Resumo: Analisa o pensamento científico do engenheiro politécnico Heinrich August Anton Gerber, contratado pelo governo da província de Minas Gerais de 1858 a 1867. O artigo explora o significado cultural e intelectual das atividades do engenheiro, especialmente a ideia de criação de empresa privada no setor da infraestrutura viária, bem como a mediação para importação de instrumentos científicos e livros. Os resultados também indicam que Gerber participa do envio de brasileiros para estudar engenharia em Paris. Este texto investiga as trocas culturais entre Brasil e Europa, a aplicação do conhecimento científico e o encontro com problemas práticos de ordem econômica e social pelo engenheiro no interior do Império do Brasil.
Palavras chave: Heinrich August Anton Gerber (1831-1920, história da ciência, economia política, engenheiro, Império do Brasil.
Abstract: This article analyzes the scientific thinking of the German polytechnic engineer Heinrich August Anton Gerber, who was employed by Minas Gerais province from 1858 to 1867. We explore the cultural and intellectual significance of his activities, particularly the idea of creating a private company within the roadway infrastructure sector and his mediating role in the importation of scientific instruments and books. Gerber also appears to have been part of efforts to send Brazilians to study engineering in Paris. Cultural exchanges between Brazil and Europe are investigated, along with the application of scientific knowledge and his encounters with practical economic and social challenges in the interior of the Empire of Brazil.
Keywords: Heinrich August Anton Gerber (1831-1920, history of science, political economics, engineer, Empire of Brazil.
ANÁLISE
Uma visão dos trópicos de Heinrich Gerber, 1850-1860: ciência e pensamento econômico de um engenheiro politécnico alemão no Império do Brasil
Heinrich Gerber’s vision of the tropics, 1850-1860: the scientific and economic thinking of a German polytechnic engineer in the Empire of Brazil
Recepção: 24 Novembro 2020
Aprovação: 7 Março 2021
Há expressiva literatura sobre engenheiros estrangeiros na construção ferroviária ( Marinho, 2010, 2015, 2020), suas relações com a exportação de capitais britânicos no século XIX para a América Latina ( Stone, 1977, p.707) e os impactos do capital industrial no Império do Brasil ( Costa, 1976, p.149-150; Silva, 1976; Mello, 1986, p.74-95). É consenso historiográfico que as obras férreas contribuíram para que engenheiros nacionais encontrassem ocupação ( Nagamini, 1994; Telles, 1994, p.227; Carvalho, 2002, p.103), além do fato de que as ferrovias empregaram milhares de trabalhadores braçais de distintas categorias jurídicas ( Lamounier, 2012, p.23-47) – livres, escravizados, libertos, imigrantes e coolies chineses ( Souza, 2013, p.119).
Contudo, em termos cronológicos, a expansão férrea no Brasil ganhou maior impulso a partir de 1870 ( Coimbra, 1974, p.124), avançando para o interior do território e ligando-o aos principais portos litorâneos ( Summerhill, 2005). Constata-se a pouca existência de estudos sobre a execução de obras públicas realizadas por engenheiros estrangeiros entre as décadas de 1830 e 1870. Consequentemente, pouco se conhece sobre a atuação científica e o pensamento econômico de engenheiros estrangeiros no Brasil entre 1850 e 1860.
Este estudo atenta para a cultura científica e as ideias econômicas do engenheiro politécnico Heinrich August Anton Gerber. 1 Contratado pela Presidência da província de Minas Gerais, onde atuou de 1858 a 1867, 2 ascendeu ao cargo de engenheiro chefe da Diretoria de Obras Públicas, produziu relatórios, importou instrumentos científicos, livros e expôs ideias sobre desenvolvimento econômico e expansão da infraestrutura viária ( Renger, 2013). Este artigo examina o pensamento de Gerber e aponta como ele se vinculou à proposta de criação de empresa privada no setor da infraestrutura viária e a compra e circulação de livros e instrumentos científicos. Esses resultados, praticamente desconhecidos da historiografia, somam-se a outro: ativa participação de Gerber no envio de estudantes para Paris a fim de se tornarem engenheiros.
Este texto também argumenta que há forte associação e similitudes entre procedimentos adotados por Gerber e o pensamento do engenheiro politécnico francês Henri Navier. 3 Em especial, no que se refere às vantagens de concessões para empresas privadas da execução de estradas públicas, levando em conta a relação entre dimensão fiscal (impostos), lucratividade do investimento e custos de manutenção ( Navier, 1830, p.19-20).
Este artigo encontra-se dividido em três seções: “Engenharia, história e historiografia”; “De Hanover para o Império do Brasil”; e “Uma visão dos trópicos: a economia política de Gerber”.
Na primeira seção, exploram-se os eixos historiográficos e metodológicos deste artigo no âmbito da história da engenharia e das ciências. Em seguida, “De Hanover para o Império do Brasil”, identificam-se a trajetória educacional de Gerber e os atestados comprobatórios de experiência, apresentados ao governo da província, no momento de sua contratação. Minas Gerais contou no aparato burocrático com outros engenheiros alemães ( Renger, 2013; Martins, 1998). Os resultados revelam a participação de Gerber no envio de estudantes brasileiros para se tornarem engenheiros em Paris; na produção de centenas de projetos, plantas e orçamentos; em pedidos de compra de instrumentos científicos, livros e produção cartográfica ( Warner, 1990; Taub, 2011; Blondel, 1997; Vaccari, 2011; Cravo, 2014).
Ao longo da terceira seção, “Uma visão dos trópicos”, valendo-se da micro-história ( Rojas, 2004; Lepetit, 2001; Findlen, 2005), investiga-se a ligação íntima entre o pensamento político-econômico de Gerber e as estradas como elemento de “civilização e luxo” (APM, 1859), a fim de captar como as ideias do engenheiro estiveram ligadas à historicidade da interação entre mercado (espaço da troca econômica) e o Estado-nação (território da soberania política) ( Rosanvallon, 2002, p.135). Demonstram-se três aspectos da visão de Heinrich Gerber: ênfase no sistema de estrada entre Minas Gerais e Rio de Janeiro como vetor para aumento das transações comerciais, consumo de artigos importados, elevação das exportações de café; pressuposto, no caso das estradas, da existência de espírito associativo empresarial para concentrar capitais e garantir efeitos dinâmicos no mercado importador e exportador; defesa do benefício público e do interesse geral para superar vozes privatistas na escolha do trajeto das estradas.
No século XIX, sublinha Salgueiro (1997, p.28-36), é que se forja, cada vez mais, o amálgama de razão e ciência nas decisões políticas, nas quais os engenheiros politécnicos são funcionários a serviço do Estado, da modernização técnica, imperativo de progresso para o país, a fim de garantir o mundo da produção e do comércio (p.33). Schabas (2006) argumenta que o pensamento econômico e a economia política da primeira metade do século XIX foram marcados por três tendências: economia política clássica e liberal de Say e Fréderic Bastiat (1801-1850); socialista de Henri Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837), Sismonde de Simondi (1773-1842) e Pierre Joseph Proudhon (1809-1865); grupo de engenheiros da École des Ponts et Chaussées, 4 especialmente Jules Dupuit (1804-1866) e Louis Marie Henri Navier (1785-1836).
Na junção da experiência de engenharia civil e infraestrutura no século XIX, Rosenberg e Vicenti (1978, p.71) indicam que a atividade envolveu investigações experimentais e conhecimentos empíricos que não dependeram da existência de conhecimento teórico prévio. Engenheiros também estiveram intensamente preocupados com considerações financeiras, o que os aproximava da busca por substituir materiais caros por outros mais baratos, redesenhar estruturas e otimizar processos (Rosenberg, Vicenti, 1978, p.73). 5
No âmbito das relações entre ciência e economia, Szmrecsányi (2001, p.171) aponta que essas interações se tornaram visíveis no decorrer do século XIX, em virtude da ação dos engenheiros, agente especializado e integrador da interface da ciência e da tecnologia. O encadeamento dessas relações repercutiu no mundo de leitura, escrita e divulgação de periódicos especializados, manuais e obras de popularização científica ( Boscq, 2014); bem como nas práticas científicas com diferentes tradições e condutas atreladas aos usos de instrumentos científicos ( Taub, 2011, p.690; Blondel, 1997, p.169-170; Vaccari, 2011, p.112).
No caso brasileiro, a literatura enfatiza a ocupação em postos de trabalho na burocracia estatal, o que revelava o fraco dinamismo econômico dos setores privados, incapazes de absorver os egressos dos cursos de engenharia ( Coelho, 1999, p.54-58). Por essas razões, a historiografia afirma que a principal ocupação dos ex-alunos das escolas de engenharia era os empregos públicos e as estradas de ferro ( Carvalho, 2002, p.103). Em decorrência desses argumentos, pesquisas apontam que engenheiros atuaram como técnicos e dirigentes nas companhias de estradas de ferro, articulados aos interesses do complexo agroexportador ( Marinho, 2015, p.205-208). Como consenso desses estudos está o fato nacional estabelecido da associação entre formados em engenharia, carreiras e ferrovias. Pode-se afirmar que essa historiografia apresenta forte perspectiva sociológica da institucionalização educacional, inserida em um recorte: a fronteira nacional ( Marinho, 2020, p.138-142).
A historiografia apresenta contribuições sobre a presença de engenheiros estrangeiros no Brasil oitocentista. Dentre esses, Louis-Léger Vauthier alcançou mais destaque (Poncioni, Dimas, 2010, p.27-36). Formado pela École Polytechnique de Paris, engenheiro de pontes e calçadas, Vauthier, em 1840, foi contratado pelo presidente de província de Pernambuco e permaneceu até 1846 ( Magalhães, 2010, p.41-44). Freyre (1960, p.313) identifica a participação de Vauthier no Regulamento de 1842, que aplicava os princípios de homogeneidade, unidade e hierarquia em projetos, orçamentos, arrematações e contabilidade das obras públicas, além da influência da economia política do socialista Charles Fourier no pensamento do engenheiro francês. Estudos também destacam a presença de engenheiros estrangeiros em outras províncias. Em São Paulo, o engenheiro Daniel Pedro Müller ( Beier, 2015), e o engenheiro Amélio Pralon na província do Rio de Janeiro ( Gouvêa, 2008, p.81-85). 6
Recentes pesquisas apontam para a participação de Gerber na difusão e construção no Brasil, em Minas Gerais, da ponte lattice, desenvolvida e registrada por Ithiel Town no escritório de patente dos EUA em 1820 e 1835 ( Cravo, 2012, p.361-363; Dreicer, 2010, p.128-130). Martins (1998) indica que, em 1861, a província firmou contrato com Gerber para mandar litografar na Europa a “Carta Corográfica da Província”. Em 1863, valendo-se dos trabalhos de Gerber, o mapa foi publicado, litografado por C. Flemming, em Glogau, na Silésia, e acompanhado da obra intitulada Noções geográficas e administrativas da Província de Minas.
Essas atividades relacionaram-se com o processo histórico de institucionalização na Europa do ensino politécnico nos séculos XVIII e XIX ( Lundgreen, 1984; Cortés García, 2006, Kranakis, 1997; Picon, 2004; Magalhães, 2010). Com base nesses resultados, argumenta-se que o engenheiro politécnico alemão mediou o intercâmbio de ideias e da cultura científica, o que permitiu diagnosticar as trocas culturais entre a Europa e o Brasil ( Findlen, 2005; Hilaire-Pérez, Verna, 2006; Gavroglu et al., 2008; Dreicer, 2010; Boscq, 2014). Gavroglu argumenta que é fundamental mudar a perspectiva da transmissão para a apropriação, pois essa evidencia o processo de produção de conhecimento. Por conseguinte, entrelaça circulação de pessoas, negociações/disputas e especificidades locais:
Estudos sobre ciência na periferia frequenmente empregam termos como ‘transferência’, ‘disseminação’, ‘influência’, ‘transmissão’, ‘introdução’, ‘resistência’ e ‘adoção’. Esses conceitos implicam particular modelo sobre a circulação do conhecimento: depois de serem formulados nos centros, aqueles que usam esses conceitos consideram o conhecimento científico um tipo de commodity, o qual pode ser distribuído pelas diversas redes intelectuais.
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Circulação de conhecimento tem sido considerada um processo mediado, do local para o global, ou um conhecimento múltiplo, diverso e contingente ao conhecimento. A circulação de práticas e ideias depende, antes de tudo, das pessoas ( Gavroglu et al., 2008, p.159-161).
No século XIX, Dreicer (2010, p.158) aponta que a história da engenharia ilumina um momento-chave: emergência de culturas nacionais, processo histórico-social de surgimento de fronteiras identitárias na engenharia, atrelada ao esforço de forjar heróis nacionais e inventores. Tal aspecto revela que as narrativas de transferência de tecnologia transmitem a inexata ideia de que os indivíduos inseridos em “cultura nacional” desenvolvem processos inventivos que se disseminam para outras nações (p.126-128).
Este estudo opta por uma abordagem que entrelaça micro-história e história conectada (Douki, Minard, 2007, p.15-17; Findlen, 2005, p.232-233). Portanto, afasta-se de abordagem centrada no critério de fronteira nacional (Douki, Minard, 2007, p.19-21; Gavroglu et al., 2008; Dreicer, 2010; Levi, 2018, p.25-26), insuficiente para reconstituir os critérios de racionalidade, relações entre educação e prática de engenheiros em circulação pela economia-mundo do século XIX ( Braudel, 1996, p.39; Picon, 1992, p.19, 2004, p.425-427).
Na seção seguinte, tomando por base a trajetória educacional, os projetos e cartas de Heinrich Gerber, argumenta-se que a ação do politécnico revela conexões continentais, trocas culturais globais e a cultura tecnocientífica no Brasil oitocentista.
Entre 1832 e 1872 a taxa anual de crescimento da população livre de Minas Gerais atingiu a marca de 2,8% ao ano. No que se refere à população escrava, o crescimento anual foi de 0,8%. Em termos percentuais se encontrava, em Minas Gerais, em 1832, aproximadamente, 16,6% da população do Império. Em 1872, a província possuía 20,6% da população do Brasil. Em termos absolutos, a população de 1832 contabilizava a marca de 848.197 indivíduos (572.099 livres e 276.098 escravos). Em 1872, a população alcançava 2.083.545 indivíduos (1.705.419 livres e 378.126 escravos) ( Rodarte, 2012, p.55-118). Minas Gerais, segundo o censo de 1872, detinha, em termos absolutos, a maior população escrava do Brasil, com 378.126 escravos. Era seguida pela província do Rio de Janeiro, com 306.425 cativos, que, somados com os 48.939 escravos da Corte, alcançava 355.364, e São Paulo, com 156.612 escravos ( Rodarte, 2012, p.89; Paiva, Godoy, Rodarte, 2012, p.77).
Foi nesse cenário que Gerber atuou como engenheiro da província de Minas Gerais, entre 1858 e 1867. Ex-aluno da Politécnica de Hanover (1847-1852) 7 ( Lundgreen, 1984), antes de se instalar em Minas, trabalhou no escritório de Conrad Hase (seu antigo professor), atuando em obras na cidade de Hanover; depois, partiu para estada em Paris, onde trabalhou ao lado do arquiteto Ignaz Hittorf na reforma da Place de La Concorde e, em Madri, na reforma da avenida Puerta del Sol ( Renger, 2013).
No Brasil, em 1866, ascendeu, após nomeação da Presidência da província, ao cargo de engenheiro chefe da Diretoria Geral de Obras Públicas de Minas Gerais (APM, 1866; APM, 1867a).
Ao lado de outro alemão, o ajudante de engenheiro Gustavo Dodt, empreendeu diversos serviços (cemitérios, teatro, chafarizes, cadeias, pontes e estradas) ( Brescia, 2011, p.102-103). Em 1853, Dodt era estudante de arquitetura em Lüneburg, Reino de Hanover. Aprovado em hidráulica e arquitetura dos caminhos, foi aceito pelo Real Ministério do Império como condutor de construção dos caminhos (APM, 1853-1860, doc. 9-44, 48). Atuou até fevereiro de 1858, quando solicitou demissão e seguiu para Minas, onde já se encontravam Heinrich Gerber e outro imigrante oriundo do Reino de Hanover: engenheiro Heinrich Wilhelm Ferdinand Halfeld.
Renger (2013, p.24) sugere que a contratação de Gerber tenha sido mediada pelo engenheiro Halfeld (1797-1873). Este, natural de Clausthal, Reino de Hanover, era formado em engenharia pela Bergakademie Clausthal, uma das principais escolas de minas da Europa ( Martins, 1998, p.25-26; Lundgreen, 1984). Em meados de 1820, em São João del Rei, trabalhou como engenheiro de minas na empresa inglesa General Mining Association. Na década de 1830, permaneceu em Minas, mas como empregado da mineradora Imperial Brazilian Mining Association (APM, 1836). Em maio de 1836, Halfeld firmou contrato como engenheiro da província de Minas Gerais.
Em 1858, Gerber, quando contratado pelo governo da província de Minas Gerais, apresentou dois atestados. O primeiro, comprovante de aprovação no exame de bacharel em ciências matemáticas e técnicas perante a comissão examinadora dos engenheiros do Estado do Reino de Hanover; e o segundo, atestado sobre suas atividades na função de engenheiro nas estradas de ferro hanoverianas (APM, 1853-1860, doc. 9-20).
Na França, onde estivera Gerber, o ensino técnico e científico se institucionalizou ao longo do século XVIII: a École des Ponts et Chaussées (1716), a École d’Artillerie (1720), École du Genie Militaire de Mézières (1748), a École de Mines (1783), a École Polytechnique (1794) (Cortes García, 2006, p.96). A prática da engenharia, as instituições acadêmicas e os manuais técnicos se disseminaram. O padrão educacional e acadêmico das instituições politécnicas também foi difundido. Na Europa, criaram-se institutos em cidades como Praga (1806), Viena (1815), Berlim (1821), Karlsruhe (1825), Hanover (1831), Zurique (1855), Delft (1864) (Cortes García, 2006, p.97; Lundgreen, 1984, p.307). Na América do Norte, o modelo politécnico de ensino teve influência em instituições e centros acadêmicos de grande prestígio, civis e militares ( Kranakis, 1997, p.4).
Na era da razão industrial, inaugurada após a Revolução Francesa, as escolas politécnicas foram concebidas sob o argumento do desenvolvimento econômico (Cortes García, 2006, p.106). A educação tornou-se chave para o êxito industrial e a esperança da condução da sociedade rumo ao progresso ( Magalhães, 2010; Salgueiro, 1997). Hierarquia e garantia da ordem como princípio do progresso configuraram os pilares da ideologia do progresso associada ao industrialismo, à filosofia positivista e à matemática e ao cálculo como norteadores da vida material ( Cortés García, 2006, p.106). Tais atividades aproximam os engenheiros daquilo que, a partir do século XVIII, com a emancipação da engenharia de raízes militares e com a contribuição das novas ideias políticas, os definia como contribuintes da utilidade pública e do progresso e capazes de formalizar a matemática, a geometria analítica e a mecânica em torno de questões práticas: problemas econômicos, planejamento urbano, pontes, estradas e canais ( Cortés García, 2006, p.106; Picon, 2004, p.427; Salgueiro, 1997).
Como sugere a Figura 1, em 1867, resultado das atividades de planejamento dos engenheiros provinciais, a Repartição de Obras Públicas abrigava 327 projetos e plantas (APM, 1867b): 160 tratavam de pontes, 75 de estradas. Mais de 70% das plantas eram destinadas a construção de infraestrutura. O restante, 92 projetos e desenhos, subdividiam-se em plantas geográficas e topográficas, obras hidráulicas e edifícios.
Projetos voltados para o investimento na infraestrutura refletia a relação umbilical entre expansão econômica, fiscalidade e modernização viária. Gerber contribuiu diretamente para a produção dos projetos e plantas. Em 1858, requisitou a compra de diversos instrumentos científicos. Em carta, registrou o que precisava: um teodolito-repetidor para nivelar e medir as distâncias, um “Tacheometro de M. Porro” de Paris, uma régua de nivelar dividida em palmos ou números visíveis pela luneta, cronômetro e sextante para observações astronômicas, duas pequenas bússolas de mão, dois níveis-borell, barômetro de viagem metálico “construção nova, que ganhou as medalhas nas exposições de Paris e Viena” (APM, 1853-1860, doc. 9).
O governo da Província atendeu a exigência do engenheiro politécnico. Importou de Paris, pela Casa Comercial de Ferreira Lage e Maia, que despachou os pedidos do Rio de Janeiro para Ouro Preto. É preciso destacar que nesse contexto, em 1861, a Presidência da província firmou contrato com Gerber para litografar na Europa a carta corográfica de Minas Gerais e também “fazer imprimir as noções geográficas e estatísticas” da província (Exposição..., 1862, p.6-7).
Em 1867, indica a Tabela 1, a repartição possuía 117 instrumentos, subdivididos em 11 grupos. Prevaleciam os instrumentos “gráficos”, “meteorológicos”, “de reflexão” e “de medir distância”. Segundo Warner (1990, p.85-86), é no século XIX que a expressão instrumento científico passa a ser associada às ferramentas da engenharia num movimento histórico, que enfatizou as conexões entre teoria e prática e, portanto, aparato educacional e realizações técnicas ( Blondel, 1997, p.163-165).
Além da compra de instrumentos científicos, o engenheiro mediou aquisição de livros ( Cravo, 2014). Gerber intermediou a compra de sete volumes de Connaissance des Temps e dois exemplares da Nautical Almanach (1866 e 1867) junto à Livraria Imperial, localizada na cidade do Rio de Janeiro (APM, 1867c).
Hilaire-Pérez e Verna (2006, p.536-565) apontam que a transmissão técnica na modernidade dependeu de uma série de recursos (mão de obra, material, disponibilidade de verbas, pessoas) e que, portanto, ao lado das formas de conhecimento codificado (tratados, manuais, livros etc.) existiram importantes atores intermediários (engenheiros, artífices, comerciantes, editores, livreiros, políticos, arrematantes).
Os resultados de pesquisa também revelam que Gerber participou do envio de dois jovens mineiros para estudar em Paris: Honório Henrique Soares do Couto e Francisco de Sales Queiroga Junior. 8
Gerber demonstrava conhecer o sistema educacional francês. Em 1862, em carta ao ministro plenipotenciário do Brasil na França, tratava dos dois estudantes mineiros em Paris, bolsistas da província de Minas Gerais, que depois de terem frequentado por quatros anos a escola preparatória do senhor Martelet matricularam-se na Escola Central das Artes e Manufaturas; no entanto, foram reprovados no exame de ingresso. Gerber era favorável a que se concedesse permissão aos alunos para estudar em regime particular as mesmas matérias que formavam o curso do primeiro ano da Escola Central, para, depois de findo o ano, seguir os estudos da École des Ponts et Chaussées (APM, 1862). Argumentava também que era a favor do prosseguimento da continuidade do suporte financeiro aos estudantes. A participação de Gerber resultou na formação do brasileiro na École des Ponts et Chaussées.
Gerber, mais do que mediador das publicações que codificaram os conhecimentos técnicos, atuou no intercâmbio de ideias e das culturas científicas da engenharia . Levando isso em conta, perseguir os passos de Gerber, reduzir a escala de observação e conectá-la à estrutura administrativa de um país em formação permitiram entrever as transferências culturais entre a Europa e o Brasil em meados do século XIX ( Boscq, 2014, p.49).
A próxima seção do artigo, intitulada “Uma visão dos trópicos: a economia política de Heinrich Gerber”, reduzirá a escala de análise para compreender os desdobramentos dos trabalhos de campo do engenheiro. A seção explora o modo como os projetos do engenheiro se relacionaram com a economia política, especialmente o pensamento politécnico do francês Henri Navier e a concepção fisiocrática francesa ( Schumpeter, 1969, p.46-50). As ideias de Gerber refletiram o nascimento, entre final do século XVIII e início do século XIX, da economia política, que constituiu uma forma de compreender o homem em sociedade: direcionou-se, a partir de então, especial atenção aos temas relativos ao desenvolvimento do comércio e da produção ( Singer, 1982, p.10-14; Schumpeter, 1969, p.46-73). Por conseguinte, sobressai no pensamento de Heinrich Gerber, de modo simultâneo, a temática dos negócios públicos e privados, tendo a premissa de que o homem econômico era um dado da razão ( Rosanvallon, 2002; Backhouse, 1998, p.11), bem como o compartilhamento da crença, presente no século XIX, de que era o momento de a ciência influenciar a política (Salgueiro, 1997, p.33).
A chegada de Gerber ao Brasil, na década de 1850, coincidiu com os impactos sofridos na vida nacional com o fim do tráfico transatlântico negreiro ilegal ( Parron, 2011; Engerman, 2000, p.286-294, Conrad, 1978, p.113-124). Essa conjuntura não escapou de sua avaliação. Logo apontou que grande parte do “povo” apresentava certa prevenção contra o trabalho agrícola. Muitos, segundo o engenheiro, em obra cuja primeira edição data de 1863, julgavam “o trabalho da roça próprio somente de braços africanos” ( Gerber, 2013, p.101). Gerber lamentava porque acreditava que, no Brasil, o trabalho agrícola “deveria realmente constituir o elemento fundamental da riqueza pública” (p.101).
No plano da economia-mundo, a revogação das Corn Laws (1846), segundo Chang (2004, p.44-46) representou vitória dos industriais britânicos e pode ser interpretada como um ato do imperialismo do livre-comércio para conter a industrialização do continente europeu mediante ampliação do mercado de produtos agrícolas e matérias-primas. Engels, em 1892, no prefácio de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, apontava que o mercado mundial havia se tornado realidade. Novos meios de comunicação (ferrovias e navios a vapor) eram empregados em escala internacional, e a política financeira e comercial da Inglaterra, por meio do livre-cambismo, havia adequado os interesses dos capitalistas industriais ao da nação ( Engels, 2010). Baratearam as matérias-primas, os meios de subsistência da classe operária, diminuíram o custo de vida e mantiveram os salários em patamares mínimos. A teoria do livre-câmbio, pós-revogação das Corn Laws, fundava-se na hipótese de que a Inglaterra tornar-se-ia o único grande centro industrial de um mundo agrícola ( Engels, 2010).
Em face da conjuntura internacional que, segundo Braudel (1996, p.346), transformou a Inglaterra, junto com o progresso de sua população e sua industrialização, em um país importador de produtos agrícolas, o pensamento do engenheiro Gerber sincroniza abertura de áreas agrícolas, industrialização britânica e construção de sistema global de transporte, baseado na estrada de ferro e na navegação a vapor, que também se valiam do sistema rodoviário tradicional. 9As ideias do engenheiro se entrelaçaram à expansão das relações internacionais, do desenvolvimento da infraestrutura e da produção de café no Brasil ( Hobsbawm, 2000, p.117).
Em 1858, com a lei 957, de junho, a província autorizou a construção de um ramal de estrada ligando a vila de Mar de Espanha à estrada da Companhia União e Indústria no ponto denominado Três Barras. Em 1859, Gerber apresentou relatório com detalhes econômicos e a proposta de criação de empresa privada para a construção dessa estrada (APM, 1859).
Gerber atentou para a exportação de café e outros gêneros e as taxas fiscais que incidiam sobre muares, porcos, ovelhas e cabras. Efetuou compilação estatística da circulação das recebedorias fiscais da fronteira de Minas Gerais e do Rio de Janeiro (APM, 1859).
O total de exportação de café alcançava 23,7 toneladas, transportadas por mais de duzentas mil mulas, conforme a Tabela 2. A média anual de exportação de porcos, ovelhas e cabras foi estimada em 5.394 animais.
Com o intuito de facilitar o trânsito entre Minas Gerais e Rio de Janeiro seria útil criar empresa privada, defendeu o engenheiro. Ela atenderia parte de Minas Gerais, que tinha feito progressos visíveis, em poucos anos, graças à cafeicultura e à agropecuária, que compreendia os municípios de Mar de Espanha, Leopoldina, Pomba, Ubá e São Paulo do Muriaé, região vulgarmente denominada a Mata. Essa região, pela sua posição, próxima ao Rio de Janeiro, achava mercado para os gêneros de sua produção, sobretudo para o café. O rendimento do presumido trânsito compensaria largamente o sacrifício empresarial. O objetivo era ligar as “grandes artérias”, que vinham do mercado do Rio de Janeiro, em direção à fronteira de Minas Gerais ( Gerber, 2013, p.101).
Seguindo ofício da Presidência da província para projetar sistema de viação entre municípios cafeicultores e as saídas para o Rio de Janeiro, Gerber indicava como primeira questão a ser avaliada a quantidade do trânsito e os impactos da estrada.
Valendo-se dessas premissas, Gerber argumentava que o efeito da estrada proporcionaria que muitos gêneros que, até então, por causa do alto preço de transporte, não se podiam exportar, iriam “dali em diante ao mercado” (APM, 1859). E isso levaria ao aumento da produção e, consequentemente, da exportação, destacava o engenheiro. Estimava a duplicação da importação, pelo motivo de que “as estradas trazem mais civilização, mais luxo” (APM, 1859). Em vista disso, “mais consumo de artigos importados” (APM, 1859) e maior trânsito de passageiros.
A ideia de mercado de Gerber traduz a aspiração do liberalismo econômico, sem mediações, autorregulada, na qual há “leis objetivas” ( Rosanvallon, 2002, p.59) que determinam as relações entre os indivíduos. Nota-se que a noção de mercado do engenheiro despersonaliza as relações sociais numa sociedade escravista ( Polanyi, 2000, p.62-72; Rosanvallon, 2002, p.59).
Cabe realçar a associação estabelecida pelo engenheiro de causa e efeito nos elementos da vida material. Chama atenção o fato de que, ao associar fluxos mercantis agrícolas e o sistema sanguíneo – “grandes artérias” –, Gerber se aproximava do liberalismo fisiocrático de Quesnay (1694-1774), 10 que considerava a agricultura fonte da riqueza nacional, criticava restrições e regulações do protecionismo manufatureiro do mercantilismo francês e aplicava a fisiologia sanguínea humana à economia política e à circulação econômica (Hunt, Lautzenheiser, 2011, p.36-37).
Para Gerber, não faltavam meios, mas o “espírito empreendedor” (APM, 1859) na busca para empregar capitais e unir forças isoladas para interesse comum. O engenheiro defendia a necessidade de “espírito de associação” para “benefício público” (APM, 1859). Era conveniente formar companhia privada para empreender a execução de estradas na zona cafeeira de Minas Gerais, tendo em vista “a insuficiência da renda pública” da província e as dificuldades inerentes aos pedidos de grandes empréstimos (APM, 1859).
Na França, na década de 1830, o engenheiro francês Navier também utilizou o argumento de que a construção de estradas deveria adotar o sistema de concessões para empresas privadas, pois, assim, o governo francês poderia executar obras públicas sem incorrer na despesa de novos acréscimos aos cofres públicos ou se valer do expediente de novos impostos para suprir as exigências pecuniárias da construção de novas estradas. Do ponto de vista de Navier, novas estradas eram custos para os cofres do Estado, o que o tornou um crítico das práticas da administração francesa. Tanto em Navier, na França, como em Gerber houve reconhecimento da relação direta entre finanças públicas, construção de estradas e a defesa de concessão para empresas privadas.
Em sua defesa do espírito associativo empresarial, Gerber argumentava que empresa “por particulares não correria o risco de quebrar” (APM, 1859), haja vista a quantidade de trânsito e a riqueza da produção, que garantiriam não apenas a existência da empresa como também boa margem de lucro (APM, 1859).
A respeito do desenvolvimento econômico e da industrialização tardia, Oliveira (2003, p.220-230) indica que bancos de investimento, importação de capitais, formação de sociedade por ações e apoio creditício do governo foram instrumentos históricos importantes para o desenvolvimento dos países ditos atrasados do século XIX ( Gerschenkron, 1968, p.151-157).
Os argumentos de Gerber formam contraponto às condicionantes aqui elencadas ( Selwyn, 2011, p.431). Pode-se afirmar que Gerber revela a debilidade de um sistema de crédito, a não operacionalidade de mecanismos da progressiva concentração e centralização de capitais e, portanto, ausência dos instrumentos para impulsionar o desenvolvimento, como o apoio financeiro do governo e a dificuldade em formar sociedades por ações.
A motivação de Gerber para a criação de empresa estava diretamente ligada à percepção de que o gasto provincial na construção e conservação de estradas pequenas e provisórias iria consumir grande montante de réis, sem desdobramentos expressivos para a economia (APM, 1859). Segundo o politécnico, o ideal era canalizar fluxo mercantil e de pessoas, de modo a centralizá-lo, em estrada principal, com o intuito de maximizar os recursos financeiros e humanos: “O cabedal enterrado em estradas provisórias está diretamente perdido, e nem indiretamente pode se esperar um reembolso pela futura prosperidade do país, porque ... em nada contribuem para um eficaz melhoramento das comunicações, e a agricultura e a indústria hão de ficar no mesmo estado atrasado como antes” (APM, 1853-1860, doc. 9).
Essa percepção de Gerber estava associada ao seu argumento de que em um “país novo” – onde não existem importantes povoações, não se sabe onde se “formarão os centros de produção” – torna-se difícil determinar a melhor direção de estrada que preencha um “fim racional econômico” (APM, 1859).
Sincronicamente a esse argumento, ao sublinhar como primeiro ponto da edificação a necessidade de um traçado que levasse em conta a facilidade das comunicações e a maior economia das despesas, Gerber previa que vozes privatistas iriam se levantar contra a escolha de um ou outro traçado, mas que a estrada não poderia passar por onde cada interessado desejasse para satisfazer aos desígnios de todos (APM, 1859). Defendia que a construção da empresa e da centralização dos fluxos mercantis deveria ter como propósito “o benefício público e o interesse geral como única norma ... o verdadeiro fio de Ariadne, que nos serve” (APM, 1859).
O planejamento da empresa, indicado por Gerber, projetava três anos de obras, o custo de réis por légua, a construção de quatro estações, a compra de setenta carros com capacidade de transportar 150 arrobas, três diligências e a compra de trezentas mulas (APM, OP 3-1, Caixa 1, doc. 5, 1859).
O retorno ao capital empregado estaria garantido, em virtude da receita da empresa. Gerber a estimava, como indica a Tabela 3, com base no transporte de 581 mil arrobas de gêneros exportáveis, a importação de 67 mil arrobas, o trânsito de 189 mil arrobas de gêneros de primeira necessidade, o uso da diligência para a circulação de dois mil passageiros e a cobrança de taxa itinerária da circulação total de 837 mil arrobas. Isso asseguraria receita anual de 365:890:000 réis, que juntamente com juros de 7% proporcionaria um dividendo de 5%, logo no primeiro ano da entrega ao trânsito, sem contar, segundo Gerber, a possibilidade de que “nos seguintes anos a frequência irá gradualmente aumentar” (APM, 1859). Classificava o empreendimento como o que “sem dúvida pode se chamar um bom negócio” (APM, 1859).
É importante destacar que Navier (1830) dedicou especial atenção em estabelecer os critérios econômicos de viabilidade da empresa privada, dentro do sistema de concessão de estradas. Valendo-se dessa preocupação, o politécnico francês indicou método para sinalizar a viabilidade do empreendimento, tendo como eixo central os direitos arrecadados sobre a circulação, um mínimo de tonelagem em circulação, o retorno dos fundos pecuniários investidos e os custos de manutenção ( Navier, 1830, p.19).
Provavelmente, o engenheiro politécnico alemão tinha conhecimento desses critérios, conforme indica a Tabela 4. Assim como Navier, Gerber revela preocupação em estimar lucratividade do investimento, volume de mercadorias e pessoas em trânsito, e custos anuais de manutenção.
Pode-se afirmar que o estudo de Heinrich Gerber preencheu os requisitos dimensionados por Navier em 1830: capital empregado, custos de manutenção, estimativa da lucratividade da empresa privada e viabilidade, além da defesa do empreendimento privado para construir estradas.
As evidências permitiram recuperar traços significativos de trocas entre culturas científicas ainda pouco conhecidas da historiografia, em especial quando referente ao engenheiro estrangeiro Heinrich Gerber, ocupante de cargo provincial de alta relevância na estrutura administrativa da maior província escravista do Império do Brasil. À frente da Direção Geral das Obras Públicas, suas atividades organizaram-se em torno da produção de centenas de plantas e projetos, da compra de livros e instrumentos científicos. Além de difundir e construir ponte lattice em Minas Gerais, aspecto já delineado pela historiografia, valendo-se da patente registrada no escritório norte-americano em 1820 e 1835 ( Cravo, 2012; Dreicer, 2010), os novos resultados apontam que Gerber participou ativamente na concessão de bolsa de estudos para dois estudantes mineiros, enviados a Paris, com a finalidade de cursar engenharia, o que proporcionou a formação de engenheiro brasileiro na École des Ponts et Chaussées.
Os dados analisados manifestam forte associação entre os métodos indicados na obra de Henri Navier e os adotados por Heinrich Gerber; sobretudo quando da investigação e elaboração de projetos e orçamentos viários. Esses indícios de associação entre as ideias de Navier e os procedimentos de Gerber não podem ser desconsiderados à luz do fato de que os arquivos históricos, as fontes primárias, jamais descortinam a história tal como foi e como deseja o afã positivista. É nessa medida que cabe, portanto, “desvendar” entrelinhas, estabelecer conexões e historicidade das atividades do engenheiro Heinrich Gerber e da atividade tecnocientífica no Brasil oitocentista.
Os resultados também indicam a intermediação de Gerber para a seleção de obras e instrumentos a serem adquiridos, o que propiciou identificar a atuação governamental para importar equipamentos da França e encomendar livros franceses, tendo a intermediação de livreiros cariocas.
As evidências permitem concluir que, entre o momento de contratação de Heinrich Gerber (1858) até o momento de sua saída da função de engenheiro chefe da província de Minas Gerais (1867), o tempo histórico foi marcado por dois ponteiros. O primeiro, o tempo de trocas culturais globais e fronteiras incertas entre engenharia, ciência e economia. O segundo, as cartas e os projetos de Gerber, que expressam de forma aguda sua concepção de mundo, foram demarcados pelo viés da doutrina liberal, fisiocrata e do pensamento do engenheiro politécnico francês Navier sobre as práticas de administração de obras viárias.
Por meio de suas atividades como engenheiro, observou a sociedade escravista brasileira sob a perspectiva da noção de atraso. Para superá-lo, segundo Gerber, não seria necessária a interferência pública, a ação do poder provincial para centralizar capitais, mas sim o espírito empreendedor, assentado na noção de benefício público e interesse geral. No entanto, o espírito associativo dos cafeicultores para inverter fundos na empresa de transporte não se manifestou.