Resumo: A partir dos conceitos de cultura, território, conservação integrada e sustentabilidade, o artigo analisa o significado da participação social em processos de reconhecimento, apropriação, preservação e valorização do patrimônio cultural. Adota como objeto o Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz, e seu Plano de Requalificação, que visa transformá-lo num “ campus parque”. Tem base num diagnóstico sobre a participação social, que aponta a necessidade de sua ampliação para a consolidação desse núcleo como um patrimônio cultural não só para as ciências e a saúde, mas também por sua apropriação pelo território como um bem de valores simbólico, cognitivo e identitário e como elemento estruturante ao desenvolvimento sustentável.
Palavras chave: Participação social, Patrimônio cultural, Território, Conservação integrada, Sustentabilidade.
Abstract: Based on the concepts of culture, territory, integrated conservation, and sustainability, this article analyses the meaning of social participation in the recognition, appropriation, preservation, and enhancement of cultural heritage. The object of analysis is the Manguinhos Historical Architectural Site, at Fundação Oswaldo Cruz, and its Requalification Plan, which aims to transform it into a “park campus.” A diagnostic study was conducted of social participation in this heritage, which found that greater participation should be encouraged if the complex is to be consolidated as science and health heritage and also appropriated by the territory as an asset of symbolic, cognitive, and identity values and a structuring element for sustainable development.
Keywords: Social participation, Cultural heritage, Territory, Integrated conservation, Sustainability.
ANÁLISE
Participação social e território: diálogos possíveis para a gestão sustentável do patrimônio cultural
Social participation and territory: possible dialogues for the sustainable management of cultural heritage
Recepção: 8 Novembro 2022
Aprovação: 20 Março 2023
O conceito de território não se restringe ao sentido de um espaço geográfico delimitado com atribuições físicas e estruturais. Trata-se de uma rede multicomplexa que integra sujeitos, objetos, relações e interações diversas, criando um espaço polissêmico socialmente construído ( Santos, 2017 ). Essa noção está ligada, ainda, ao exercício e disputa de poderes nos âmbitos político, econômico e social sobre determinada área. Ou seja, para tratar de um território é necessário compreender o conjunto de coisas integrado aos atores (individual, social ou coletivo) que se manifestam nesse espaço.
Segundo Haesbaert (2004) , o território está imerso em relações de dominação e/ou de apropriação sociedade-espaço, em que os sujeitos ora manipulam e tomam posse de suas estruturas físicas, ora, ao mesmo tempo, tecem relações, atribuem significados e valores, nele manifestando culturas diversas. Enquanto a perspectiva da dominação está centrada nas dinâmicas de produção e acumulação capitalistas, observa-se que a de apropriação está articulada ao sentido cultural-simbólico da vida.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é uma instituição pública vinculada ao Ministério da Saúde, de grande relevância mundial na área das ciências e da saúde, e tem seu campus sede instalado no bairro de Manguinhos (Rio de Janeiro). Sua localização originalmente esteve atrelada ao desenvolvimento de um sistema de transporte marítimo e ferroviário, ainda no final do século XIX, advindo com a expansão e transformação da malha urbana, e à mudança de uma área rural em industrial. Nos dias de hoje, entretanto, representa mais um modelo de desenvolvimento urbano segregador, com o acirramento socioeconômico replicado pelos territórios de favela do Rio de Janeiro. Em resposta a esse cenário, a Fiocruz vem acumulando um histórico de atuação no território para a promoção da saúde e diminuição das iniquidades socioambientais. A carência em serviços e em infraestrutura básica adequada para a qualidade de vida da população local, compreendendo os fatores sociais que incidem em suas condições de saúde, é o que justifica e potencializa as ações institucionais em prol da redução das desigualdades em escala territorial.
Desde 2003, a Fiocruz possui um órgão ligado à sua Presidência dedicado a integrar ações e tecer redes de comunicação e relação direta, denominado Coordenação de Cooperação Social (CCS), e tem consolidado uma série de instrumentos, políticas e ações territorializadas. Articulam-se à CCS as Estratégias Fiocruz para a Agenda 2030 (EFA, 2030), instituída a partir de 2017, com aspiração de alcançar os cinco “Ps” do desenvolvimento sustentável, segundo a Organização das Nações Unidas ( ONU Brasil, 2023 ): pessoas, planeta, prosperidade, paz e parceria. Seu principal objetivo é analisar e prospectar ações estratégicas à saúde, ao desenvolvimento e à sustentabilidade no âmbito institucional a médio e longo prazos.
Destaca-se, ainda, o Programa Institucional de Territórios Sustentáveis e Saudáveis (Pitss) (Fiocruz, 2019), que une a perspectiva da sustentabilidade e do território apoiando e articulando conhecimentos e experiências institucionais com o protagonismo dos grupos sociais presentes nos territórios socioambientalmente vulnerabilizados, constituindo uma rede colaborativa capaz de consolidar práticas sustentáveis e políticas públicas relacionadas com o tema. O Pitts busca associação de sua agenda com diversas iniciativas e demais programas institucionais, tais como a própria EFA 2030 e as ações da CCS, em interface com estratégias e políticas nacionais na perspectiva de fortalecimento político territorial.
Historicamente, o campus sede da Fiocruz originou-se do terreno de uma fazenda em Manguinhos, constituído de gleba única, cujos limites sofreram sucessivas alterações por conta de aterros, retificação de rios e abertura de vias de acesso. A partir da década de 1940, com a abertura da avenida Brasil, o território da instituição sofreu seccionamento e passou a ser compreendido pela comunidade interna de trabalhadores como duas áreas separadas. O campus Fiocruz Manguinhos configurou-se como a área mais extensa, localizada no lado ímpar da avenida Brasil e nos limites do bairro de Manguinhos, incluindo uma vasta área verde, uma área de preservação histórica e um conjunto de edificações para abrigo dos diferentes órgãos e unidades institucionais. Já o lado par da avenida, parte que integra os limites do bairro da Maré e compreende a área da Expansão começou a ser ocupado a partir da década de 1970, durante o governo Castello Branco, quando houve a inauguração do edifício para a Delegacia de Saúde, do Ministério da Saúde (Oliveira, Costa, Pessoa, 2003, p.158). O terreno e a edificação foram incorporados novamente à instituição na década de 1980, e neles funcionam, desde então, diversas atividades de diferentes institutos da Fiocruz, sendo a área denominada Expansão do campus Manguinhos.
A partir de 2022, a nova nomenclatura campus Fiocruz Manguinhos-Maré passou a ser adotada de maneira a subverter a desagregação que se atrelava ao território da instituição e a romper com a ideia de área complementar ou de expansão ao campus Manguinhos, associada a uma ocupação não planejada e, até então, não compreendida como um campus independente. Essa transformação chancela o pertencimento da antiga área da Expansão aos limites da Fiocruz, ainda que esteja alocada em bairro e terreno separados ao campus Manguinhos e em lado oposto da avenida Brasil, conformando juntos um campus integrado (ver Figura 1 ).
Essa iniciativa campus Fiocruz Manguinhos-Maré contribui simbolicamente para a superação da avenida Brasil como barreira física entre os campi e as comunidades que a margeiam, pois, embora tenha sido inaugurada como artéria viária estratégica à cidade para união de regiões distantes, paradoxalmente interfere e cinde áreas próximas constituídas anteriormente à sua construção como único espaço socioambiental. Corrobora, ainda, com a política de reconhecimento e de indução pela instituição em prol da territorialidade que já se manifesta em diferentes estratégias das unidades e órgãos que a integram, tornando a Fiocruz parte indissociável do território de Manguinhos e da Maré.
Em contexto urbano, observa-se que esse território compartilha um histórico de transformações socioambientais, com destaque para o processo de origem e ocupação de uma das favelas do bairro de Manguinhos denominada morro do Amorim, motivado pelo próprio processo de construção e funcionamento da instituição nas primeiras décadas do século XX. 1 Compreender, portanto, a Fiocruz campus Manguinhos-Maré representa a legitimação de uma relação que vem sendo tecida, por muito tempo, entre a instituição e os grupos socioculturais e comunidades desses territórios.
O objeto central da presente pesquisa, o Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos (Nahm), faz parte desse contexto e está articulado com tal dinâmica territorial. O núcleo se configura como sítio histórico composto por um conjunto de edifícios e jardins idealizados por Oswaldo Cruz durante sua gestão, ainda no início da trajetória da instituição. Entre 1904 e 1922 foi projetado e construído pelo arquiteto português Luiz Moraes Jr., que imprimiu ao prédio elementos decorativos característicos dos estilos neomourisco e eclético para a composição de sua arquitetura. A conformação do Nahm inclui o pavilhão Mourisco (1905-1918), o Pavilhão da Peste (1904-1905), a Cavalariça (1904), o Pavilhão Figueiredo Vasconcelos, também conhecido como Quinino (1919-1921), a Casa de Chá (c.1905) e seu anexo (c.1920), o Pombal (1904), assim como as áreas verdes e jardins da Praça Pasteur e do Caminho Oswaldo Cruz ( Figura 2 ).
A esse sítio soma-se o Núcleo Modernista, construído entre os anos 1940 e 1950 2 a partir de edificações com arquitetura de expressão moderna, e juntos consolidam-se como patrimônio cultural cujos valores transcendem à sua arquitetura e se revelam imbricados à história das ciências e da saúde no Brasil, como representante imagético e simbólico da instituição brasileira que atualmente mais tem se destacado no cenário mundial de superação da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. O campus Manguinhos possui valores reconhecidos por atores da sociedade civil e do Estado, com proteção tutelada por órgãos municipais, estaduais e nacionais, e é marco na paisagem urbana da cidade do Rio de Janeiro, onde, principalmente, o castelo Mourisco ganha destaque por conta de sua arquitetura e das próprias características geográficas do campus , que o posicionam em nível elevado e o evidenciam em contraste perceptível ao tecido urbano de seu entorno.
Devido a sua trajetória compartilhada com a Fiocruz, o Nahm acumula vivências e dinâmicas entre os diferentes sujeitos sociais individuais e coletivos, tecendo relações afetivas e integrando a atribuição de múltiplos significados e valores. Todos esses elementos corroboram para a territorialidade desse patrimônio e se unem numa perspectiva indissociável ao território de Manguinhos e da Maré.
Atualmente, além de abrigar o uso administrativo e laboratorial, parte do núcleo está integrada ao circuito de visitação do Museu da Vida Fiocruz e abriga espaços expositivos abertos ao público. O museu é um equipamento cultural da instituição vinculado estruturalmente à Casa de Oswaldo Cruz (COC), 3 cujo papel é valorizar e popularizar a pesquisa e a ciência por meio de ações culturais e educativas. Configura-se, juntamente ao Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), 4 como ator social e mediador desse patrimônio cultural que, ao proporcionar diferentes experiências e vivências nesses espaços, contribui para a formação de memórias e para o entrelaçamento dos sujeitos do território com o bem cultural.
Nos anos 2000 a Fiocruz foi provocada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a fazer um plano diretor específico para a área do campus Manguinhos tombada pelo Iphan, 5 uma vez que os planos diretores vigentes 6 não correspondiam mais às transformações urbanas e arquitetônicas ocorridas. Esse desafio fez com que a instituição, sob coordenação do DPH/COC, desenvolvesse o Plano de ocupação da área de preservação do Campus Fiocruz Manguinhos (Poap), em 2011, 7 o que trouxe a proposta de consolidar a vocação desse espaço urbano como um “ campus parque”, entendendo-o como um ambiente saudável, seguro, confortável e culturalmente enriquecedor para seus funcionários e visitantes ( Fiocruz/COC, 2011 ). O Poap fortaleceu as bases necessárias para haver um plano estratégico ao Nahm que compreendesse um conjunto de vantagens político-econômicas integrado ao processo de preservação e valorização desse patrimônio cultural. O arcabouço normativo da instituição, que inclui políticas de gestão urbana e patrimoniais, vem acumulando um rol de experiências sob a perspectiva democrática e sustentável 8 e, junto aos valores e princípios institucionais históricos, foram o leitmotiv que balizou e viabilizou a elaboração do Plano de Requalificação do Nahm em 2014.
Nesse ponto, evidencia-se o cerne do presente artigo em analisar o Plano de Requalificação do Nahm por meio de seu viés social, adotando por base a participação social como ferramenta capaz de integrar os diferentes sujeitos constitutivos do território Manguinhos-Maré e de contribuir para seu desenvolvimento sustentável.
Para tratar da dimensão social do patrimônio cultural, tomando-o como conjunto de coisas, relações e significados atribuídos por diferentes sujeitos e grupos da sociedade ao longo do tempo, faz-se necessário destacar a concepção ampliada de cultura e os conceitos da conservação integrada e da sustentabilidade. Esses conceitos convergem no que diz respeito à indissociabilidade do patrimônio cultural da perspectiva da participação social. Essa impossibilidade de dissociação decorre de o valor de um bem cultural não ser algo natural ou inerente a ele, mas, sim, atribuição dada por uma população em determinados contexto, lugar e época, e por sua apropriação social se dar na razão direta da participação social em sua eleição como patrimônio.
Assim como foi adotado para o Plano de Requalificação, o conceito ampliado de saúde (no qual as dimensões econômica, política, social e cultural estão presentes na produção da saúde) é importante para ressaltar a cultura aqui referida e, por conseguinte, o patrimônio cultural, que transcende os conceitos de cultura culta, popular ou de massa e se refere ao que contemporaneamente se aceita como sua concepção antropológica. Essa concepção traduz a ação e a produção que decorrem da busca humana por sentidos e realizações como cultura, que a associa a “produtos comportamentais, espirituais e materiais da vida social humana conforme definida no século 19 por Edward Tylor” (Pinheiro, Nascimento Jr., 2020, p.651) e que tem sido reforçada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, 2007), que a toma a partir da “Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais” de 2005 por sua diversidade, como fundamento de identidade, desenvolvimento e coexistência entre os povos e nações.
Considerando as diversas discussões acerca da sustentabilidade conduzidas em contexto global, a partir, principalmente, da Conferência de Estocolmo, promovida pela ONU em 1972, pode-se compreender esse conceito como construção social constante, fruto de diversos debates ao longo do tempo que foram consolidando princípios e boas práticas a fim de atender às necessidades e aspirações humanas das gerações presentes e futuras. Seu sentido parte das dimensões ambientais, sociais e econômicas 9 e se apoia em outros diferentes conceitos, próprios de cada dimensão, sendo incorporado amplamente nas agendas políticas por meio da Agenda 2030.
Quando associado ao patrimônio, o conceito de sustentabilidade pode referir-se aos valores e à identidade construídos ao longo do tempo ( Acselrad, 1999 ). De acordo com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11, 10 praticar a proteção e a salvaguarda do patrimônio cultural influencia diretamente na qualidade de vida das pessoas, sendo um dos passos para “tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis” ( ONU Brasil, 2023 ). Essa perspectiva está em consonância com o entendimento de saúde ampliada, sob o qual a Fiocruz atua e no qual se considera que os diversos fatores sociais, ambientais, culturais, econômicos, étnico/raciais, psicológicos e comportamentais afetam a vida diária dos sujeitos, incidem sobre seu bem-estar e, portanto, em sua condição de saúde, conforme entendimento sobre os determinantes socioambientais da saúde (Buss, Pellegrini Filho, 2007).
O conceito da conservação integrada, por sua vez, considera o patrimônio em conjunto com o tecido urbano e engendrado pelos processos histórico-sociais que o conformam. Conclama a responsabilidade compartilhada entre poderes locais e a população para constituir, preservar e gerir o bem, com atenção à educação patrimonial como meio de promover a sensibilização e o (re)conhecimento necessários, entendendo que “uma política de conservação implica também a integração do patrimônio na vida social” ( Conselho da Europa, 1975 , p.6).
Refletir, então, sobre a gestão sustentável do patrimônio cultural concentra-se em sua (inter)relação com os diversos sujeitos que constituem a sociedade, como sendo aqueles capazes de se apropriar, cuidar, transmitir e ressignificar o bem. Logo, observa-se a convergência dos conceitos de patrimônio, de conservação integrada e de sustentabilidade: a participação social.
Participação social é, em teoria, a essência da democracia, e tem como princípio uma redistribuição de poder e a ampliação do debate público em decisões que afetam uma sociedade com os diferentes grupos populacionais que a constituem. O envolvimento dos cidadãos nos processos políticos transcorre sempre num campo de disputa e a partir de diferentes níveis mais ou menos legítimos e efetivos. Em seu trabalho, Arnstein (1969) relaciona oito categorias divididas em três chaves que buscam mensurar o grau de participação social de acordo com o poder que os cidadãos são capazes de exercer ao longo dos processos políticos, e as organiza em uma lógica escalar.
As duas primeiras categorias estão contidas no que Arnstein define como não participação, e as três seguintes, na categoria denominada “tokenismo”, 11 na qual a participação é apenas figurativa, simbólica e manipulativa, não possuindo envergadura transformadora suficiente, e o poder sobre determinado processo se mantém inalterado e concentrado nos gestores ou na cúpula decisória. No topo da escala encontram-se as três categorias que representam os maiores níveis de participação social, nas quais os cidadãos são capazes de exercer o poder de fala, escuta, deliberação, negociação e de tomada de decisões em responsabilidade compartilhada com os gestores.
No que tange às políticas de preservação do patrimônio cultural, os processos participativos influem no envolvimento e poder dos cidadãos desde a constituição do patrimônio em si, em sua relação e atribuição de valores e significados, até as tomadas de decisão para sua gestão compartilhada. 12 Incluem, ademais, a integração do patrimônio na vida social dos cidadãos, ou seja, em seu grau de apropriação e uso desses bens patrimoniais.
Seguindo a Carta de Lisboa (1995), podemos considerar a requalificação uma estratégia de gestão que visa retomar alguma atividade, adaptada ao local e de acordo com o contexto atual em que o objeto se encontra. Deve prever a participação social, integrando todos os interessados, que, por sua vez, devem conhecer o bem e o processo. Pode ser entendida, ainda, como uma estratégia de valorização do patrimônio, orientada ao reconhecimento de seus valores e à ressonância na sociedade ( Choay, 2017 ; publicado originalmente em 1925).
O plano de requalificação do Nahm preconiza em seu documento de referência os princípios da sustentabilidade e da conservação integrada, o que o torna estratégico para o aprofundamento da relação entre a sociedade e o patrimônio cultural, e para implementação de um processo democrático e participativo. Diferencia-se, entretanto, de requalificações arquitetônicas, devido à sua abrangência, e de requalificações urbanas, visto que
não se trata de revitalizar ou de transformar áreas e edificações históricas pouco ou nada em uso de uma instituição centenária num espaço museológico, como ocorre em muitas das intervenções dessa natureza, e sim, conciliar sua plenitude e vigor institucional e científico, sua identidade e ethos , com sua vocação desde sempre de ser um espaço público também voltado à educação científica e à realidade da vida cotidiana das populações, notadamente daquelas em estado vulnerável (Almeida, Pinheiro, 2020, p.13).
O plano de requalificação do Nahm veio a se concretizar como possibilidade a partir da aprovação do Poap e de uma conjuntura institucional favorável caracterizada por gestões da alta cúpula sensíveis ao patrimônio cultural, à educação em ciências e por possibilidades de construção de novas edificações no campus Manguinhos e em outros campi na cidade do Rio de Janeiro, o que permitia a substituição gradativa de atividades administrativas instaladas no Nahm por outras que valorizassem e preservassem suas edificações históricas. A partir de um trabalho participativo desenvolvido desde 2011, foi conformado um planejamento estratégico pactuado na instituição para preservação e valorização desse núcleo histórico, tomando como base os princípios supracitados e outros, tais como preservação da singularidade e da identidade da instituição; intensificação da relação da instituição com a cidade, principalmente com o território em que se situa; requalificação sustentável do núcleo; aumento de ofertas de atividades socioculturais e de educação em ciências e saúde oferecidas à população; e a conformação de um campus parque aberto ao público ( Fiocruz/COC, 2014 ; Pinheiro et al., 2019 ).
O conceito de requalificação sustentável não se limita à sustentabilidade na reabilitação de áreas históricas e extrapola a procura pela eficiência no uso de recursos naturais para diminuição do impacto ambiental ao considerar: a melhoria da qualidade de trabalho e de vida dos trabalhadores e usuários do Nahm e do campus Manguinhos-Maré; a valorização do patrimônio cultural do campus ; a melhoria da coesão social com o fomento da cidadania e da valorização da diversidade; e a promoção da vitalidade socioeconômica do território. Toma como referência os estudos produzidos pela Rehabimed ( Consorsio Rehabimed, 2008 ), uma rede interdisciplinar voltada para as intervenções sustentáveis, com vistas à revitalização socioeconômica de centros históricos no Mediterrâneo ( Pinheiro et al., 2019 ). De maneira complementar, a ideia de um campus parque aberto ao público se configura como estratégia fundamental ao fortalecimento da territorialidade do Nahm, à proposição de atividades diversas e à pluralização e democratização desse lugar. 13 Por outro lado, igualmente apresenta um desafio à instituição, visto que se trata de um lugar de intensa vida acadêmica e de produção científica e tecnológica.
O plano, que de fato abrange o Nahm acrescido de algumas edificações do Núcleo Modernista, adota uma metodologia de ordenamento e priorização de ações e está subdividido em programas, com características e demandas específicas, próprias de cada área temática que compõe o processo de implementação de uma requalificação de tal porte. 14 Atualmente, engloba: Programa Arquitetônico e Urbanístico, Programa de Exposições, Programa de Captação de Recursos, Programa de Cooperação Técnica, Programa de Comunicação, Programa de Acolhimento e o Programa de Sustentabilidade.
Vale, neste ponto, focalizar o Programa de Sustentabilidade, concebido para ampliar e difundir estratégias para a sustentabilidade do plano de requalificação a longo prazo, orientado, principalmente, pela Agenda 2030 ( ONU Brasil, 2023 ), Marco Conceitual Comum em Sustentabilidade e Programa Institucional de Territórios Sustentáveis e Saudáveis (Fiocruz). É dividido em quatro fases, algumas realizadas de maneira concomitante e, outras, sucessivas, com início em uma fase exploratória, na qual se buscou a interlocução de diferentes atores e pesquisadores para construir coletivamente os conceitos ligados à requalificação sustentável. Incluiu, ainda, uma fase de pesquisa, com aplicação de instrumentos para a coleta de dados orientados para a comunidade de trabalhadores da COC, e encontra-se em fase de consolidação e documentação de princípios, diretrizes de ação e propostas alinhadas e transversais aos diferentes programas.
O agenciamento dos espaços do Nahm para o público interno e externo se realiza por meio, principalmente, do Museu da Vida Fiocruz, que organiza e opera visitações públicas ao circuito de atividades culturais oferecidas no campus Manguinhos-Maré, e do Departamento de Patrimônio Histórico, que adota estratégias de educação patrimonial a fim de aproximar a sociedade e de colaborar para a construção de uma relação afetiva com esse patrimônio cultural.
São diversas as ferramentas e métodos que auxiliam na implementação da participação social nas políticas patrimoniais, com abrangência de duas perspectivas diferentes: mirando a construção coletiva de propostas e sob o ponto de vista da apropriação do patrimônio cultural. No que concerne ao processo de construção coletiva, faz-se necessário criar mecanismos de escuta e diálogo com a sociedade de maneira ampliada, concebendo espaços para contribuições e integrando as experiências de cada indivíduo em sua complexidade e subjetividade. Por outro lado, são outras inúmeras estratégias para promover a permeabilidade, a fruição, o uso e as experiências compartilhadas nesses espaços, de maneira a desenvolver vínculos afetivos e valores que se expressam em sua relação cotidiana em convergência para a valorização e a preservação do patrimônio.
Esses dois vieses da participação social se entrelaçam e incidem um sobre o outro, estabelecendo uma relação profunda entre o indivíduo e o patrimônio cultural. Esse é o resultado de maior interesse e desejo para a conservação integrada e para a sustentabilidade. Compreender, portanto, as percepções do território sobre o plano de requalificação do Nahm é um passo vital no caminho para incentivar reflexões sobre o cenário da participação social em seu processo de implementação.
Esta parte do artigo adota como base uma pesquisa social realizada no âmbito de um trabalho de mestrado ( Almeida, 2021 ) que buscou contribuir para reflexão crítica e aprimoramento das estratégias para a promoção da participação social dos grupos do território no desenho de proposições integradas e sustentáveis concernentes ao plano de requalificação do Nahm. De acordo com Antonio Carlos Gil (2008 , p.26), pode-se definir pesquisa social como “o processo que, utilizando a metodologia científica, permite a obtenção de novos conhecimentos no campo da realidade social”. Por meio do método de pesquisa social qualitativa é possível identificar a percepção de sentimentos, comportamentos, de opiniões e crenças.
A adoção dessa metodologia ocorreu pela aplicação de questionários on-line , cujo processo de coleta das respostas foi realizado entre novembro de 2020 e março de 2021. Visto que a pesquisa social está condicionada aos fatores socioeconômicos e políticos da época que lhe é própria e que depende desse contexto para que seja compreendida, é necessário destacar que a modalidade on-line foi explorada de maneira a viabilizar a pesquisa durante um período crítico de crise sanitária provocada pela covid-19. O novo coronavírus afetou profundamente as condições de trabalho, de educação, de moradia, de alimentação, de transporte, e dos demais condicionantes sociais relativos a escalas individuais e coletivas que incidem sobre as condições de saúde da sociedade, causando um alargamento dos contrastes sociais e econômicos que já se faziam presentes ali. No Brasil, e especialmente na cidade do Rio de Janeiro, esses impactos afetaram de maneira cruel a população que já vivia em condições de vulnerabilidade socioambiental e, principalmente, os moradores das áreas de favelas. É importante, portanto, observar que os grupos de interesse da pesquisa realizada, além de enquadrados nesse cenário de formas e intensidades diferentes, constituíram, em parte, a população mais afetada, o que pode ser considerado um dos fatores de grande impacto.
A pesquisa foi direcionada para dois grupos de interesse, delimitados de modo a reiterar a indissociabilidade do patrimônio cultural em questão à dinâmica territorial local, imbricado a um espaço polissêmico formado por um conjunto de formas, objetos, ações e interações humanas, e no qual é possível observar a Fiocruz como ator social que nele exerce poder. Assim, os grupos foram divididos em interno (comunidade interna da Fiocruz) e externo (moradores do território), entendendo a importância de cada um no processo de participação social do Nahm.
A partir de um levantamento prévio, foi realizado contato inicial seguido do envio de um link para acessar os questionários. Diferentes estratégias foram utilizadas a fim de potencializar o alcance da pesquisa para os grupos de interesse, como a da “bola de neve”, em que cada respondente indica e encaminha o questionário para outros, a criação de rede social e site com as devidas explicações e esclarecimentos sobre a pesquisa, além de transmissão pela lista de mailing da instituição. A formulação do questionário levou em conta a especificidade de cada grupo, atentando para sua relação com a instituição, e se concentrou nas seguintes temáticas: conhecimento dos grupos sobre o Nahm e seu plano de requalificação; uso e rotina nesses espaços, considerando a conjuntura anterior à pandemia; experiências de visitação ao circuito do Museu da Vida Fiocruz; e o interesse de cada respondente em participar coletivamente do processo de construção de propostas. As análises realizadas no presente artigo buscam compreender a relação que os sujeitos do território manifestaram para com o Nahm, dando enfoque à percepção sobre seu plano de requalificação.
A população que corresponde ao grupo interno, denominada no trabalho Comunidade Interna da Fiocruz, é formada por trabalhadores, terceirizados e servidores, estudantes, bolsistas e aposentados alocados nos diferentes campi da Fiocruz, incluindo as unidades regionais de outros estados. O cálculo da amostragem tomou como base o documento institucional intitulado Boletim estatístico de pessoal , com os dados referentes a 2020 ( Fiocruz, 2020 ), e foi dimensionado para um grau de confiança de 90% e erro máximo de 5%, alcançando o total de 274 formulários validados.
O perfil predominante da comunidade interna da Fiocruz é de trabalhadores entre 35 e 64 anos, com pós-graduação completa e alocados no campus Fiocruz Manguinhos-Maré. Conforme evidenciado em reflexão anterior (Almeida, Pinheiro, 2022), a maneira como esse grupo permeia e se apropria dos espaços do Nahm está relacionada, principalmente, às atividades de trabalho e estudo experimentadas em seu cotidiano, o que caracteriza, e se denomina no trabalho, como “relação próxima”. Deve haver uma atenção, entretanto, para a realização de feiras e eventos organizados em seus jardins e espaços urbanos como fator capaz de colaborar para o aprofundamento das relações e valores atribuídos a esse patrimônio, já que foram opções de atividades indicadas pelos participantes.
Apesar de demonstrar relação rotineira com o Nahm, observa-se que a maior parcela do grupo indicou não conhecer seu plano de requalificação (cerca de 60%) ou, ainda que tenha ouvido falar do plano, indicou não saber muito bem do que se trata (23%). Entre aqueles que já tinham ouvido falar do plano anteriormente à pesquisa (40%), observa-se que as estratégias de comunicação mais eficientes se concentraram em divulgações on-line e nos diálogos entre colegas de trabalho, cuja representação somou mais de 65% desse recorte (Almeida, Pinheiro, 2022, p.501-502).
A pesquisa integrou etapas de testagem de hipóteses utilizando metodologias simplificadas, fundamentais para a compreensão do patrimônio cultural da Fiocruz a partir dos princípios da conservação integrada e da sustentabilidade, e concepção do Nahm em sua (inter)relação com os sujeitos constitutivos do território. Destaca-se a exploração do cálculo do coeficiente Q de Yule ( Gil, 2008 , p.162-167), utilizado para medir o grau de correlação entre dois fatores. Sua aplicação na presente pesquisa buscou analisar o grau de correlação entre a rotina nos espaços do núcleo e o conhecimento sobre seu plano de requalificação. O resultado encontrado indica uma correlação positiva moderada, o que demonstra a relevância de se estabelecer uma relação próxima e rotineira com o núcleo por meio da diversidade de usos, o que contribui para o sentimento de apropriação do patrimônio cultural e para disseminar o conhecimento sobre seu plano de requalificação. Reafirma-se, portanto, a integração do patrimônio cultural na vida social como fator elementar para promover sua conservação integrada e sua sustentabilidade.
O pouco conhecimento da população interna da Fiocruz sobre o plano de requalificação do Nahm aponta para alguns desafios no que tange à sua participação no processo de construção coletiva e integrada de propostas, em vista das dificuldades em disseminar suas informações basilares. Por outro lado, o grupo manifestou um grande interesse e motivação para tal engajamento – com representação de 72% dos respondentes –, o que pode estar ligado à identidade institucional, em especial, à expressão do Castelo Mourisco e do conjunto arquitetônico e urbanístico como símbolo e emblema político, cultural e institucional, assim como ao histórico de gestão democrática participativa adotada pela Fiocruz desde os anos 1980 (Almeida, Pinheiro, 2022).
Para os respondentes que indicaram conhecer o plano previamente à pesquisa, foi solicitada uma breve descrição de seu entendimento. O objetivo dessa pergunta foi avaliar a clareza com que as mensagens de divulgação estavam sendo transmitidas e sua compreensão pelo público-alvo. Para analisar as respostas dos participantes foi adotada a metodologia de análise de conteúdo ( Bardin, 1977 ), contando com etapas de organização, codificação e categorização.
Do total, oitenta respostas incluíram palavras que representam um objetivo, sendo as principais: preservar, valorizar, requalificar, conservar, recuperar e restaurar. Desse grupo, trinta respostas relacionaram esses objetivos ao uso dos espaços, com o intuito de reordenar, mudar ou melhorar os usos, propor novos ou variados usos e até mesmo promover o uso sustentável. A respeito da finalidade dessas ações e dos espaços do Nahm, 42 respondentes apontaram para a divulgação científica, atividades socioculturais, visitação, acessibilidade, museu, educação, demandas institucionais, lazer e exposição.
Ainda, 18 respondentes explicitaram o público que seria contemplado com o plano utilizando as palavras: sociedade, trabalhadores, entorno, cidade, comunidade, Fiocruz e visitantes. Nota-se que a palavra “território” não foi adotada por nenhum dos respondentes. Esse é um termo que tem sido reivindicado por diversos grupos de trabalho da COC e da Fiocruz, principalmente pela Coordenação de Cooperação Social, difundido também nos documentos e políticas da instituição, mas que ainda não se manifestava entre os trabalhadores.
A nuvem de palavras observada na Figura 5 associa o tamanho da fonte de cada palavra com a frequência que foi utilizada pelos respondentes e revela as temáticas mais sensíveis para esse grupo no período da pesquisa.
Observa-se que as palavras com maior destaque foram “usos”, “espaços”, “históricos”, “patrimônio”, “cultural (culturais)”, “valorização (valorizar)”, “divulgação”, “prédios’ e “Fiocruz”, sendo as mais utilizadas para descrever o plano de requalificação do Nahm. Essa configuração evidencia a percepção de o plano propor novos usos, principalmente culturais, reforçando a imagem do conjunto como patrimônio de grande valor histórico. O uso da palavra Fiocruz revela forte representação da identidade institucional desse grupo e está associado também à valorização desse espaço onde ele é o próprio e um dos principais usuários.
Houve, ainda, uma perspectiva sobre o Nahm, relacionando-o com a proximidade geográfica dos participantes, que partiu da seguinte pergunta: a maneira como a comunidade interna da Fiocruz se distribui no campus Manguinhos-Maré influencia sua apropriação em relação a esse patrimônio e o conhecimento sobre seu plano? Ou seja, a distância entre o local de trabalho e o Nahm interfere diretamente na dinâmica de uso de seus espaços e no conhecimento sobre o seu plano de requalificação? Para realizar essa análise, optou-se por reunir as respostas dos participantes distribuídos pelos campi Manguinhos e Maré (antiga Expansão), identificando sua localização a partir das questões sobre o seu local de trabalho/estudo antes do período da pandemia e a unidade à qual estava vinculado, adotando como base o mapa institucional do campus .
O zoneamento criado seguiu a ideia de zonas de calor e adotou os seguintes critérios: (1) foi estabelecida como Z1 (zona 1) a circunferência vermelha, na qual todo o conjunto do Nahm está concentrado; (2) a partir desta Z1, a região foi dividida em mais três zonas equidistantes, ou seja, com distanciamentos iguais entre cada uma, sendo a Z2 laranja, a Z3 amarela e a Z4, a mais distante, representada pela cor azul; (3) o edifício do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, que acabou dividido entre duas zonas, foi incluído na Z3 ( Figura 6 ).
Considerando os critérios expostos, essa etapa incluiu a análise de 243 participantes distribuídos geograficamente da seguinte forma: 32 participantes alocados na Z1; 71 na Z2; 99, na Z3; e 41, na Z4. Partindo de duas categorias criadas para representar o grau da relação com o Nahm, denominadas “relação próxima” e “relação distante”, e associando-as à posição geográfica desses participantes, foi possível verificar se aqueles mais próximos desse conjunto foram os que mais vivenciaram e se apropriaram desses espaços no seu dia a dia.
Nota-se que aqueles que trabalhavam ou estudavam na zona vermelha (Z1) antes do período de pandemia foram os que mais se relacionaram com o núcleo no seu dia a dia, expressando ter relação próxima em mais de 90% dos casos. Já aqueles inseridos na zona laranja ou amarela (Z2 e Z3, respectivamente) apresentaram índice um pouco menor em relação à rotina nos espaços do Nahm, diminuindo para aproximadamente 65% os casos de relação próxima; enquanto os participantes alocados na zona azul (Z4) concentraram as menores proporções nessa categoria (cerca de 51%).
O que se verifica, portanto, é que, conforme os respondentes se distanciam geograficamente do Nahm, menos atividades e experiências eles desenvolvem com esse patrimônio. Ou seja, a partir dessa correlação é possível confirmar a hipótese de que aqueles que trabalhavam ou estudavam mais longe geograficamente do Nahm tendiam a estabelecer relação menos frequente com esses espaços.
Ainda adotando o zoneamento proposto, é possível refletir se essa localização geográfica dos participantes influenciou também seu conhecimento sobre o plano de requalificação do Nahm. Para essa questão, foi necessário adotar mais um critério: foram desconsiderados os respondentes que trabalhavam ou estudavam na Casa de Oswaldo Cruz, pois foi verificado que esse grupo elevava a tendência de conhecimento sobre o plano e mascarava a percepção dos demais. Isso ocorre principalmente na Z2, que inclui o Centro de Documentação e História da Saúde e as salas de trabalho do Museu da Vida Fiocruz, e na Z4, no campus Maré, que no período de aplicação da pesquisa concentravam trabalhadores e estudantes vinculados à Casa de Oswaldo Cruz.
Logo, para essa parte foram considerados 201 participantes: 29 na Z1; 43 na Z2; 99 na Z3; e 30 na Z4. Adotando respostas dicotômicas (“sim, ouviu falar do plano” e “não ouviu falar do plano”), e calculando a proporção dessas respostas por zona, verificou-se maior conhecimento do plano entre participantes da Z1 (zona vermelha). Esta foi a única zona em que a proporção daqueles que responderam conhecer o plano é superior aos que não conhecem. Nas demais zonas, o número de respostas negativas foi maior, aumentando a incidência conforme aumentava o distanciamento do participante em relação ao núcleo ( Figura 7 ).
No que concerne ao zoneamento do campus Manguinhos-Maré, portanto, é possível afirmar que o distanciamento geográfico entre o patrimônio do Nahm e o local de trabalho da comunidade interna influencia diretamente o relacionamento de cada um com esses espaços culturais e seu conhecimento sobre o plano de requalificação. Foi demonstrado que quanto maior é esse distanciamento, menor é a propensão de vivenciar e ter contato frequente com esses espaços e menor é a tendência de conhecer o seu plano de requalificação.
A escolha da população para compor o grupo externo à Fiocruz foi feita, em primeiro momento, considerando a inserção da instituição como parte do bairro Manguinhos e, observando a compreensão conceitual de território, abrangendo sua estreita relação com a Maré. Teve base, ainda, nos estudos de público dos Cadernos do Museu da Vida , publicados no período entre 2009 e 2015, assim como no trabalho sobre a região de influência do museu, publicado em 2020 ( Bevilaqua et al., 2020 ), nos quais se verificou que os moradores dos bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro são os que mais visitam os espaços e participam das atividades oferecidas pelo Museu da Vida Fiocruz.
Sendo assim, a pesquisa foi direcionada aos moradores do território e contou com respondentes dos seguintes bairros: Manguinhos, Maré, Bonsucesso, Jacaré, Jacarezinho, Higienópolis e Benfica, totalizando 75 respostas válidas. As estratégias adotadas para comunicação da pesquisa e divulgação de link para acessar o formulário on-line foram variadas, incluindo a criação de um site e de perfil em rede social do Instagram, compartilhamento de mensagens via e-mail , WhatsApp e Facebook. Apesar de o número de respostas não representar estatisticamente a população do recorte da pesquisa, os resultados levantados incentivam reflexões acerca do tema da participação social quanto à implementação de um plano de requalificação.
Os participantes desse grupo estão concentrados, principalmente, nos bairros da Maré e de Manguinhos, com faixa etária entre 25 e 44 anos, e com escolaridade de ensino médio ou superior completos. Conforme observado pelos autores (Almeida, Pinheiro, 2022, p.503), esse perfil pode estar relacionado ao uso de metodologias de pesquisa on-line , atingindo pessoas mais jovens e de escolaridade mais elevada. Entretanto, vale destacar o papel do censo demográfico como instrumento auxiliar na análise de populações, apontando para a necessidade de atualização de seus dados, visto que, no momento de escrita deste estudo, os dados disponíveis ainda eram de 2010.
A relação do grupo de moradores do território com a Fiocruz se estabelece a partir, principalmente, das atividades oferecidas ao público pelo Museu da Vida Fiocruz, de eventos e campanhas na área da saúde e pelo próprio atendimento por meio do sistema de saúde institucional, parte da rede do Sistema Único em Saúde. Essa configuração de participação em atividades institucionais reflete um acesso esporádico e não cíclico por esse grupo, mas que ainda é suficiente para promover o conhecimento do conjunto arquitetônico histórico-cultural, visto que quase a totalidade de moradores indicou saber que o campus possui tais edifícios.
A permeabilidade e fruição nos espaços do Nahm para esse público externo acontecem pela mediação do museu e da participação em eventos, atividades apontadas por quase 70% dos moradores do território, sendo esses os principais meios de aproximação com o patrimônio cultural (Almeida, Pinheiro, 2022). Parte dos respondentes também indicou já ter se envolvido em algum projeto ou curso nos espaços do Nahm (vinte moradores) e em programas oferecidos pela Oficina-Escola de Manguinhos ou pelo Museu da Vida Fiocruz (13 moradores). Essas também são experiências inclusivas que promovem o uso e o acesso ao conjunto.
Quando perguntados se sabiam que a Fiocruz está realizando um projeto para melhorar e ampliar o acesso público a seus espaços culturais, chamado “Plano de Requalificação do Nahm”, aproximadamente 83% dos respondentes indicaram que não. A concentração da resposta negativa pode ser compreendida pela escassez de estratégias de divulgação do plano, até o momento da pesquisa, voltadas para o grupo externo. Entre os meios de comunicação com maior eficiência, nota-se que o diálogo direto (“boca a boca”) teve maior representação para que esse grupo tivesse conhecimento prévio sobre o plano, com concentração de respostas (seis) citando colegas de trabalho e colegas do bairro. Alguns participantes relataram, ainda, que passaram a conhecer o plano de requalificação a partir da abordagem da presente pesquisa.
Para que fosse possível analisar a compreensão do grupo a respeito do plano, assim como foi adotado para os respondentes da comunidade interna da Fiocruz, optou-se por incluir uma pergunta aberta na qual os respondentes poderiam descrever brevemente o seu entendimento. Esse campo do questionário foi respondido por aqueles que marcaram ter ouvido falar do plano e contou com 11 preenchimentos (um dos respondentes não preencheu esse campo). Os dados foram analisados, codificados e agrupados, de acordo com a metodologia do discurso do sujeito coletivo (DSC).
A metodologia do DSC compreende os participantes da pesquisa como falantes individuais que representam uma coletividade e pode ser adotada para analisar questões qualitativas com pouca incidência de respostas. Segundo Fernando Lefevre e Ana Maria Cavalcanti Lefevre (2006, 2014), um indivíduo é capaz de expressar as opiniões compartilhadas pela coletividade na qual ele está inserido e como suas relações sociais com o meio e com demais sujeitos influenciam sua história e formação cultural e, portanto, seu discurso.
A frase formada pela adoção dessa metodologia representa, apesar de ser construída em primeira pessoa do singular, uma pessoa coletiva e, nesse caso, o grupo de moradores que ouviu falar do plano de requalificação do Nahm. Logo, o resultado que sintetiza o DSC na presente pesquisa é: “Ainda não entendi direito. Entendo que a proposta busca ressignificar, revitalizar e readequar os espaços para ampliar a visitação do público e a inclusão social e cultural”.
Observa-se que esse grupo indicou compreender o objetivo do plano de ampliar a participação do público no campus Fiocruz Manguinhos-Maré e de promover a inclusão social e cultural, mas ainda não tem clareza de como ou quais são as medidas realizadas para o alcançar.
Apesar de poucos conhecerem previamente o plano de requalificação do Nahm, houve grande indicação para participar da construção coletiva de suas propostas (Almeida, Pinheiro, 2022, p.503), especialmente para a participação eventual em temas gerais e/ou específicos. Essa manifestação, entretanto, não encontra correlação direta com os moradores que se relacionam com maior frequência com o núcleo. Ou seja, o interesse em participar do plano independe da relação que os moradores estabelecem com o patrimônio cultural. Tal manifestação, contudo, pode encontrar justificativa a partir de sua relação histórica com a Fiocruz e participação em seus projetos sociais.
Os resultados analisados no presente artigo demonstram, principalmente, as dificuldades para implementar estratégias visando a amplas comunicação e divulgação do plano de requalificação do Nahm, capazes de sensibilizar e informar o público do território da Fiocruz, compreendido, neste trabalho, a partir de dois grupos, integrando, por um lado, trabalhadores e estudantes da instituição e, por outro, moradores de bairros fronteiriços. Apontam para a importância da criação de espaços de diálogo constante, de troca de experiências e de significação do patrimônio Nahm e de seu plano, entendendo que o patrimônio cultural é inerente aos sistemas sociais, cuja construção e (re)produção transcorre por meio de um processo incessante de interação ( Santos, 2017 , p.316). Nesse caminho, observa-se o papel de oficinas, debates e ações de educação patrimonial orientados para o reconhecimento e a difusão do núcleo e do seu plano de requalificação a fim de aprofundar as relações socioafetivas e ampliar a participação e colaboração desses grupos. A estrutura dos programas do Nahm, formados a partir de grupos de trabalho heterogêneos voltados para cada temática dos projetos, colabora para que haja uma discussão qualificada e diversificada sobre diretrizes e orientações para o plano e representa um passo importante no que tange a um processo participativo com envolvimento dos diferentes departamentos e profissionais, tanto da Casa de Oswaldo Cruz quanto de outras unidades da Fiocruz. O desafio ainda a ser superado está, entretanto, concentrado na inserção e representação de grupos socioculturais do território externos à instituição, essenciais ao contexto de governança compartilhada e colaborativa que se deseja construir para alcançar os princípios da conservação integrada e da sustentabilidade, e capaz de induzir desenvolvimento territorial real e significativo, abrindo espaços de escuta e diálogo com as populações socioambientalmente invisibilizadas.
A adoção de metodologias de testagem de hipóteses permitiu, ainda, aclarar a associação entre o fator de conhecimento sobre o plano e a intensidade com que o patrimônio do Nahm é apropriado pelos grupos e inserido em suas atividades rotineiras, apontando para níveis crescentes de receptividade e envolvimento a partir da inserção dos grupos no território e em concordância com sua relação de vivência periódica com o patrimônio. Reitera-se, portanto, a relevância de integrar o patrimônio cultural na vida social, conforme os preceitos da conservação integrada, e de adotar estratégias para sensibilização e inclusão daqueles que se encontram geográfica e afetivamente mais distantes do núcleo, de maneira a promover a participação social e consolidar a vocação do Nahm como um patrimônio cultural não só para as ciências e a saúde, mas por sua apropriação e integração ao território como um bem de valores simbólico, cognitivo, cultural e identitário e como elemento estruturante ao desenvolvimento sustentável.
A pesquisa que deu base ao presente artigo foi realizada em 2021, e, desde então, os grupos de trabalho e programas do Nahm têm se dedicado e veiculado uma série de informações nos diferentes meios on-line e presencial. A retomada das atividades laborais em modalidade híbrida e presencial e a reabertura do Museu da Vida Fiocruz ao público são fatores recentes que impactam a permeabilidade e o uso do campus Manguinhos e dos espaços do núcleo. Ademais, o próprio Programa de Sustentabilidade do Nahm tem se apresentado como estratégia para impulsionar os vieses social, político, cultural, ambiental e econômico ao longo da implementação do plano de requalificação. Vale, portanto, realizar novos levantamentos e pesquisas a fim de reavaliar o cenário de conhecimento, inclusão e envolvimento dos grupos do território na construção de um campus parque plural e democrático a partir do pungente panorama.
Até 2022, havia uma compreensão do campus Manguinhos incluindo a Expansão como parte não aglutinada. A transformação da Expansão no campus Maré e a interligação física desse campus ao de Manguinhos por meio de uma passarela sobre a avenida Brasil, conformando de fato o campus Manguinhos-Maré, encerram o campus parque como uma de suas ideias-força. O conceito desse tipo de campus é um tanto fluido, e passível de diferentes construções no imaginário social, mas aspira em sua fundamentação a ser um ambiente saudável, seguro, confortável e culturalmente enriquecedor aos trabalhadores, estudantes e visitantes que ali convivem, e, em especial, a ser aberto ao público. Como já dito, apresenta desafios à instituição, por se tratar de dois campi com intensa vida acadêmica e de produção científica e tecnológica, e um olhar mais acurado a cada um desses campi aponta características distintas que os tornam mais ou menos propícios a se consolidar como campus parque.
No caso de Manguinhos, por se tratar de área territorial maior, com expressiva cobertura vegetal e área de proteção de preservação com edificações e jardins históricos, e ter trajetória consolidada de visitações públicas, é visto como vocacionado a ser um campus parque. O que difere do campus Maré por suas dimensões e pelo fato de sua ocupação compreender, em grande parte, um número expressivo de edificações e atividades com níveis de biossegurança elevados. Pensar o campus Maré isoladamente como campus parque é, portanto, mais desafiador. Por outro lado, não há como não o perceber como um estratégico agente para o desenvolvimento territorial sustentável e para a valorização de memórias e identidades locais não só para a Maré, mas para toda a região, ao tratá-lo integrado ao campus de Manguinhos. Há que os imaginar e almejar que, alicerçados por um plano de requalificação sustentável de suas áreas históricas, se constituam como possibilidade de efetivação de uma relação dialógica entre patrimônio cultural, território e participação social.
Os autores agradecem ao Programa de Pós-graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz a oportunidade, o apoio e o fomento para desenvolver o trabalho de pesquisa que deu origem ao produto da dissertação. Agradecem ao Grupo de Trabalho Executivo do Plano de Requalificação do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos e ao Grupo de Trabalho do seu Programa de Sustentabilidade a jornada de saberes compartilhados.