FONTES
Entre Alma-Ata e a reforma sanitária brasileira: o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-saúde), 1979-1983
Between Alma-Ata and the Brazilian sanitary reform: the National Basic Health Services Program (Prev-saúde), 1979-1983
Entre Alma-Ata e a reforma sanitária brasileira: o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-saúde), 1979-1983
História, Ciências, Saúde-Manguinhos, vol. 28, núm. 2, pp. 527-579, 2021
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz
Recepção: 2 Abril 2020
Aprovação: 23 Julho 2020
Resumo: A história do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-saúde) se inicia em 1979, na articulação entre os Ministérios da Saúde, da Previdência e Assistência Social, do Interior e da Economia e a Organização Pan-americana da Saúde. Teve como objetivo reorganizar os serviços básicos de saúde em suas conexões com os demais níveis assistenciais. Internacionalmente, inscrevia-se no movimento deflagrado pela Conferência de Alma-Ata, de setembro de 1978. Em termos nacionais, representava tanto um acúmulo de conhecimento sobre organização dos serviços quanto um movimento que se adequava, em parte, à agenda da reforma sanitária brasileira. O Prev-saúde representou um conjunto de proposições para a reorganização da saúde que, naquele contexto, era consenso técnico entre burocracias e lideranças da reforma da saúde.
Palavras Chave: atenção primária à saúde, sistema de saúde, Prev-saúde, reforma sanitária brasileira, história da saúde pública.
Abstract: The history of the National Basic Health Services Program (Prev-saúde) begins in 1979 with a joint effort involving the Ministries of Health, Social Security and Assistance, Interior, and Economy, as well as the Pan-American Health Organization. The objective was to reorganize basic health services in their connections with other levels of care. Internationally, it was part of the movement sparked by the International Conference on Primary Health Care in Alma-Ata in September 1978. Domestically, the program represented an accumulation of knowledge about the organization of services as well as a movement that was partially adapted to Brazilian health reform agenda. Prev-saúde was a set of health proposals that represented a technical consensus between bureaucracies and leaders of health reform.
Keywords: primary health care, health system, Prev-saúde, Brazilian health reform, history of public health.
FONTES
Na década de 1970, notadamente na virada para a década seguinte, abre-se um contexto dos mais explorados pelos estudiosos da história brasileira. O processo de distensão do regime civil-militar e a abertura democrática, a crise fiscal do estado brasileiro e a formulação de um novo marco jurídico-constitucional para o país estão, certamente, entre os grandes temas que foram objeto de inúmeros e diferenciados aportes dos campos da história, das ciências sociais e da economia. Algumas dimensões desse mesmo processo, como a luta pelo acesso à saúde e, em particular, a definição da saúde como direito de cidadania, ganhariam destaque, em especial, na produção intelectual de sanitaristas e/ou de estudiosos associados aos campos da saúde pública e coletiva (Campos, 1988; Cohn, Edison, Karsch, 1991; Fleury, 1997 ).
Mais recentemente, contudo, os campos da história e das ciências sociais, não necessariamente em suas conexões com os campos da saúde pública/coletiva, têm registrado um crescente interesse sobre esses mesmos temas. Estudos que versam sobre a natureza do movimento pela reforma sanitária e a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como a construção de políticas de saúde específicas, merecem destaques nessa atualizada produção ( Menicucci, 2007 ; Dowbor, 2009 ; Paiva, Teixeira, 2014). Os estudos demonstram que várias iniciativas e empreendimentos institucionais podem ser considerados importantes no processo histórico brasileiro de construção da ideia de direito à saúde e, também, na formulação de um renovado sistema de saúde no final da década de 1980.
Por fim, no terreno específico da história da atenção primária, não são muitos os estudos brasileiros que se debruçaram sobre a trajetória nacional. De um lado, predominam trabalhos do campo da saúde pública/coletiva que tomam como objeto experiências específicas da política. Goulart (2004 , p.128), por exemplo, ao se ocupar das chamadas boas práticas em saúde da família, nos remete às iniciativas consideradas embrionárias de Curitiba (PR), Ibiá (MG), Vitória da Conquista (BA) e Niterói (RJ). Em decorrência de sua importante repercussão pública, Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, foi objeto de reflexões intelectualmente mais robustas por parte de alguns estudiosos (Teixeira, Monteiro, Miranda, 1999; Hubner, Franco, 2007).
De outro lado, estudos mais abrangentes, como o de Viana e Dal Poz (1998) , tendem a compreender a conformação de uma atenção primária à saúde (APS) no país a partir da implementação, no início dos anos 1990, do Programa de Agentes Comunitários de Saúde e do Programa da Saúde da Família. Muitos e diferentes trabalhos, dissertações e teses do campo se juntaram a essa perspectiva. Já em abordagem histórica mais ampla, Fausto e Matta (2007) consideraram as experiências do Serviço Especial de Saúde Pública, a partir dos anos 1940; o contexto da reforma sanitária e da conferência de Alma-Ata, no final da década de 1970; e, por fim, a experiência de modelagem do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-saúde) como capítulos da construção de uma APS nacional.
Com foco no contexto do final da década de 1970, autores sobretudo do campo da história chamam a atenção para as distintas compreensões conceituais acerca da APS. Nesse período, apontam os estudiosos, o cenário internacional e diferentes contextos nacionais foram palcos de disputas entre uma APS seletiva e uma integral ( Litsios, 2002 ; Cueto, 2004 ; Pires-Alves, Cueto, 2017; Cueto, Brown, Fee, 2019, p.170-202). O movimento de formulação de um programa nacional de serviços básicos de saúde para o Brasil se dá justamente nesse cenário que mistura contendas de ordem conceitual, esforços para formulação daquela que seria uma primeira política nacional de APS para o país e, adicionalmente, diligências em prol de uma reorganização do sistema de saúde brasileiro.
A história do Prev-saúde, como ficou conhecido o programa, inicia no final de 1979, quando um grupo de técnicos oriundo do Ministério da Saúde e do Ministério da Previdência e Assistência Social, sob a condução respectivamente de Waldir Arcoverde e de Jair Soares, contando também com o apoio dos ministérios do Interior e da Economia e também da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), tomou como objetivo a formulação e implementação de um programa que fosse capaz de reorganizar as unidades básicas de saúde no país. Em termos internacionais, a iniciativa inscrevia-se no movimento deflagrado pela Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, conhecida simplesmente como Conferência de Alma-Ata, realizada no Cazaquistão, em setembro de 1978 (Pellegrini, set. 2005). Em termos nacionais, representava tanto certo acúmulo de conhecimentos relativos à organização dos serviços de saúde quanto um movimento que se adequava, em parte, à agenda do movimento pela reforma sanitária brasileira (Pires-Alves, Paiva, no prelo).
O documento do Prev-saúde é uma peça que permite que o leitor tenha acesso ao conjunto de proposições para a reorganização do sistema de saúde brasileiro que, no contexto da virada dos anos 1970 para os 1980, gozava de certo consenso técnico, tanto entre diferentes burocracias do Estado brasileiro quanto em parte do movimento social de reforma da saúde. Sua leitura, portanto, introduz o leitor em um conjunto de ideias e propostas sobre organização do sistema de saúde, com foco na atenção primária, por assim dizer, razoavelmente consagradas no cenário brasileiro dos anos 1970-1980.
O Prev-saúde e seu contexto
No final dos anos 1970, algumas ideias que circulavam no ambiente internacional, especialmente no contexto americano, expressavam-se vivamente em interesses, agendas e propostas defendidas por boa parte dos sanitaristas brasileiros. O acúmulo de publicações técnicas e seminários especializados, especialmente aqueles conduzidos pela Opas, apontava há décadas para um delicado quadro sanitário que se caracterizava pela inadequada cobertura assistencial e pela incidência de doenças típicas da pobreza, como aquelas relacionadas com parasitas e com água contaminada ( Cueto, 2006 ; Paiva, Pires-Alves, Hochman, 2008).
Em que pesem as diferenças de enfoque teórico e enquadramento técnico acerca dos desafios sanitários já identificados, havia certo consenso técnico de que as melhores formas de enfrentamento dos problemas de saúde deveriam envolver, entre outras coisas, iniciativas no campo do planejamento e da avaliação de ações e políticas, exigindo, por sua vez, a administração coordenada dos serviços de saúde, com uma necessária articulação técnico-política dos âmbitos nacional e local, assim como o enfrentamento da separação entre as ações de prevenção e cura ( Cueto, 2006 ).
A confiança em formas de intervenção programadas, organizadas segundo metodologias do campo do planejamento, era parte fundamental das ideias e práticas dos sanitaristas nas diferentes estratégias de enfrentamento dos problemas sanitários naquele período. Aos postulados, por assim dizer, racionalizadores, somava-se mais uma ideia-força: o aumento da cobertura dos serviços assistenciais de saúde. Em termos gerais, essas ideias organizaram as pautas institucionais do período, muito frequentemente, também associadas a perspectivas críticas quanto aos arranjos institucionais centralizadores e verticais na saúde. Não raro, registramos, igualmente, críticas contundentes quanto ao uso de tecnologias consideradas complexas e economicamente dispendiosas ( Cueto, 2004 ).
Em termos internacionais, esse contexto vincula-se ao estabelecimento, em 1977, da meta “Saúde para todos no ano 2000” e, em setembro de 1978, à Conferência de Alma-Ata, que defendeu as abordagens baseadas na APS como o principal meio para cumpri-la ( Litsios, 2002 ; Cueto, 2004 ). No ambiente brasileiro, tal contexto de críticas e propostas político-organizacionais tornou-se parte fundamental do que se convencionou chamar de movimento sanitário brasileiro. Suas origens mais remotas, a partir dos anos 1950, situam-se no contexto de debate sobre educação médica com foco na medicina preventiva. A partir da década seguinte, agregaram-se debates e iniciativas com vistas à constituição de um sistema de saúde capaz de ampliar a cobertura dos serviços assistenciais. No contexto dos anos 1970, sobretudo em sua segunda metade, tais ideias e propostas, contando, algumas vezes, com importantes mudanças de enfoque teórico e político, radicalizam-se e assumem a feição, na década seguinte, de uma proposição concreta para um renovado sistema de saúde. A ideia de construção de um sistema de saúde universal e democrático, por fim, ganha sentido no cenário de abertura política e restituição da democracia naquele fim de década ( Fleury, 1997 ; Escorel, 1999 ).
É importante ressaltar que desde meados da década de 1970, por intermédio de iniciativas como o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento e políticas específicas, como o Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento, o governo federal procurava enfrentar a perda de apoio e popularidade decorrente dos efeitos sociais da degradação da economia. Abria-se espaço, portanto, no interior do Estado brasileiro, para uma agenda que se poderia chamar de social. É por esse caminho que, segundo Escorel (1999) , personagens afinados com as ideias de um nascente movimento pela reforma sanitária preencheriam, pouco a pouco, espaços de decisão na burocracia técnica estatal. A partir de diferentes lugares institucionais, médicos de posições progressistas e inovadoras procuraram introduzir, progressivamente, transformações no sistema de saúde do país. O Prev-saúde pode ser também compreendido como parte dos primórdios desse processo.
Em termos gerais, pode-se dizer que o Prev-saúde, naquele contexto de virada de década, representava a organização de uma agenda de questões que conjugava tanto uma proposta de extensão da cobertura de alcance nacional quanto uma série de atributos e iniciativas “racionalizadoras”, razoavelmente consensuadas entre os diferentes grupos que constituíam a saúde pública brasileira. Suas nove diretrizes operacionais1 revelam ainda a existência de um acervo conceitual e de expertises organizacionais que, sem dúvida, encontraram acolhida na experiência de formulação de um sistema único de saúde anos depois. Do ponto de vista estritamente técnico-organizacional, contudo, é preciso atentar que o Prev-saúde representou um esforço institucional de construção de uma proposta racionalizadora para o então recém-implantado Sistema Nacional de Saúde.2
No entanto, como veremos a seguir, o relativo consenso técnico em torno da proposta inicial do programa não foi suficiente para blindá-lo contra a forte oposição que sofreria ao longo de seu processo de formulação. Ao privilegiar a criação de uma rede pública de unidades básicas, os formuladores do programa transformaram-se em alvos de grupos ligados aos interesses da rede privada de hospitais, ciosos quanto à implantação de um programa que, ao fim e ao cabo, pudesse trazer consequências consideradas negativas para a vigência da política de transferências de recursos públicos para a rede privada. Não é coincidência que a Federação Brasileira de Hospitais, uma entidade associativa fundada em meados dos anos 1960, tenha se manifestado publicamente contra o programa ( Mello, 1981 , p.26).
A Federação Brasileira de Hospitais não foi o único ator que fez oposição organizada ao Prev-saúde. Interesses vigentes no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) também trabalharam contra a formulação e implantação da proposta, o que revela as imensas dificuldades de trânsito da proposição nas próprias estruturas de poder do Estado. Com a chancela da Presidência do Inamps, à época sob a condução de Hari Valdir Graeff, por exemplo, saiu do instituto uma proposta de criação de um seguro opcional público que, expandindo a rede privada conveniada, supostamente promoveria a construção de uma rede hospitalar mais bem organizada para aqueles que pudessem pagar ( Mello, 1981 ; Pires-Alves, Paiva, no prelo).
Parece-nos que a história do Prev-saúde pode nos revelar, pelo menos, duas coisas importantes: a primeira delas é que, já àquela altura, os interesses contrários ao fortalecimento das instituições públicas de saúde se encontravam suficientemente organizados e com inquestionável poder de veto. De outra parte, que parcela do movimento pela reforma sanitária, já em curso, pode ter aprendido lições importantes diante do processo que levou à derrocada do Prev-saúde. Uma sempre difícil posição que combinasse soluções conciliatórias, sem prejuízo para algumas proposições audaciosas como, por exemplo, a defesa do direito à saúde, colocava-se como pauta necessária para os movimentos de luta que se expressariam na oitava Conferência Nacional de Saúde e no processo constituinte. Nesse sentido, o Prev-saúde pode ser encarado como um dos cenários de aprendizado político-institucional acerca de difíceis lutas que se travariam, com relativo êxito, nos anos seguintes.
O Prev-saúde, 1981-1986
Uma primeira versão do Prev-saúde veio formalmente a público no contexto da sétima Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1980. Recebida com boa dose de estranhamento por parte daqueles que estavam em uma conferência ainda habitada por autoridades governamentais, técnicos e representantes dos mais diversos interesses econômicos e políticos setoriais, acabou por escancarar as tensões do debate entre Estado e interesses privados na saúde. O centro do estranhamento dizia respeito ao fato de o projeto ter sido considerado demasiado estatizante na previsão de ações e serviços básicos de saúde. Como nos apontam Luiz Cordoni Jr. e Márcio Almeida (1980), esse não era um debate simples e desprovido de importância naquele contexto em que o movimento sanitário organizava suas bases de atuação política. Para os autores:
Durante o desenrolar dos trabalhos da VII Conferência Nacional de Saúde percebia-se um certo clima de incredulidade. As análises e comentários giravam, invariavelmente, em torno da proposta de implantação do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-saúde) apresentada pelos Ministérios da Saúde e da Previdência e Assistência Social (Cordoni Jr., Almeida, 1980, p.11).
A dúvida e a perplexidade se deram, essencialmente, pela dificuldade em assimilar que o Estado realmente assumiria os compromissos ali apresentados. O conteúdo dos anais da conferência nos ajuda a ter dimensão da relevância da proposta do Prev-saúde naquele contexto, uma vez que ali fica claro que o objetivo daquele espaço era ampliar o debate em torno das estratégias para implantação do programa. Isto é, torná-lo viável politicamente ( Brasil, 1980 , p.3).
Em termos formais, o texto da proposta apresentada tomava como base os objetivos do terceiro Plano Nacional de Desenvolvimento. Ajustava-se, portanto, às expectativas de resposta do regime ao quadro de crise social que, àquela altura, não se podia mais camuflar. Assinado pelos ministros da Saúde e da Previdência e Assistência Social, compunha um ambicioso rol de ações do governo federal voltadas para a reorganização geral dos serviços prestados pelo setor da saúde.
O texto do projeto apresenta como justificativa para sua criação a crescente insatisfação com os resultados, considerados lentos, das iniciativas apresentadas até aquele momento, principalmente no que dizia respeito à cobertura de serviços assistenciais, redução de doenças e danos de significado sociossanitário. Outro ponto fundamental que o conteúdo do documento problematiza é a multiplicidade de instituições existentes que atuavam de forma descoordenada, o que resultaria em ações duplicadas, crescente desperdício de recursos e perda de prestigio e credibilidade social do setor da saúde.
Nessa linha, o Prev-saúde se apresentava como uma proposta governamental para reordenar a oferta de serviços de saúde afinada aos debates e às iniciativas de “racionalização” da organização sanitária típicas daquele contexto. Revelava, ainda, alinhamento às formulações da Conferência de Alma-Ata, que consagrou, em termos internacionais, a APS como ponto fundamental para pensar sistemas nacionais de saúde.
Tratava-se de tema caro à militância pela saúde e, como vimos, também central na proposta do programa. A Associação de Médicos Sanitaristas do Estado de São Paulo, certamente imbuída das mais altas expectativas quanto à estatização dos serviços de saúde, considerou que “o Inamps financia o lucro dos empresários e dos hospitais. O Prev-saúde garante a manutenção do modelo privatizante de assistência médica, cujo objetivo é o lucro” ( Mello, 1981 , p.26). Crítica semelhante em relação a uma imaginada presença daninha do setor privado na área da saúde foi seguida pelo Instituto Oswaldo Cruz, pelo Sindicato dos Médicos e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo ( Mello, 1981 , p.26).
Os secretários estaduais de Saúde do Norte e Nordeste, por sua vez, consideraram que era “necessário dar ênfase à ideia de ser o setor público o principal responsável, complementarmente, à participação do setor privado em campo de ação que deve ser perfeitamente limitado” ( Mello, 1981 , p.26). Tratava-se, certamente, de um posicionamento mais brando quanto à presença do setor privado na saúde, se comparado ao de outros atores.
Já a Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados compreendeu que “as atividades lucrativas mantidas com financiamento público deverão ser substituídas a médio prazo, por serviços públicos ... Enquanto for necessária a contratação de serviços com rede hospitalar privada, deverá ser abolida a modalidade de pagamento por unidade de serviço, reconhecidamente corruptora e incontrolável” ( Mello, 1981 , p.26).
Como se pode ver, o principal ponto de divergência, no que concerne à expectativa de boa parte dos atores, consistia no fato de não estar suficientemente claro o papel do setor privado na reorganização da assistência proposta pelo programa. A proposta de extensão da cobertura em termos nacionais, inevitavelmente, abria a possibilidade concreta de aumento progressivo da presença da iniciativa privada no sistema de saúde brasileiro. Adicionalmente, como uma proposta de reorganização da “rede de serviços básicos de saúde”, o texto produzia dúvidas quanto ao papel a ser desempenhado pelas secretarias estaduais e municipais de Saúde e, em especial, sobre como operaria o acesso da população e funcionamento dos chamados nível secundário e terciário ( Cebes, 1981 , p.23).
Os sucessivos posicionamentos críticos quanto ao conteúdo do projeto estimularam um processo de revisão do texto por parte dos técnicos e, por conseguinte, a redação de diferentes versões em relação à proposta original. Além daquela distribuída no contexto da sétima Conferência Nacional de Saúde, é possível identificar uma versão de julho de 1980, outra de agosto, e uma terceira de setembro desse mesmo ano. A derradeira versão do projeto teria sido elaborada em dezembro de 1980. Há, contudo, divergências com relação à quantidade de versões que foram produzidas, provavelmente mais de dez.
A versão que aqui divulgamos nos parece ser de meados de setembro de 1980, visto que em uma busca na revista Saúde em Debate , vinculada ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), foi possível identificar notícias que traziam informações sobre a circulação e o conteúdo desse material. Nos referidos materiais encontramos relatos como “portanto, o projeto original do Prev-saúde, datado de julho de 80” ( Oliveira, 1981 , p.38), ou ainda “nesse interim [entre julho e setembro de 1980] duas versões do programa vieram à luz” (p.38). “Em outubro do ano passado [1980], os Ministérios da Saúde e da Previdência Social enviaram a diversas instituições um ante-projeto do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-saúde)” ( Cebes, 1981 , p.21). Há uma certa inconsistência quanto às possíveis datas das versões do documento; apesar disso, o que nos leva a situar a versão que apresentamos em setembro de 1980 são os trechos transcritos nesses textos, que, comparados ao documento que temos em mãos, apresentam similaridades ( Cebes, 1981 ; Oliveira, 1981 ).
O documento, como era de esperar, apresenta detalhadamente a organização do programa. Suas 76 páginas estão divididas em seis partes, a saber: Introdução; Abrangência, objetivos e prioridades; Diretrizes gerais; Caracterização do modelo de prestação de serviços; Estratégia de desenvolvimento do programa; Metas, custos e financiamento.
A leitura atenta de suas “Diretrizes gerais” nos permite ter noção da amplitude e do grau de organização e estrutura necessários para colocar um projeto dessa magnitude em andamento. As diretrizes compreendem: regionalização; universalização do atendimento; tecnologia apropriada e procedimentos simplificados; utilização intensiva de profissionais generalistas e pessoal auxiliar; reorganização administrativa; máxima produtividade dos serviços; integralização das ações de saúde; participação comunitária; e articulação intrassistêmica.
Ao final, o leitor tem acesso também às tabelas com informações acerca das metas para a expansão e recuperação da rede de serviços, os custos de investimento em um período de seis anos (1981-1986) e uma previsão da capacidade de serviços instaladas até o final da vigência imaginada do programa.
Por fim, cabe sinalizar que essa versão do Prev-saúde merece ser publicizada por se tratar de um componente importante do contexto da história recente da saúde no Brasil. Ela traz contribuições para o entendimento de alguns caminhos que levaram à constituição do atual SUS, além de ilustrar conflitos importantes travados, em especial entre o setor público e o privado, e o papel do Estado como formulador de políticas.
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Material Suplementar
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