ASPECTOS PSICOSOCIALES DEL MUNDO LABORAL

Sofrimento psíquico em policiais militares brasileiros: revisão de literatura

Psychic suffering in Brazilian military police: literature review

Sufrimiento psíquico en la policía militar brasileña: revisión de la literatura

Higor Pontes Pinto Brito
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Brazil
Edinilsa de Ramos Souza
Departamento de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Brazil
Cristiane Batista de Andrade
Departamento de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Brazil

Sofrimento psíquico em policiais militares brasileiros: revisão de literatura

Trabajo y sociedad, vol. 25, núm. 43, pp. 109-128, 2024

Universidad Nacional de Santiago del Estero. Facultad de Humanidades y Ciencias Sociales. Instituto de Estudios para el desarrollo Social (INDES)

Recepção: 25 Agosto 2023

Revised document received: 21 Novembro 2023

Aprovação: 22 Março 2024

RESUMO: O objeto deste artigo é o sofrimento psíquico de policiais militares no Brasil e tem por finalidade investigar se a produção acadêmica nacional relaciona o sofrimento psíquico às condições e à organização do trabalho policial militar. Como metodologia, utilizou-se a revisão integrativa da literatura, com busca nas bases de dados: Portal BVS, Pubmed, Scielo, Scopus, Web of Science e Banco Digital de Teses e Dissertações. Foram selecionados para análise 32 documentos, publicados entre os anos de 1999 e 2019. Observou-se aumento na produção acadêmica sobre o tema na última década. A maior parte dos textos analisados relaciona o sofrimento psíquico ao trabalho policial militar, o que corrobora o pressuposto inicial, e detalha os aspectos organizacionais que favorecem o surgimento do sofrimento psíquico nesses trabalhadores, tais como a carga de trabalho, a divisão das tarefas, as pressões dos mecanismos disciplinares, a rigidez nas relações hierárquicas e na organização do trabalho. Conclui-se que a produção acadêmica nacional relaciona as condições e a organização do trabalho com o sofrimento psíquico vivenciado por policiais militares. É necessário que se promova a sensibilização de policiais e da gestão, independente do estrato hierárquico, acerca da importância da atenção à saúde mental e da compreensão dos impactos institucionais face ao sofrimento psíquico.

Palavras-Chaves: Trabalho, Saúde mental, Polícia, Saúde do Trabalhador.

ABSTRACT: The object of this article is the psychic suffering of military police officers in Brazil and its purpose is to investigate whether the national academic production relates psychic suffering to the conditions and organization of the military police work. As methodology, an integrative literature review was used, with a search in the following databases: Portal BVS, Pubmed, Scielo, Scopus, Web of Science and Digital Bank of Theses and Dissertations. Thirty-two documents, published between the years 1999 and 2019, were selected for analysis. An increase in academic production on the theme was observed in the last decade. Most of the texts analyzed relate psychic suffering to military police work, which corroborates the initial assumption, and detail the organizational aspects that favor the emergence of psychic suffering in these workers, such as the workload, the division of tasks, the pressures of disciplinary mechanisms, the rigidity in hierarchical relationships and in the organization of work. It is concluded that the national academic production relates the conditions and organization of work with the psychic suffering experienced by military police officers. It is necessary to promote the awareness of policemen and management, regardless of the hierarchical stratum, about the importance of mental health care and the understanding of the institutional impacts of mental suffering.

Key-words: Work, Mental Health, Police, Worker's Health.

RESUMEN: El objeto de este artículo es el sufrimiento psíquico de los policías militares en Brasil y pretende investigar si la producción académica nacional relaciona el sufrimiento psíquico a las condiciones y organización del trabajo policial militar. Como metodología, se utilizó una revisión bibliográfica integradora, con búsqueda en las siguientes bases de datos: Portal BVS, Pubmed, Scielo, Scopus, Web of Science y Banco Digital de Teses y Dissertações. Fueron seleccionados para análisis 32 documentos, publicados entre los años 1999 y 2019. Se observó un aumento en la producción académica sobre el tema en la última década. La mayoría de los textos analizados relaciona el sufrimiento psíquico con el trabajo policial militar, lo que corrobora la hipótesis inicial, y detalla los aspectos organizacionales que favorecen el surgimiento del sufrimiento psíquico en estos trabajadores, como la carga de trabajo, la división de tareas, las presiones de los mecanismos disciplinarios, la rigidez en las relaciones jerárquicas y en la organización del trabajo. Se concluye que la producción académica nacional relaciona las condiciones y la organización del trabajo con el sufrimiento psíquico experimentado por los policías militares. Es necesario promover la concienciación de policías y gestores, independientemente del estrato jerárquico, sobre la importancia de la atención a la salud mental y la comprensión de los impactos institucionales del sufrimiento psíquico.

Palabras-clave: Trabajo, Salud Mental, Policía, Salud del trabajador.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Aspectos metodológicos. 2.1 A revisão integrativa. 2.2 A análise dos dados. 2.3. Aspectos éticos. 3. Resultados. 3.1 Sofrimento psíquico e trabalho policial militar: uma relação possível? 3.2. Sobre as condições e organização do trabalho que propiciam o sofrimento psíquico em policiais militares. 3.3 Repercussões do trabalho policial na saúde física e mental dos policiais militares. 4. Discussão. 5. Considerações finais. 6. Referências.

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1. INTRODUÇÃO

Um homem também chora (Gonzaguinha, 1983)

O crescimento dos índices de violência no Brasil, especialmente em certas áreas onde são frequentes as intervenções da polícia, ganhou o interesse da mídia, que costuma cobrir as grandes operações policiais que envolvem agentes do Estado e grupos armados, com frequentes mortes nesses confrontos, inclusive de policiais. Nesse contexto, a vitimização e o sofrimento psíquico dos trabalhadores policiais militares também se tornou um tema cada vez mais presente no debate social e acadêmico (Minayo et al., 2008; Souza et al., 2012; Souza et al., 2013).

A Polícia Militar, seja no aspecto institucional ou operacional, tem mobilizado considerável número de estudos e análises. É importante salientar que este modelo de polícia que conhecemos atualmente, ou seja, a polícia ostensiva, é relativamente recente na história do mundo ocidental. Surge sob a ótica de uma nova concepção de Estado, cujo intuito é se produzir e manter a paz utilizando-se de soluções civilizadas e meios pacíficos (Muniz, 1999).

Em uma breve linha do tempo, a primeira corporação com características militares no Brasil foi criada no Rio de Janeiro, em 1809, após a chegada da família real portuguesa, com a denominação de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia. Com a República, a designação Militar foi acrescentada aos Corpos Militares de Polícia, os subordinando aos estados, que passaram a administrá-los de forma autônoma e independente. O nome Polícia Militar somente foi oficializado após a Segunda Guerra Mundial. Durante o regime militar no Brasil (1964 a 1985), a maioria das polícias militares foram comandadas por oficiais do exército, época em que se tentou padronizar um uniforme e uma hierarquia única para todo o país, com regulamento disciplinar e organização administrativa semelhantes aos do exército.

Portanto, essas “agências policiais” surgem da interação de elementos do âmbito político, nem sempre confluentes, como por exemplo: o consentimento dos cidadãos, a ação legal e o monopólio do uso legítimo da força, no intuito de operacionalizar a convergência destes elementos conflitantes. Partindo dessa contribuição de Muniz (1999), podemos notar aspectos da complexidade do trabalho policial, considerando também o regime hierárquico e disciplinar ao qual estes trabalhadores estão submetidos e sugerir que esse conjunto de variáveis influenciam direta e indiretamente em sua saúde.

Esta instituição é perpassada por construções simbólicas de âmbito pessoal e coletivo, que interferem direta e indiretamente na sua relação com a sociedade e nas posturas assumidas pela instituição e por seus profissionais. Esses últimos, por sua vez, encontram-se em situações paradoxais, entre o cumprimento das ordens emanadas pela instituição e a real viabilidade de execução delas, entre cumprir os anseios sociais de proteção e segurança e o uso legítimo da força.

Esta corporação caracteriza-se por se organizar tendo como base dois aspectos: hierarquia e disciplina. Esses “dois pilares inseparáveis e interdependentes da vida militar” (Minayo et al., 2008: 89), podem ser percebidos institucionalmente através de seus símbolos, insígnias e sua visão corporativa. Tal estruturação explicita continuamente a todos os seus membros como a corporação funciona e quais os papéis que devem ser exercidos por cada um, a partir do seu lugar na instituição.

Outra categoria fundamental nesta pesquisa é o sofrimento psíquico, que de acordo com Minayo et al. (2008): “caracteriza-se fundamentalmente por um mal-estar inespecífico, com repercussões fisiológicas e psicológicas que podem acarretar limitações severas no dia a dia, podendo transformar-se em doença pela sua intensidade e cronicidade.” (p. 223). Já Ceccareli (2005) compreende essa categoria como uma descompensação decorrente da organização do trabalho, que provoca diversas manifestações de desordem psicológica, como angústia, infelicidade, medo, ansiedade, entre outras.

Neste artigo buscou-se investigar a existência de relação entre o trabalho do policial militar brasileiro e o sofrimento psíquico e para isso, são discutidos conceitos de Christophe Dejours (1986; 2004; 2015). Nesse ínterim, existe também a proposta de traçar um paralelo entre as contribuições da produção dejouriana e a realidade dos trabalhadores da Polícia Militar.

Dejours (2004: 28), sob a ótica da psicodinâmica do trabalho, possibilita uma análise crítica da definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), que a compreende como estado de conforto e bem-estar físico, mental e social. Porém, é impossível definir categoricamente o que seria esse estado, embora exista uma noção convencionada. Analisando com mais profundidade infere-se que esse estado não existe e, portanto, tal definição apresenta-se mais coerente como um objetivo a se alcançar do que necessariamente um conceito que abranja a complexidade do que realmente é a saúde:

“Tenderíamos a dizer que a saúde é antes de tudo um fim, um objetivo a ser atingido. Não se trata de um estado do qual procuramos nos aproximar, não é o que parece indicar a definição internacional, como se o estado de bem-estar social, psíquico fosse um estado estável, que, uma vez atingido pudesse ser mantido” (Dejours, 1986: 8).

Ao afirmar que: “A saúde é quando ter esperança é permitido. Vê-se que isso faz mudar um pouco as coisas. O que faz as pessoas viverem é, antes de tudo, seu desejo; isso é uma aquisição da psiquiatria e da psicossomática” (Dejous, 1986: 9), traz para o campo conceitual aspectos que não são tangíveis ao método científico e a contribuição de dois campos de saber distintos, reiterando a amplitude e variabilidade do que podemos chamar de saúde.

O conceito de sofrimento para o autor é basal e tem a ver com a interação vivenciada pelo sujeito entre o bem-estar psíquico e as pressões que o encaminham ao adoecimento mental. Em seu livro A loucura do trabalho, Dejours (2015) procura responder como os trabalhadores fazem para lidar com o sofrimento causado pelo trabalho, o que eles fazem para não enlouquecer, ressaltando que para que exista sofrimento é necessário que exista um corpo para experimentá-lo, ou seja, é no corpo que se inscrevem os efeitos desta simbiótica relação entre o trabalhador e o trabalho.

É necessário evidenciar que se trata de uma estruturação dinâmica, que embora varie de acordo com cada pessoa também sofre a influência cultural da forma como se experimenta e se enfrenta o sofrimento produzido pelo trabalho, cria o que o autor chama de estratégias defensivas, que são operacionalizadas a partir de procedimentos individuais e coletivos utilizados pelos trabalhadores (Dejours, 2015).

Para Dejours (2004) “trabalhar é preencher a lacuna entre o prescrito e o real [...] O caminho a ser percorrido entre o prescrito e o real deve ser, a cada momento, inventado ou descoberto pelo sujeito que trabalha.” (p. 28). Nesta concepção, para além das definições clássicas conhecidas, o autor nos convida à percepção de um aspecto colaborativo do trabalho para a formação da subjetividade e o consequente convite à interação deste sujeito e suas vivências com as prescrições do trabalho. A partir deste ponto de vista, o trabalho se configura como aquilo que o trabalhador deve adicionar ao que lhe é prescrito, para que possa alcançar os objetivos pertinentes à sua ocupação:

“A psicodinâmica do trabalho defende a hipótese segundo a qual o trabalho não é redutível a uma atividade de produção no mundo objetivo. O trabalho sempre coloca à prova a subjetividade, da qual esta última sai acrescentada, enaltecida, ou ao contrário, diminuída, mortificada. Trabalhar constitui, para a subjetividade, uma provação que a transforma. Trabalhar não é somente produzir; é, também, transformar a si mesmo e, no melhor dos casos, é uma ocasião oferecida à subjetividade para se testar, até mesmo se realizar.”(Dejours, 2004: 30)

Nesse sentido, Nieto Calleja (1998) reitera a centralidade do papel exercido pelo trabalho na sociedade enquanto um elemento que estrutura a dimensão simbólica e organiza a práxis social. Porque além de uma ação prática, o trabalho também representa e colabora na construção de sentido que se realiza através de processos de significação.

Além do conceito de sofrimento causado pelo trabalho e das estratégias defensivas, coletivas e individuais, desenvolvidas pelos sujeitos para não adoecer, outro importante conceito trazido por Dejours é o de organização do trabalho, definida por ele como: “a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa (na medida em que ele dela deriva), o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade etc.” (Dejours, 2015: 29). De forma que, quando o funcionamento psíquico dos trabalhadores entra em conflito com a organização do trabalho, anulando qualquer possibilidade de adaptação entre eles, um sofrimento patogênico é provocado e para enfrentar o sofrimento produzido pelo trabalho, cada pessoa aciona suas estratégias defensivas individuais e coletivas.

Torna-se imprescindível fazer uma diferenciação entre condição e organização do trabalho, segundo Dejours (2015) “Por condição de trabalho é preciso entender, antes de tudo, ambiente físico[...], ambiente químico[...], o ambiente biológico[...], as condições de higiene, de segurança e as características antropométricas do posto de trabalho. ” (p. 29). Desse modo, infere-se que as condições de trabalho estão relacionadas àquilo que alcança primariamente o corpo do trabalhador, afetando-o exclusivamente em seu físico. Portanto, quando o autor fala sobre ambiente físico está se referindo às condições de temperatura, pressão, vibrações, radiações etc.; sobre ambiente químico, refere-se aos vapores, poeiras, elementos tóxicos e sobre o ambiente biológico, faz referência ao ambiente dos micróbios, bactérias e vírus, possibilitando-nos a reflexão pormenorizada sobre os impactos destes ambientes na saúde e vida do trabalhador. Cabe ressaltar que, além dos impactos físicos, as condições de trabalho também afetam a subjetiva do trabalhador. Dejours (2015) relata, inclusive, que há uma estreita relação do desenvolvimento de doenças psicossomáticas com os sofrimentos vividos no ambiente laboral.

De acordo com a revisão integrativa realizada por Sousa, Barroso e Ribeiro (2022), foram identificados vários fatores de risco para problemas mentais em policiais. Entre os fatores individuais, foram identificados a má qualidade do sono, comportamento desconfiado, frieza afetiva, inibição, dificuldades para expressar sentimentos, insegurança e ter um segundo trabalho. Já entre os fatores da organização do trabalho, foram identificados atuar na área operacional, ausência de folgas, trabalhar em turnos, a hierarquia e burocracia rígidas, mudança de escala sem aviso prévio e ter que lidar com crianças maltratadas.

Pela perspectiva de Siqueira e Ferreira (2023), policiais militares são uma classe profissional mais vulnerável e suscetível ao acometimento por sofrimentos psíquicos associados a fatores como risco, inclusive de morte, pressões, tensões e cobranças institucionais. Além disso, o consumo de drogas lícitas e ilícitas, transtorno de ansiedade, transtorno de humor, transtorno de estresse pós-traumático, depressão e estresse também figuram entre os registros clínicos na saúde mental de policiais militares. O trabalho policial militar pode ser muito estressante e perigoso, o que pode levar a problemas de saúde mental. Os autores mencionam que a organização do trabalho policial militar pode afetar a saúde mental dos policiais, pois o trabalho pode ser muito estressante e perigoso. Além disso, destacam que fatores como risco, pressões, tensões e cobranças institucionais podem contribuir para o adoecimento mental dos policiais. A literatura também aponta que a falta de suporte emocional e psicológico adequado por parte da organização pode agravar os problemas de saúde mental dos policiais.

Portanto, reiterando a pertinência do tema, surgem as seguintes questões norteadoras deste estudo: existe relação entre o sofrimento psíquico e o trabalho policial militar brasileiro? Confirmando-se esta relação, como as produções acadêmicas nacionais abordam a temática do sofrimento psíquico no âmbito da polícia militar no Brasil?

Sendo assim, os objetivos da pesquisa são: analisar como a produção acadêmica brasileira tem abordado o sofrimento psíquico de policiais militares e identificar quais são os principais aspectos, das condições e da organização do trabalho, que propiciam o sofrimento psíquico em policiais militares.

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS

2.1. A revisão integrativa

Foi feita uma revisão integrativa da literatura. Este tipo de revisão tem por finalidade abranger as produções científicas (teses, dissertações e artigos científicos) com uma abordagem metodológica a partir de estudos empíricos ou teóricos, o que favorece uma ampla compreensão sobre o fenômeno estudado (Souza, Silva, Carvalho, 2010).

Segundo Mendes, Campos e Galvão (2008: 760-761) a formulação da revisão integrativa precisa cumprir seis etapas diferentes, que são parecidas com as etapas da pesquisa convencional, sendo elas: “(1) Estabelecimento da hipótese ou questão de pesquisa, (2) amostragem ou busca na literatura, (3) Categorização dos estudos, (4) Avaliação dos estudos incluídos na revisão, (5) Interpretação dos resultados e (6) Síntese do conhecimento ou apresentação da revisão.”

Foram selecionados os descritores e palavras-chave para a busca na literatura. Foram utilizadas as bases de dados: Portal BVS, Scielo, Scopus, Pubmed, Web of Science e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Nessa última, foram encontradas teses e dissertações importantes para a presente pesquisa.

A estratégia de busca foi realizada pelos autores deste artigo e por um bibliotecário especialista na área de violência e saúde. Os descritores nas línguas portuguesa e inglesa foram determinados com base nos eixos norteadores do trabalho, a saber: polícia, sofrimento psíquico e trabalho, contanto também com a expertise do bibliotecário especialista na área de violência e a utilização do site DeCS da Biblioteca Virtual em Saúde, que constam no Quadro 1. Há diferenciação dos descritores para determinadas bases de dados, pois algumas delas aceitam apenas descritores em inglês.

Quadro 1
Descritores utilizados nas bases de dados pesquisadas.
Descritores utilizados nas bases de dados pesquisadas.

Os documentos que resultaram da busca foram inseridos no programa gerenciador de referência bibliográfica Zotero, que foi utilizado para arquivá-los e gerenciar as citações realizadas (Ferreira, 2017). Foram excluídos os documentos que constavam em duplicidade. Fez-se a leitura dos títulos, resumos e objetivos, para a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão.

Os critérios de inclusão dos documentos utilizados foram: artigos em português ou inglês sobre sofrimento ou saúde mental de policiais brasileiros; artigos que abordam a saúde mental de policiais militares brasileiros. Os critérios de exclusão foram: textos completos não disponíveis em acesso aberto; produções que não contemplavam o objeto proposto, ou seja, que não tratavam sobre policiais militares; produções que não apresentavam conteúdo referente ao recorte proposto (sofrimento e saúde mental).

A busca inicial identificou 1330 documentos. A partir daí utilizou-se a metodologia Prisma (Galvão, Pansani, Harrad, 2015) e aplicou-se os critérios de exclusão. Foram excluídos 521 documentos repetidos. Dos 809 restantes, foram retirados 26 por falta de acesso ao texto completo, 516 por não abordarem a polícia, 181 por falarem de polícias ou outras classes no contexto internacional, 23 por não abordarem o tema, 04 por não estarem na língua portuguesa, inglesa ou espanhola, e 27 por não serem artigos, dissertações e teses. Restaram para a análise 32 documentos, sendo 15 artigos, 15 dissertações e 2 teses.

2.2 A análise dos dados

O conjunto dos artigos localizados foi, inicialmente, submetido a uma análise quantitativa descritiva que buscou caracterizar o acervo, descrevendo as frequências absolutas das variáveis coletadas: ano de publicação, tipo de documento, área do conhecimento, área de abrangência do estudo e região do estudo. Para algumas variáveis de interesse foram realizados alguns cruzamentos e agregações.

O acervo também foi submetido a uma abordagem qualitativa que seguiu a análise de conteúdo (Bardin, 2011), que se estrutura em três fases: pré-análise, exploração do material e o tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

A primeira fase diz respeito à preparação e definição dos critérios, com a finalidade de organizar as demais etapas que serão executadas. A fase subsequente, a de exploração do material, é aquela na qual será realizada a codificação, decomposição ou enumeração dos documentos selecionados na etapa anterior, com base nos critérios anteriormente definidos. A fase final, na qual os resultados são tratados, é o momento em que o material é codificado de forma que se torne significativo e válido para o escopo da pesquisa (Bardin, 2011).

O tipo de análise realizada foi a temática, que, segundo a autora: “[...] consiste em descobrir os ‘núcleos de sentido’ que compõem a comunicação e cuja presença ou frequência de aparição podem significar alguma coisa para o objetivo pretendido” (Bardin, 2011: 135). Através da análise temática, faz-se o recorte do sentido apresentado pelo texto que é analisado:

“O tema é geralmente utilizado como unidade de registro para estudar motivações de opiniões, de atitudes, de valores, de crenças, de tendências etc. As respostas a questões abertas, as entrevistas (não diretivas ou mais estruturadas) individuais ou de grupo, de inquérito ou de psicoterapia, os protocolos de testes, as reuniões de grupo, os psicodramas, as comunicações de massa etc., podem ser, e frequentemente são analisados tendo o tema por base. ” (Bardin, 2011: 135).

Nesta proposta de análise busca-se explorar e identificar nas publicações os temas abordados que tinham relação com os objetivos deste estudo, que visavam responder se e como a literatura científica brasileira relaciona o trabalho policial militar ao sofrimento psíquico, quais são os aspectos da estrutura e organização do trabalho que geram sofrimento psíquico nesses policiais e quais repercussões o trabalho policial tem na saúde mental desses agentes. Foram essas categorias empíricas que nortearam a abordagem qualitativa desta revisão. Além destas, foi incluída uma análise sobre o trabalho policial durante a pandemia no Brasil, por considerar que este foi fortemente impactado pelo contexto sanitário.

2.3 Aspectos éticos

Com base no Art. 1º, Parágrafo único, inciso VI da Resolução do CNS nº 510, de 07 de abril de 2016, por se tratar de análise documental, esta pesquisa não precisou ser avaliada pelo sistema CEP/CONEP. Entretanto, foi encaminhada à coordenação do CEP/ENSP uma solicitação de Parecer de Dispensa de Análise Ética, o qual foi deferido de acordo com o Parecer nº 11/2019 do referido comitê.

3. RESULTADOS

De acordo com os achados, nos últimos anos, houve um aumento considerável nas produções científicas sobre o tema: nos anos de 1999 e 2009, foram localizados 07 estudos que o abordaram, enquanto na década posterior, esse número triplicou, perfazendo 25 documentos, o que indica o crescimento do interesse dos pesquisadores nesse tema. A maior parte da produção científica está localizada nas regiões Sul, Nordeste e Sudeste, que somam quase 90% (N=29) do total do acervo analisado.

Observa-se que o formato de artigo prepondera nas regiões Nordeste e Sul, enquanto as dissertações estão mais presentes nos estudos desenvolvidos na região Sudeste, talvez pela concentração de instituições de pós-graduação nessa região. Não foi localizado nenhum artigo publicado sobre o tema nas regiões Norte e Centro Oeste, o que aponta para a necessidade de incentivar pesquisas sobre a temática nessas regiões e publicá-las em meios com maior visibilidade, como são os periódicos científicos.

Com relação à área de publicação, a psicologia concentrou aproximadamente 1/3 do total de publicações (N=11), seguida pela Saúde Pública, com oito publicações no período pesquisado. No entanto, foram localizados alguns estudos sobre sofrimento psíquico em policiais nas áreas de Administração e Sociologia (N=3), Ciências da Saúde (N=2), Educação Física (N=1), Enfermagem (N=1), Engenharia de Produção (N=1), Gestão de Políticas Públicas (N=1) e Nutrição (N=1). Esses achados apontam para o aumento do interesse dos pesquisadores e a diversificação das áreas das pesquisas envolvendo a saúde mental de policiais militares no Brasil nos últimos 10 anos.

3.1 Trabalho policial militar e sofrimento psíquico: uma relação possível?

A maior parte dos documentos analisados afirma existir relação entre trabalho policial militar e sofrimento psíquico. Contudo, apresentam em alguns momentos, pontos de vista convergentes e, em outros, trazem apontamentos mais específicos sobre a questão.

Nesse sentido, Spode (2004) discute a categoria específica dos capitães com o intuito de compreender como se dá a relação entre o papel que executam na Brigada Militar e as vivências de sofrimento e prazer, tomando por eixo de análise a produção de subjetividade e a saúde mental. Em outro trabalho de Spode e Merlo (2006), corroborado por Ferreira (2009; 2011), reitera-se que a categoria policial militar é muito vulnerável à produção do sofrimento psíquico, haja vista a realidade diária permeada por perigos e tensões sempre iminentes.

Na mesma perspectiva, Sartori (2006) acrescenta que os policiais militares fazem parte do grupo de risco para a Síndrome de Burnout, que de acordo com Maslash e Goldberg (2016) “trata-se de um conjunto de sintomas caracterizado por sinais de exaustão emocional, despersonalização e reduzida realização profissional em decorrência de uma má adaptação do indivíduo a um trabalho prolongado, altamente estressante e com grande carga tensional” pela natureza ostensiva de seu trabalho e por problemas decorrentes deste (Maslash e Goldberg Apud Pêgo & Pêgo, 2016: 172). Essa visão é reforçada por Rodrigues et al. (2015) ao afirmarem que o acúmulo de situações de trabalho desgastantes, como o relacionamento interpessoal, a execução das ordens prescritas, a relação com os comandantes, o desempenho no trabalho, a satisfação e a motivação relacionadas ao trabalho, ocasionam um tipo de estresse crônico, que também caracterizam como Síndrome de Burnout.

Ferreira (2008) e Minayo et al. (2011) fazem a relação entre trabalho policial e sofrimento psíquico a partir das queixas de policiais militares, cujos problemas mais relatados referem-se à saúde psíquica. Cabe ressaltar, que o estudo de Minayo et al. (2011) analisa o adoecimento físico e mental de policiais civis e militares do Estado do Rio de Janeiro, sendo observada maior intensidade de sofrimento psíquico entre os militares, quando comparados com os civis. Isso parece demonstrar que a diferença no exercício profissional dessas duas instituições pode influenciar no grau do adoecimento percebido entre esses trabalhadores.

Vislumbrando o papel mediador da autoeficácia na relação entre o bem-estar subjetivo e a Síndrome de Burnout, Souza et al. (2015) indicam um novo ponto de vista para a questão do sofrimento psíquico, centralizado nesta síndrome. A colaboração desses autores reside na apresentação da proposta de um possível mecanismo de autorregulação para lidar com o sofrimento psíquico, baseado no fortalecimento da autoeficácia em policiais e bombeiros militares (Souza et al., 2015).

Joly (2017) reforça que não se trata de um caso isolado entre os profissionais da segurança pública no Brasil, pois o sofrimento em função da profissão pode alcançar níveis tão altos que pode redundar em suicídio: “A sensação de abandono e o impedimento de realizar o tratamento desencadeiam no entrevistado esses sentimentos que podem levar, em muitos casos ao suicídio” (Joly, 2017, p. 57). Ao discutir a temática da vitimização policial esse pesquisador indica outros problemas, além do óbito por suicídio, como os adoecimentos e as questões relacionadas à classe profissional e de gênero, que também figuram como campos de vitimização. Em uma instituição marcada pelo ideal e valorização da virilidade enquanto requisito desejável, os assédios (moral e sexual) e a segregação são as formas mais comuns de vitimização no que concerne às questões de gênero.

Silva e Vieira (2008), Bezerra (2012), Müller (2012), Sales (2013), Schlitchting Junior et. al (2014), Machado et. al (2015), Souza et al. (2015), Alves et al. (2015), Carvalho (2016), Ferreira (2016), Pereira (2017), Lima (2018), Sousa (2018), Freitas et al. (2018) e Castro et al. (2019) trazem importantes elementos das condições e da organização do trabalho como uma forma de relacionar o trabalho policial militar ao sofrimento psíquico, seja pela influência da instituição, a partir de seu aspecto organizacional rígido e hierarquicamente constituído, pelas precárias e desfavoráveis condições de trabalho (locais insalubres, falta de equipamentos de proteção, ou equipamentos obsoletos, defeituosos, pesados) ou pelo conteúdo do trabalho, quase sempre permeado pela violência, seja das ocorrências atendidas no decorrer dos plantões ou do enfrentamento armado.

3.2. Sobre as condições e organização do trabalho que propiciam o sofrimento psíquico em policiais militares

A maior parte dos estudos convergiu em apontar aspectos da organização e das condições do trabalho policial como desencadeadores do sofrimento psíquico. Barcellos (1999), Spode (2004), Spode e Merlo (2006), Ferreira et al. (2008), Ferreira (2009) e Minayo et al. (2011) demonstram que questões como a carga de trabalho, a falta de suporte social, a divisão dos trabalhadores e das tarefas, as pressões dos mecanismos disciplinares, as relações hierárquicas e o nível de rigidez na organização do trabalho, que possibilitam ao trabalhador maior ou menor liberdade para gerir sua atividade, propiciam o surgimento do sofrimento psíquico. Ferreira et al. (2012) afirmam que a organização do trabalho é um elemento imprescindível para a elaboração do sentido do trabalho, pois permite a amplificação de significados do indivíduo no mundo, sua colocação e reconhecimento frente à sociedade.

De acordo com Barcellos (1999), as peculiaridades do trabalho como a hierarquia explícita, rígida e verticalizada, o próprio caráter militar atribuído à função policial e diante disso, a restrita liberdade para interferência do sujeito na execução do seu trabalho, trazem influências diretas no sofrimento ou prazer experimentadas por esses trabalhadores. Entendimento corroborado por Antunes (2019), que apresenta a hierarquia como um elemento da organização do trabalho que está diretamente relacionado ao sofrimento psíquico vivenciado no trabalho policial militar.

Os estudos de Silva e Vieira (2008), Müller (2012), Sales (2013), Machado et al. (2015) e Carvalho (2016) descrevem que certas condições de trabalho, como a baixa qualidade dos equipamentos de segurança e de trabalho, a falta de recursos humanos e materiais, as remunerações desproporcionais, as condições insalubres de trabalho e o pouco investimento do Estado favorecem o surgimento do sofrimento psíquico nesses trabalhadores.

A pesquisa realizada por Bezerra (2012), com mulheres policiais militares, das áreas de saúde e operacional, praças e oficiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), traz informações importantes acerca da influência das condições e da organização do trabalho na vida dessas policiais militares. Na visão das oficiais participantes da pesquisa, a hierarquia e as injustiças cometidas em nome dela, as questões de gênero, como preconceito e assédios moral e sexual, são algumas dessas condições. Para as praças, a hierarquia também gera sofrimento pelo fato de terem que executar ordens, pelo receio de serem punidas ou sofrerem injustiças, caso não as executem.

Com o objetivo de estabelecer uma associação entre as condições e a organização do trabalho com a Síndrome de Burnout, Sartori (2006), por meio da realização de observações, entrevistas e cruzamentos estatísticos, encontrou como indicadores a baixa qualidade e inadequação das condições de trabalho referentes às ferramentas de trabalho (escudos, capacetes, coletes, armamentos, entre outros) e a exaustão emocional. Seu estudo é citado na pesquisa de Mariano (2015), que analisou as representações sociais acerca da profissão policial militar e procurou investigar as relações entre as representações elaboradas pelos policiais com a qualidade de vida no trabalho. Tais representações denotam o quão importante é o trabalho em suas dinâmicas sociais, pela garantia da sobrevivência e a possibilidade de realizações, bem como pela utilidade social da profissão e a projeção da carreira. Em contrapartida, essa autora reitera o limitado apoio que a instituição dispõe para atender às demandas do trabalho.

A ausência de folgas, trabalhar em turnos e na área operacional, sofrer alterações na escala de serviço e sem prévio aviso, lidar com situações de extrema violência, vivenciar contínua e constantemente situações de miséria, desamparo, crises e mortes, estar submisso à rigidez da hierarquia e a da burocracia, não contar com o apoio do supervisor, segundo Ferreira (2016) e Sousa (2018), são fatores organizacionais que propiciam o sofrimento. Freitas et al. (2018) reafirmam os indicadores supracitados e os associam à suscetibilidade dos trabalhadores ao surgimento de esgotamento emocional (Burnout). Fazem também uma relação entre o adoecimento ocasionado por questões do trabalho e efeitos deletérios nas relações sociais destes trabalhadores.

Assédio moral, situações de humilhação, punições veladas, falta de oportunidade para o crescimento pessoal e profissional, falta de reconhecimento institucional, dificuldade de expressar ideias, diferente tratamento entre oficiais e praças, interferências políticas no trabalho policial e o sentimento de incompreensão nas audiências de custódia são aspectos citados como desencadeadores do sofrimento psíquico entre policiais militares por Sales (2013), Minayo (2013), Carvalho (2016), Pereira (2017), Lima (2018), Pelegrini et al. (2018) e Castro et al. (2019).

No intuito de compreender os vieses organizacionais e políticos da vitimização policial militar, Joly (2017) aponta questões já mencionadas, como a precarização condições materiais do trabalho, a negação dos direitos, os baixos salários e a sustentação da imagem do “policial-herói”, e a noção da vigilância constante, que são consideradas fontes de vitimização, uma vez que tais aspectos, associados ou não, promovem sofrimento para esses trabalhadores.

3.3 Repercussões do trabalho policial na saúde física e mental dos policiais militares

Em sua dissertação, Barcellos (1999) conclui que a associação da precarização das condições de trabalho à rigidez da organização do trabalho dos policiais militares é um fator que desencadeia o sofrimento psíquico que, por sua vez, não se restringe ao âmbito do trabalho, alcançando também a sua vida social. O autor informa ainda que devido à baixa remuneração que recebem, os policiais vivenciam dificuldades financeiras, precárias condições de moradia e de subsistência, bem como baixa expectativa quanto ao seu futuro.

Em uma pesquisa com capitães da Brigada Militar, os resultados apresentados por Spode (2004) e Spode e Merlo (2006) indicam que os participantes afirmaram apresentar sintomas físicos, como dor de cabeça e problemas de pressão arterial, para os quais usam medicamentos de forma paliativa. Os capitães atribuíram tais sintomas à constante preocupação advinda do trabalho e às diversas situações de tensão que vivenciam nas ruas. A elevada carga de trabalho faz com que os policiais percebam seu trabalho como desgastante e não reconhecido, sendo apontado por eles como fonte de sofrimento.

Silva e Vieira (2008) e Ferreira et al. (2008) convergem ao afirmar que o sofrimento psíquico resulta também da conjugação das forças relacionadas ao trabalho, perpassado por rotinas intensas de trabalho, e pelo pouco suporte social, incluindo o dos superiores hierárquicos. Segundo os autores esse sofrimento pode se desdobrar em casos de alcoolismo e depressão, podendo chegar ao suicídio.

Para Silva e Vieira (2008: 167), no contexto da Polícia Militar, “as pressões da organização do trabalho e a sociedade aflita são fatores que podem influenciar no aumento da fadiga e nas crises mentais. ” Ainda segundo os autores, os soldados e cabos são os mais afetados, por serem considerados na hierarquia como elementos de execução, logo, são majoritariamente designados ao patrulhamento e ficam, assim, mais expostos às ocorrências de risco.

O risco de morrer e de ser ferido em função do trabalho, ou mesmo a percepção deste risco por parte dos policiais, apontado por Spode e Merlo (2006), Ferreira (2011) e Minayo (2011), passam pela exposição desses profissionais a diversas formas de violência e pela exposição a situações extremas, tanto do ponto de vista físico quanto psíquico, pela peculiaridade de sua função, fato corroborado no artigo de Souza et al. (2012).

Alterações de sono, distúrbios gastrointestinais, cardiovasculares, desordens psíquicas e prejuízos à relação social e familiar, são apontados por Ferreira (2009) como consequências do trabalho em turno realizado pelos policiais militares. A autora ressalta ainda que os problemas relacionados ao sistema neuropsíquico, como: fadiga, irritação, ansiedade, dificuldade de sono e dor de cabeça foram os mais citados pelos participantes da pesquisa. Em um outro artigo, Ferreira et al. (2012) encontraram uma prevalência de morbidade referida por 72,0% dos 207 policiais militares entrevistados. Entre as mais citadas estão os problemas de visão (32,6%), hipertensão arterial (25,0%), gastrite (13,9%), depressão (11,8%) e varizes (11,0%).

Minayo et al. (2011) concluíram que os policiais militares que executam o trabalho ostensivo, trabalham durante a noite, trabalham por um período de 12 horas sem se alimentar devidamente, às vezes, tendo realizado apenas uma refeição, trabalham sob pressão, ficam em constante estado de alerta, dormem pouco e vivenciam consequências relativas às condições e à organização do trabalho policial militar. Tais achados corroboram resultados de estudos internacionais, ratificando que o risco ocupacional e o desgaste psicológico sofrido pelos policiais resultam em alcoolismo, drogadição, insônia, estado de hipervigilância, aumento da agressividade ou embotamento afetivo, o que pode conduzir a problemas de ordem familiar e outros como: violência, ideação, tentativa ou até mesmo a consumação do suicídio.

A partir da fala das policiais militares, Bezerra (2012) identificou a ocorrência de sentimento de ansiedade, compulsões alimentares, atitudes repetidas e o consumo de café em excesso se apresentaram em consequência ao estresse no trabalho. A autora destaca entre os sintomas psicossomáticos a enxaqueca, queda de cabelo, psoríase, herpes e menstruação desregulada. As policiais ainda mencionaram o estresse, o medo e a ansiedade gerados pelo receio de serem reconhecidas como policiais nos espaços sociais.

Uma contribuição importante da pesquisa de Santana et al. (2012) reside na articulação do “estado nutricional” de policiais militares com as categorias: “condições de trabalho” e “estresse ocupacional”. Os resultados apontam a debilitação do organismo, enfraquecimento do sistema imunológico, hipertensão arterial, problemas de pele, depressão, raiva, ansiedade, angústia, apatia, mudança de humor e riscos como o de alterações metabólicas, acúmulo de gordura abdominal e sobrepeso.

O aumento do absenteísmo, alcoolismo, tabagismo, alterações do nível de eficiência no trabalho, problemas cardiovasculares foram consequências elencadas por Müller (2012) e Rodrigues et al. (2015). O desempenho irregular das atividades, os conflitos de relacionamento, a síndrome do pânico, a dependência de substâncias psicoativas, foram citados por Sales (2013); os diversos tipos de câncer, depressão, insônia, estresse cumulativo, excesso de peso, distúrbios gastrointestinais, irritação, sofrimento físico e mental, foram mencionados nos estudos de Minayo (2013), Schlichthing (2014) e Machado et al. (2015). O mau humor, tristeza, suicídio, estresse e fobia, foram encontrados nos estudos de Mariano (2015) e de Carvalho (2016); a Síndrome de Burnout e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) pareceram em Alves (2015), Ferreira (2017), Lima (2018) e Sousa (2018); o comprometimento do pensamento lógico e da habilidade de tomada de decisão em momentos de grande tensão e o rompimento de vínculo familiar foram apresentados nos estudos de Pelegrini et al. (2018) e Freitas et al. (2019).

Os resultados da investigação de Castro mostram que:

“os sintomas físicos e psicológicos do estresse identificam a predominância de mãos e pés frios, sudorese excessiva, tensão muscular, insônia, cansaço permanente, flatulência, falta de memória, doenças dermatológicas, sobrepeso, obesidade, elevados níveis de colesterol, dores no pescoço, nas costas ou coluna, problemas de visão e dores de cabeça, associados a nervosismo, irritabilidade sem causa aparente, perda do senso de humor, conformismo, apatia e agressividade” (Castro et al., 2019: 532).

Estas consequências de ordem física, mental e até mesmo no âmbito das relações sociais e familiares demonstram que embora os estudos sejam realizados em Estados, contextos e participantes diferentes, há convergência nos resultados obtidos, no que tange às consequências do trabalho policial militar na vida de seus trabalhadores.

4. DISCUSSÃO

A análise da produção científica brasileira sobre o tema, permite observar que uma parcela dos estudos analisados converge para o reconhecimento da existência de relação entre a atividade laboral e o sofrimento psíquico dos policiais militares, e que essa relação imbrica circunstâncias e elementos diversos, dentre eles o contexto sociocultural e econômico, as subjetividades dos atores implicados, as condições materiais, a importância do trabalho na vida das pessoas, a forma como ele está organizado e a produção de um sentido simbólico, importante para os trabalhadores.

Nessa perspectiva, é importante ressaltar que o trabalho desempenha um papel significativo no que tange à afetividade e, consequentemente, na constituição das subjetividades, exercendo relevante impacto também na vida social do trabalhador. Portanto, a forma como está organizado possui implicação sobre os sentimentos de prazer e sofrimento vivenciados pelos trabalhadores (Dejours, 1986).

O sofrimento, para Brant e Minayo-Gomez (2004), é uma experiência individual na qual é possível identificar concomitantemente dor e prazer, não sendo possível ser considerado de uma mesma forma para duas pessoas, por mais que estas compartilhem de uma mesma cultura e estejam num mesmo período histórico. Afirmam: “Fruto de uma visão dicotômica, a palavra sofrimento tem sido associada ao psíquico, ao mental ou à alma [...]” (Brant & Minayo-Gomez, 2004: 215)

Minayo et al. (2008) afirmam que “o sofrimento físico e mental não se apresenta de forma separada. São ambos resultantes do conjunto de situações vivenciadas no cotidiano do trabalho”. (p. 224). Essas autoras apresentam dados de um estudo feito por Rodrigues (2000), realizado com policiais no Hospital Geral da Polícia Militar, no Rio de Janeiro, que aponta as queixas que motivam a busca pelo atendimento médico no referido hospital: 23% estão relacionadas a processos de somatização fortemente associados aos problemas cotidianos; 10,2% relacionam-se à hipertensão; 24% são problemas ortopédicos, 11% referem-se a doenças gastrointestinais e 10,2% à dor precordial, ansiedade, tensão e nervosismo.

Quanto às vivências de sofrimento no trabalho, Dejours (2015) afirma que podem aparecer como resultado de um conteúdo de trabalho pouco significativo para o trabalhador ou da sua inadequação à tarefa prescrita, ou seja, não é o trabalho ou a organização do trabalho que causa o sofrimento, mas a relação entre as aspirações e desejos do trabalhador e a realidade da função que exerce. Na instituição policial militar, inevitavelmente, essa relação é atravessada pela forma como são distribuídas e organizadas as pessoas, as tarefas, os deveres e funções, apresentando-se como um campo onde o sofrimento pode ser vivenciado, em decorrência da rigidez das tarefas prescritas e da falta de autonomia para modificar as formas de execução.

No que tange à prática da atividade policial, existem outros fatores que estão interligados ao sofrimento psíquico, tais como a tensão a que estão submetidos, o perigo iminente, o estresse, as condições de trabalho e o caráter de incerteza que permeiam o cotidiano desses trabalhadores, que favorecem o agravamento do quadro de sofrimento, podendo evoluir para um adoecimento mais grave como a síndrome de Burnout, depressão e, em casos extremos, o suicídio.

O suicídio de policiais é considerado um desfecho de elevada gravidade, pelos impactos sobre quem está próximo dos que o consumaram, marcando significativamente suas relações sociais. Mas, segundo Miranda (2016), em detrimento desse caráter de gravidade, o poder público e as instituições policiais, que são responsáveis em seus respectivos níveis de competência pela gestão das polícias, não têm dado a devida importância ao problema.

Seria equivocado defender a premissa de que o trabalho policial militar produz apenas sofrimento, haja vista que encontramos relatos sobre experiências de prazer e satisfação advindas do trabalho. Para Dejours (2009), a vivência do prazer relacionado ao trabalho está vinculada à dimensão da liberdade, para criar e interagir com o conteúdo prescrito pela organização, e do reconhecimento, como mecanismo de significação simbólica que interage com sua experiência de ser-no-mundo, corroborado nesta perícope: “O reconhecimento pode transformar o sofrimento em prazer. É o reconhecimento que dá seu sentido subjetivo ao trabalho. Trabalhar nunca é somente produzir, é também transformar a si mesmo” (Dejours, 2009: 23).

Para responder quais fatores do trabalho policial militar propiciam a ocorrência do sofrimento psíquico, recorre-se a duas categorias oriundas dos artigos analisados que concentram tais fatores: a organização do trabalho e as condições de trabalho.

Condições de trabalho são aquelas que abrangem os aspectos físicos, químicos e biológicos relacionados ao trabalho exercido pelos policiais militares (Dejours, 2015). Consideram-se nesta categoria a qualidade dos equipamentos de trabalho e de segurança dos policiais, a carga horária excessiva, a falta de recursos humanos em número suficiente, a falta de insumos e materiais para o desenvolvimento adequado das atividades, a precária capacitação e as condições insalubres de trabalho.

Ao vislumbrar as questões referentes às condições de trabalho, Müller (2012) aponta entre os fatores preponderantes para a experiência de sofrimento no trabalho o pouco investimento financeiro do Estado, um dado que encontra um contraponto na pesquisa de Joly (2017), que apresenta a informação acerca do aumento nos investimentos financeiros em Segurança Pública na maior parte dos Estados da Federação, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015. Mas ressalta que: “Contudo, há que se problematizar de que forma esses recursos estão sendo investidos, pois maiores gastos com segurança pública não significam necessariamente melhorias em aspectos primordiais dessa área [...]” (Joly, 2017: 15).

A categoria organização do trabalho abrange aspectos como a divisão dos trabalhadores, das tarefas, as atribuições de cada estrato hierárquico, a carga de trabalho, as relações hierárquicas e o que acontece em decorrência dessas relações, o suporte social (intra e extra institucional) ou a falta deste, o acesso ou a negação dos direitos, o ideal do policial como herói, entre outros. Trata-se de elementos sutis, que por vezes encontram-se sobrepostos por elementos das condições de trabalho ou pelo próprio trabalho em si (Dejours, 2015).

Cabe reconhecer que a organização do trabalho é fundamental na elaboração do sentido do trabalho, pois está na base de como ele é apresentado, não somente ao policial militar, mas à sociedade, gerando e concatenando essa trama de sentidos.

Lidar com situações de extrema violência, crises, miséria, morte e desamparo também pode ser considerado fator organizacional, tendo em vista que a função exercida pelos policiais militares exige que estejam constantemente envolvidos em ocorrências que os expõem a esses tipos de situação, o que também atua como um fator que propicia o surgimento do sofrimento psíquico.

De acordo com Chan (2011), o contexto da atividade policial é um “espaço social de conflito e competição estruturado por hierarquias de recompensas e sanções”. (p. 64) Desta forma, há que se considerar a influência das relações circunscritas neste campo sobre o trabalhador policial militar, muitas vezes implícitas ou sobrepostas pelos elementos da cultura organizacional com as quais ele interage.

“Para sobreviver à ocupação, os agentes policiais necessitam tanto de capital social como de capital cultural. O capital social - na forma de uma rede de apoio - é importante para garantir que os agentes policiais estejam protegidos, não apenas contra o perigo externo ou a hostilidade associada ao trabalho policial, mas também contra as práticas arbitrárias de supervisores e superiores administrativos. ” (Chan, 2011: 64).

A hierarquia é citada em diversos estudos, como algo que influencia no aparecimento do sofrimento psíquico, porém, partindo da premissa de que a hierarquia não existe apenas nas instituições militarizadas e entendendo que a hierarquia é apenas mais um elemento do que se compreende por organização do trabalho, levantam-se os seguintes questionamentos: Seria a hierarquia um problema para os policiais militares? Seria ela um fator preponderante para o sofrimento psíquico?

Ao abordar especificamente os impactos da hierarquia sobre a saúde de policiais militares, Antunes (2019) afirma que o processo de verticalização, quando em demasia na polícia militar, acaba por dificultar o desenvolvimento das ações, a designação das responsabilidades e favorecer erros de comunicação. Indica que a hierarquia, quando não praticada visando o todo, acaba favorecendo relações autoritárias em detrimento das relações de autoridade.

Ao observar a Polícia Militar enquanto instituição e princípio dessa cadeia de produção de sentidos, subjetividades, prazeres e sofrimentos, aceita-se que a hierarquia é um fator essencial para a geração do sofrimento, e é um problema para os trabalhadores, mas seria um equívoco considerar que é somente pela hierarquia que a instituição se organiza. Assim, pode-se pensar que o problema não está na hierarquia, mas na sua deturpação, no assédio moral e sexual, nos preconceitos e demais injustiças que são praticadas sob a premissa da hierarquia.

O terceiro ponto a ser discutido são as repercussões do trabalho policial militar na saúde física e mental desses trabalhadores. Diversos problemas de saúde como: alcoolismo, alterações de sono, distúrbios gastrintestinais, cardiovasculares, hipertensão arterial, desordens psíquicas, fadiga, depressão, irritação, ansiedade, dificuldades como sono, dor de cabeça, drogadição, embotamento afetivo, compulsão alimentar, problemas de pele, enfraquecimento do sistema imunológico, Transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), Síndrome de Burnout e, em casos extremos, o suicídio.

Para melhor compreender tais consequências do trabalho policial militar na saúde física e mental desses trabalhadores é necessário observar que elas podem ser decorrentes das precárias condições de trabalho e da rigidez da organização do trabalho, que estão imbricadas nesse processo e geram um ciclo de práticas que podem conduzir ao adoecimento. Outro fato a se considerar é que o sofrimento psíquico não se restringe apenas ao campo ou situações de trabalho, inevitavelmente ele alcançará o âmbito familiar e as demais relações sociais destes trabalhadores, impactando quase que a totalidade dos aspectos de suas vidas.

Ao se tratar especificamente do adoecimento de policiais militares, não seria absurdo dizer que a estigmatização ocorre também intramuros (institucionais), mas para fazer a devida aproximação com o conceito será necessário mencionar a noção de identidade social ou estereotipia, que é a manipulação do estigma através do enquadramento das pessoas em categorias amplas e geralmente estranhas a quem o faz (Goffman, 1988). Como exemplo, os policiais que apresentam sintomas claros de sofrimento psíquico ou são afastados da atividade fim (policiamento ostensivo) por tal motivo.

Além de lidar com o próprio adoecimento, passam a enfrentar, diante de seus pares e superiores, também o estigma que esta condição lhes impõe. A eles é imputado um estereótipo institucionalizado, lugar de menos valia, dos que não suportaram, que não foram fortes o bastante ante as adversidades e são tratados, ora como incapazes, não aptos, ora como alguém que está “burlando” ou fugindo à responsabilidade do serviço. Muitas vezes, a fala destes profissionais não tem o devido alcance, não lhes é dada a devida atenção pois a saúde mental acaba ficando em segundo plano, faltando oportunidades efetivas de dar voz aos que manifestam este comportamento dito desviante.

Nota-se o quanto o sofrimento se apresenta por diferentes vias: seja como consequência da relação desequilibrada entre o trabalhador e as condições de trabalho e/ou organização do trabalho, seja pela falta de autonomia para “reinventar” novas formas de realizar seu trabalho ou até mesmo pela percepção da segregação que resulta da atribuição de um estigma ao trabalhador que adoece. O sofrimento, próprio do adoecimento, é potencializado pela separação provocada em seu núcleo de relações no trabalho e pela vergonha de sucumbir, de perceber-se fraco e limitado ao confrontar sua experiência de adoecimento com o ideal de virilidade sustentado no âmbito institucional e reiterado por seus pares e superiores (Dejours, 2015).

É válido destacar que apenas um estudo, o de Bezerra (2012), abordou de forma direta a questão de gênero e como isso reflete na saúde de policiais militares, com enfoque na saúde de mulheres policiais. Em outros estudos, gênero e cor foram apenas mencionados. Constata-se, portanto, uma necessidade de estudos com recorte de gênero, cor e classe envolvendo policiais.

Nesse sentido, Antunes (2019) contribui com a discussão, afirmando que não se pode dissociar do trabalho as discussões ou impacto das questões referentes ao gênero, uma vez que a construção da imagem profissional do policial está embasada no ideal da virilidade masculina. Pensar o sofrimento do trabalhador policial pela ótica do gênero, implica considerar tal ideal que influencia nas relações pessoais e institucionais e reitera também as relações de poder que nem sempre estão explícitas.

Contudo, por mais que seja possível observar em muitos trabalhos acadêmicos que contemplam de alguma forma a virilidade, o “ethos guerreiro”, nenhum dos documentos analisados se aprofundou na investigação sobre os impactos e/ou influências do imperativo da masculinidade sobre a saúde mental de policiais militares.

No âmbito das produções acadêmicas analisadas, poucas extrapolam o contexto organizacional imediato das Polícias Militares, embora bem descrevam as relações internas das corporações, a hierarquia, disciplina e demais quesitos da organização do trabalho, não abordam de forma objetiva a condução dessas instituições pela ordem política vigente. Ao deixarem de citar tal ordem, abrem uma lacuna na compreensão de que as Polícias Militares não existem por si e são, em última análise, autogeridas; mas que existe um ordenamento legal que determina e delimita suas ações e um contexto político que interfere direta e indiretamente, de forma explícita ou não.

Apenas quatro estudos (Müller, 2012; Sales, 2013; Rodrigues et al., 2015; Joly, 2017), perfazendo pouco mais de 10% dos textos analisados, citam e relacionam de forma clara, a interferência e o papel de agentes ou decisões de ordem política nas Polícias Militares e apontam tais interferências como fatores importantes para a análise do sofrimento psíquico em policiais militares.

Não considerar a premissa das interferências do campo político na saúde desses trabalhadores seria um equívoco, haja vista a compreensão de que o adoecimento mental de policiais militares é também perpassado por interferências e interesses do campo político. Um exemplo positivo nesse sentido foi a criação da Lei 8.591, de 29 de outubro de 2019, pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a criação do programa de prevenção de violências autoprovocadas ou auto infligidas, com a finalidade de capacitar os operadores de segurança pública para o auxílio e enfrentamento da manifestação do sofrimento psíquico e do suicídio e abre a possibilidade de criação do serviço de acolhimento emergencial em saúde mental, destinado à construção de protocolos e estratégias de implementação à prevenção do suicídio.

Finalmente, cabe mencionar que a pandemia de Covid-19 impactou a vida e a rotina dos operadores da segurança pública no Brasil, que se contaminaram no exercício de suas atividades laborais, adoeceram e morreram devido a essa doença. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, ocorreram 472 mortes de policiais por Covid-19, correspondendo a uma taxa de 0,9 casos para cada 1000 policiais. Em números absolutos, 130.946 policiais foram infectados pelo vírus, correspondendo a uma incidência de 25% de contaminação desse grupo profissional. Neste ano o número de mortes por Covid-19 entre eles foi maior do que o total de mortes não-naturais ocorridas em serviço e folga, bem como de suicídio, somados (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021).

Diferente de outras categorias profissionais, os policiais, pela natureza de sua função, não tiveram a possibilidade de exercer seu trabalho de forma remota. Portanto, a exposição ao vírus apresentou-se como uma consequência de sua condição de trabalho, evidenciando mais um fator de vitimização desses profissionais.

Ante o cenário pandêmico, há que se considerar os impactos sobre a saúde mental desses policiais, haja vista a vivência de uma realidade que coloca em questão a expectativa ou ideal de força e resistência, quando estes se veem acometidos pela doença ou até mesmo perdendo colegas de trabalho. Outro ponto a ser mencionado é a sobrecarga ocasionada a partir dos afastamentos de policiais que adoeceram ou morreram, pois, a redução de um efetivo já defasado aumenta a necessidade de realocação de recursos e pessoal, restando para os que ainda permaneceram na “linha de frente” uma carga de trabalho ainda maior, o que também tem efeito sobre sua saúde mental.

Matarazzo, Fernandes e Alcadipani (2020) apontaram a necessidade de se adequar o papel das organizações policiais em face do impacto que a crise sanitária do Covid-19 representou para os policiais, pois além dos impactos físicos e psicológicos inerentes à natureza de seu trabalho, acresceu a inevitável convivência com o vírus e os desdobramentos do cenário pandêmico.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em resposta aos questionamentos feitos, pode-se afirmar que há relação entre o trabalho exercido pelos policiais militares no Brasil e o sofrimento psíquico, e que os elementos que propiciam tal sofrimento nesses trabalhadores estão vinculados principalmente à organização do trabalho e às condições de trabalho, o que confirma o pressuposto inicialmente considerado.

Cabe destacar que ainda existe um vasto campo de sentidos a ser explorado e reiterar que há uma lacuna considerável quando se trata de estudos sobre as questões de gênero, raça/etnia e classe com enfoque nas forças de segurança pública. A inclusão das categorias de gênero e raça nos estudos sobre as polícias mostra-se imprescindível, pois embora esteja implícito em diversos aspectos da identidade, formação, prática profissional e saúde, são elementos de caráter estruturante, não somente no aspecto profissional, mas social e subjetivo. Portanto, analisar a estrutura do trabalho policial, as relações hierárquicas e todas as relações de poder envolvidas, como a construção da subjetividade de homens e mulheres que se dispõem ao serviço policial, pensar a estrutura profundamente desigual da sociedade brasileira da qual estes homens e mulheres provêm na qual exercerão seu trabalho, implica em refletir sobre as relações de classe, de gênero e de raça estabelecidas, sem o que as análises se mostram incompletas.

No contexto de algumas pesquisas, as questões de gênero e raça ajudam a compreender os assédios e os abusos independente de sua ordem moral ou sexual e pressupõem a existência de uma relação de poder, que não necessariamente precisa estar fundada numa estrutura hierárquica explícita, mas se fundamenta no sentimento ou percepção da possibilidade de subjugar a outra pessoa.

Embora existam pesquisas de diferentes áreas do conhecimento sobre as instituições responsáveis pela segurança pública, este ainda é um campo diverso em possibilidades de temas e questões a serem pesquisadas e aprofundadas. Pretende-se, para além das respostas aos objetivos apresentados, manter em voga a discussão acerca da saúde mental desses trabalhadores e as implicações diretas e indiretas do trabalho na realidade prática deles, numa conjugação de sentidos, sofrimento e prazer.

É imprescindível repensar os estigmas imputados àqueles profissionais que adoecem por conta do trabalho e com isso solidificar estratégias de enfrentamento a esses adoecimentos e seus “potencializadores”, incluindo o âmbito do trabalho como parte da solução. É igualmente importante pensar os aspectos psicológicos da vitimização policial, que são tão graves quanto a vitimização física. Para tanto, é necessário fomentar em todos os estratos hierárquicos a criação de um pensamento que contemple uma análise crítica sobre as esferas extra institucionais.

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