os três porquinhos (1939b), Viagem à aurora do mundo (1939c) e Aventuras no mundo da higiene (1939d).
No quadro a seguir (cuadro 1), são organizados tais livros, com indicação, ainda, de número de páginas, dimensões, ilustrador responsável pela obra e tiragem inicial.

A segunda metade da década de 1930 foi fecunda para a produção infantojuvenil de Erico Veríssimo, embora, considerando os limites deste estudo, sejam priorizadas as obras A vida de Joana d’Arc (1935), As aventuras de Tibicuera (1937), Viagem à aurora do mundo (1939) e Aventuras no mundo da higiene (1939). Em todas as obras publicadas, o autor destacava a necessidade do sonho e da imaginação na literatura para crianças e jovens, mas suas histórias também apresentavam o traço educativo.
Todos os livros infantojuvenis de Veríssimo tiveram uma tiragem significativa, contudo, ao se destacar os quatro livros com destinação infantojuvenil, aquele com a maior tiragem inicial, 20.000 exemplares, é Aventuras no mundo da higiene, publicado em 1939. Essa grande tiragem pode significar maior ênfase a um livro que poderia ser adotado por instituições escolares devido a sua temática tão em voga na época: a higiene pessoal e social.7

Observe-se, no Gráfico anterior (Grafico 1), que A Vida de Joana D’Arc teve a menor tiragem entre os 4 livros em destaque neste estudo. Os outros dois livros mantêm uma estabilidade quanto à tiragem inicial.
A fim de compreender as características materiais e o movimento de divulgação destas obras, com vistas a incentivar a leitura e conquistar maior número de leitores e, consequentemente, de compradores, propõe-se uma visada sobre os impressos.
O livro A Vida de Joana D’Arc foi o livro que abriu a produção infantojuvenil de Erico Veríssimo em 1935. Com a intenção de apresentar a biografia da jovem francesa para crianças e adolescentes, o escritor escolheu um estilo defendido pela própria Editora do Globo, quando afirmava que o livro seria a biografia de Joana D’Arc em “forma de ficção”, mas, sem se afastar dos fatos históricos e sugerir interesses amorosos da jovem guerreira, posteriormente, santificada pela igreja católica.

O livro, com 16 cm de largura por 24 de altura e cerca de 350 páginas. Importante destacar que o livro é em formato brochura e foi ilustrado por Nelson Boeira Faedrich,8 que buscou apresentar já na capa (Fig. 2) ilustrações que remetessem a afrescos bastante presentes na arquitetura de igrejas católicas.
De acordo com a casa editora, a obra seria simples e fluente, sem passagens psicológicas ou análises psicanalíticas do passado, ou seja, sem interesse do autor em explorar aspectos psicológicos tanto da personagem principal quanto da história cristã sem dados que pudessem corroborar tais julgamentos, assim como sem procurar realizar conexões e novas análises com pontos esquecidos da história ocidental e cristã.

A folha de rosto informa, além do título da obra, a frase “Contada por Erico Veríssimo”, (Fig. 3) tudo envolto por moldura ricamente detalhada com adornos que remetem à Idade Média e mostram Joana D’Arc, vestida para batalhas com asas que se referem a uma figura santificada em cima de uma fogueira, em alusão não só a sua morte na fogueira mas também ao modo de demonstrar sua vitória após a santificação. Leões alados, brasões, objetos sacros e coroas compõem o adorno. O nome do ilustrador - Nelson Boeira Faedrich - surge em folha separada, informando que, além da capa, é o responsável pelo frontispício e pelas letras capitulares.
Seria essa, de acordo com Ramos (2007), uma publicação voltada para os “leitores em geral”. Já a segunda versão do livro, com ilustrações de Fahrion,9 voltar-se-ia ao modelo infantojuvenil, o que sugere uma ampliação dos leitores, buscando as crianças.
Erico Veríssimo, ao escolher o gênero biografia romanceada para esta obra, demonstra sua intenção em narrar a história de Joana D’Arc, permitindo que, em determinados pontos, interferências causadas por seus próprios filtros compusessem a narrativa, de modo a criar passagens da história que aproximassem os leitores da heroína retratada. Para tanto, o autor intercala momentos históricos com criações próprias, como a infância da menina em sua aldeia ao lado das amigas.
Além disso, a intenção do escritor e da casa editora era que o livro fosse bem aceito pela sociedade, o que talvez explique por que A Vida de Joana D’Arc (1935) veicula, após uma análise mais detida da narrativa, o caráter religioso-cristão, moralista e disciplinador da história. Outra característica diz respeito, ainda que a heroína seja uma jovem guerreira, ao início da história que mostra a pequena Joana, uma criança modelo, feliz em sua aldeia na companhia das amigas. Este recurso parece indicar a intenção do escritor de desmistificar a vida da Santa Joana D’Arc, beatificada, após a condenação ser revista em princípios do século XX, estabelecendo uma leitura autorizada da obra por meio de estratégias autorias e editoriais. A simpatia despertada no leitor por essa sensação de proximidade possibilita que ele interaja com as virtudes da heroína, uma jovem movida pela fé.
Para o lançamento de A Vida de Joana D’Arc, a Editora do Globo utilizou as páginas do principal periódico editado pela casa editora, na edição número 165 (1935) da Revista do Globo, além da capa da revista, seções foram dedicadas à história da jovem heroína francesa, a filmes sobre a vida de Joana D’Arc e ao livro escrito por Veríssimo e recém-publicado. No texto intitulado “Pórtico para A Vida de Joana D’Arc”, o próprio escritor gaúcho explicou para a heroína de sua história por que escreveu seu livro de forma simples e descomplicada, de modo a permitir a leitura por jovens. As indicações a Joana D’Arc continuam com fotos de filmes sobre a vida da jovem, imagem fac-simile da capa do livro escrito por Veríssimo, além de uma fotografia do ilustrador da capa e das páginas internas do livro, Faedrich.
Ao defender o estilo de Veríssimo, a Editora do Globo aproveitou para incluir elementos que favoreciam a publicidade do livro, com a utilização de adjetivos como “belo volume”, “impressão nítida”, “fluente e simples”, além de destacar o formato da obra, a quantidade de páginas, visualmente “coloridas e leves”, e a capa com a ilustração colorida, realizada por Faedrich, também responsável pelas ilustrações internas e pelas letras capitulares. Toda essa estratégia de destacar aspectos do livro que produzissem a certeza de que sua leitura seria instrutiva e prazerosa demonstra a intenção da editora de convencer os adultos de que sua aquisição seria de grande importância para a educação e a formação das crianças, pois ofereceria leitura de qualidade.
Este é um livro de proporções pequenas e de fácil manuseio. Com 22 x 15 cm e 179 páginas, foi publicado na Coleção Catavento da Editora do Globo, destinada a divulgar literatura de alta qualidade a preços baixos. Por isso, a impressão em papéis mais baratos e com maior aproveitamento do espaço. Suas ilustrações foram elaboradas por Ernst Zeuner,10 em preto e branco, em sua maioria, ainda que algumas imagens específicas sejam coloridas, dando mais destaque a alguns trechos da narrativa.
Quanto à capa do livro, é em alto relevo e bastante colorida (Fig. 4). O nome do autor, Erico Veríssimo, surge na parte superior da capa, centralizado e em letras vermelhas. Já o título aparece em letras brancas no centro da capa, seguido do subtítulo do livro: “Que são também as aventuras do Brasil”. Na parte inferior surge o nome da editora como “Edição da Livraria do Globo - Porto Alegre”.

O nome do ilustrador, Ernst Zeuner, não aparece na capa ou na folha de rosto. Todavia, a indicação de autoria das ilustrações surge em uma página separada, com o texto: “Os desenhos que ilustram este volume, tanto os coloridos como os em preto, são de Ernst Zeuner” (Fig. 5). Esta mesma página anuncia ainda a edição, o ano de publicação, o nome da empresa, a cidade sede e as cidades das filiais da casa editora - Santa Maria, Pelotas, Rio Grande e Rio de Janeiro.

Suas ilustrações compõem todo o livro, incluindo capa e miolo, distribuídas pelos 67 capítulos, cada um com cerca de duas páginas. Como já informado, a maioria das ilustrações são em preto e branco, forma de economizar na impressão, mas algumas imagens específicas foram ricamente coloridas, como forma de destacar alguns trechos da narrativa (Fig. 6).

Ter sido premiado no concurso do Ministério da Educação e Saúde,11 ainda em 1937, pode ter contribuído para que esta obra alcançasse a 30ª edição em 1986, tendo em vista que o título passou a compor uma espécie de lista de indicações literárias consideradas de alto valor. Devido a essa premiação, o livro traz ainda uma nota sobre o mérito recebido na mesma página em que Erico Veríssimo o dedica a seus dois filhos, Clarissa e Luiz Fernando.
A intenção pedagógica do livro se apresenta logo no título: “Que são também as aventuras do Brasil”, sugerindo uma visada histórica sobre a história do país. Outra característica é a presença de uma “apresentação”, muito breve e que é dirigida às crianças, sugerindo, inclusive, o uso de um dicionário, caso tivessem dúvidas quanto ao significado de alguma palavra lida. Em outras edições, o livro era acompanhado por fichas de leitura e um guia para os professores, o que explicitava o uso escolar esperado.
Tibicuera é o único personagem da história e se transforma, ao longo da narrativa, ao contar quatro séculos do passado do país. Figuras históricas são incorporadas à aventura, e Tibicuera interage com todas elas, passando a ser um “testemunho vivo das aventuras que narra, sendo esse seu maior argumento de autoridade” (Gomes, 2003, p. 127). Ademais, de acordo com Gomes, o livro em destaque se “encaixa bem nesse conjunto de produtos culturais que dão destaque à história do Brasil, na chamada Era Vargas” (Gomes, 2003, p. 132). Ainda nesse sentido, Colomer (2003, p. 13) afirma que é “nos livros infantis, mais do que na maioria dos textos sociais, que se reflete a maneira como uma sociedade deseja ser vista” (Colomer, 2003, p. 13), o que vai ao encontro da ideia de que grande parte dos livros produzidos no período, este em especial, serviam para a promoção de uma identidade pela sociedade da época, baseada em uma história em que a personagem é saudável, atuante e pura, com um início de vida comovente.
O menino nasce em uma tribo indígena, mas se transforma em guerreiro, religioso, patriota, herói, aventureiro, cidadão acomodado, e, ao terminar a história, é um homem branco da Zona Sul do Rio de Janeiro. Dessa forma, o livro pretende contar a história do povo de “raça mestiça”, de muitas faces, que forma a grandeza e a unidade da Pátria, em uma história que eliminava as desigualdades, enaltecia os heróis e se lembrava do homem comum.
Em seu livro de memórias, intitulado Solo de Clarineta, Veríssimo declarou:
Em 1937 a editora exigiu de mim a maior parte de meu tempo. Nesse ano publiquei um livro para as crianças, As Aventuras de Tibicuera. Meu objetivo fora contar, paralelamente com as proezas dum índio imortal, as aventuras do Brasil. A coisa acabou sendo uma ficção duma ficção, uma vez que tomei como base a versão oficial escolar da história do nosso país. A História verdadeira de qualquer nação do mundo jamais poderá ser contada. (Veríssimo, 2005, p. 67)
Ao ler esse trecho, percebemos que a intenção do autor era escrever um livro que estivesse alinhado aos anseios do governo de contar fatos históricos tidos como verdadeiros e, por isso, narrados em livros escolares, e que não gerassem questionamentos por parte de seus leitores. Não se deve esquecer que o interesse tanto do autor quanto da casa editora era vender seus títulos, e o maior comprador de livros no Brasil era e ainda é o governo (Hallewell, 1985).
Uma curiosidade sobre o livro premiado é que o escritor retirou duas cenas inicialmente planejadas e que chegaram a ser publicadas no jornal Diário de Notícias de Porto Alegre, em 1931. Nelas, o herói praticava antropofagia e tinha um encontro com a Iara, suscitando certa sensualidade. Contudo, não se podia admitir que nossos primeiros habitantes eram antropófagos, já que a imagem que se passava do “índio” era a de um ser domesticado e pacto. Falar sobre desejo sexual também não seria visto com bons olhos pela sociedade da época e, consequentemente, pelo Ministério da Educação e Cultura.
No dia 28 de novembro de 1937, o Jornal do Brasil, na coluna intitulada “Comentário”, também publicou texto do Pe. Hélder Câmara12 na página 6. “O Ministério de Educação e a Literatura Infantil” trata do livro vencedor do concurso organizado pelo Ministério da Educação,13As aventuras de Tibicuera, escrito por Erico Veríssimo e publicado pela Livraria e Editora do Globo. Entre elogios e (poucas) críticas ao livro vencedor, o religioso, que criticara o vocabulário empregado por Veríssimo em seus livros da Biblioteca de Nanquinote e o demasiado uso da imaginação, afirma que o escritor gaúcho é “um grande escritor de literatura infantil” e seu livro premiado tem “pequenos senões” que “desaparecem diante das qualidades positivas”.
O prêmio recebido teria sido um atenuante das críticas anteriores à coleção para crianças pequenas da Livraria e Editora do Globo. Assim, concebendo os elogios do Pe. Hélder Câmara, o livro foi considerado adequado pelos padrões religiosos.
No mesmo texto, o religioso afirma:
Erico Veríssimo levou de vencida várias dificuldades em que o comum dos escritores para as crianças costuma naufragar. Como escrever para garotos, fugindo, a um tempo, da insipidez e dos excessos absurdos de imaginação? Quase sempre o escritor que não se descabela em fantasias irreais, toma um tom sermoneiro e uns ares intragáveis para a petizada.
Que linguagem falar para menino entender? Os que deixam de lado as palavras que engasgam, dificilmente escapam de escorregos na gíria.
Mais custoso que tudo isto, porém, é tentar transmitir conhecimentos em livros de literatura infantil. (Câmara, Jornal do Brasil, 1937, p. 6)
Explica, ainda, como a estrutura do texto convida à leitura:
Os capítulos são gostosos desde o nome - “Meu amigo Anchieta”, “Olhem a Holanda”, “Por causa de uma dôr de dentes”, “Farejo guerra”, “Mal sabia o riacho” são títulos de quem sabe conversar com crianças.
Se uma vez ou outra aparece algum nome difícil, o leitor é encaminhado para o dicionário e Erico Veríssimo lembra que Tibicuera, e não ele, é o autor do livro. (Câmara, Jornal do Brasil, 1937, p. 6)
O último excerto demonstra a concepção do religioso sobre a capacidade de entendimento das crianças leitoras, que não deveriam se deparar com “nomes difíceis”, no entanto, uma vez acontecendo, deveriam ser encaminhadas para um dicionário. A leitura deveria ser, segundo o Pe. Hélder Câmara, simples e fácil, assemelhando-se a uma “conversa”.
O início da história da humanidade foi adaptado em Viagem à aurora do mundo: o romance da préhistoria, publicado em 1939 na Coleção Tapete Mágico - Viagens pelo mundo da cultura, com ilustrações de Ernst Zeuner e dividida em 56 capítulos distribuídos em 298 páginas. Ricamente ilustrado em preto e branco, o livro também contava com fotografias para compor a narrativa (Fig. 7).

Tematizando o período pré-histórico, uma viagem é proposta, utilizando-se um aparelho criado pelo Dr. Fabricius, um físico. A exemplo de A vida de Joana D’Arc, Viagem à aurora do mundo também tem o público escolar como leitores-alvo e chegou a circular em instituições escolares como é sugerido por existir uma cópia no AHECC - Acervo Histórico da Escola Caetano de Campos. Com estrutura linear e cronológica, duas histórias são contadas: o caso de amor entre Dagoberto e Magnólia, e a preparação para a viagem no tempo do Dr. Fabricius.
A crítica social está presente em Viagem à aurora do mundo, (Fig. 8) porém também estão preconceitos e chavões que circulavam à época, tais como: o empregado da casa é o negro descrito como enorme, selvagem e trazido da África; o chinês é o cozinheiro; e o fantasma é a personagem José, um ser real que só se interessa por viagens e prazeres, vivendo uma vida sem compromissos até que enlouquece e morre no incêndio que ele mesmo provocou.
Ao se aventurar a escrever uma narrativa de ficção científica, Erico Veríssimo se aproxima de um autor que figurou entre suas leituras do tempo de criança na pequena cidade de Cruz Alta (RS), Júlio Verne (Carvalho, 2016). Contudo, ao mesmo tempo em que podemos imaginar que essas leituras pregressas influenciaram o escritor em certa medida, também é possível imaginar que Erico Veríssimo procurou, em seu ponto de vista, aperfeiçoar seu texto, conforme expressa em trecho de sua autobiografia, ao afirmar que ao ler um livro se permitia saltar “por cima das muitas dissertações puramente geográficas ou históricas de Júlio Verne” (Veríssimo, 2005, p. 126).

Veríssimo explica aos seus leitores, em um pequeno prólogo, as condições de produção do livro:
Este livro - conseqüência dum feriado que concedi à imaginação - não tem nenhum compromisso com a psicologia nem com a verossimilhança e muito menos com os problemas sociais do momento.
Trata-se duma fantasia quase-didática na forma de romance e seu objetivo principal é dar ao leitor uma idéia do mundo pré-histórico, tal como os cientistas o reconstituíram.
Mais uma vez, Erico Veríssimo expressa sua intenção de não discutir ou analisar aspectos psicológicos em seus livros infantojuvenis, e no caso deste título, o desinteresse pela verossimilhança e por realizar um debate acerca de problemas sociais que preocupavam a população naquele momento. Ao continuar sua apresentação da obra, informa que seu objetivo era apresentar o mundo pré-histórico tal como os cientistas acreditavam ter sido, o que indica a utilização de livros e manuais sobre o tema escolhido como fonte de consulta.
Como um exemplo de paratexto,14 o livro Viagem à aurora do mundo apresenta o “Calendário da Terra”, em página desdobrável, apresentando, didaticamente, os períodos e seres que habitaram o planeta (Fig. 9).

Considerando a noção de protocolos de leitura de Chartier (2001), é importante ler o que Erico Veríssimo escreveu trinta anos após sua primeira publicação no livro Gente e Bichos (1965), no qual, na introdução, há uma declaração de intenções: “Destinei minhas narrativas a crianças entre quatro e dez anos. Quero dizer, escrevi-as de tal modo que, se uma pessoa ler esses contos para crianças ainda não alfabetizadas, estas poderão compreendê-los” (Verissimo, 1965, s/n). A segunda parte da afirmativa parece fazer sentido para a obra em destaque - Viagem à aurora do mundo - tendo em conta o número de páginas, 298.
Se a destinação aproxima Viagem à aurora do mundo e A vida de Joana D’Arc, a ausência, naquele, de uma figura infantil poderia significar um distanciamento e talvez prejudicar a identificação dos leitores. Contudo os tipos excêntricos e engraçados presentes na história parecem suprir esta falta e poderiam conquistar o leitor.
Ao longo de várias edições da Revista do Globo, notas e propagandas sobre os livros infantojuvenis de Veríssimo sugerem instigar o leitor:
O próximo livro de Erico Veríssimo será Viagem à Aurora do Mundo, um romance à melhor maneira de H. G. Wells. Trata-se de uma belíssima fantasia em torno da pré-história. O volume, que, segundo o próprio autor, não deve ir para a mão de crianças, aparecerá com mais de 100 gravuras em madeira por Ernst Zeuner, 60 ilustrações fora do texto e um grande mapa colorido. (Feira Livre. In: Revista do Globo, Porto Alegre, Livraria e Editora do Globo, 8 de julho de 1939, nº 255, p. 13)
Três números depois, na edição número 258, um novo lembrete é publicado:
De Erico Veríssimo teremos dentro de breves dias: Viagem à Aurora do Mundo, que é um romance de aventuras e ao mesmo tempo um passeio pelos campos da biologia, da paleontologia, da cosmogonia e da história natural. E também um livro didático: Aventuras no mundo da higiene, que são, em suma, as noções de higiene transformadas em romance. O primeiro desses livros “não contém leitura para crianças”. (Feira Livre. In: Revista do Globo, Porto Alegre, Livraria e Editora do Globo, 26 de agosto de 1939, nº 258, p. 13)
As propagandas sublinhavam que Viagem à aurora do mundo contava com farto material informativo e iconográfico, voltando-se para um público adolescente e jovem. Como parte da Coleção Tapete Mágico, acompanhava as histórias do principal autor da coleção, o holandês Hendryk Van Loon, historiador e professor, que conquistou leitores em diferentes países com publicações sobre história, geografia e ciências, ilustradas, na maioria das vezes, por ele próprio.
O aviso de que a obra Viagem à aurora do mundo não continha “leitura recomendável à infância” podia ser facilmente localizado, também, nas propagandas divulgadas na Revista do Globo e nos periódicos da época (Fig. 10).

Por meio dele, a casa editora indicava quem era seu público leitor destinatário idealizado. Além do leitor idealizado pelo escritor, outros atores impõem uma determinada forma de se ler, seja pela materialidade do impresso, seja pelo sugerido, claramente, nas páginas da obra.15
Ainda que autores, editores e o próprio texto escrito indiquem um leitor específico, isso não quer dizer que só esse destinatário tenha contato com a obra, o que significa dizer que talvez crianças tenham lido, de forma mediada ou não, o livro Viagem à Aurora do Mundo.
O livro Aventuras no mundo da higiene, escrito por Erico Veríssimo e ilustrado por João Fahrion,16 possui 144 páginas na 1ª edição, nas quais estão distribuídas as 16 lições sobre higiene planejadas pelo autor. Foi editado em pequeno formato, 14cm x 18cm, contando com índice de assuntos. Em sua composição material, o impresso apresenta capa dura colorida e páginas internas de papel de qualidade inferior (Fig. 11). Seu valor de venda era de 6$ réis
Escrito e publicado durante o período do Estado Novo (1937-1945), no qual as autoridades governamentais assumiam o discurso de saneamento da sociedade, principalmente quanto à higiene pessoal e social, o volume integrou a coleção Burrinho Azul, uma das séries de livros criada pela Livraria e Editora Globo.17 Com publicidade garantida na Revista do Globo, a Burrinho Azul também era divulgada em edições de livros infantis da casa editora.

Nas primeiras décadas do século XX, as crianças eram vistas como seres que precisavam ser cuidados, cultivados, acompanhados e disciplinados, para que se tornassem bons cidadãos no futuro. De acordo com Bastos e Stephanou (2003), considerava-se que, com o avançar da idade da criança, seria mais difícil moldar seu corpo, seu espírito e sua moral. Assim, era preciso iniciar sua educação desde a mais tenra idade, de modo a corrigir os possíveis desvios antes que fosse tarde.
Por isso, a década de 1930 foi um período de grande efervescência de livros e cartilhas sobre higiene e civismo, muitas vezes, sobre os dois assuntos conjugados. A própria Editora do Globo, de Porto Alegre, era reconhecida pela publicação de livros didáticos e manuais, e publicou em 1937 a cartilha A festa das letras, da poetisa Cecília Meireles e do médico Josué de Castro, que tratava de higiene e alimentação.
Erico Veríssimo organizou Aventuras no mundo da higiene como um manual de higiene pessoal para crianças. Desse modo, o livro apresenta dezesseis lições, trazendo nos anexos um quadro sobre “valor dos alimentos” e tabelas com a relação peso x altura ideais para cada idade e sexo. Como o livro foi escrito em 1939, a história está repleta de metáforas sobre bombardeios, aviões, exércitos inimigos e fogo de artilharia. Tais imagens são utilizadas para representar a ação dos remédios e das vitaminas, dos micróbios, do cigarro e das bebidas no organismo humano. O livro foi dividido por temas: dos bons hábitos aos vícios, passando pela alimentação, pelos aparelhos do corpo humano, pela limpeza e pela manutenção do ambiente, exercícios.
As imagens internas são reproduzidas em preto, branco e laranja, com traçados singelos, além de quadros-negros que destacam as informações relevantes (Fig. 12). Personagens de histórias infantis são evocados como espécie de atrativo e também ilustram a história: Pato Donald, Pluto, Mickey, Popeye, Lobo Mau e Chapeuzinho Vermelho, o Gordo e o Magro, os Três Porquinhos. A união entre texto e imagem assume um caráter educativo, tornando-se mais do que um mero recurso gráfico.

A ilustração é um recurso lúdico que atrai e diverte o leitor, favorecendo a intimidade com o texto, pois brinca com formas, traços e movimentos. Muitas imagens da obra são propositalmente caricaturais, enfatizando a gravidade das situações descritas, como é o caso de um mosquito desenhado em proporção quase dez vezes maior que uma pessoa. Por isso, elas são consideradas protocolos de leitura, pois sugerem a correta compreensão do texto, seu indiscutível significado (Chartier, 2001).
Existe, ainda, um bilhete, em que Veríssimo salienta a necessidade de explicar a importância dos hábitos de higiene e não apenas determinar às crianças que façam isso ou evitem aquilo, sem compreender o porquê das ações. Nesse pequeno texto introdutório, informa-se o objetivo do livro e fica evidente que o autor se dirige aos pais e professores:
Meus amigos,
é inútil franzir a testa, engrossar a voz e falar difícil quando queremos ensinar.
O aluno só se entrega de corpo e alma àquele que lhe contar a melhor história de fadas e aventuras. A estrada mais curta e certa para a inteligência tem passagem obrigatória pelo coração.
Não será humano tentar outros caminhos...
Neste livro procurei fazer que as noções de higiene viajassem para o entendimento das crianças confortavelmente instaladas no trem colorido da ficção.
Fiz o possível para que a viagem fosse divertida, rápida, sem enjôos nem solavancos.
Não basta que se diga tiranicamente aos alunos: “Matem as moscas e bebam o leite”.
É preciso explicar por que as moscas são nocivas e por que o leite é benéfico à saúde. Por outro lado, como falar na higiene da respiração sem explicar o fenômeno respiratório?
Num momento em que toda a gente procura aprender a comer, não seria lógico também que eu passasse em voo de avião por cima do importante capítulo da alimentação.
O texto vai cheio de ilustrações, pois não deixa de ter muita razão quem afirmou que o único livro do mundo que dispensa as gravuras é o Guia Telefônico... (Veríssimo, 1939) (Grifos da autora)
Contudo, ainda que o “bilhete” seja endereçado aos adultos, o público leitor destinatário, as crianças, também era idealizado pelo autor e pela casa editora, tendo em vista a preocupação de Erico Veríssimo em oferecer informações sobre higiene de forma que as crianças pudessem compreender. O autor também se preocupa em orientar ao leitor como pode realizar a leitura do livro:
Como fazer quando queremos descobrir em que página deste livro se fala, por exemplo, em doentes, alimentação ou água? Muito simples: procurar essas palavras - ou as outras que quisermos - no índice que se encontra no fim deste volume. (Veríssimo, 1939d)
O índice da obra é um “índice onomástico”, em que o autor informa ao leitor que “procure aqui os assuntos que você quer estudar agora, e este índice lhe dirá em que página eles são tratados”. Essa observação permite uma flexibilização do caráter informativo e técnico do conteúdo abordado.
O caráter de ficção e aventura da obra somente é percebido por uma leitura contínua do livro, posto que o índice é uma lista ordenada alfabeticamente de palavras que aparecem ao longo do texto, como, por exemplo, para as palavras que iniciam pela letra “a”: água, álcool, alimentação, altura, aparelho circulatório, aparelho digestivo, aparelho respiratório, ar, ar livre.
Já a finalização do livro apresenta o seguinte trecho:
Vocês acabaram de ler a grande aventura do Patinho Feio no Mundo da Higiene. E eu pingo o ponto final neste livro pedindo a vocês que sigam o caminho dos dois amigos, fazendo-se também soldados da higiene na grande guerra contra a sujeira e a doença. (Veríssimo, 1939, s.p.)
Trava-se, pois, de um manual, que poderia ser utilizado tanto pela família quanto pela escola, cuja função era informar e educar. A ficção era utilizada, em acréscimo, com vistas a estimular a leitura do conteúdo técnico e prescritivo, tornando-o mais agradável ao jovem leitor. Bastos e Stephanou (2003) caracterizam o manual como um romance didático. Já, para Chartier e Hébrard (1995), manual é um livro educador, uma vez que possui função moralizante e intenção educativa.
De acordo com Veríssimo, se a escola era um poderoso aliado na formação de indivíduos sãos, com bons hábitos cívicos e de higiene, a leitura não ficaria em segundo plano. Desse modo, Aventuras no mundo da higiene evidencia o comprometimento do autor com um discurso de higienização pessoal e social, assumido como meio para a “salvação” e o progresso do país.
O AHECC - Acervo Histórico da Escola Caetano de Campos,18 que reúne documentos pedagógicos e administrativos da instituição entre 1930 e 1969, guarda exemplares do livro Aventuras no mundo da higiene, fato que sugere a utilização do impresso em atividades escolares, como era a intenção da Editora do Globo e de Erico Veríssimo. A presença desse livro e outros escritos infantis e juvenis de Erico Veríssimo no acervo da instituição se mostra um importante indicador da utilização das obras.
Assim sendo, Aventuras no mundo da higiene poderia se converter em veículo de autoridade e instrumento de transmissão de normas de comportamento. Nessa obra, o tema é a saúde e as boas práticas de higiene, e, desse modo, a criança saudável e inteligente é aquela que vive bem social e economicamente; os menos favorecidos, socialmente, são tratados como doentes. A solução para o problema seria o conhecimento e a vivência em um meio social esclarecido quanto às questões relativas à saúde, o que fica claro, quando o menino com menos conhecimento é acolhido na casa da família abastada, toma um bom banho, corta os cabelos e as unhas, aprende a escovar os dentes e troca as roupas já gastas por peças mais novas e limpas e passa a frequentar as aulas do Dr. Saulus, o professor de higiene, assim, seu aspecto e disposição mudam. Ao final da história, a solidariedade da família privilegiada proporciona uma vida mais saudável ao menino que antes era conhecido como “Patinho feio”.
Este é um livro de Veríssimo com maior evidência de intenções de utilização em instituições escolares, visto que conta com protocolos de leitura (Chartier, 2001) que indicam a vontade do escritor de que professores o utilizassem para ensinar práticas de higiene às crianças, como o “Bilhete”, no início da obra, e o discurso de que não basta ordenar que as crianças tomem tal atitude, é preciso explicar a importância de tal atitude, de modo que faça sentido para elas.
Considerando o conteúdo bastante específico e técnico de Aventuras no mundo da higiene, é possível inferir que Erico Veríssimo teve ajuda, ou de um assessor médico ou professor, ou ainda que tenha recorrido aos manuais e guias de saúde que circulavam à época e que foram incorporados às práticas de leitura da população.
Pesquisar os livros infantojuvenis escritos por Erico Veríssimo pode se tornar uma tarefa desafiadora. Entretanto a angústia provocada pela dificuldade de localização de informações acerca de suas obras mais raras é substituída pelo prazer de ler o que foi escrito, após todo o trabalho de pesquisa e análise do material, localizado em diferentes acervos.
Um estudo sobre a recepção dos livros mostra-se um caminho investigativo de extrema riqueza e de difícil execução. Por isso, a análise aqui proposta não esgota a reflexão, que demandaria um tempo maior de dedicação e aprofundamento.
A escolha do objeto de pesquisa, os livros A vida de Joana d’Arc (1935), As aventuras de Tibicuera (1937), Viagem à aurora do mundo (1939c) e Aventuras no mundo da higiene (1939d), teve como objetivo compreender como o autor Erico Veríssimo e a Editora do Globo escolheram mediar a leitura e a apropriação de conhecimentos históricos e científicos pelas crianças e pelos jovens. Para tanto, a pesquisa maior envolveu consultas a acervos diferenciados, tais como a coleção de Revistas do Globo da PUC do Rio Grande do Sul, os documentos do espólio de Erico Veríssimo - sob a guarda do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro -, e o site da Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional.
Como as histórias de Erico Veríssimo mostravam a aventura e a leitura como recursos de aprendizagem e de melhora de comportamentos, os livros em destaque, de forma geral, seguiam essa fórmula. A localização dos títulos em jornais e revistas das atuais Regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil, além de escolas e instituições de formação de professores, demonstrou a abrangência das histórias para além do Rio Grande do Sul. Nas obras, as informações são divulgadas de maneira sugestiva e pretensamente agradável, animadas por ilustrações, com o intuito de poder capturar os pequenos leitores imprimindo-lhes uma convicção sincera quanto aos valores dos preceitos que são sugeridos às personagens das histórias, identificadas com os potenciais leitores.
Nesta linha analítica, o investimento publicitário realizado pelas Livraria e Editora do Globo ilustra o modo pelo qual a casa editora procurava convencer seus leitores de que as crianças mereciam receber livros bem escritos e bem ilustrados, porque esses livros seriam a garantia de novos conhecimentos e aprendizados, afiançando boa formação. Por meio dessas propagandas, era divulgada a visão de que a leitura de materiais de qualidade poderia distinguir19 os cidadãos dentro de sua comunidade, criando grupos proeminentes por sua cultura e conhecimento acumulado.
A produção de um conhecimento é constitutiva de uma intencionalidade histórica (Chartier, 2001), e a obra de Erico Veríssimo evidencia seu comprometimento com um discurso de aprendizado e higienização, a forma de salvação e progresso do país. As noções de higiene na alimentação e no asseio pessoal, presentes na obra Aventuras no mundo da higiene, fazem parte de um projeto de modernidade para a sociedade brasileira ligado à conservação da saúde e ao vigor do corpo (Bastos e Stephanou, 2003), por exemplo. Já o livro As aventuras de Tibicuera oferece uma visão histórica do Brasil, considerando o indígena como o principal “contador” desta história, embora o texto seja marcado por alusões, explícitas ou não, a textos literários e a seus autores, além das figuras históricas, encontradas nos livros de cunho positivista de História do Brasil. Eles não faziam nada além daquilo que os manuais escolares da época narravam. Dessa forma, encaixava-se no conjunto de produtos culturais da Era Vargas,20 que davam destaque à História do Brasil, e com destinação certa, crianças com mais de 10 anos.
Se a obra A Vida de Joana D’Arc (1935) se utiliza da história da Santa Joana D’Arc para a divulgação dos preceitos católicos e funciona como meio de divulgação do caráter religioso-cristão, disciplinador e moralista, mesmo que Erico Veríssimo afirmasse que não era essa a sua intenção, Viagem à aurora do mundo, busca informar aos seus leitores sobre as questões científicas acerca da origem e da evolução da Terra, utilizando-se da ficção científica. Em um primeiro momento, seria possível a consideração de que esses dois livros representassem uma relação dicotômica religião X ciência, contudo, não parece ser essa a pretensão de Erico Veríssimo. O escritor aparenta buscar diferentes visões para compor suas narrativas, com posturas, aparentemente, opostas, mas que permitem um entrecruzamento, a fim de compor personagens e histórias.
Portanto, a Editora do Globo assumiu o desafio de se tornar uma das maiores editoras do país, embora estando localizada distante do eixo Rio-São Paulo, e apostou no projeto do escritor em início de carreira Erico Veríssimo para se aventurar em busca deste objetivo. Nem só de acertos se fez esta jornada, mas os livros dedicados à infância e à juventude demonstram o cuidado em alcançar a maioria das faixas da população leitora ou possível leitora do país. As quatro obras aqui apresentadas indicam a disponibilidade e a versatilidade do escritor em busca do sucesso de seu projeto cultural e educativo, assim como da casa editora em aumentar seu público.
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