RESUMO
Objetivo: Determinar os indicadores de risco para deficiência auditiva, que afetam as diferentes etapas de avaliação de um programa de triagem auditiva neonatal universal.
Métodos: Estudo retrospectivo longitudinal de triagem auditiva neonatal, realizado em 832 neonatos nascidos em hospital público terciário, no período de janeiro a dezembro de 2012. O exame de Emissões Otoacústicas Evocadas por Estímulo Transiente foi realizado na primeira avaliação auditiva de todos os neonatos. Nos casos de “falha” na primeira avaliação, foi aplicado um reteste e, quando houve a permanência da “falha”, foi realizado o Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico (PEATE). Os neonatos com indicador de risco para deficiência auditiva realizaram o PEATE independente do resultado das emissões otoacústicas.
Resultados: A presença de, ao menos, um indicador de risco para deficiência auditiva, associado ou não a malformações craniofaciais, síndromes genéticas e peso menor que 1500 g ao nascimento, aumentaram significativamente as chances de “falha” na avaliação por emissões otoacústicas. Meningite e malformações craniofaciais aumentaram de maneira expressiva as chances de PEATE alterado. Dois neonatos com emissões otoacústicas normais apresentaram diagnóstico de neuropatia auditiva.
Conclusão: A malformação craniofacial é um indicador fortemente associado ao diagnóstico da surdez, independente de a triagem auditiva ter sido realizada por emissões otoacústicas ou por PEATE em suas diferentes etapas, o que justifica o monitoramento contínuo e sistemático do serviço de triagem, na busca da melhoria da qualidade do programa de saúde auditiva do neonato.
Palavras chave: Triagem neonatal, Indicador de risco, Audição, Eletrofisiologia, Recém-nascido.
ABSTRACT
Purpose: To determine risk indicators for hearing loss affecting different evaluation steps of a universal newborn hearing screening program.
Methods: Longitudinal, retrospective study of newborn hearing screening in a tertiary public hospital, including 832 newborns born between January and December 2012. Transient evoked otoacoustic emissions were measured at the first hearing evaluation in all newborns and retested in cases of “failure”. When a “failure” result persisted, auditory brainstem responses (ABR) was performed. All newborns with risk indicator for hearing loss were evaluated with ABR screening regardless of the outcome of the otoacoustic emissions test.
Results: The presence of at least one risk indicator for hearing loss, associated or not with craniofacial malformations, genetic syndromes and birth weight below 1500 g significantly increased the chances of “failure” in the otoacoustic emissions test. Meningitis and craniofacial malformations significantly increased the odds of an abnormal ABR. Two newborns with normal otoacoustic emissions were diagnosed with auditory neuropathy.
Conclusion: Craniofacial malformation was an indicator strongly associated with a diagnosis of deafness, regardless of the hearing screening being performed by otoacoustic emissions or ABR at different steps of a universal newborn hearing screening program. This finding justifies continuous and systematic monitoring of the screening service seeking quality improvement of the newborn health hearing program.
Keywords: Neonatal screening, Risk index, Hearing, Electrophysiology, Infant, Newborn.
Artigo Original
Influência dos indicadores de risco nas diferentes etapas da Triagem Auditiva Neonatal
Influence of risk indicators on different Universal Newborn Hearing Screening steps
Recepção: 25 Setembro 2015
Aprovação: 15 Fevereiro 2016
A triagem auditiva neonatal universal é uma maneira efetiva de identificar a perda auditiva em neonatos(1). A identificação e a intervenção precoce (até os 6 meses de idade) permitem o melhor desenvolvimento das habilidades linguísticas, quando comparadas às das crianças com diagnóstico tardio(2,3).
A triagem auditiva neonatal é comumente realizada pelos exames de Emissões Otoacústicas (EOA) e Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico (PEATE). Dependendo do protocolo empregado, cada técnica pode ser usada de forma isolada ou em sequência(4,5).
As EOA são responsáveis por mostrar evidências diretas do mecanismo coclear ativo e sua ausência está relacionada, na maioria dos casos, com a perda auditiva neurossensorial(5). O PEATE aponta a integridade coclear, já que para gerar respostas neurais é necessária a funcionalidade coclear, como também compreende uma medida eletrofisiológica do oitavo nervo e da função auditiva baixa do tronco encefálico(5,6,7).
Se, por um lado, as EOA são consideradas um método de fácil avaliação, de rápida aplicabilidade e de baixo custo financeiro, por outro, o PEATE é menos afetado por ruído e doenças transitórias de orelha média, o que diminui, consideravelmente, as taxas de falsos positivos, além de permitir a detecção da neuropatia auditiva(6,7,8,9,10).
Assim, o PEATE é recomendado em situações nas quais os neonatos avaliados sejam portadores de algum indicador de risco para deficiência auditiva, assim como nos casos em que há falha na triagem auditiva por emissões otoacústicas(11,12,13). Além disso, o simples fato da existência de indicador de risco para deficiência auditiva também aumenta o número de alterações em ambos os exames(14). Entretanto, ainda há dúvidas sobre quais indicadores de risco para deficiência auditiva afetam cada uma das técnicas e se estas são as mesmas em diferentes protocolos(15).
O objetivo deste estudo, portanto, foi determinar os indicadores de risco para deficiência auditiva que afetam as diferentes etapas de avaliação de um programa de triagem auditiva neonatal universal.
Estudo retrospectivo longitudinal realizado em hospital público terciário, referência em gestação de risco, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) (processo n° 3395/09). Os dados foram coletados de janeiro a dezembro de 2012, no hospital de realização do estudo.
Os critérios de inclusão foram: neonatos com triagem auditiva neonatal realizada no local do estudo e assinatura, por seus responsáveis, do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A amostra, composta por 832 neonatos, foi estratificada de acordo com as três etapas da triagem auditiva:
1ª etapa: teste com Emissões Otoacústicas Evocadas por Estímulo Transiente (EOAT) realizado em todos os neonatos.
2ª etapa: reteste com EOAT realizado em até 30 dias, apenas nos neonatos que falharam na primeira etapa.
3ª etapa: PEATE realizado em duas situações:
- Quando os neonatos com algum indicador de risco para deficiência auditiva(4,16) apresentaram o resultado “passa”, tanto na primeira, como na segunda etapa. O registro foi feito apenas à intensidade de 80 dBNPS, para verificação de integridade da via auditiva;
- Quando os neonatos falharam nas duas etapas anteriores. O nível mínimo de resposta foi verificado e foi feita a avaliação otorrinolaringológica.
O teste foi realizado com o lactente de idade maior que 48 horas de vida, em estado de sono natural, no colo da mãe, com o equipamento OtoRead/Interacoustics®. O critério de análise “passa/falha” descrito no protocolo de fabricação do equipamento, foi adaptado, considerando-se “passa” apenas quando o registro da relação sinal/ruído fosse de, pelo menos, 6 dB em, pelo menos, três bandas de frequências consecutivas, sendo obrigatória a presença em 4000 Hz.
O exame de PEATE foi realizado com o equipamento EP15 – Eclipse, Interacoustics®/Dinamarca, em ambiente silencioso, com o neonato confortavelmente acomodado no colo da mãe, durante estado de sono natural. Após a limpeza da pele com substância abrasiva (Nuprep®), os eletrodos de superfície da marca Neuroline® foram fixados em pontos específicos. O eletrodo ativo foi fixado à fronte (Fz) e os de referência nas regiões da mastoide (M1 e M2). O eletrodo terra foi colocado na fronte e o estímulo foi apresentado por meio do fone de inserção ER 3A, com estimulação monoaural com cliques filtrados (filtro passa banda high pass de 100 Hz e low pass de 2000 Hz), duração de 100 μs e polaridade rarefeita. Foram fornecidos 1.024 cliques com tempo de análise de 20 ms, repetidos para confirmação da reprodutibilidade das ondas. A impedância dos eletrodos foi mantida sempre abaixo de 5 Kohms. A taxa de apresentação dos estímulos foi de 20.1 cliques por segundo.
Os resultados alterados do PEATE foram categorizados em: alteração leve (limiares entre 36-50 dBnHL), alteração moderada (limiares entre 51-70 dBnHL), alteração severa (limiares entre 71-90 dBnHL) e alteração profunda (limiares > 90 dBnHL)(17).
Para verificar as chances de “falha” nas emissões otoacústicas e as de alteração no PEATE, em função dos indicadores de risco, foi realizada a análise por regressão logística multivariada, ajustada por processo semiautomático de seleção de Forward. As relações foram consideradas significativas se p<0,05 e realizadas com o software SPSS, versão 15.0.
Participaram do estudo 832 neonatos. A presença de, pelo menos, um indicador de risco para deficiência auditiva foi observada em 144 neonatos (17%), sendo os mais frequentes: permanência em unidade de terapia intensiva por mais de cinco dias; Apgar baixo ao nascimento, no primeiro e quinto minutos; uso de ventilação mecânica. A maioria dos neonatos (54%) apresentou apenas um indicador de risco, e, no máximo, seis indicadores associados (Figura 1).
O número de neonatos estudados variou de acordo com as etapas realizadas, devido ao não comparecimento à etapa subsequente (Figura 2).
Dentre os 832 neonatos avaliados, 89 falharam em, pelo menos, uma orelha, sendo que 31 destes tinham indicadores de risco para a deficiência auditiva (Figura 2 - 1ª Etapa).
Dos 89 neonatos encaminhados para o reteste, 22 (25%) perderam o seguimento. Dentre os 67 restantes, 31 (46%) permaneceram com o resultado “falha” em, pelo menos, uma orelha, sendo que 18 destes tinham indicadores de risco (Figura 2 - 2ª Etapa).
Realizaram o PEATE 117 neonatos, uma vez que 39 perderam o seguimento (Figura 2 - 3ª Etapa).
Apresentaram resultado “alterado”, em, pelo menos, uma orelha, 14 neonatos (22%), sendo 11 deles com indicadores de risco (Figura 2 - 3ª Etapa). Daqueles 14, apenas 2 eram sugestivos de alterações retrococleares (1 neonato com alteração unilateral e outro com alteração bilateral).
Dos 12 neonatos remanescentes, 7 apresentaram alteração unilateral, restando, portanto, 17 orelhas com alteração coclear (Tabela 1).
A presença de qualquer indicador de risco para deficiência auditiva aumentou a chance de “falha” nas EOAT, tanto na primeira, como na segunda etapa, especialmente em neonatos com síndrome genética, malformação craniofacial e com peso ao nascimento menor que 1500 g (Tabela 2).
A porcentagem de alterações no PEATE foi significantemente maior nos neonatos que tiveram meningite e malformação craniofacial (Tabela 3).
Esse estudo foi desenvolvido em um hospital público terciário de referência. Por isso, além da demanda neonatal do próprio hospital, o serviço de triagem auditiva atende pacientes oriundos de outras instituições e algumas delas não são suficientemente estruturadas para a realização dos procedimentos de EOAT e PEATE.
As EOAT foram escolhidas como primeira avaliação, em razão da sua objetividade, rapidez, baixo custo financeiro, fácil realização e, ao mesmo tempo, por serem sensíveis e reprodutíveis e permitirem o correto encaminhamento para as avaliações subsequentes(10).
Por outro lado, uma vez que o método de triagem auditiva escolhido para este estudo poderia não identificar alterações retrococleares, todos os neonatos com indicadores de risco para deficiência auditiva foram encaminhados para o PEATE, independente do resultado do exame de EOA.
Na literatura, vários protocolos são recomendados para os programas de triagem auditiva neonatal universal que incorporam o uso das técnicas de EOAT e PEATE. A combinação das duas técnicas adotadas neste estudo é indicada há mais de 20 anos(18,19).
Houve nesse estudo, interesse em identificar os possíveis indicadores de risco que estariam relacionados ao aumento das chances de “falha” nas EOA e às alterações no PEATE, em razão da alta demanda de neonatos de risco na instituição onde foi realizado.
Quando a relação entre os indicadores de risco e o aumento das possibilidades de “falha” nas EOA foi verificada, as chances de presença de, ao menos, um indicador de risco, peso ao nascimento <1500 g, síndrome genética e malformação craniofacial foram significativas. Existem evidências de que o indicador de risco para deficiência auditiva aumenta o número de “falha” no exame de EOA e de que a identificação da real causa da falha pode auxiliar a não perder os casos que, realmente, possam ter alteração auditiva(1,20,21,22).
Quando essa relação foi estabelecida com o PEATE (exame considerado padrão ouro no diagnóstico da deficiência auditiva em neonatos), entretanto, apenas meningite e malformação craniofacial apresentaram significância estatística. Da mesma forma, um estudo(23) verificou associação entre meningite e malformação craniofacial com risco aumentado para surdez, diferentemente de outros estudos, que relataram o uso de ventilação mecânica, a utilização de drogas ototóxicas e a história familiar de deficiência auditiva congênita com maior associação com a surdez. Tais diferenças estão, provavelmente, relacionadas ao perfil populacional de cada serviço(24,25,26).
Ressalta-se que o único indicador de risco que afetou regularmente as diferentes etapas do programa de triagem auditiva neonatal foi a malformação craniofacial.
Outro aspecto a ser considerado é que a interpretação de alteração em ambos os exames é diferente, ou seja, falhar no exame de EOA, por exemplo, não significa ter deficiência auditiva e a busca desse resultado deve ser investigada cuidadosamente, para evitar interpretações errôneas. Já as alterações encontradas no PEATE, apresentam maior relevância, o que justifica a importância do cross-check no diagnóstico audiológico infantil(27).
O presente estudo mostrou que 22% dos neonatos apresentaram algum grau de alteração auditiva, mais comum entre aqueles com risco para deficiência auditiva. A maioria das alterações foi caracterizada por danos cocleares, sendo esses achados semelhantes aos descritos na literatura(22,23).
Apesar do pequeno número de alterações retrococleares encontradas neste estudo, caracterizadas pela presença de resposta no exame de EOA e PEATE alterado, a identificação desses casos permitiu uma intervenção precoce, diminuindo o impacto das alterações no desenvolvimento das habilidades auditivas.
Um dos problemas frequentemente relatados em protocolos que utilizam mais de uma etapa se refere à perda de seguimento dos neonatos, principalmente pela dificuldade de retorno ao hospital após a alta, comumente observada nos casos que “passaram” na primeira avaliação e teriam que retornar para o PEATE, devido à presença do indicador de risco. Sendo assim, a indicação direta do PEATE nos neonatos de risco para deficiência auditiva seria uma tentativa de reduzir a falta de adesão ao programa. Outros motivos relacionados à perda de seguimento seriam o fato de muitos pacientes residirem em outras cidades, a reinternação e/ou a opção das mães pelo reteste na cidade de origem.
Enfim, o conhecimento das particularidades de cada serviço e da relevância dos reais indicadores de risco, nos dias atuais, afeta as diferentes etapas de um programa de triagem auditiva neonatal. É considerada necessária, portanto, a orientação da equipe multidisciplinar envolvida na saúde neonatal, para que o encaminhamento, o diagnóstico e a terapia sejam corretos.
A malformação craniofacial foi encontrada como um indicador fortemente associado ao diagnóstico da surdez, independente da triagem auditiva ter sido realizada por EOA ou PEATE, em suas diferentes etapas, o que justifica o monitoramento contínuo e sistemático do serviço, na busca da melhoria da qualidade do programa de saúde auditiva do neonato.
*Autor correspondente: Daniela Polo Camargo da Silva. E-mail: daniela-polo@uol.com.br