Resumo: O artigo aborda a dimensão metodológica e pedagógica das técnicas construtivas tradicionais, relacionada à salvaguarda dos bens culturais como uma das categorias da política nacional do patrimônio cultural intangível, tendo como foco o trabalho de conservação e restauração desenvolvido no Pavilhão Mourisco, pelo Departamento de Patrimônio Histórico da Casa de Oswaldo Cruz. Trata-se da necessária articulação entre a história dos sistemas construtivos e a aplicação das metodologias contemporâneas de preservação do patrimônio cultural edificado, que deve contemplar processos educativos, e de qualificação profissional, para a transmissão de conhecimentos.
Palavras chave: Pavilhão MouriscoPavilhão Mourisco,conservação e restauraçãoconservação e restauração,técnicas tradicionaistécnicas tradicionais,educação patrimonialeducação patrimonial.
Abstract: The methodological and pedagogical dimensions of traditional construction techniques in the safeguarding of cultural heritage properties are discussed from the perspective of their contribution to the national policy for intangible cultural heritage, focusing on the conservation and restoration work developed for the Moorish Pavilion by the Department of Historical Heritage of Casa de Oswaldo Cruz. A discussion is presented of the need articulation between the history of construction systems and technological contexts, and the application of contemporary methodologies for the preservation of architectural heritage, including educational processes, and for professional training, for the transmission of knowledge.
Keywords: Moorish Pavilion, conservation and restoration, traditional techniques, heritage education.
ANÁLISE
Técnicas tradicionais da construção no trabalho de conservação e restauração arquitetônica: a experiência da Casa de Oswaldo Cruz na preservação do Pavilhão Mourisco
Traditional building techniques in architectural conservation and restoration: the experience of Casa de Oswaldo Cruz in the preservation of the Moorish Pavilion
Recepção: 30 Agosto 2019
Aprovação: 13 Janeiro 2020
Tendo em vista as especificidades conceituais mais gerais no âmbito das possíveis e necessárias relações entre o estatuto do patrimônio cultural intangível e a educação, e na ênfase do conhecimento e da transmissão dos saberes e ofícios tradicionais da construção civil como uma das condições para sua salvaguarda, o presente artigo tem como objetivo realizar uma abordagem das ações efetuadas no trabalho de conservação e restauração desenvolvido pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), da Casa de Oswaldo Cruz (COC), em sua missão na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), aqui analisado a partir das características históricas e estéticas do Pavilhão Mourisco, um dos edifícios componentes do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos (Nahm).
Os estudos sobre os saberes, ofícios e técnicas do fazer humano no decorrer da história, da produção dos instrumentos, das tecnologias, dos objetos da cultura material e das edificações, associados, por sua vez, à instituição do “patrimônio cultural”, findam por remeter ao conceito do patrimônio cultural “intangível”, chancelado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e regulamentado em vários países. Nesse sentido, as possíveis articulações entre o conhecimento e a transmissão dos saberes e ofícios da construção e o trabalho de conservação e restauração do patrimônio histórico arquitetônico também se tornaram objetos de pesquisa, com consequentes propostas de ações.
A consolidação do conceito de patrimônio cultural intangível, ou imaterial, está em direta conexão com determinantes históricos que resultaram em revisões na teoria e nas metodologias referentes às ações de preservação do patrimônio cultural, a partir da segunda metade do século XX. Um salto epistemológico considerado diz respeito à superação da centralidade concedida à dimensão física da cultura material, resultante, sobretudo, de estudos no âmbito da antropologia, nos marcos da Declaração universal dos direitos humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, e, com mais ênfase, a partir da década de 1970. Até então, as ações de preservação do patrimônio cultural, pautadas pelo protagonismo da cultura ocidental europeia, eram realizadas com ênfase na conservação da materialidade e da autenticidade dos bens móveis e imóveis, não concedendo, ao menos de forma explícita, relevância aos respectivos contextos sociais, de saberes, manifestações e identidades.
No percurso de importantes eventos, 1 a consagração do conceito de patrimônio cultural imaterial efetivou-se com a Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, documento aprovado pela 32 a sessão da Conferência Geral da Unesco, realizada em Paris, entre os dias 29 de setembro e 17 de outubro de 2003. Trata-se do primeiro tratado internacional que institui um corpo jurídico, administrativo e financeiro voltado especificamente para a salvaguarda de bens de natureza imaterial, e um dos principais instrumentos normativos da Unesco para a promoção da diversidade cultural associada aos direitos humanos, contemplando indicações para fundamentar políticas públicas consoantes às constituições e leis específicas de cada Estado-nação. Como campos de identificação, esse documento prescreve: as tradições e expressões orais; expressões artísticas; práticas sociais, rituais e festividades; conhecimentos e práticas relacionadas à natureza e ao universo; e as técnicas artesanais tradicionais. Recomendando ainda a adoção de ações no âmbito da investigação, identificação, documentação, proteção, valorização e ações educativas. Com a institucionalização da categoria “patrimônio imaterial”, instaura-se um novo “regime do objeto”, sobretudo pelo enfoque dado aos atores sociais diretamente envolvidos, além de permitir a reprodução das práticas e expressões culturais em questão, muitas vezes em risco de extinção ( Bortolotto, 2011).
Como parte desse processo, a categoria do patrimônio cultural imaterial também irá se consolidar em países do então denominado bloco das economias emergentes, notadamente a partir da década de 1980. Tal é o caso do Brasil, que em 2000 instituiu o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), 2 cujos antecedentes remetem ao marco da promulgação da Constituição da República Federativa de 1988 ( Brasil, 1988) e às respectivas emendas que se seguiram.
Pela primeira vez na história constitucional brasileira foram considerados os “direitos culturais”, no sentido do direito de produção cultural, do acesso aos bens culturais como expressão de cidadania e do direito à participação nas decisões públicas sobre políticas culturais, por meio de conselhos e fóruns deliberativos, distanciando-se dos padrões de tutela assistencialista.
Em 1997, realizou-se em Fortaleza, Ceará, o seminário “Patrimônio imaterial: estratégias e formas de proteção”, do qual resultou a Carta de Fortaleza, que contempla a recomendação de que fossem aprofundados os estudos sobre o tema, junto a instituições de pesquisa e órgãos afins, visando à regulamentação de mecanismos específicos de proteção dos bens culturais de natureza imaterial. Tal diretriz, inserida em uma frente de pesquisa pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), uma autarquia do Ministério da Cultura, resultou na proposta de regulamentação do decreto n.3551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial como parte constituinte do PNPI. Desde então, o Iphan passou a investir em estudos e debates direcionados à formulação de novos instrumentos relacionados às especificidades dos bens possuidores de valor imaterial. Destacando-se que apenas o registro de bens considerados patrimônio imaterial não é o bastante, e que tal reconhecimento deve ser seguido de uma série de ações efetivas para sua preservação. Cabe ao Iphan revalidar os registros a cada dez anos, de acordo com as cláusulas do referido decreto. 3
Nesse sentido, o instrumento jurídico do registro, articulado aos procedimentos de identificação de bens culturais imateriais – como inventários, estudos e mapeamento, além de ações de apoio e fomento –, constitui o cerne da política nacional de salvaguarda do patrimônio imaterial. E, para os devidos encaminhamentos, foram estabelecidos quatro livros de tombo para se efetuarem o registro e a inscrição de bens de natureza imaterial: o Livro de Registro de Celebrações, ligado a rituais e festas típicas de uma vivência coletiva, ou de caráter religioso, e outras práticas afins; o Livro de Registros das Formas de Expressão, referente a manifestações artísticas em geral; o Livro de Registro de Lugares, relacionado a feiras, santuários, praças, espaços onde estejam concentradas ou reproduzidas determinadas culturas coletivas; e o Livro de Registro dos Saberes, concernente aos conhecimentos e modos de fazer originários do cotidiano de comunidades específicas, bem como de saberes de ofícios tradicionais. É neste último que se insere a explanação a seguir.
Os estudos referentes aos saberes, ofícios, e técnicas da construção, caracterizados como tradicionais, remetem, inicialmente, aos múltiplos significados da palavra tradição, especialmente explorados no campo da antropologia cultural. Com origem no termo em latim tradere, significa passar adiante, para guardar, elementos da memória individual e coletiva, de uma geração a outra, em determinados contextos sociais e culturais. Em termos mais específicos, tais elementos estão relacionados a sistemas articulados de conhecimentos, procedimentos e metodologias, compartilhados e reproduzidos entre os respectivos sujeitos e contextos, assim configurando a história da construção. Nesse âmbito de estudos e práticas, deve-se destacar, a priori, a defesa de que a articulação com os estudos de história das técnicas, da organização do trabalho, do uso de materiais, das maquinarias, dos instrumentos e ferramentas e dos processos aplicados à arquitetura e à engenharia civil, nas diversas linguagens e estilos, faz parte da própria evolução do conceito de patrimônio cultural.
Com algumas peculiaridades entre os países da cultura ocidental, especialmente a partir da segunda metade do século XX, observa-se uma preocupação dos especialistas e instituições afins quanto à necessária investigação sobre materiais e técnicas construtivas endógenas, também no sentido de servirem como subsídios para os estudos e ações de conservação e restauração do patrimônio histórico edificado. Ressaltando, dentre os critérios da teoria contemporânea da preservação, os princípios da mínima intervenção conjugada aos recursos técnicos do tempo presentes ( Castriota, 2014).
Considera-se, portanto, o conceito de tradição, associado à história da construção, das técnicas e das tecnologias, um ponto de partida para os estudos sobre a historicidade das terminologias referentes à ciência da preservação do patrimônio arquitetônico. Com isso em mente, a presente análise adota como referência a definição de “tecnologia” como ato produtivo da sociedade humana, materializado por meio de força de trabalho, instrumentos e máquinas, por meio das relações sociais no tempo histórico, em sua adaptação às condições da natureza, e no sentido da produção de sua própria existência ( Pinto, 2008). A história dos sistemas construtivos, dos usos de materiais e técnicas, de forma empírica, rudimentar e, posteriormente, de forma científica, é alvo de vastos estudos cronológicos e terminológicos, que vão desde a Idade da Pedra, passando pela Era dos Metais, a Era Moderna, com a Revolução Industrial, chegando à contemporânea Era do Silício e à já denominada Quarta Revolução Industrial, com a inteligência artificial.
Por sua vez, o âmbito mais específico das possíveis articulações conceituais e metodológicas entre o conhecimento das técnicas construtivas tradicionais e as ações de conservação e restauração dos bens culturais edificados conforma um campo multidisciplinar, necessário para um contínuo aperfeiçoamento de pesquisas e ações para a salvaguarda do patrimônio construído. Nesse sentido, alguns documentos internacionais devem ser destacados, especialmente os relacionados às questões da compatibilidade com os materiais e técnicas contemporâneos; da identificação, valorização e transmissão do “saber fazer” das construções tradicionais, bem como da identificação dos respectivos detentores desses saberes; e da pertinência de somar esforços no sentido de formatar e realizar as propostas pedagógicas de formação profissional.
Algumas das medidas recomendadas e adotadas pela Unesco para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial dizem respeito especificamente à preservação e à transmissão das artes e ofícios, materiais e técnicas tradicionais. Na mesma linha, diversos países passaram a incluir, em suas políticas públicas de preservação do patrimônio cultural, ações sistemáticas de identificação, documentação, divulgação, proteção, transmissão e reprodução de saberes e ofícios de mestres e artífices. De acordo com especificidades locais e regionais, trata-se de conceber estratégias de valorização e difusão, afirmando singularidades diante do processo de massificação do mundo globalizado ( Antunes, 1999). Nesse percurso, um marco a ser destacado é a Declaração de Tlaxcala, resultante do terceiro Colóquio Interamericano sobre a Conservação do Patrimônio Monumental, realizado em 1982, no México, pelo International Council on Monuments and Sites (Icomos), na qual a defesa do uso das técnicas e dos materiais tradicionais se encontra explícita na ênfase do multiculturalismo nos países do Terceiro Mundo (Icomos, 1982b).
O reconhecimento de que uma das formas mais eficazes de preservação do patrimônio cultural imaterial é garantir a participação dos próprios “sujeitos” envolvidos confluiu na elaboração, pela Unesco, em 1993, do programa Tesouros humanos vivos. Trata-se da projeção de um conjunto de ações de salvaguarda, com o objetivo de estimular os países a implantar sistemas permanentes de identificação e proteção social de artistas e artesãos de determinados saberes, técnicas e lugares, de modo que tal patrimônio siga sendo transmitido entre gerações. 4 Ainda na década de 1990, outros eventos vieram reforçar esses objetivos, como a conferência internacional organizada pelo governo japonês, chancelada pelo Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco, pelo Icomos e pelo International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property (Iccrom), realizada em novembro de 1994, em Nara (Japão), para discutir os meios de ampliação das concepções sobre a diversidade cultural, e da qual resultou o Documento de Nara sobre a autenticidade ( Unesco, 1994). Entre outros pontos, tratou-se da relevância da diversidade das tradições culturais, no tempo e no espaço, nas formas e significados particulares de expressão tangível e intangível. Em outubro de 1999, o Icomos ratificou a Carta sobre o patrimônio construído vernáculo (Icomos, 1999), em sua 12 a Assembleia Geral, no México, a partir da defesa do patrimônio construído vernáculo como dimensão fundamental da cultura de uma comunidade, em seu território definido, associada à sabedoria tradicional, desde o projeto à construção, e ainda buscando associar a ações de educação profissional.
No caso do Brasil, considera-se um marco dos estudos sobre esse tema o primeiro Encontro dos Governadores e Secretários Estaduais da Área de Cultura, que também reuniu alguns prefeitos, realizado em abril de 1970, em Brasília, e do qual resultou o Compromisso de Brasília ( Brasil, 1970). Esse documento recomendava a criação de novos órgãos estaduais e municipais a serem vinculados ao então Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Dphan), o qual, nesse mesmo encontro, foi transformado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Um dos pontos altos das discussões foi a reconhecida carência de mão de obra especializada, em todos os níveis, na área de preservação do patrimônio cultural, indicando a urgência de se criarem programas específicos de formação profissional. No mesmo sentido, desde a instituição do patrimônio cultural imaterial nas políticas de salvaguarda do patrimônio cultural no Brasil, diversas pesquisas vêm sendo desenvolvidas no âmbito dos ofícios tradicionais, visando suas identificações, registro, valorização, proteção e transmissão, seguindo as normas instituídas pelo Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), metodologia obrigatória adotada pelo Iphan, configurada em 2000 ( Iphan, 2000). 5
Tendo como base a teoria contemporânea da preservação de bens culturais edificados, a presente abordagem centra-se na defesa de que os estudos sobre os procedimentos construtivos de cada época delimitada pela história da arquitetura e pela história das tecnologias devam ser contemplados para a definição de diretrizes, metodologias e especificações técnicas em intervenções de conservação e restauração do patrimônio histórico arquitetônico. O que implica, inclusive, buscar contribuir para as investigações sobre as formas de transmissão, formal e informal, dos respectivos ofícios e técnicas da construção, bem como para a identificação e valorização de seus mestres artífices. No caso aqui explorado, tal concepção e pressupostos apropriados devem remeter, inicialmente, à explanação do panorama social, político e cultural em que se insere a construção do Pavilhão Mourisco, em Manguinhos, no Rio de Janeiro, no início do século XX, momento classificado pela historiografia das artes e da arquitetura como do ecletismo, no qual se configuram as contradições do confronto entre a modernidade impulsionada pela Revolução Industrial e determinados movimentos de reuso de estéticas de um passado romantizado.
O estilo denominado ecletismo se conforma às inovações tecnológicas engendradas no contexto social, político, econômico e cultural do Ocidente, desde o fim do século XVIII, quando diferentes linguagens artísticas são apropriadas e reelaboradas ao critério dos sujeitos e setores envolvidos nas construções, especialmente nos centros urbanos. De acordo com Luciano Patetta (1987), o ecletismo na Europa adotou a imitação como cerne de um processo criativo; nas composições, associou inspirações de diversas épocas a características estilísticas locais; e, alinhado com o sentido de progresso e aos avanços tecnológicos da civilização industrial de então, desenvolveu seus projetos para uma clientela bem específica – a burguesia em ascensão. 6 Ademais, o respectivo rigor estilístico estaria também associado à noção de moda e status, à utilização de produtos industrializados em série e suas adaptações construtivas aos novos materiais, como o aço, e novas técnicas, como as instalações elétricas e hidrossanitárias, além de grandes intervenções urbanísticas contemplando a modernização do saneamento público.
No âmbito epistemológico do ecletismo historicista, a escolha de elementos estilísticos antigos na arquitetura “não podia mais ser patrimônio de poucos ‘mestres’” e “devia ceder às novas exigências da produção de massa e à definição de uma nova figura de projetista: o profissional” ( Patetta, 1987, p.12; destaque do original). Esses profissionais deveriam ser formados em escolas e academias, respeitando sistemas de regras tipológicas rígidas.
Desde o academicismo do século XIX, observa-se certa tensão entre as artes plásticas e a arquitetura, incrementada pelas possibilidades do emprego de novos materiais e técnicas, exigindo uma nova racionalidade no trabalho do arquiteto, ao mesmo tempo em que o trabalho artesanal relacionado às técnicas construtivas sofre crescentes desvalorização e resistência. 7
Entre as profundas mudanças introduzidas pela produção industrial seriada, que transgrediu toda a lógica da divisão social do trabalho desde as corporações de ofícios – quando o artesão dominava todo o processo de produção das coisas –, verificam-se o afastamento da criação direta e integral dos artefatos, que passam a ser tratados como modelos a ser reproduzidos, e o surgimento de uma nova classe social, a do proletariado urbano. No que concerne às especificidades da cultura material e das artes decorativas na arquitetura, as possibilidades de circulação e apropriação de padrões ornamentais – inicialmente na Europa e, em seguida, nos países periféricos do mundo ocidental –, influenciaram o próprio domínio do “saber fazer”.
Assim, a então sofisticada e gigantesca escala produtiva que se configurou a partir da segunda metade do século XIX, também chegava aos canteiros de obras, resultando em uma nova demanda de qualificação técnica e profissional das categorias envolvidas. Ao mesmo tempo, a multiplicidade de referências e modelos utilizados pelo ecletismo, disseminados por diversos meios de divulgação – como catálogos, revistas, manuais, além dos cursos de técnicas artesanais ensinadas nas escolas de artes e ofícios –, diversificou sobremaneira as tipologias à disposição dos arquitetos e suas clientelas, possibilitadas pelas viagens de pesquisa sobre os padrões estéticos de culturas do passado.
A produção mecanizada e industrializada e as inovações tecnológicas introduzidas nas construções e composições arquitetônicas desse momento representaram uma revolução nos padrões arquitetônicos e soluções de engenharia, especialmente pelo uso do ferro e do aço, agregados ao surgimento do concreto armado, possibilitando composições de maiores dimensões estruturais. As diversas soluções de revestimentos e acabamentos, como o estuque em argamassas de gesso e cal, ou aperfeiçoado graças à importação do cimento Portland, foram mais usadas para elementos externos, incluindo variedades cromáticas e uma profusão de composições decorativas. Revestimentos em ladrilhos mosaicos hidráulicos, e de tabuados, parquets, ou tacos de madeira foram adotados em pisos, lambris e forros. O uso de vidros, lisos, transparentes, canelados ou coloridos, também foi possibilitado pelas facilidades de importações, assim como as folhas de cobre, zinco e flandres, usadas em coberturas, calhas, condutores e arremates em geral.
No âmbito das características primordiais da arquitetura eclética – especialmente com a utilização de materiais importados, a evolução das técnicas do desenho, os novos processos de formação profissionalizante e a sua direta relação com a reprodutibilidade técnica advinda da primeira Revolução Industrial –, concebe-se um lugar de destaque à questão dos “ornamentos”. 8 Com especial interesse por tipologias não europeias – como a japonesa, a chinesa e a islâmica –, a utilização de determinados padrões ornamentais passou, então, a agregar outros valores aos objetos e às edificações, para além do estético. Em tal intenso contexto cultural, no caso brasileiro, o “passado” considerado para as composições arquitetônicas no período do ecletismo também não será nacional, em função da desqualificação dada, especialmente a partir da proclamação da República, aos vestígios coloniais que ainda resistiam no país, vistos como um passado a ser apagado. Embora o neoclassicismo fosse o estilo oficial do império – sob os auspícios do ensino arquitetônico ministrado pela Academia Imperial de Belas Artes e por sua sucessora, a Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro –, a partir de meados do século XIX o ecletismo já era aplicado em algumas obras, mais ligado à estética do pitoresco e a uma concepção romântica de ambientação. Entretanto, é no final do século XIX que essa concepção arquitetônica e construtiva se consolidará, transformando-se no estilo oficial ( Fabris, 1993).
A produção de elementos das artes decorativas nas edificações, em série ou artesanal, ocorreu em todo o período da Primeira República, o que sempre envolveu um conjunto significativo de mão de obra, em número e qualificação. Mesmo com uma indústria incipiente, tal processo se desenvolveu nas principais cidades, em total sintonia com as respectivas transformações e tendências internacionais, possibilitado pela circulação das referidas publicações, catálogos e manuais e pela importação de artefatos. Ao mesmo tempo, a produção em série de ornamentos, no âmbito da construção civil, contribuiu para intensificar o debate em torno de saberes e competências profissionais específicas, atribuindo, em consequência, conotações negativas à ornamentação executada diretamente por mestres de obras, em suas relações formalizadas sobre as respectivas práticas ( Lima, 2008).
O caráter ideológico dominante no século XIX concebeu hegemonia aos monumentos da esfera pública, projetados segundo determinadas tipologias estilísticas históricas, na maioria dos casos, sobre tecidos provenientes de demolições. Outra característica a se ressaltar em relação à reprodução dos padrões europeus pela elite brasileira dessa época – denominada belle époque – é a influência dos imigrantes na definição do perfil da arquitetura brasileira notadamente a partir de meados desse século. A introdução de novas tecnologias e materiais importados da Europa e a criação de instituições de ensino de ofícios contribuíram para o aprimoramento formal e tecnológico desse estilo arquitetônico, ainda associado ao fim do trabalho escravo e ao início de uma política de imigração, resultando na conformação de uma nova classe trabalhadora no âmbito da construção civil. Ressalte-se que, nesse mesmo contexto, a representatividade conferida à arquitetura eclética no Brasil será também apropriada pelo viés do patrimônio construído vernáculo, que lançará mão de um repertório apreendido em catálogos, revistas, manuais, cartões-postais, além das técnicas artesanais ensinadas nas escolas de artes e ofícios existentes. Em conformidade com o gosto pelo exótico e pitoresco, as possibilidades do uso de protótipos industriais denotarão a vontade de ser moderno, também pelas classes populares e médias em formação ( Fabris, 1993).
As intervenções para remodelação e modernização do Rio de Janeiro no início do século XX, um dos marcos desse intenso processo de transformações, irão contrapor-se ao trabalho dos mestres da arquitetura vernacular. Não impedindo, entretanto, que essa vertente de mão de obra continuasse ativa, valendo-se, até mesmo, da apropriação de um amplo repertório disponível de modelos construtivos e ornamentais. Durante todo o século XIX, a cidade foi alvo de diversas transformações, notadamente desde a chegada da Corte portuguesa e sua necessidade de conformá-la aos moldes de sede da monarquia. Arquitetos portugueses e brasileiros somaram-se a profissionais vindos da França, Inglaterra, Alemanha e Itália para realizar obras públicas e particulares. A enorme demanda de composições ornamentais na arquitetura contribuiu para o incremento na oferta de mão de obra qualificada para o trabalho nas artes decorativas, especialmente possibilitada pelos cursos técnicos e artísticos oferecidos pelo Liceu de Artes e Ofícios e pela Academia de Belas Artes. 9
A reestruturação urbana do Rio de Janeiro nesse momento, com o status de cidade capital, também traduziu as novas relações cidade/campo, desde sua configuração como sede nacional do capital mercantil, facilitada, principalmente, pela implantação de ferrovias e remodelação do aparelho portuário. Com a respectiva intensificação da especulação imobiliária, o Estado passa a dotá-la de serviços e infraestrutura modernos, privilegiando determinadas companhias – como a Light and Power Company e a Companhia Belga de Gás e Iluminação –, que encontravam, assim, condições ideais de expansão. Nesse caso emblemático de reforma urbana em grande escala, a defesa da dimensão científica do trabalho da engenharia e da arquitetura esteve fortemente associada às questões sanitárias de controle das epidemias que assolavam a cidade, além da importação intensa de materiais de construção possibilitada pela liberação de obrigações alfandegárias. Tal evento, associado ao incremento da ciência da engenharia e dos estudos politécnicos, propiciou um aprimoramento substancial no âmbito das técnicas construtivas, não só no Rio de Janeiro.
A construção do Pavilhão Mourisco, localizado no campus da Fiocruz em Manguinhos, no Rio de Janeiro, se inicia exatamente à época dessas reformas urbanas, no início do século XX, e de suas respectivas inovações tecnológicas. Tendo sido adotado em sua composição estilística, entre as possíveis escolhas do ecletismo, o estilo denominado de neomourisco.
Do espectro de estilos históricos que foram sendo apropriados pelas construções no período do ecletismo, assim como na Europa, também na América Latina verifica-se a incorporação dos neo-orientalismos, consagrando determinados padrões estéticos como o do alhambrismo, do neoárabe e do neomourisco. Todos esses serão concebidos, inclusive, como um modo de ostentação da burguesia ascendente, em consonância com os rumos tomados pela civilização industrial e sua geração de potentes complexos de manufaturas de matérias-primas para a construção como um todo. No âmbito da arquitetura, os valores mais destacados em relação à assimilação do orientalismo estarão relacionados às artes decorativas, onde os moldes serão a base técnica, integrados aos novos processos da produção industrial.
Deve-se ressaltar que o padrão ornamental caracterizado como do revival islâmico – o alhambrismo – não se define propriamente como um estilo arquitetônico no sentido de reprodução total e fiel ao partido e valores da arquitetura muçulmana. Mas, sim, como uma adaptação formal e compositiva, utilizando-se de uma estrutura com arcos em ferradura, colunas, policromia, o uso da cerâmica e ladrilhos ( Domingo, 2003). Esse é o caso do Pavilhão Mourisco, onde parte dos padrões geométricos ornamentais concebidos para sua construção foi executada à semelhança de tipologias próprias de Al Alhambra, e outros elementos – especialmente nos estuques – foram idealizados e produzidos de acordo com desenhos criados durante a obra.
Projetado pelo arquiteto português Luiz de Moraes Júnior (1872-1955), o Pavilhão Mourisco teve sua obra iniciada em 1905, e, em 1910, já era plenamente ocupado para o desenvolvimento dos trabalhos científicos nos laboratórios de pesquisa experimental – equipados com o que havia de mais moderno e sofisticado naquele momento, de artefatos produzidos por companhias estrangeiras, e um vasto repertório de equipamentos de instalações sanitárias, de gás, relógios, termômetros, sistemas de telefonia, eletricidade e um elevador, instalado em 1909 pela Companhia Brasileira de Eletricidade Siemens-Schuckert Werke –, embora prosseguisse a execução dos revestimentos ornamentais, de alguns espaços interiores e das fachadas, somente concluídos em 1918. 10 Em função de seu uso específico para fins de pesquisa científica em laboratórios, fez-se uso da contraposição entre uma exuberante ornamentação externa e os espaços interiores com ambientes assépticos, com revestimentos lisos e de cores neutras, de acordo com as prescrições “pasteurianas” ( Benchimol, 1990).
Luiz de Moraes Júnior foi o responsável pela construção, tendo como seu mestre de obras Basílio Silvestre Aor, natural de Trento, Áustria, e, entre os operários, alguns artífices portugueses, espanhóis e italianos – uma nova categoria de mão de obra mais qualificada, a dos imigrantes europeus, então submetidos às novas formas jurídicas de contratação de trabalhadores livres, no novo contexto social, econômico e político do país ( Figura 1). 11
Em termos das especificidades estilísticas, as artes aplicadas e os sistemas construtivos dos edifícios componentes do Pavilhão Mourisco, as respectivas técnicas e materiais empregados correspondem aos ofícios de estuque ornamental; cerâmica e azulejaria; ferro forjado; cantaria; vitrais; e marcenaria. Dos materiais empregados na edificação, somente a areia, o saibro, a terra, o granito e a madeira foram de procedência local ou regional. Todos os outros materiais, como peças em ferro, cobre, vidro, cerâmica, mármore, e até o cimento, foram importados. As fundações do edifício são compostas por baldrames em grandes blocos de pedra retiradas do próprio sítio de Manguinhos, assentados com argamassa de cimento e areia em todo o seu perímetro. O sistema estrutural compõe-se de alvenaria autoportante associada à utilização de estruturas metálicas.
Externamente, as paredes do pavimento térreo têm como acabamento blocos retangulares em granito juparaná rosado, retirados do próprio terreno. A partir do primeiro pavimento, as paredes externas são compostas de tijolos maciços polidos, importados de Marselha (França), e painéis de estuque e elementos de argamassa armada, em forma de colunas e arcos. Nas paredes internas, verifica-se o uso misto de alvenaria em pedra e tijolos maciços polidos, também de Marselha, sem revestimentos ( Figuras 2 e 3).
Para todas as esquadrias desse edifício foram adotadas composições em ferro e vidro importados, sendo, no caso das portas, executadas em combinação com a madeira peroba-do-campo, de procedência local, realizada pelo artífice Raphael Torelli. As peças em ferro batido da escadaria principal, bem como as da lateral de serviço, em caracol, e as grades das esquadrias, e as respectivas ferragens em bronze, foram fabricadas pela firma Carlos Schlosser & Cia. Os respectivos gradis em ferro fundido, assim como o utilizado para as escadarias internas, foram fabricados na Alemanha, de acordo com desenhos enviados por Luiz de Moraes Júnior. A estrutura metálica da biblioteca de obras raras, localizada no terceiro pavimento, é de aço à prova de fogo, e foi fornecida pela Library Bureau de New York ( Figuras 4, 5 e 6).
Os pisos das varandas correspondentes ao primeiro, segundo e terceiro pavimentos, ala leste, bem como as paredes desses espaços, foram revestidos, respectivamente, com mosaicos compostos por pastilhas e painéis de azulejos coloridos fornecidos pela manufatura portuguesa de cerâmica Bordallo Pinheiro. 12 Na ala oeste dos mesmos pavimentos, os pisos foram revestidos com cerâmica de alta resistência, do tipo grés, da marca alemã Villeroy e Bosch, a mesma marca dos azulejos brancos utilizados nas paredes dessa área. Tais soluções de acabamentos lisos também foram adotadas no interior dos espaços originalmente projetados para funcionar como laboratórios, nesses mesmos pavimentos ( Figuras 7 e 8).
Originária da Mesopotâmia, em função da escassez de pedra na região e da abundância de solo úmido, a azulejaria, técnica de potencial uso decorativo em revestimentos na arquitetura, constitui-se em um dos subprodutos da cerâmica, na forma de placas de duas faces, uma vidrada e pintada, e a outra de textura porosa para possibilitar seu assentamento em outras superfícies. No caso do Brasil, o azulejo foi introduzido a partir do século XVII, nas construções do período colonial, importado de Portugal, com altos padrões de policromia e segundo o gosto da Corte. 13 Durante o século XIX, especialmente após a abertura dos portos do Brasil para o comércio internacional, os azulejos passaram a ser importados também da Espanha, Inglaterra, França, Bélgica, Alemanha e Holanda. Por sua propriedade de impermeabilização, esse material foi muito empregado no Brasil para isolamento da umidade decorrente do clima tropical ( Simões, 1965). No ecletismo observam-se um abandono acentuado do revestimento em azulejos com finalidades decorativas nas fachadas e uma ornamentação caracterizada pelo predomínio dos estuques, bem como da ampliação das dimensões verticais das construções ( Alcântara, 1980).
Quanto aos ladrilhos, sua produção no decorrer do século XIX tornou-se possível graças a pesquisas sobre essa técnica de fabricação, desde os padrões medievais, visando atender às novas demandas do mercado emergente e, ao mesmo tempo, incorporando às composições tradicionais de calcário e argila a novidade de grande repercussão das propriedades do cimento Portland na indústria cerâmica. Assim, no âmbito das artes decorativas, junto à introdução de novos produtos do concreto armado, verifica-se nesse momento, também, a produção de ladrilhos coloridos, executados na forma de mosaicos e divulgados pela proliferação dos catálogos.
Somente em 1910 se iniciam os serviços em gesso dos painéis ornamentais internos, dos ornamentos confeccionados em cimento e areia das fachadas, das muretas e dos balaústres dos terraços, estes últimos executados, parte in loco, parte em pré-moldados, pelo artífice autônomo Nilo João, de acordo com desenhos de Luiz de Moraes Júnior. Especial atenção suscitam os padrões estéticos adotados no salão de leitura localizado no terceiro pavimento – hoje a Biblioteca de Obras Raras –, cujas paredes foram ornadas com revestimentos de estuque em gesso, com estalactites nos arcos, grandes painéis de arabescos que cobrem toda a superfície confluindo no teto, suavizada pela sucessão de frisos ascendentes, com desenhos e relevos diversos – solução também adotada no salão central do quinto pavimento e nas composições no imponente hall central. Logo abaixo desses painéis em estuque, as paredes foram revestidas com lambris em madeira maciça, assim como o piso, também de assoalho em madeira com desenhos geométricos, em pinho, canela e peroba, fornecidos por marcenarias nacionais. Ainda com o apelo orientalista foram executados o mobiliário e as luminárias desse espaço ( Figura 9).
A técnica do estuque ornamental existe desde a Antiguidade, em composições de elementos construtivos ou decorativos, por meio do processo de modelagem executada pelo mestre artesão, diretamente na edificação ou em seu ateliê, e a massa deve ter plasticidade suficiente para que o estucador realize seu trabalho nos devidos tempo e moldagem, cura e acabamentos. Após a Revolução Industrial, os elementos em estuque ornamental, que durante séculos foram confeccionados manualmente, passaram a ser industrializados e comercializados. O ornamento, então, assume um caráter de produto de consumo, que podia ser escolhido, encomendado e comprado por meio de catálogos. Em consonância com tal contexto, no Brasil, essa técnica foi difundida e aperfeiçoada na arquitetura do período do Império, de caráter classicista, passando a se manifestar com mais exuberância na arquitetura eclética, a partir do período republicano ( Mascarenhas, 2008).
No caso dos materiais e do sistema construtivos originalmente adotados para os terraços do quinto e do sétimo pavimentos do Pavilhão Mourisco, as ameias e os torreões das respectivas muretas, bem como as platibandas existentes em todo o perímetro, foram executados com argamassa armada; e os respectivos pisos revestidos com um sistema de impermeabilização em folhas de cobre – que já não existem mais –, revestidas, por sua vez, com lajotas cerâmicas de Marselha. As duas torres existentes na cobertura do quinto pavimento (alas norte e sul) compõem-se de estrutura em aço, de procedência alemã, cujas vigas formam um octógono. Cada uma das oito faces dessas duas torres é composta por perfis metálicos verticais, com traves horizontais para contraventamento. Externamente, os revestimentos ornamentais são em argamassa armada com tela deployée, parte confeccionada in loco, parte em elementos pré-moldados. E coroando cada torre, uma cúpula composta de placas de cobre com relevos ornamentais, também apoiadas sobre perfis de aço ( Figura 10).
Em 1918 eram concluídos os últimos serviços de ornamentação desse edifício, bem como os últimos contratos de instalações; do calçamento externo no entorno do edifício, em rocha calcária, tradicionalmente denominada pedra portuguesa, executado pela empresa que detinha, então, a patente sobre calçamentos em mosaico no Rio de Janeiro; dos mármores das escadas; do assoalho em madeira do salão de leitura do terceiro pavimento; e da confecção e fornecimento de três vitrais, pela Formenti & Cia., 14 ateliê localizado no Rio de Janeiro, para as claraboias dos tetos do hall do quinto pavimento, do hall principal do terceiro pavimento e da porta de acesso à área de guarda do acervo do salão de leitura.
Basicamente constituída por painéis estruturados por peças de chumbo como suporte de pedaços de vidros coloridos, a técnica do vitral remonta à cultura do Oriente, por volta do século X, passando a ser muito utilizada na Europa desde a Idade Média, em igrejas e catedrais. No Brasil, o vidro somente aparecerá na construção por volta do século XVII, nas cidades mais desenvolvidas economicamente, sobretudo por seu elevado custo de importação e pelas condições de transporte. Mesmo com essas limitações, o vidro chegará ao interior do país, para compor a arquitetura colonial das casas de fazenda, e à arquitetura barroca, em meados do século XVIII, sendo a produção manufatureira nacional de artefatos de vidro somente autorizada pela Corte portuguesa em 1810 ( Sandroni, 1989). Quanto à arte vitralista propriamente dita, com a introdução dos avanços tecnológicos desde meados do século XIX e a instalação de ateliês em algumas cidades no país por artistas europeus, o uso de painéis decorativos com essa técnica ultrapassou o ambiente religioso e se fez presente nas edificações neoclássicas e ecléticas ( Brandão, 1994).
Tendo em vista as especificidades referentes ao sistema construtivo, aos padrões compositivos e aos materiais empregados na construção do Pavilhão Mourisco, prédio mais expressivo do Nahm, o trabalho permanente de gestão e preservação desenvolvido pelo DPH/COC inclui estudos sistemáticos e ações referentes aos saberes, materiais, técnicas e ofícios relacionados ao trabalho de conservação e restauração do patrimônio cultural arquitetônico. Baseando-se em normas, critérios e metodologias correspondentes, na defesa da necessária relação entre teoria e prática, e na medida das condições orçamentárias e institucionais, associa-se a tal missão institucional a realização de projetos pedagógicos no âmbito de capacitação e formação profissional voltados para essa área de atuação.
No Brasil, a discussão a respeito da necessidade de mão de obra qualificada para a execução de serviços de conservação e de restauração do patrimônio histórico construído passou a ser mais enfática a partir da década de 1980. Os debates confluíram para uma demanda por cursos de formação e ganharam mais impulso no século XXI, sob o protagonismo do Iphan, paralelamente à reativação do Programa Monumenta, 15 criado em 1997, segundo um novo conceito de associação da preservação do patrimônio histórico ao desenvolvimento social, econômico e à noção de sustentabilidade. Dentre inúmeros projetos apoiados por esse programa, destaca-se o projeto “Mestres e ofícios”, criado em 2007 por meio de editais públicos para seleção de instituições de pesquisa que buscassem identificar e documentar mestres e artífices, com o uso da metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais, do Iphan. Por sua vez, o reconhecimento contemporâneo de que a efetiva apropriação dos bens culturais pelos sujeitos e grupos sociais passou a ser defendido como uma das condições básicas para o sucesso das políticas de preservação do patrimônio cultural, o que subentende, necessariamente, o seu potencial pedagógico. Trata-se, portanto, de um processo sistemático e permanente de trabalho educacional centrado nos bens culturais como fonte primária de conhecimento individual e coletivo (Iphan, 2014).
Desde sua instituição, em 1989, na missão da Casa de Oswaldo Cruz, compete ao DPH executar o trabalho de gestão e preservação do patrimônio histórico arquitetônico do campus de Manguinhos, nos âmbitos: da elaboração e execução de projetos e obras de conservação e restauração, de acordo com os critérios, princípios e metodologias da teoria contemporânea e as respectivas normas nacionais e internacional; do trabalho permanente de manutenção programada; do desenvolvimento de pesquisas tecnológicas e científicas afins; e das ações de educação patrimonial, para públicos diversos, concebendo o Nahm como espaço de ensino-aprendizagem, onde o Pavilhão Mourisco detém certo protagonismo, em função de suas características estéticas, históricas e simbólicas.
Em relação ao tema específico aqui explorado, das possíveis formatações de ações de qualificação profissional, tendo como base os ofícios e técnicas relacionados ao Pavilhão Mourisco, serão destacados alguns projetos realizados pelo DPH/COC até 2018, ano do centenário da conclusão de sua obra. Tal abordagem, no âmbito específico da capacitação de mão de obra qualificada para o trabalho de preservação de bens imóveis, deve remeter aos primórdios de sua trajetória institucional, em 1987, quando ainda se constituía como uma coordenação, ligada diretamente à presidência da Fiocruz na gestão de Sergio Arouca. 16 A primeira experiência digna de registro – em face da constatação da escassez de recursos humanos no âmbito mais específico das intervenções de manutenção nos edifícios do Nahm – foi a realização de um curso livre de capacitação voltado para os operários que estavam então alocados no setor de manutenção dos prédios do campus Manguinhos como um todo. Em parceria com a instância regional do Iphan-RJ, foram selecionados 12 operários para participar de visitas a canteiros das obras de restauração em andamento na cidade do Rio de Janeiro, no sentido de um aprendizado em campo, além de uma carga horária de palestras e cerimônia final com a entrega dos certificados aos participantes.
O marco seguinte a ser destacado diz respeito ao projeto que ganhou o nome de Oficina Escola de Manguinhos (OEM), resultado de um longo processo de discussão e construção de princípios, critérios e metodologia, iniciado em 1999, tornado possível graças a contrapartidas orçamentárias da Fiocruz e fundamentais parcerias técnico-científicas internas e externas à instituição. Com o objetivo primordial de despertar vocações para o trabalho de conservação e restauração de bens culturais imóveis, a OEM constituiu-se, originalmente, em uma ação pedagógica de formação profissional de nível técnico, voltada para ofícios tradicionais referentes às tipologias originais dos edifícios do Nahm e centrada nas características das artes decorativas do Pavilhão Mourisco. Tal proposta foi estruturada para um público jovem na faixa de 16 a 21 anos, que estivesse cursando o ensino médio, e com prioridade, aos moradores das comunidades localizadas nos arredores do campus Manguinhos da Fiocruz. Projetado em conformidade à LDB n.9.394/96, configurou-se um plano de curso fundamentado na metodologia do “aprender fazendo”, 17 na defesa do caráter indissociável entre conhecimentos teóricos e tecnológicos e em atividades práticas em oficinas, ministradas por mestres reconhecidos. Com carga horária de 270h/aula, o curso contemplava também visitas técnicas, sistema de avaliação e entrega de certificado.
Tendo em vista a necessidade de captação de recursos orçamentários externos à Fiocruz para a efetiva realização do projeto da OEM, somente em 2007 foi possível a realização das duas primeiras turmas – referentes aos ofícios de estuque ornamental e pinturas murais –, graças ao apoio financeiro obtido pelo Programa Monumenta/Unesco/BID/Minc, de acordo com os critérios da licitação n.195/2005, incluindo a concessão de bolsas aos alunos, além do apoio fundamental e estratégico de parcerias técnico-científicas internas e externas à Fiocruz. 18 Em 2009 foi possível a execução dessa mesma proposta pedagógica de formação profissional técnica, grade curricular, carga horária, corpo docente, conselho consultivo e mesmo público-alvo, agora com recursos orçamentários da própria COC/Fiocruz, mas somente referente à técnica do estuque ornamental.
Com relação às atividades práticas desenvolvidas com os alunos nessa experiência de 2007, a oficina de estuque ornamental foi ministrada por Adorcino Pereira da Silva (1931-2011), mestre-artífice que fez parte da equipe permanente do DPH/COC nos trabalhos de restauração dos edifícios do Nahm desde 1989 ( Figura 11). 19 Na oficina de pinturas murais, o trabalho foi desenvolvido pela restauradora Áurea Ferreira Chagas, especialista em técnicas de restauração de acervos.
Em tal processo de desafios e aperfeiçoamentos, em 2007 também foi criado, na organização interna do trabalho do DPH/COC, o Núcleo de Educação Patrimonial – que, em 2018, recebeu o nome de Serviço de Educação Patrimonial –, com diversos objetivos específicos e públicos-alvo distintos, em conformidade com eventos e documentos nacionais e internacionais tratando do tema da educação patrimonial no Brasil. Dentre uma gama de possibilidades e realizações permanentes, destacam-se palestras e oficinas ministradas a funcionários de outros setores da Fiocruz; cursos de formação profissional em técnicas de conservação e restauração de edifícios históricos, direcionados a vários perfis de público interessado; visitas técnicas guiadas às obras de restauração em andamento no Nahm.
Tendo como base os mesmos objetivos e metodologia da proposta pedagógica original do projeto da OEM, e ainda integrada às atividades do DPH, a partir de 2010 adotou-se outra formatação, em termos de públicos-alvo, grade curricular, parcerias e estratégias de captação de recursos financeiros – agora sob a coordenação da Sociedade de Promoção da Casa de Oswaldo Cruz. No âmbito da formação profissional em técnicas de conservação e restauração de edifícios históricos, contém as principais diretrizes relacionadas a cursos de formação inicial, voltados para públicos diversificados, também com prioridade para residentes em comunidades locais, e cursos de formação continuada, destinados a profissionais que já atuam na área de preservação do patrimônio construído ou adultos que tenham interesse e demonstrem, desde o processo seletivo, determinadas habilidades. 20
Em 2010 foi ministrado o Curso Livre de Formação de Auxiliar em Conservação e Restauração de Estuque Ornamental, voltado para trabalhadores dos setores de infraestrutura do campus de Manguinhos, da Diretoria de Administração do Campus/Fiocruz e da SM21, empresa terceirizada contratada para execução de serviços de manutenção do Nahm sob a fiscalização do DPH. Desde então, conforme novos contratos sejam licitados, periodicamente são ministrados cursos semelhantes, tendo como alvo os operários contratados. Nesse formato, em 2013 foi executado o curso de Auxiliar em Conservação e Restauração de Pinturas em Edifícios Históricos, com carga horária de 212h/aula, módulos de conhecimentos básicos, aulas expositivas, palestras, visitas técnicas e atividades em oficina, para 24 trabalhadores da construção civil.
Em 2013 foi lançado pela COC/Fiocruz o projeto “Mestres e ofícios da construção tradicional brasileira”, com o objetivo de divulgar o trabalho de artífices reconhecidos por saberes e ofícios no campo da arquitetura e das artes integradas, por meio da produção de vídeos sobre a vida e obra de mestres-artífices, com referências em técnicas de conservação e restauração. 21
Com duas edições – em 2013 e 2015 –, foi realizado o curso livre gratuito de Arte e Técnica do Afresco, ambas com carga horária de 576h/aula, voltado para um público de trabalhadores já atuantes, ou interessados, na área da conservação de bens culturais, com aulas expositivas em torno de conhecimentos básicos sobre essa arte e técnica, visitas técnicas guiadas e práticas de desenho, composição e técnicas do ofício em ateliê. Esse curso, nas duas versões, foi ministrado por Lydio Bandeira de Mello, artista plástico, especialista em técnica de pintura mural. Como trabalho de conclusão do curso, foram executados pelos alunos, sob a supervisão do professor titular, 14 murais em cinco edifícios de uso público localizados na cidade do Rio de Janeiro, contando com a participação de moradores locais como colaboradores ( Figura12).
Também em duas edições – uma em 2016/2017, e outra em 2017/2018 –, foram realizados os cursos livres de Madeiras e de Vitrais, em nível de formação inicial e continuada, com carga horária de 260h/aula cada, divididos em módulos básicos e específicos, aulas expositivas, atividades práticas em canteiros e ateliês, versando sobre as características técnicas desses ofícios, bem como os procedimentos de restauração, visitas técnicas e trabalhos de conclusão de curso. Os professores foram, respectivamente, Ailson Gonçalves, mestre marceneiro e restaurador; e George Sliachticas, artista plástico, mestre vitralista e restaurador ( Figura 13).
Seja no âmbito mais amplo da educação patrimonial, seja no campo mais específico da formação profissional em conservação e restauração arquitetônica, e sempre em função das condições concretas de recursos humanos e orçamentários disponíveis, o DPH/COC segue suas atividades acompanhando os egressos, buscando parcerias técnico-científicas e de mestres de ofícios, e aperfeiçoando os processos de avaliação, no intuito de dar regularidade na organização dessas ações e na centralidade das características construtivas e estéticas do conjunto arquitetônico histórico de Manguinhos/Fiocruz.
Historicamente, a construção civil brasileira caracteriza-se pelo baixo nível de escolaridade e pela alta rotatividade de mão de obra, fato que, naturalmente, também atinge a qualidade das intervenções no patrimônio arquitetônico histórico, em suas necessárias interações entre teoria e prática, trabalho manual e avanços tecnológicos, e as respectivas adequações às atividades nos canteiros de obra. Nesse mesmo contexto, especialmente a partir de meados do século XX, inúmeros eventos e documentos internacionais referentes ao trabalho específico de preservação de bens culturais imóveis passaram a debruçar-se também sobre a problemática da qualificação de mão de obra, fomentando diversas estratégias, políticas e ações voltadas para a formação de recursos humanos qualificados para o trabalho de conservação e restauração. O que pressupõe, por sua vez, a identificação, a proteção e a transmissão dos saberes e ofícios tradicionais da construção enquanto uma das dimensões da cultura material.
Os esforços empreendidos pelo DPH/COC/Fiocruz na preservação do Nahm – no qual o Pavilhão Mourisco adquire reconhecido e justificado destaque – encontram-se afinados com o universo de possibilidades e demandas em relação à formatação e execução de ações de capacitação de recursos humanos no âmbito da construção civil e com ênfase nas necessárias articulações com as técnicas e metodologias aplicadas à salvaguarda do patrimônio arquitetônico histórico. E o desafio continua, em função das condições concretas de recursos de toda ordem e do respeito às normas, recomendações, e diretrizes nacionais e internacionais.
O trabalho permanente desenvolvido pelo DPH/COC há pouco mais de três décadas incorpora os esforços de promoção de cursos de formação de recursos humanos em técnicas tradicionais da construção – além de outras ações de educação patrimonial –, no pressuposto de que a transmissão dos conhecimentos sobre tais saberes e ofícios e a valorização de seus mestres identificados estão entre as condições basilares para a salvaguarda dos bens culturais móveis e imóveis. E, ainda, no entendimento do potencial dos artefatos concebidos como testemunho e identidade dos sujeitos e grupos sociais, em sua evolução no tempo e no espaço, correspondendo às valiosas articulações entre memória, história, arte, ciência e cultura.