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Identidade de gênero, sexualidade e intervenções terapêuticas em A garota dinamarquesa (2015)

Gender identity, sexuality, and therapeutic interventions in The danish girl (2015)

Eliza Teixeira de Toledo
Fundação Oswaldo Cruz, Brasil
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Isabela de Oliveira Dornelas
Fundação Oswaldo Cruz, Brasil
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Identidade de gênero, sexualidade e intervenções terapêuticas em A garota dinamarquesa (2015)

História, Ciências, Saúde-Manguinhos, vol. 24, núm. 3, pp. 848-852, 2017

Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz


The Danish girl. Direção: Tom Hooper. EUA, Reino Unido, Alemanha. 1h59min. 2015.

Para Lili Elbe,1 nascida Einar Wegener e personagem principal do longa A garota dinamarquesa (The Danish Girl, 2015), dirigido por Tom Hooper, sentir-se mulher foi o essencial para iniciar o incômodo que ela categorizava como discordância entre sua mente e seu corpo. O filme, por meio de uma cadência suave, desenrola o processo de transição entre o promissor talento das artes, Einer, e a tímida Lili Elbe.

Baseada no diário de Lili - originalmente publicado em 1933 com o título Man into woman -, a produção cinematográfica revela que processos patologizantes foram a resposta de diferentes campos da medicina para sua identidade de gênero. A crença na medicina como um campo que possibilitaria alívio para seus sofrimentos levou Lili e sua companheira, a artista plástica Gerda Wegener, a procurar seus recursos terapêuticos.

O filme narra que as visitas de Lili a especialistas em Copenhagen resultaram, a princípio, na prescrição do uso de radiação em sua região genital, com o fim de readequá-la a sua condição biológica. O médico que trata Lili reforça sua confiabilidade ao afirmar: “Sou um especialista.” Sua explicação para as dores, o “estado confuso de masculinidade” e a “infertilidade” de Lili - pressuposta por ela e Gerda não terem tido filhos - era a de que seriam provocados por um desequilíbrio químico. O tratamento por radiologia rende ao filme a primeira de muitas cenas que ainda se seguirão ambientadas em consultórios médicos: debilitada ao fim do procedimento, a personagem diz a seu médico: “Você machucou Lili.”

A constatação de que a terapêutica não teria alcançado o objetivo desejado faz com que a conclusão do médico sobre o estado patológico de Lili se modifique. Por não se reconhecer como Einer e não viver segundo padrões do gênero masculino, ela é diagnosticada com perversão e intimada a comparecer ao Hospital Psiquiátrico de Sankt Hans para tratamento. O termo perversão, segundo a ordem médica no final do século XIX e no século XX, passou a ser usado em relação aos comportamentos sexuais que fugiam à norma que identificava a sexualidade sadia à fecundação (Salles, Ceccarelli, 2010). Mais do que isso, a identidade de gênero feminino de Lili pressupõe, para os médicos, um desvio no âmbito da sexualidade, em clara confusão corrente no começo daquele século entre identidade de gênero e orientação sexual (Butler, 2009).

Em Paris, para onde a dupla se muda para acompanhar a efervescente cena artística do começo dos anos 1930, uma figura do passado de Lili retorna a sua vida: Hans Axgil. Hans, no intuito de auxiliar seu amigo de infância que vivencia pensamentos de suicídio e momentos de violência por não se adequar ao gênero de Einer, propõe que busquem novamente ajuda médica, reafirmando a legitimação social da medicina naquele contexto. Em um consultório em meio a imagens de crânios e cérebros, um dos médicos atesta que a personagem passa por um “estado de confusão mental” e propõe outra terapia somática. Os “pequenos furos” que seriam feitos no crânio da paciente nos remetem à psicocirurgia, utilizada na primeira metade do século XX contra, entre outros, sintomas de cunho “desviante” em relação à sexualidade e ao gênero2 (Braslow, 1997; Pressman, 1998; Perreault, 2011, 2012).

Durante uma sessão de psicanálise, um novo especialista constata que sua paciente é homossexual. Essa cena nos remete ao trabalho de Michel Foucault (1978), para quem, na era moderna, a homossexualidade toma lugar “entre as estratificações da loucura”. Em visita a outro médico, o relato da paciente sobre seu mal-estar - motivado pela exigência de corresponder ao modelo de normalidade de gênero - leva à nova classificação: esquizofrenia.

Amparada por Gerda, que afirma que a companheira não é louca e procura ainda ajuda nas ciências biomédicas, Lili conhece o médico alemão Kurt Warnekros, que propõe a cirurgia de redesignação sexual associada ao uso de hormônios. Esse médico a alerta sobre o altíssimo risco do procedimento, nunca antes tentado, que consistia na reconstrução dos genitais, o implante de útero e de ovários.

Interessa-nos aqui balizar tais intervenções terapêuticas em seu contexto histórico levantando a seguinte pergunta: o que é ser mulher naquela conjuntura? Para Fabíola Rohden (2008), no começo do século XX os hormônios ganham centralidade na consolidação do modelo dos dois sexos. O enxerto dos ovários pretendido por Warnakros é consonante a uma concepção hormonal de “natureza feminina”, pois desse órgão parte a regulação dos hormônios, substâncias que determinariam os comportamentos de gênero adequados ao corpo biológico. A tentativa de implantação de um útero no corpo de Lili Elbe e as tomadas que demonstram o desejo de ser mãe conectam-se também à esteira de progressiva valorização da maternidade presenciada pelo Ocidente desde o século XVIII (Badinter, 1985). A ideia de maternidade como destino biológico das mulheres, consolidada na década de 1930, influencia fortemente a escolha de Lili pelas operações. Com o intuito de se sentir “uma mulher completa”, aquela que carrega em seu corpo os atributos necessários para ser mãe, a personagem confia seu corpo a invasivas e complexas técnicas a fim de tornar-se apta a desempenhar esse papel.

Lili morre em decorrência de complicações de sua última cirurgia de transplante de ovários e útero. O desconforto de gênero que ela sentia motivou seu anseio em se adequar anatômica e biologicamente ao modelo que lhe permitiria viver em plenitude sua feminilidade. O filme nos provoca, assim, a reflexão sobre demandas sociais de adequação de gênero ao sexo biológico promovidas também pelas ciências biomédicas. Tais demandas fizeram com que Lili, assim como diversos outros indivíduos, fosse patologizada e interiorizasse tais patologias segundo o sentimento de não adaptação entre corpo sexuado e gênero - e que por esse motivo passasse por diversas intervenções terapêuticas. Em meio a cenas de profunda sensibilidade, a produção nos estimula a pensar as bases socioculturais da construção do conhecimento científico segundo um modelo binário de gênero.

Com suas limitações - como ser protagonizado por um ator cisgênero, o que cabe ser problematizado -, A garota dinamarquesa dá visibilidade a debates atuais sobre relações de gênero por meio da história da primeira paciente registrada a passar pela cirurgia de redesignação sexual. Não por acaso, assim como no contexto de acirradas discussões de gênero na década de 1950 - quando o diário de Lili foi reeditado -, o longa foi agora produzido. Podemos conceber que a adaptação da história para o filme está inserida em um contexto de intensas demandas por reconhecimento de direitos civis por parte de indivíduos transgêneros e transexuais. Mais do que isso, algumas de suas cenas nos levam a pensar sobre o dualismo hierárquico de gênero que vivemos atualmente. Assim, o filme é um aporte para o debate sobre tais temáticas, para novos questionamentos e permite olhares diversos, segundo vivências diversas, para seu enredo.

REFERÊNCIAS

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1985.

BRASLOW, Joel. Mental ills and bodily cures: psychiatric treatment in the first half of the twentieth century. Berkeley: University of California Press. 1997.

BUTLER, Judith. Desdiagnosticando o gênero. Physis, v.19, n.1, p.95-126. 2009.

COLLINS, Brianne M.; STAM, J. Henderikus. A transnational perspective on psychosurgery: beyond Portugal and the United States. Jounal of the Histrory of the Neurosciences, v.23, n.4, p.335-334. 2014.

FOUCAULT, Michel. A história da loucura. São Paulo: Perspectiva. 1978.

PERREAULT, Isabelle. Esprits troublés et corps déviants: les fonctions de la psychochirurgie à Saint-Jean-de-Dieu, 1948-1956. In: Frigon, Sylvie (Ed.). Corps suspect, corps déviant. Montréal: Editions du Remue-ménage. p.205-227. 2012.

PERREAULT, Isabelle. Psychochirurgie et homosexualité: quelques cas à l’Hòpital Saint-Jean-de-Dieu à la mi-XXe siècle. In: Corriveau, P.; Daoust, V. (Ed.). La régulation sociale des minorités sexuelles: l'inquiétude de la difference. Québec: Presses de l’Université du Québec. p.27-44. 2011.

PRESSMAN, Jack. Last resort: psychosurgery and the limits of medicine. Cambridge: Cambridge University Press. 1998.

ROHDEN, Fabíola. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde- Manguinhos, v.15, supl., p.133-152. 2008.

SALLES, Ana Cristina Teixeira da Costa; CECCARELLI, Paulo Roberto. A invenção da sexualidade, Reverso, ano 32, n.60, p.15-24. 2010.

Notas

1 Fizemos a opção por tratar a personagem somente por Lili Elbe em respeito a sua identidade de gênero.
2 O desenvolvimento da terapêutica é legado ao neurologista português Egas Moniz, em 1936; contudo, desde finais do século XIX, o neuropsiquiatra suíço Gottlieb Burckhardt experimentou a remoção de algumas seções do cérebro em casos de esquizofrenia crônica (Collins, Stam, 2014).
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