Artículo
A Operação Lava-Jato na Folha de S. Paulo
Operation Car Wash in the Opinion Pages of Folha de S. Paulo
A Operação Lava-Jato na Folha de S. Paulo
Revista SAAP, vol. 18, no. 1, pp. 130-147, 2024
Sociedad Argentina de Análisis Político
Resumo: O artigo examina como a Operação Lava-Jato foi retratada nas páginas de opinião da Folha de S. Paulo. Para tanto, foram analisados todos os editoriais publicados entre 2014 e 2017 que tiveram a operação como tema principal. Por meio da análi-se de enquadramentos, estudou-se como foram retratados a operação e os diversos indivíduos e instituições a ela relacionados. Em termos da frequência de menções, a Lava-Jato entrou definitivamente na agenda do jornal a partir de 2015, e o jornal deu destaque às figuras petistas envolvidas nos escândalos. Verificou-se que a operação foi inicialmente enaltecida, e depois passou a ser vista como perturbadora do sistema político e marcada por abuso de autoridade.
Palavras-chave: Imprensa, Corrupção, Folha de S. Paulo, Operação Lava-Jato.
Abstract: The article examines how the Operação Lava-Jato (literally, Operation Car Wash) was portrayed in the opinion pages of newspaper Folha de S. Paulo. To that end, editorials published between 2014 and 2017 that had the operation as its main theme were analyzed. Through framing analysis, we studied how both the operation and individuals and institutions associated with it were portrayed. Regarding the frequency of mentions, the operation made its definite debut in the newspapers’ agenda in 2015, with emphasis given to individuals associated with the Brazilian Workers’ Party. As to the frames, we found that the operation was initially praised, and was later characterized by abuse of authority and as a disturbant of the political system.
Keywords: Press, Corruption, Folha de S. Paulo, Operation Car Wash (Operação Lava-Jato).
1. Introdução
O tema da corrupção é amplamente tratado pelos meios de comunicação no Brasil. No entanto, parece haver seletividade de publicação no que diz respeito às instituições e pessoas públicas que se tornam alvo dos escândalos de corrupção: líderes populares da América Latina. Por outro lado, mostrou-se, por exemplo, que a corrupção enquanto tema, apresenta um crescimento desde 1945, entra definitivamente na agenda dos jornais a partir de 2006 - ou seja, após a crise do chamado “mensalão”. Isto é, o tema não foi amplamente explorado quando vigiam no poder governos de centro-direita (Azevedo, 2017). Assim, é necessário analisar a forma pela qual a imprensa trata a corrupção, a fim de verificar 1) se (ou quando) ocorrem variações na cobertura midiática sobre o tema, e 2) as principais características dessa cobertura.
Ressalte-se que a corrupção de que se fala é a corrupção política, que decorre da sobreposição de interesses individuais e de interesses coletivos. A questão está ligada à legitimidade dos sistemas políticos nas democracias modernas, que podem se ver privadas de apoio da população conforme aumenta a percepção desta última acerca da corrupção (Seligson, 2002). Além disso, casos de corrupção atraem a atenção dos meios de comunicação e podem ocupar grande parte de sua agenda, que, por sua vez, influencia a agenda do público (Chaia e Teixeira, 2001). Esse tipo de cobertura de imprensa pode levar ao entendimento de que a corrupção é algo inato ao Estado, à política e, em última instância, à democracia (Filgueiras, 2009). Assim, se a qualidade da democracia é uma preocupação, o retrato da corrupção e a constituição de “escândalos” de corrupção precisam ser devidamente compreendidos e vistos como possíveis ameaças à democracia.
Com o objetivo de descrever e analisar o discurso da grande impren-sa brasileira sobre o tema da corrupção, este artigo examina os editoriais publicados entre 2014 e 2017 pela Folha de S. Paulo, abrangendo quase quatro anos de publicações. Os editoriais representam a posição do jornal em relação a questões consideradas relevantes. O estudo quantifica o espaço dedicado à Operação Lava Jato (OLJ) na seção de editoriais e analisa como a operação e os atores políticos envolvidos foram retratados durante um período de crise institucional e a queda do governo Dilma Rousseff em 2016. A OLJ é objeto de relevância devido à sua ampla cobertura pela imprensa, que enfocou a luta contra a corrupção. Isso pode ter contribuído para um aumento do antipetismo e um sentimento antipartidário e antipolítico difuso, possivelmente influenciando a eleição presidencial atípica de 2018 e o fortalecimento da extrema direita no Brasil. A OLJ, iniciada em 2014 pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, visa investigar esquemas de lavagem de dinheiro, corrupção e outros crimes. Com mais de 50 fases operacionais, envolveu membros da Petrobrás, líderes políticos, grandes empresas e empresários, com mandados de busca, apreensão e prisões.
Este estudo utilizou principalmente a análise de enquadramento e pacotes interpretativos com base na matriz de assinatura de Gamson e Modigliani (1989). Os editoriais foram classificados com palavraschave que resumem o argumento central do texto. Em seguida, foram analisados através do método dos pacotes interpretativos, que são quadros de referência usados para perceber e compreender os fatos da realidade e atribuir significados a eles, conforme descrito por Azevedo (2004), Porto (2004) e Gamson e Modigliani (1989).
Esta pesquisa investiga se a OLJ ocupou um espaço significativo como questão política na pauta da Folha de S. Paulo (FSP), analisando os enquadramentos e pacotes narrativos adotados. Além disso, examina se o jornal discute o tema da corrupção de forma mais ampla e além da OLJ, refletindo sobre a adoção de medidas institucionais para inibir ou reduzir futuras ocorrências. Os procedimentos metodológicos incluem análise de enquadramento, pacotes interpretativos e palavras-chave.
2. A grande imprensa e a Folha de S. Paulo
Os jornais brasileiros considerados “quality papers” historicamente têm orientação para as classes mais altas e apresentam viés político de centro-direita. Apesar da crescente importância e difusão da internet, a concentração da propriedade dos meios de comunicação representa um desafio para o aumento da pluralidade política. A Folha de S. Paulo, o maior desses jornais, é alvo de pesquisa devido à sua grande circulação e influência. Fundado em 1921, o jornal é acessado mensalmente por cerca de 28 milhões de brasileiros, com mais de 17 milhões acessando seu conteúdo em plataformas digitais. O acesso à internet tem crescido sistematicamente nos últimos anos, refletindo uma mudança no padrão de consumo de notícias.
Apesar da Folha de S. Paulo (FSP) afirmar que suas coberturas constituem um “jornalismo plural”, críticas argumentam que essa plurali-dade não oferece uma narrativa alternativa à versão principal. Em vez disso, a narrativa principal é construída de forma a se alinhar aos fatos, enquanto a pluralidade é representada por poucos espaços reservados, por exemplo, à defesa feita pelo próprio indivíduo acusado de crimes. Isso resulta em uma percepção de parcialidade na defesa, contrastando com a aparente neutralidade da narrativa principal. Além disso, a pesar de ter apoiado a campanha das “Diretas Já”, a FSP também apoiou o golpe de 1964 e parte da atuação dos governos militares em seus editoriais. No entanto, em comparação com outros jornais tradicionais, a FSP apresenta maior pluralidade interna, evidente pela diversidade de seus colaboradores, que têm diversas matrizes ideológicas.
3. Análise do material coletado
O material analisado é composto pelos editoriais publicados pela FSP entre 17 de março de 2014, quanto teve início a operação e, 31 de dezembro de 2017, totalizando 2.728 editoriais. O período de publicações analisadas foi dividido em intervalos de três meses, permitindo o cruzamento da análise de frequência do tema em questão com o momento político pelo qual passava o país. O total de editoriais coletados3 foi classificado quanto ao seu tema, e a partir disso, verificouse que um total de 107 tinham por objeto principal a operação. Para a análise da frequência, foi comparado o número de editoriais destinados à OLJ ao número de editoriais dedicados aos demais temas.
Considerando o recorte trimestral, foram identificadas as associações entre o contexto político nacional e 1) o destaque dado à Lava-Jato, e 2) o protagonismo (atribuído pelo jornal) de determinados atores. Isso permitiu que se compreendesse em que momentos a operação foi destacada pelo jornal; quais foram os atores salientados pelo jornal; e em quais contextos isso se deu. Foram identificados os partidos citados com maior frequência nos editoriais e as lideranças que ocupam (ou não) cargos políticos.
Na segunda fase da análise, que compreendeu tanto a caracterização da operação pela FSP quanto a formação da imagem dos atores, a abordagem metodológica utilizada foi a da análise de enquadramento. Assim, foi realizada uma análise dos principais enquadramentos encontrados nos editoriais obtidos. Nesta fase da pesquisa, o impeachment de Dilma Rousseff foi considerado como marco divisor de dois períodos, os quais foram analisados a fim de verificar diferenças no uso dos enquadramentos.
Trataremos, agora, de analisar a frequência com que determinados atores políticos foram o centro de interesse dos editoriais. Ressalte-se que apenas são contabilizados os atores que foram o tema principal de no mínimo três editoriais ao longo de todo o período, e que 1) foram o alvo único dos editoriais; ou 2) dividiram a atenção do editorial com no máximo um outro ator. Portanto, o senador Renan Calheiros (PMDB -AL), por exemplo, que é o ator principal em dois dos editoriais aqui contabilizados, e é mencionado em conjunto com outros atores em um terceiro editorial, não aparece nos gráficos de frequência.
Começando pelo ano de 2014, notase aqui a “cautela” de que falamos anteriormente: não há menção explícita a nenhum dos atores que futuramente ocuparão o centro em torno do qual gravitam os editoriais sobre a operação. O primeiro editorial4 sobre a Lava-Jato, por exemplo, tem como alvo central a figura de André Vargas (então deputado pelo PT-PR), que posteriormente não aparecerá em mais nenhum editorial. Dos cinco editoriais publicados nesse ano, três discorrem sobre aquilo que enxergam como sendo uma devassa na Petrobras. Os títulos são sugestivos da forma como o tema será tratado: “Corrupção profunda”5, “Petrobras em descrédito”6, e “Teias da corrupção”7. Há menção a “governos petistas”, mas esses só são o foco do último editorial do ano.
O primeiro editorial que tem por foco a figura da ex-presidente Dilma Rousseff é intitulado “Poço sem fundo”8, e foi publicado em 30 de janeiro de 2015. Iniciase então um período em que o PT e figuras petistas serão os alvos majoritários da FSP. Até 8 de abril de 2016, 36 editoriais sobre a OLJ foram publicados, 18 dos quais possuíam ator definido; destes 18, 16 tinham por foco principal figuras associadas ao PT, um menciona os senadores Renan Calheiros (PMDB - AL) e Fernando Collor (PTB - AL), e outro menciona o governador Geraldo Alckmin (PSDB - SP)9. Assim, dos 18 editoriais que tem atores definidos, 16 deles tratam quase que exclusivamente do PT10.
O destaque dado às figuras petistas se intensifica entre outubro de 2015 e março de 2016: este período compreende os estertores do governo de Dilma Rousseff, afastada em 17 de abril de 201611 pela Câmara dos Deputados. No mês de março de 2016, inclusive, foram publicados oito editoriais sobre a operação, número esse que é o único valor discrepante de toda a série. Recorde-se, ainda, que do início da vigência da operação (março de 2014) até fins de março de 2016, somente dois editoriais12 que tinham atores definidos não tratavam de figuras petistas. Podese dizer, por isso, que os editoriais da FSP acompanharam pari passu o desenrolar da crise política (prejudicial ao governo federal) desencadeada em 2015.
A menção quase que exclusiva a figuras petistas e ao governo Rousseff corrobora o achado de Azevedo (2017), que aponta elementos de antipetismo por parte do jornal. E isso principalmente se levarmos em conta que entre o impeachment e o fim de 2017, o governo de Michel Temer (PMDB) não recebeu destaque nos editoriais. Ou seja, mesmo após a troca do governo, e apesar das investidas da OLJ contra figuras centrais do novo governo - incluída aí a de Michel Temer - a figura do novo presidente foi o alvo principal de 12 editoriais, número idêntico ao de editoriais que trataram da figura do expresidente Lula. Em suma, no período anterior ao impeachment praticamente só houve menção a figuras petistas, apesar de o espraiamento da investigação já ter atingido indivíduos de inúmeras siglas; e após o impeachment, Temer, enquanto presidente, recebeu a mesma atenção dada a um expresidente saído do cargo mais de cinco anos antes.
Assim, em termos quantitativos, a atuação da FSP parece ir de encontro à posição oficial sustentada pelo jornal, qual seja, a de que a solução para a crise política deveria passar pela renúncia da presidente e de seu vice, renúncia que seria então seguida por novas eleições13. Os dados aqui exibidos sugerem fortemente que o foco do jornal, ao menos no que tange à seção de editoriais, foi a administração petista, praticamente a única mencionada no período préimpeachment. Esse foco se sustentou parcialmente no período pósimpeachment, em que as atenções se dividiram entre Lula e Temer. Como veremos, a análise qualitativa corroborará esse argumento, ao evidenciar as diferenças de enquadramento que se notam conforme variam os atores-alvo.
Por fim, convém explorar a menção a outra figura: Aécio Neves (PSDB - MG). O senador foi adversário de Rousseff nas eleições de 2014, ocasião em que obteve 48% dos votos válidos. Sua imagem teve enorme projeção nacional, tanto por conta do resultado por ele obtido nas eleições quanto por sua atuação póspleito, momento em que assumiu o protagonismo da oposição ao governo Rousseff. E assim como boa parte da elite política brasileira, Neves foi igualmente citado em acordos de colaboração premiada, fato que veio a público em meados de 201514.
Não obstante, o senador foi o ator principal de apenas três editoriais publicados nesses quase quatro anos, e só o foi a partir de maio de 201715, 16.
Enquadramento
No Quadro 1, apresentamos a matriz de assinatura construída com base na leitura prévia dos editoriais. São cinco os pacotes interpretativos principais que tratam do tema da OLJ, a saber:
pacote da Punição rigorosa − dispõe que a melhor forma de combater a corrupção é por meio da punição rigorosa dos envolvidos;
pacote da Maturidade das instituições − afirma que as investigações em curso revelam o amadurecimento das instituições brasileiras, que outrora eram disfuncionais e não cumpriam com seu papel;
pacote do Aparelhamento do Estado − trata principalmente da atuação de políticos que agem de forma egoística e desconsideram a coisa pública;
pacote do Abuso de autoridades − traz questionamentos a respeito da atuação das instituições de controle (e dos indivíduos que a elas pertencem), que por vezes parecem agir em desacordo com a lei;
pacote da Deterioração do sistema político − alerta para um suposto decaimento das condições normalmente necessárias para o bom funcionamento do sistema político.
O pacote do Aparelhamento foi o mais mobilizado: cerca de 32% dos editoriais sobre a OLJ o utilizaram como chave de interpretação. Apesar de ter havido variações no emprego desse pacote ao longo do tempo (como veremos mais adiante), algumas conclusões preliminares podem ser extraídas: primeiro, é notável a maneira como políticos são retratados como agentes autointeressados e inclinados à fraude. O trecho a seguir, constante no editorial “Do despiste à delação”, exemplifica o modo de uso desse pacote e o tipo de visão da política que ele encerra:
“Ainda que de vasto perímetro, o círculo das investigações dá sinais de que começa a se fechar. Com contratos superfaturados, o dinheiro da Petrobras passa a empreiteiras que, por sua vez, transferem parte dele a operadores políticos, os quais remuneram regiamente, entre outros, especialistas em comunicação encarregados de perpetuálos no poder.” (Folha de S. Paulo, 28/07/2016)
Esse retrato da política enquanto atividade duvidosa tem sua contrapartida na defesa de instituições de controle e de indivíduos a ela pertencentes, vistos ambos como benfeitores e republicanos. Essa combinação remete ao arraigamento do autoritarismo no Brasil: o conteúdo normativo dos editoriais vê a solução para problemas políticos fora da política17. A solução passa a pertencer à esfera policial, que, essa sim, teria propósitos verdadeiros e não relacionados às aspirações individuais.
Em proximidade ao pacote do Aparelhamento, está aquele que propõe que a solução para problemas de corrupção é a Punição rigorosa. Segundo essa interpretação, seria preciso combater a histórica debilidade da legislação e das instituições brasileiras, que não foram capazes de disciplinar os agentes políticos. É esse o pacote interpretativo do editorial “Competência e pressa”, publicado em 21 de maio de 2014, que trata da soltura, por parte do então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki, de réus da operação que estavam presos preventivamente. Em se tratando de investigação que tinha por réus indivíduos com foro privilegiado (e que por isso só poderiam ser investigados com autorização previamente concedida pelo STF), Zavascki efetuou a suspensão dos mandados de prisão:
“[...] Seja como for, não havia sido observada, na Operação Lava-Jato, a devida remessa dos processos ao STF. Provocado pelo advogado de um dos réus, o ministro Teori Zavascki determinou que as oito ações penais relativas ao caso fossem encaminhadas ao tribunal. Até que houvesse deliberação sobre o assunto, estariam suspensos os inquéritos e todos os mandados de prisão até ali expedidos.
nesse ponto que a decisão do ministro se mostrou equivocada.
Em ofício enviado ao Supremo, o juiz federal da primeira instância informou que havia providenciado a soltura de Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras. Com sensatez, ponderou, todavia, que os demais investigados mantêm conexões e detêm recursos que facilitariam eventual fuga do país. Alertou, ademais, para o envolvimento de alguns doleiros presos com o tráfico internacional de drogas.
Diante das considerações, Zavascki voltou atrás e manteve os mandados de prisão contra 11 investigados. ‘Sem conhecer [os casos], não quero tomar decisões precipitadas’, afirmou nesta terçafeira (20), de forma extemporânea.
Se tivesse pensado nisso dias antes, o ministro teria se poupado de constrangimentos desnecessários.” (Folha de S. Paulo, 21/05/2014)
notável que não haja maior atenção ao processo legal: não há justificativas legais do porquê de a decisão do ministro ser “equivocada”. Além disso, o outro juiz, que argumentou contrariamente a Zavascki, o fez “com sensatez”, qualificação essa que possivelmente contorna o debate legal relativo às prisões e atribui moralidade positiva ao juiz. Isto é, em que pese que tenha havido uma argumentação legal em defesa da prisão preventiva por parte do juiz, o editorial nada diz sobre isso, e recorre à “sensatez” do magistrado para qualificar sua decisão. Ainda, os “constrangimentos desnecessários” a que se prestou o ministro também se deram não por conta de uma hipotética desatenção ao processo legal, mas supostamente porque ele não dispunha das “ponderações sensatas” como o juiz. Isso sugere que a FSP prezou aí pela punição de envolvidos em casos de corrupção, ao passo que não deu atenção ao procedimento legal.
Similarmente, tendo em conta possíveis críticas às prisões preventivas e a seus supostos excessos, a FSP se refere positivamente à ideia de “ciclo delitivo”, postulada pelo juiz Sérgio Moro: em se tratando de criminalidade desenvolvida “de forma habitual”, tais prisões se justificariam para interromper o “ciclo delitivo”. O próprio título do editorial, Ciclo delitivo, pode ser visto como uma realização daquilo que Bourdieu (1987) chama de efeito de desconhecimento: há aí o forjamento de um termo que pode ser associado à linguagem jurídica, o que lhe confere um caráter de incorruptibilidade e possivelmente legitima o ato da prisão preventiva.
Outro ângulo sob o qual se enxerga a “punição rigorosa” tem a ver com aspectos econômicos das investigações: para a FSP, “beira o escárnio” a ideia de que não se poderia punir empresas corruptoras por causa de um possível impacto financeiro negativo na economia. “Nada mais evidente”, diz o editorial de 3 de dezembro de 2014, concordando com um funcionário público que afirma que ‘“Se criarmos um ambiente em que grandes empresas não necessariamente seriam punidas porque teria um impacto X na economia, seria um incentivo para manter essas condutas”’ (Folha de S. Paulo, 03/12/2014).
Mesmo que tal concepção de punição possa ser razoável per se, é necessário entendêla em conjunto com outras posições do jornal para que se tenha noção de suas implicações: por exemplo, em editorial sobre economia, publicado em 3 de abril de 2017, lemos que “privatizações são hoje mais essenciais do que nunca para reativar os investimentos em infraestrutura, fulminados pela ruína orçamentária do governo e pelo impacto da Operação Lava-Jato sobre grandes empreiteiras” (Folha de S. Paulo, 03/04/2017).
O pacote da Maturidade das instituições, que guarda proximidade com o pacote da Punição rigorosa, dispõe que as instituições brasileiras estariam em pleno ascenso, uma vez que, finalmente, estariam exercendo a função de controle do meio político. Saliente-se que essa maturidade aparece desancorada de ações políticas passadas: aparentemente, seu devir está associado apenas ao passar do tempo, já que os editoriais não tratam da origem desse progresso. Nesse sentido, se as circunstâncias de denúncias de corrupção na Petrobras:
“[...] provocam inevitável desalento, pelo que revelam sobre o tamanho do assalto aos cofres públicos, também deixam confiantes os cidadãos que apostam no amadurecimento das instituições brasileiras. Depois do julgamento do mensalão, já não se afirma com facilidade que só os mais pobres sentem a dureza da lei.” (Folha de S. Paulo, 01/02/2015)
Assim, “Congresso Nacional, Poder Executivo, partidos políticos, empresas privadas e, claro, a Petrobras” são algumas das instituições “sobre as quais a Operação Lava-Jato lança várias e corrosivas levas de compostos detergentes” (Folha de S. Paulo, 09/03/2015). Dessa forma, estaríamos diante de um processo de amadurecimento das instituições de controle, outrora disfuncionais e atidas a crimes menores.
O pacote do Abuso de autoridades, por sua vez, embora pouco empregado no começo do período de análise, passou progressivamente a ser mais utilizado. De acordo com esse pacote, os indivíduos pertencentes às instituições de controle, com frequência, agem em desacordo com a lei, possivelmente por conta de projetos pessoais. Sua ocorrência se deu principalmente nos editoriais em que o jornal criticou aquilo que via como uso excessivo das prisões preventivas. O editorial “Protagonismo perigoso”, de 18 de março de 2016, exemplifica o abuso de autoridades:
“Por repulsiva que seja a estratégia petista de esconder o ex-presidente na Esplanada, não cabe a um magistrado ignorar ritos legais a fim de interromper o que sem dúvida representa um mal maior. Pois foi o que fez Moro ao franquear a todos o acesso às interceptações e transcrições que, como regra, devem ser preservadas sob sigilo.” (Folha de S. Paulo, 18/03/2016).
Esse trecho é ilustrativo da ideia-chave que caracteriza o pacote do Abuso. Além disso, esse texto é único, à medida que é um dos poucos editoriais que defende - ainda que de maneira paradoxal - uma figura política daquilo que o jornal vê como desprezo ao procedimento legal.
Por fim, o pacote da Deterioração do sistema político, também minoritário a princípio, tornou-se mais comum ao longo do tempo. Por meio desse pacote, afirmase que não estão sendo mantidas as condições básicas de funcionamento do sistema político, que, por isso, corre o risco de não cumprir seu papel na tomada de decisões importantes. O editorial “Teste decisivo”, de 26 de fevereiro de 2017, evidencia a preocupação do jornal ante o cenário da época, no qual a aprovação da reforma da Previdência no Congresso Nacional parecia ameaçada pelo andamento das investigações da Lava-Jato:
“Anunciado nesta sextafeira (24), o pedido de licenciamento do chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, por razões de saúde, coincide com as incômodas declarações do advogado José Yunes, amigo do presidente Michel Temer (PMDB), dando conta de supostos financiamentos irregulares para a campanha eleitoral do PMDB em 2014. [...]
Não é a primeira vez, como se sabe, que políticos pertencentes ao núcleo mais próximo da Presidência se veem às voltas com declarações comprometedoras e suspeitas de irregularidades. [...] desfalcase novamente o círculo de confiança em volta de Temer. [...]
Da aprovação da reforma da Previdência - imprescindível, mas impopular - nos próximos meses depende, sem exagero, o futuro de toda a estratégia econômica em curso; exposto às ameaças da LavaJato e às pressões de seus aliados, o governo Temer passa, a partir de agora, por seu teste mais decisivo.” (Folha de S. Paulo, 26/02/2017)
Além de exemplificar a ideia de “deterioração do sistema político”, o editorial acima também retrata uma característica já mencionada na seção sobre a frequência de menção a atores: a despersonalização dos atores. Esse artifício foi utilizado com frequência na vigência do governo Temer, e sugere que a FSP agiu com cautela ao discorrer sobre o governo peemedebista, possivelmente porque ele seria o meio pelo qual os fins almejados pelo jornal (a aprovação da reforma previdenciária, a instituição do teto de gastos etc) poderiam se concretizar. Nesse sentido, a despersonalização pode ser vista como uma característica que reforça o paralelismo político18 apresentado pelo jornal.
Convém ressaltar que nenhum dos pacotes interpretativos utilizados trata, nem mesmo lateralmente, daquele que é o problema por excelência do sistema político brasileiro (e, de fato, de qualquer sistema político moderno): a relação entre os poderes econômico e político, relação que quase invariavelmente favorece o primeiro. Não há, por exemplo, nenhuma consideração sobre o sistema eleitoral, que reforça o poder econômico ao funcionar por meio da lista aberta; nem sobre o financiamento de campanhas políticas (caracterizado pelo chamado “teto proporcional”), que favorece candidatos apoiados pelos poucos doadores abastados19; nem, ainda, sobre o processo pelo qual as empresas públicas contratam empresas privadas20.
Disso não se deve inferir que a FSP não trate nunca desses temas: lêse num editorial de 6 de novembro de 2016 que “[...] A ausência de um teto, ou sua fixação em termos proporcionais à renda ou ao faturamento, sempre permitiu influência desmedida por parte de certos agentes ou grupos econômicos.” (Folha de S. Paulo, 06/11/2016). Por isso, “[...] Melhor seria fixar um limite absoluto às contribuições (o teto atual é proporcional à renda ou ao faturamento) e aperfeiçoar ferramentas de transparência e fiscalização em tempo real.” (Folha de S. Paulo, 28/11/2014). Entretanto, esses - poucos - editoriais tratam da política de forma separada da corrupção. Como vimos, quando esta última é objeto de exame, o jornal faz uso de pacotes que salientam, por exemplo, a ganância dos atores políticos e a importância das instituições de controle e da punição severa, ao mesmo tempo em que pretere a discussão sobre as circunstâncias político-eleitorais que favorecem práticas corruptas. Permanecem inquestionadas, assim, as relações de poder vigentes.
Por fim, uma breve nota sobre os editoriais que não se encaixaram na categorização por pacotes interpretativos. Algumas dessas peças apresentaram grande similaridade entre si, o que poderia ensejar o uso de mais pacotes. Por exemplo, alguns editoriais apresentavam a ideia central de que “As investigações têm de ser mantidas”, ideia essa que poderia constituir um pacote. No entanto, dado que menos de 5% dos editoriais seriam classificados em pacotes específicos, optamos por classificálos como pertencentes à categoria “Outros”.
4. Considerações finais
A análise dos editoriais da Folha de S. Paulo revela que a cobertura da Operação Lava-Jato só se intensificou a partir de 2015, apesar de a corrupção ter sido um tema importante nas eleições de 2014. Os políticos petistas foram os principais alvos dos editoriais, especialmente antes do impeachment de Dilma Rousseff. Após o impeachment, o foco se dividiu entre Michel Temer e Luís Inácio Lula da Silva. Aécio Neves, do PSDB, também investigado, recebeu pouca menção. Isso evidencia que, embora a Lava Jato tenha atingido políticos de diversos partidos em diferentes cenários políticos, a FSP manteve o PT e o governo petista como foco principal de seus editoriais.
A análise dos enquadramentos utilizados nos editoriais da Folha de S. Paulo revela a predominância de cinco pacotes interpretativos: Aparelhamento do Estado, Punição Rigorosa, Deterioração do Sistema Político, Maturidade das Instituições e Abuso de Autoridades. O Aparelhamento do Estado foi o mais utilizado, principalmente associado a Lula, Dilma e ao PT, especialmente antes do impeachment. Após o impeachment, Lula continuou sendo o principal nome associado a esse enquadramento, enquanto os políticos peemedebistas foram enquadrados na Deterioração. Houve uma mudança gradual no uso dos outros pacotes interpretativos, com destaque para a transição de uma ênfase na punição rigorosa para uma visão que enfatizava a deterioração do sistema político brasileiro. Isso sugere que a Folha de S. Paulo pode ter sido uma das poucas publicações a destacar precocemente os riscos da criminalização da política e seu impacto negativo no eleitorado.
A análise dos dados mostra que a caracterização da OLJ pela Folha de S. Paulo passou por uma mudança gradual ao longo dos anos. Inicialmente vista como um indicador de estabilidade e maturidade institucional, a operação passou a ser vista com ressalvas em relação aos seus procedimentos e uso político. O jornal passou a priorizar a necessidade de combater os abusos por parte dos procuradores, como evidenciado pelo aumento do enquadramento do Abuso de Autoridades nos editoriais. No entanto, os editoriais pouco discutiram as raízes profundas da corrupção, como as regras de financiamento eleitoral e a relação entre o poder econômico e político. Isso limitou a discussão sobre soluções institucionais para enfrentar o problema, representando uma perda de oportunidade por parte do jornal.
Por último, conforme mencionado anteriormente, os editoriais sobre a LavaJato pouco abordaram as origens do problema da corrupção, como as normas de financiamento eleitoral com contribuições empresariais e a interação entre o poder econômico e o poder político. Ao enquadrar o problema como resultado de impulsos e transgressões individuais, de ambições partidárias para controlar o Estado e manter-se no poder, e ao destacar a deterioração do sistema político, o jornal evitou uma discussão mais abrangente, profunda e complexa do fenômeno da corrupção e de suas ramificações no sistema eleitoral e político. Dessa forma, perdeuse a oportunidade de apresentar e debater propostas institucionais para enfrentar essa questão. A preocupação com os efeitos da corrupção sobre a legitimidade da democracia é tanto mais justificada quando se leva em conta que, em geral, a democracia tem sido alvo de desconfiança, e esse movimento de insatisfação não se restringe a países da periferia do capitalismo.
Referências
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Porto, M. (2004). “Enquadramentos da mídia e política”. Em Antonio Rubim (Org.), Comunicação e política: conceitos e abordagens (pp. 73-104). Salvador: Edufba.
Thompson, J (2001). El escândalo político: poder y visibilidad en la era de los medios de comunicación. Barcelona: Paidós.