RESUMO
Objetivo: Adaptação semântica e cultural de versão preliminar em português do questionário LittlEars® em famílias de crianças com deficiência auditiva.
Métodos: Instrumento administrado como entrevista ou questionário, em tradução validada do Questionário LittlEars® em português em pais de crianças com deficiência auditiva com até dois anos de idade auditiva. Comentários, dúvidas, sugestões, exemplos, críticas ou dificuldades dos pais foram utilizadas para elaboração da versão adaptada. Foi então realizada reunião para brainstorming com grupo de especialistas, para validação da versão final.
Resultados: Trinta e sete sujeitos, pais ou responsáveis de 32 crianças, responderam ao questionário. Somente quatro pais preferiram responder no formato de questionário, enquanto 28, em entrevista. No formato entrevista, houve dificuldade de compreensão em diversos itens. Após análise e discussão dos comentários das famílias, foi proposta uma versão modificada.
Conclusão: As modificações nos itens do questionário estiveram relacionadas a vocabulário, expressões idiomáticas e exemplos desconhecidos. Os resultados obtidos com o questionário LittlEars® no grupo estudado variaram conforme a idade auditiva e o Índice de Inteligibilidade de Fala (Speech Intelligibility Index - SII), o que sugere que a tradução adaptada tem sensibilidade para medir as habilidades auditivas. São necessários estudos com a versão proposta, em uma população maior, visando sua validação final.
Palavras chave: Perda auditiva, Pais, Auxiliares de audição, Testes auditivos, Intervenção precoce (educação).
ABSTRACT
Purpose: Semantic and cultural adaptation of a preliminary Portuguese version of the questionnaire LittlEars® in families of children with hearing loss.
Methods: Instrument administered as an interview or questionnaire, using a validated translation of LittlEars® Questionnaire in Portuguese with parents of children with hearing loss up to two years of hearing age. Parent’s comments, questions, suggestions, examples, comments or difficulties were used for development of the adapted version. A brainstorming session with a group of experts was held to validate the final version.
Results: Participants were 37 individuals who answered the questionnaire, parents of 32 children. Only four parents preferred to answer the questionnaire format, while 28 preferred to answer it as an interview. In the interview format, parents had difficulty understanding different items. Upon review and discussion of the comments of the families, a modified version was proposed.
Conclusion: Changes in the questionnaire items were related to vocabulary, idiomatic expressions and unknown examples. The results of the questionnaire LittlEars® varied depending on hearing age and Speech Intelligibility Index - SII, suggesting that the adapted translation has sensitivity for measuring the hearing abilities. Other studies should apply the new version and final validation.
Keywords: Hearing loss, Parents, Hearing aids, Hearing tests, Early intervention (education).
Artigo Original
LittlEars® – Questionário auditivo: adaptação semântica e cultural da versão em Português Brasileiro em pais de crianças com deficiência auditiva
LittlEars™ – Hearing questionnaire: semantic and cultural adaptation of the version of the Littlears™ questionnaire in Portuguese in families of children with hearing loss
Recepção: 15 Novembro 2015
Aprovação: 15 Fevereiro 2016
O diagnóstico precoce da deficiência auditiva e a intervenção fonoaudiológica adequada até os 6 meses de idade, possibilitam o desenvolvimento de linguagem oral verbal com o uso de dispositivos eletrônicos adequados – aparelhos de amplificação sonora individual (AASI), ou implantes cocleares (IC). Vários instrumentos abordam a questão de fatores que determinam habilidades auditivas e linguísticas(1,2,3), muitos deles particularizando a percepção da família em relação ao desenvolvimento de linguagem da criança(4,5,6). A questão do enquadre terapêutico com bebês também tem sido discutida e o prognóstico de desenvolvimento de habilidades auditivas, a partir de mensurações no procedimento de verificação do AASI, requer, do fonoaudiólogo, instrumentos confiáveis no processo de validação da amplificação nas etapas iniciais do processo terapêutico(7,8,9,10). Este processo requer ferramentas que avaliem o desenvolvimento auditivo de crianças muito pequenas, que usam AASI ou implante coclear(11,12).
O questionário LittlEars® foi desenvolvido(13) em 2003, para avaliar as habilidades auditivas da população de bebês e crianças com idade auditiva de até dois anos, baseado na observação dos pais, considerando que, nessa faixa etária, é mais difícil a observação do comportamento auditivo e aplicação de testes formais(14). Foi criado por audiologistas pesquisadores de uma empresa fabricante de implantes cocleares, a Med-El, e também pode ser utilizado para avaliação de bebês usuários de AASI. O Questionário Auditivo LittlEars® é fácil de ser respondido e foi inicialmente proposto na modalidade escrita. É composto por 35 itens, com alternativas de respostas “sim” ou “não”, que avaliam o desenvolvimento auditivo das crianças durante os primeiros dois anos de uso do dispositivo, abordando os aspectos receptivo, semântico e expressões de competências linguísticas de crianças muito jovens, em resposta à entrada auditiva.
Foi inicialmente validado em crianças com implantes cocleares na Alemanha e Itália, tendo sido considerado confiável e com boa consistência interna. No Canadá, pesquisadores(14) validaram esse questionário, utilizando a língua inglesa, em famílias de crianças com audição normal e apontaram para futuros trabalhos, a fim de caracterizar as pontuações para bebês e crianças com deficiência auditiva que usam AASI’s, como parte de uma rotina de avaliação dos resultados. Concluíram que o instrumento pode ser aplicado em forma de questionário impresso, ou em forma de entrevista. A pontuação total de respostas ‘’sim’’ é comparada com a curva de crianças com audição normal, já estabelecida anteriormente.
Em outro estudo, o questionário auditivo foi validado em uma população de 3309 bebês e crianças com audição normal, internacionalmente, e mostrou ter alta validade e valores de confiabilidade(15). Nessa população, o Questionário Auditivo LittlEars® foi respondido com facilidade e o tempo aproximado para ser concluído foi de menos de dez minutos. Diversos estudos têm utilizado o questionário devido à simplicidade na aplicação, utilização de exemplos do cotidiano e relação forte com idade auditiva e cronológica de usuários de dispositivos eletrônicos(16).
Na realidade brasileira, em razão da implantação da rede de cuidados no Sistema Único de Saúde (SUS) e da Triagem Auditiva Neonatal Universal, são necessários protocolos de avaliação para crianças pequenas. A tradução de instrumentos internacionais para o português pode ser considerada uma tarefa simples, porém, sua adaptação ao vocabulário e cultura, que considera a diversidade da população, é um desafio a ser enfrentado, tanto na modalidade de apresentação, quanto no vocabulário e exemplos utilizados.
Em países desenvolvidos, a população está habituada a instrumentos que envolvem a modalidade de compreensão de textos escritos, ou preenchimento de formulários, em diversas atividades de suas rotinas. No Brasil, um país de grande diversidade cultural, instrumentos de avaliação que dependam de preenchimento de formulários podem trazer importantes problemas de fidedignidade. O processo de leitura compreende uma série de aspectos complexos, que envolvem questões cognitivas e, portanto, individuais (linguísticas e extralinguísticas), que podem ser fatores de distorção de resultados, quando questionários são aplicados em população menos letrada(17).
O LittlEars® utiliza canções, parlendas, rimas e brincadeiras próprias de comunidades específicas de diferentes regiões do país no qual foi adaptado e validado. Nem sempre os exemplos são compreendidos por outra população e, por esta razão, este estudo teve como objetivo realizar a primeira etapa de validação da tradução do questionário para o português, visando sua adaptação cultural para utilização com pais de crianças no Brasil.
Este estudo atende aos critérios éticos da Portaria 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), sob número 201.947. Os pais de cada participante com deficiência auditiva foram convidados a participar da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A aplicação do questionário foi realizada em um serviço de referência de alta complexidade em Saúde Auditiva, especializado no atendimento a crianças deficientes auditivas com idade inferior a 3 anos.
Participaram deste estudo, por meio da aplicação do questionário ou entrevista LittlEars®, pais e/ou responsáveis por 32 crianças com deficiência auditiva e idade auditiva de até dois anos, que receberam aparelhos de amplificação sonora individual, sendo 25 do gênero masculino e sete do gênero feminino. Foram entrevistados os responsáveis que acompanhavam as crianças e que melhor conheciam as suas rotinas. Foram informantes duas avós (6,3%), 23 mães (71,9%), dois pais (6,3%) e cinco casais que responderam conjuntamente ao questionário (15,6%). Segundo a distribuição por nível socioeconômico, conforme classificação da ABEP- Associação Brasileira de Empresa de Pesquisa(18), das famílias que responderam o questionário LittlEars®, 6,2% eram da Classe A2, 3,1% da Classe B1, 12,5% da Classe B2, 56,3% da Classe C, 6,3% da Classe D e 15,6% sem essa informação.
A idade cronológica das crianças variou entre 5,7 meses e 75,5 meses e apenas uma com idade cronológica acima de 48 meses. A idade auditiva variou entre zero e 20 meses, pois a aplicação do questionário foi realizada com pais de crianças que tinham acabado de adaptar o AASI e de outras que estavam usando o AASI há mais de um ano. O tempo de uso diário do AASI variou entre zero e 12 h/dia.
Quanto à perda auditiva, os sujeitos foram classificados segundo o Speech Intelligibility Index (SII), medida que avalia a audibilidade do sinal de fala no processo de seleção, durante a verificação eletroacústica dos AASI. Ele determina a proporção de informação de fala audível e útil para o ouvinte e tem alta correlação com a inteligibilidade de fala (ANSI S3.5 - 1997 [R 2012]). Os valores de SII são representados em uma escala de zero a 100%, em que zero significa nenhuma audibilidade, e 100, audibilidade para todos os sons de fala. O Quadro 1 resume a classificação das perdas auditivas por grupo e intervalos de SII 65, segundo Figueiredo(19).
A ferramenta utilizada foi o LittlEars® - Questionário Auditivo: questionário para pais para avaliar comportamento auditivo, traduzido para o português, na primeira etapa deste trabalho.
Foram utilizados os critérios recomendados pelo Comitê do Conselho Científico da Associação de Resultados Médicos (Scientific Advisory Committee of the Medical Outcomes Trust)(20) para tradução e demonstração das propriedades psicométricas. A primeira etapa do processo de validação do questionário LittlEars® para o português brasileiro visou a tradução e adaptação linguística e cultural, conforme critérios daquele Comitê.
A primeira tradução do questionário LittlEars® para o português foi de responsabilidade da empresa Med-El, que desenvolveu o instrumento, e foi revisado por profissionais fonoaudiólogos da área. O instrumento foi então vertido para o inglês, sendo considerado equivalente. A segunda versão, considerada equivalente a original em língua inglesa, foi a versão utilizada neste estudo. Foram preparadas cópias impressas do instrumento em língua portuguesa, na mesma formatação do instrumento original. Visando a adaptação semântica(21), o questionário foi aplicado a pais e/ou responsáveis por 32 crianças usuárias de AASI, para verificar se os itens eram inteligíveis para o estrato representativo da população em estudo. A cada pergunta, a compreensão era analisada. Assim, foram solicitadas sugestões, caso a questão não fosse considerada clara.
No dia da aplicação, foram transmitidas informações sobre o assunto dos itens do instrumento. As famílias também foram informadas sobre a possibilidade de escolher a maneira da administração do instrumento: por escrito, conforme versão original, ou por meio de entrevista, para melhor entendimento por aqueles com dificuldade de compreensão de textos escritos. Em ambos os formatos, a explicação quanto aos objetivos do instrumento e as expectativas em relação ao comportamento auditivo foi realizada pessoalmente.
As entrevistas ocorreram imediatamente após a escolha por esse formato. Foram registrados comentários feitos pelos pais durante a entrevista e observações da pesquisadora quanto à necessidade de repetição ou reformulação dos termos da pergunta ou exemplos do questionário. Foram, também, registradas palavras que os pais referiram desconhecer o significado. Ao iniciar a aplicação do instrumento, as informações foram gravadas para que as transcrições das dúvidas dos itens ficassem claras para a pesquisadora.
Quando o responsável pelo paciente optou pelo formato por escrito (questionário impresso), poderia levar para responder em casa ou, se preferisse, responder na sala de espera. O responsável foi orientado a responder ao lado das questões, a comentar com a pesquisadora, caso houvesse dificuldade em compreender algum item, e a fazer sugestões, comentários, críticas em relação ao instrumento. Foi combinado que a devolução do questionário seria feita na consulta seguinte.
O material gravado foi revisto, registrado e organizado em tabelas: data da aplicação do instrumento, idade auditiva, registro de uso diário dos AASI’s (média de horas de uso/dia), SII 65 dB, pontuação do questionário, formato da aplicação (entrevista ou questionário), informante, tempo que o informante levou para responder as questões e dúvidas dos itens ou exemplos que o informante não compreendeu.
O brainstorming (grupo de discussão) é uma técnica de dinâmica de grupo, em que pessoas que se reúnem e utilizam seus pensamentos e sugestões, para que possam chegar a um denominador comum eficaz, com o objetivo de obter ideias inovadoras ou criativas que levem adiante um determinado projeto. Foi formado um brainstorming de seis especialistas em audiologia pediátrica, familiarizados com o serviço e com o instrumento. A discussão seguiu a dinâmica de análise de item por item do questionário, considerando as respostas e comentários obtidos nas entrevistas. A proposição final de texto foi estabelecida mediante discussão e consenso. A finalização da versão, quanto à adequação semântica da escolha de sinônimos em língua portuguesa dos itens do questionário, foi concluída por meio da análise das anotações dos entrevistados e do grupo de discussão.
Foram realizados os levantamentos e análises da caracterização audiológica e demográfica dos sujeitos, da preferência por modalidade (entrevista ou questionário por escrito) - considerando características audiológicas e demográficas - de itens onde ocorreram sugestões, críticas, comentários e outros exemplos. Foram, também, estabelecidas alterações por item, a partir das reuniões com os pais e análise de grupo de especialistas. Com base na discussão com especialistas e nos encaminhamentos realizados pela reunião do grupo, foi gerada uma nova proposta de versão para o português, considerada adaptada, do ponto de vista linguístico e cultural.
As medidas resumo para as variáveis quantitativas e frequências absoluta e relativa (em percentuais) para as variáveis qualitativas estão descritas na Tabela 1.
O valor de SII 65 dB variou de 8% a 88%, ou seja, havia crianças com boa audibilidade aos sons da fala e outras, que mesmo sendo usuárias de AASI, tinham pouca audibilidade de sons da fala e foram encaminhadas para realização de implante coclear. Quanto à distribuição do Índice de Audibilidade de Fala - SII 65 dB, 29% das crianças tinham perda profunda com SII entre 0 e 35%, 39% encontravam-se na faixa intermediária entre 36% e 55% de valores de SII e 32%, com SII maior que 55%.
Em relação ao desempenho no LittlEars®, a variável da pontuação nas respostas dos pais foi de, no mínimo, 0 e, no máximo, 34. O tempo de entrevista variou entre 4 e 16 minutos. Foram calculados os desvios padrão e as médias das variáveis para cada um dos tipos de aplicação e, posteriormente, avaliou-se a diferença entre as médias das variáveis, com relação ao tipo de aplicação do instrumento, por meio do teste não paramétrico. Para a variável Tempo de Entrevista, não foi possível a realização do teste, pois, dentre os 5 entrevistados por meio de questionário, apenas 2 tinham anotado o tempo de entrevista.
Em relação à preferência pela administração do instrumento, 4 pais (12,2%) preferiram responder no formato questionário e 28 (87,85%), no formato entrevista. A preferência por entrevista pareceu estar relacionada com o nível socioeconômico dos entrevistados, já que 56,3% dos pais pertenciam à Classe C. Dentre os pais que preferiram questionário, 2 eram de nível socioeconômico B2, 2 do nível socioeconômico C e 1 do nível socioeconômico A2, que, segundo a classificação da ABEP(14), tinham acessibilidade à leitura e deviam se sentir mais seguros quanto a sua opção.
A análise comparativa entre entrevista ou questionário e a dificuldade com as perguntas ou seus exemplos revelou diferença significativa em relação à quantidade de perguntas com dúvida (p=0,04). No entanto, essa diferença pode não representar facilidade quanto à compreensão da pergunta, considerando-se o número reduzido de responsáveis que escolheram a modalidade questionário. Deve-se ter cautela ao interpretar esse resultado, uma vez que a quantidade de perguntas com dúvidas foi avaliada pelo entrevistador, no caso da aplicação por meio de entrevista e pelo próprio entrevistado no caso do questionário, podendo o entrevistador ser mais criterioso que o entrevistado no que diz respeito à quantidade de perguntas com dúvidas. Há também a possibilidade de o entrevistado ter pedido ajuda na compreensão das perguntas e não comentar com o terapeuta. Não houve diferença significativa quanto à modalidade escolhida e a idade auditiva, idade cronológica e SII.
Os pais entrevistados fizeram sugestões em relação ao questionário. Uma dessas sugestões foi para modificação de itens que não conseguiram compreender. Deram outros exemplos, ou sugeriram outra palavra para substituir o item, sugestões essas que foram acatadas. Já os pais que responderam o instrumento em formato de questionário, não relataram dificuldades na leitura e interpretação. As sugestões foram detalhadas e organizadas por item, detalhando cada comentário, visando inspeção preliminar e diretrizes para reunião de especialistas, bem como para identificação de discrepâncias (Quadro 2).
Foi elaborado um gráfico de dispersão entre as variáveis: número de pessoas com dificuldade na pergunta e número de pessoas com dificuldade no exemplo, em que dificuldade representa comentário, dúvida e/ou sugestão e cada ponto representa uma pergunta. Verificou-se que, de maneira geral, mais pessoas tiveram dificuldades na pergunta, do que no exemplo das questões. Além disso, 10 pessoas, ou mais, apresentaram dificuldades nas questões 10, 17, 18, 22, 23, 30 e 34 e 5 ou mais pessoas apresentaram dificuldades no exemplo das questões 13, 19, 23, 33 e 35 (Figura 1).
Para a quantidade de perguntas com dúvidas sobre as variáveis explicativas idade auditiva (meses), idade cronológica (meses), SII e LittlEars®, foi inicialmente ajustado um modelo de regressão linear múltipla, a fim de verificar se existia alguma relação linear da variável resposta com as variáveis explicativas. Apenas a variável idade auditiva foi estatisticamente significativa (p=0,04). O informante de crianças com idade auditiva igual a 0 meses apresentou, em média, 3 perguntas com dúvida e, conforme a idade auditiva aumentava em 5 unidades, a quantidade média de perguntas com dúvida aumentava em 1 unidade.
A fim de verificar a existência de associação, não necessariamente linear, entre a quantidade de perguntas com dúvidas e as demais variáveis que não se mostraram significativas no modelo de regressão linear múltipla, as variáveis explicativas foram categorizadas, para investigação da diferença entre as médias da quantidade de perguntas com dúvidas para cada uma dessas categorias, por meio do teste F do modelo de análise de variância com um fator. Foi observado que as médias de quantidade de perguntas com dúvidas situaram-se próximas nas 4 categorias de idade cronológica, o que é confirmado pelo valor-p do teste F. Assim, não houve diferença entre as categorias de idade cronológica, quanto à quantidade de perguntas com dúvidas. Também não houve diferença quanto às médias de quantidade de perguntas com dúvidas, entre as categorias de SII. Este resultado foi confirmado pelo teste F, cujo valor de p foi igual a 0,90. Observou-se, também, que as médias de quantidade de perguntas com dúvidas ficaram muito próximas nas diferentes categorias de LittlEars®. O valor de p do teste F foi igual a 0,75, indicando que não houve diferença na média de quantidade de perguntas com dúvidas, entre as categorias de LittlEars®.
Aparentemente, houve associação entre quantidade de perguntas com dúvidas e nível socioeconômico, em que informantes dos níveis C e D teriam apresentado maior média de quantidade de perguntas com dúvidas, em comparação com os informantes das categorias A2, B1 e B2 e Faltante. Pôde-se notar, também, que a média para as categorias A2, B1 e B2 (3,5) foi próxima da média para a categoria Faltante (1,6), que podem ser agrupadas (valor de p do teste de igualdade 0,40). Ao realizar o teste F, comparando a média de Faltante, A2, B1 e B2 (2,9) com a média de C e D (6,3), obteve-se valor de p igual a 0,02, evidenciando que as médias foram diferentes (Figura 2).
Os itens e exemplos que foram mais comentados e/ou relatados como maior dificuldade pelos pais foram, também, os mais discutidos na reunião com os especialistas e todos foram modificados, para melhor compreensão do questionário. Na questão 1, 6 pais só compreenderam o item após o exemplo dado; na questão 10, a expressão “rituais acústicos” desfavoreceu a compreensão de pais, que só conseguiram responder ao item, após o exemplo ser oferecido; na questão 13, os pais não relataram qual a expressão ou palavra que não haviam entendido, apenas pediram o exemplo e, logo depois, conseguiram compreender o item, porém, a expressão do exemplo “relógio de parede” foi comentada por 5 pais como “não tendo em casa”. Sendo assim, esse exemplo foi discutido no brainstorming e houve necessidade de modificação. Na questão 16, 8 pais relataram não compreender a expressão “movimentos rítmicos” e só entenderam quando foi dado o exemplo; na questão 17, 1 pai entendeu a palavra “evento” como “festa” e outros 11 pais não compreenderam o item, mas não relataram a dificuldade. Entretanto, após o exemplo compreenderam a questão. Na questão 18, 12 pais não compreenderam o item, porém, após o exemplo, entenderam e conseguiram responder; na questão 22, 13 pais só conseguiram responder ao item após ser fornecido o exemplo do questionário, apesar de não ser relatada por nenhum pai a dificuldade da pergunta; na questão 23, 13 pais só compreenderam o item após o exemplo; na questão 30, 12 pais não compreenderam o item, porém, após o exemplo, compreenderam; na questão 34, 12 pais tiveram dificuldades ao responder, então, durante o brainstorming, verificou-se a necessidade de modificação da expressão “comando” por “ordens”.
Após a sessão do brainstorming, não foram sugeridas modificações em 10 itens (2, 3, 4, 7, 12, 14, 20, 21, 27 e 31), enquanto que, para 25 itens, as modificações foram consideradas necessárias. Os itens que os responsáveis mais comentaram foram os que nortearam a discussão entre os especialistas. Alguns itens não comentados pelos pais, mas identificados como passíveis de dúvidas ou ambiguidade na compreensão, foram modificados na atividade de brainstorming.
Foi ajustado um modelo de regressão linear múltipla para a variável LittlEars® com as variáveis explicativas idade auditiva (meses), idade cronológica (meses), SII e nível socioeconômico, sendo significativas apenas Idade auditiva e SII. Verificou-se que crianças com idade auditiva igual a 0 meses e SII igual a 49 (média de SII dentre os pacientes da amostra) apresentam valor médio de LittlEars® igual a 14,5 (perfil base). O aumento de 1 mês na idade auditiva acarretou o aumento de 0,7 no valor médio de Littlears®, mantendo-se constante o valor de SII. Quanto ao SII, o aumento de 1 ponto na escala SII levou ao aumento de 0,2 no valor médio de LittlEars®, mantendo-se constante o valor da idade auditiva (Tabela 2).
Estes resultados parecem sugerir que a tradução utilizada, desde que sejam dados os esclarecimentos necessários às perguntas, avalia habilidades auditivas.
Na análise dos sujeitos, individualmente, a partir de comparação com escala da curva normal padronizada para as crianças com audição normal, observamos a relação do SII 65 dB, idade auditiva, idade cronológica e desempenho no LittlEars®, que parece sugerir que o questionário LitllEars® é capaz de avaliar o desenvolvimento auditivo de crianças com deficiência auditiva, em relação ao SII 65 dB e idade auditiva. Porém, algumas crianças com SII 65 dB abaixo de 35%, obtiveram pontuação acima do esperado, comparando intrasujeitos, e as crianças com SII 65 dB entre 36-55% e acima de 55% apresentaram pontuação dentro do esperado. As crianças que estão no grupo do SII 65 dB abaixo de 35% estão na cor vermelha, as crianças que estão no grupo do SII 65 dB 36% - 55%, estão na cor azul e as crianças que estão no grupo do SII 65 dB acima de 55%, estão na cor verde. A Figura 3 descreve sujeitos individualmente, a partir de comparação com escala da curva normal padronizada para as crianças com audição normal, em relação à idade auditiva, idade cronológica e SII.
No grupo das crianças com SII 65 dB abaixo de 35%, 6 crianças (C17, C19, C23, C25, C31 e C32) apresentaram desempenho no LittlEars® dentro do esperado. As outras crianças do grupo apresentaram pontuação acima do esperado. Acredita-se que os pais das crianças com pouca audibilidade para os sons da fala têm uma expectativa irreal.
No grupo das crianças com SII 65 dB entre 36%-55%, as crianças (C6, C8 e C28) situaram-se distante da curva do parâmetro de normalidade, porém, todas tinham idade auditiva abaixo de 4 meses; apenas C6 apresentou idade auditiva de 14 meses, mas demonstrou alteração motora, o que, provavelmente, justificou esse distanciamento da curva.
No grupo das crianças com SII (65 dB) acima de 55%, as crianças C1, C2, C12, C14, C16 e C27 ficaram distantes da curva do parâmetro de normalidade, pois C1, C2, C12 e C14 apresentam idade auditiva de 1 semana; C16 e C27 faziam pouco uso dos AASIs, aproximadamente 5h/dia. Das 32 crianças estudadas, duas não foram registradas nesta figura, pois C21 é usuária de IC e C22 tem idade cronológica acima de 48 meses e, na Figura 3 só entraram sujeitos com idade cronológica de até 48 meses.
Em relação à preferência pela forma de administração do instrumento, quatro pais preferiram responder como questionário e 28, como de entrevista. O estudo original de validação do questionário auditivo(15) foi realizado em formato questionário, modalidade proposta pelos autores do instrumento. Neste estudo, os pais que optaram por essa modalidade não relataram nenhuma dificuldade com o questionário escrito, o que representa uma vantagem, quando o objetivo é atingir grande número de pessoas, mesmo que estejam dispersas numa área geográfica muito extensa. No entanto, um dos objetivos foi discutir a preferência de modalidade de resposta de pais atendidos no serviço, visto que o nível socioeconômico da população é diferente dos países nos quais os instrumentos foram validados no formato questionário. Parece que a preferência pela administração do instrumento está relacionada com o nível socioeconômico dos entrevistados e, provavelmente, sentiram-se mais seguros quanto à opção entrevista. As dúvidas na modalidade entrevista permitiram ao pesquisador vivenciar as dificuldades e esclarecê-las no momento da aplicação do questionário. Alguns autores(22) referem que, para a utilização do material escrito, é necessário que haja, entre leitor e autor, a pressuposição de um compartilhamento de conhecimentos pertencentes à mesma comunidade, conhecimentos de mundo e convicções, pressupostos que são concretizados por meio de uma escolha lexical do autor.
Na análise das relações entre as variáveis número de pessoas com dificuldade na pergunta e número de pessoas com dificuldade no exemplo, em que dificuldade representa comentário, dúvida e/ou sugestão, ficou evidente que, em vários momentos, o vocabulário utilizado não era conhecido pelos pais ou responsáveis. A dificuldade de alguns pais para compreenderem alguns itens do questionário justifica-se por acreditarem que o conhecimento linguístico é a utilização da língua, como o léxico, a organização das palavras, a pronúncia, a grafia, ou seja, os conhecimentos sintáticos, morfológicos, fonológicos e ortográficos(22). A explicação para o fato de uma pessoa analfabeta não conseguir ler é a de que ela não tem conhecimentos linguísticos necessários sobre o código de acesso ao texto escrito. Tais conhecimentos são essenciais para possibilitar a leitura e, de acordo com o maior ou menor nível desse conhecimento, o leitor ganha facilidade de processar o código, agrupando as unidades linguísticas em fatias de informação. Os conhecimentos linguísticos, então, possibilitam o acesso ao texto e o agrupamento das informações nele presentes.
Houve associação entre quantidade de perguntas com dúvidas e nível socioeconômico. Informantes dos níveis C e D apresentaram maior média de quantidade de perguntas com dúvidas, em relação aos informantes das categorias A2, B1 e B2. Mesmo com um nível de escolaridade favorável à leitura, alguns pais não conseguiram compreender alguns itens, já que pessoas escolarizadas podem não compreender, por exemplo, textos com vocabulário específico. Há evidências que a renda e a escolaridade são distribuídas de forma desigual no mundo e a influência de desigualdades socioeconômicas na condição de saúde das populações tem sido evidenciada, principalmente nos países em desenvolvimento(23). Em um censo coletado em 2010, estimou-se que, no Brasil, 25,4% da população são da Classe D. No presente estudo, foi identificado maior dificuldade para entendimento dos itens nas famílias de maior vulnerabilidade socioeconômica. A partir dessas maiores dúvidas e/ou dificuldades encontradas nas questões, foi necessária a alteração dos itens para melhor compreensão e adaptação do questionário para a população estudada.
Para a quantidade de perguntas com dúvidas sobre as variáveis explicativas idade auditiva (meses), idade cronológica (meses), SII e LittlEars®, foi inicialmente ajustado um modelo de regressão linear múltipla, a fim de verificar se existia alguma relação linear da variável resposta com as variáveis explicativas. Apenas a variável idade auditiva foi estatisticamente significativa. Essa tendência pode ser explicada pelo fato de que antes da criança utilizar AASI, a família, muitas vezes, não observa comportamentos auditivos e pode pedir esclarecimentos, ao invés de responder que a criança não apresenta determinado comportamento. Quando pais descobrem que seu filho tem perda auditiva, as primeiras reações são de choque e, muitas vezes, não aceitam essa realidade. Nessa etapa, não têm conhecimento sobre o assunto, o que poderia justificar pais das crianças com menor idade auditiva apresentarem menos dúvidas, comentários e/ou sugestões.
Considerando que os resultados demonstraram relação entre SII65dB, idade auditiva, idade cronológica e desempenho no LittlEars®, pode-se afirmar que o Questionário Auditivo LitllEars® é capaz de avaliar o desenvolvimento auditivo de crianças com deficiência auditiva. Estudo(15) demonstra que há correlação entre a idade e a pontuação total para colher informações sobre a capacidade do questionário de medir a idade-dependente do comportamento auditivo. Os autores concluíram que, em crianças mais velhas, é esperada maior pontuação. No entanto, por ser um estudo com população de crianças com audição normal, não relacionaram com o valor do SII e nem da idade auditiva. No presente estudo, observou-se que o aumento na pontuação do LittlEars® manteve-se constante com o valor do SII e com o valor da idade auditiva.
A equivalência cultural representa uma etapa essencial para a validação de protocolos, pois todo o restante do processo é realizado a partir dela. É por meio da adaptação cultural que um questionário traduzido pode ser direcionado à população da língua em questão. A versão apresentada no Anexo 1, criada a partir deste estudo, buscou adaptação e validação semântica/cultural para o Português Brasileiro. As sugestões suscitadas pelo material gerado durante as entrevistas e questionários foram discutidas durante a atividade de brainstorming de especialistas, sendo que a maioria foi acatada, aprimorada e referendada pelo grupo na construção da versão proposta em anexo. A equivalência com a versão original deverá ser feita em uma população maior. A continuidade do processo de validação, a partir de análise semântica e validação deste instrumento para o Português Brasileiro, possibilitará seu uso na prática clínica e na pesquisa, pois a experiência de percorrer os passos para validação de um protocolo auxilia na compreensão dos aspectos comuns de pacientes com idade auditiva de até dois anos. Pesquisas futuras com o LittlEars® poderão realizar a comparação de seus resultados, já que a utilização de um instrumento padronizado e validado para o nosso idioma permite estudos comparativos em diferentes centros.
Considerando a modalidade de aplicação, a maioria dos pais preferiu responder as perguntas do LittlEars® na modalidade entrevista, ao invés de questionário por escrito, conforme a versão original, o que sugere que na população estudada esta é a modalidade preferencial.
As dúvidas, comentários e/ou sugestões nos itens do questionário apresentadas pelos pais, estiveram relacionadas a vocabulário, expressões idiomáticas e exemplos desconhecidos. A adaptação semântica pareceu garantir a compreensão da população estudada.
Os resultados obtidos com o questionário LittlEars®, no grupo estudado, variaram conforme a idade auditiva e o Índice de Inteligibilidade de Fala (SII), o que sugere que a tradução tem sensibilidade para medir as habilidades auditivas, considerando que foi interativa para esclarecimento de dúvidas.
Foi realizada a adaptação semântica/cultural, importante etapa do processo de validação do Questionário LittlEars® em português. São necessários outros estudos para aplicar a nova versão e validação do questionário, para que, possa ser utilizado em processos de avaliação da mensuração de habilidades auditivas, em serviços de saúde auditiva.
*Autor correspondente: Beatriz Cavalcanti de Albuquerque Caiuby Novaes. E-mail: beatriznovaes@pucsp.br