Carta ao Editor
Carta ao Editor
A proposta desta carta é apresentar uma reflexão sobre a experiência de realizar um ensaio clínico diagnóstico na área da disfagia. O objetivo do ensaio clínico diagnóstico é determinar se um novo teste funciona e se é seguro. A validação de um teste diagnóstico é um processo de complexidade crescente. Esse processo pode ser dividido em duas etapas: validação do desempenho de um novo teste e a validação desse teste em seu desempenho em um ensaio clínico diagnóstico. O nosso ensaio diagnóstico partiu da proposição de um protocolo de pesquisa chamado PARD (Protocolo de Avaliação do Risco Para Disfagia), que vem sendo testado desde 2007. Ao longo desses quase 10 anos o nosso protocolo foi aplicado e analisado, com metodologia estrita, em aproximadamente 500 pessoas. Esses estudos constituíram dissertações e teses que exploraram as variabilidades do teste. O PARD é adotado como procedimento usual nos pacientes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), sendo constantemente discutido nas reuniões clínicas médicas e multiprofissionais. O PARD já foi aplicado em quase ٦.٠٠٠ pacientes nos últimos 9 anos.
O PARD vem sendo validado nas diferentes fases dos ensaios clínicos diagnósticos, na forma:
- PARD – Ensaio Diagnóstico de Fase I: o objetivo foi avaliar a segurança e identificar possíveis efeitos indesejáveis do teste. Nessa fase, iniciada em 2006, foi construído o protocolo do PARD, visando auxiliar o fonoaudiólogo a identificar e interpretar as alterações na dinâmica da deglutição, caracterizar os sinais clínicos sugestivos de penetração laríngea ou aspiração laringo-traqueal, definir pontualmente a gravidade da disfagia e estabelecer condutas a partir dos resultados da avaliação. O PARD foi elaborado com base nos protocolos então existentes, foram identificados os pontos comuns a todos, os pontos não comuns foram excluídos e os itens julgados relevantes foram incluídos. Desta forma, elaborou-se o PARD, que é constituído por 3 partes: teste de deglutição da água, teste de deglutição de alimentos pastosos, classificação do grau de disfagia e condutas. O protocolo foi submetido à avaliação de juízes (3 fonoaudiólogos com experiência na área) e obteve um grau de concordância acima de 75%. Naquele momento, há 10 anos atrás, a formulação do teste buscou contemplar da maneira mais completa possível a avaliação fonoaudiológica para risco de disfagia em beira-de-leito. Essa medida foi necessária uma vez que o Hospital das Clínicas da FMUSP determina o uso de procedimentos operacionais padrão em todas as áreas. Naquele momento não houve a validação do desempenho interno do teste por termos considerado que, na forma apresentada, o PARD era reconhecidamente extenso para contemplar todos os aspectos de risco para a disfagia e não haveria sentido reduzi-lo sem o teste de desempenho populacional. Nessa fase foram publicados dois estudos(1,2).
- PARD – Ensaio Diagnóstico de Fase II: o objetivo foi a aplicação do PARD em diferentes populações de risco (traumatismo cranioencefálico - TCE, acidente vascular cerebral - AVC, intubação orotraqueal prolongada - IOTp) e diferentes perfis de gravidade do quadro geral dos pacientes (pronto socorro - PS, unidade de terapia intensiva - UTI, enfermaria - ENF) para a avaliação da eficácia e segurança do teste. Nessa fase foram testados aproximadamente 500 pacientes. Com esse total de pacientes foi realizada a primeira validação interna do teste, sendo os itens apontados como preditores de risco para penetração/aspiração broncopulmonar: presença de deglutições múltiplas; alteração da ausculta cervical, alteração da qualidade vocal pós-deglutição e presença de tosse e/ou engasgos após a deglutição. Também nessa etapa foi realizado o estudo de correlação entre os itens do PARD e a condição geral de saúde de pacientes críticos. Os resultados dessa pesquisa indicaram que pacientes com idade acima de 55 anos, tempo de IOTp ≥6 dias, escore na escala SOFA (escala internacional, multidimensional, para falência de órgãos) ≥5, escore na escala de coma de Glasgow ≤14 e que apresentem no PARD alteração da ausculta cervical e tosse/engasgo devem ser encaminhados, imediatamente, para exame o objetivo da deglutição(3,4,5,6,7,8) pois apresentam alto risco para penetração/aspiração broncopulmonar.
- PARD – Ensaio Diagnóstico de Fase III: essa é a atual fase de validação do PARD. Nessa etapa, que já está em andamento, o objetivo será a aplicação do PARD em diferentes populações de risco (TCE, AVC, IOTp) e sua validação na comparação com a vídeofluoroscopia da deglutição, considerada padrão-ouro, para determinar a acurácia do PARD como um teste diagnóstico. O PARD só terá finalizado seu processo de validação quando seus resultados, na comparação com o teste de referência da verdade (padrão ouro, videofluoroscopia da deglutição) apresente capacidade de discriminar quem realmente apresenta risco para penetração/aspiração broncopulmonar. As equações para o cálculo de desempenho do PARD no ensaio de fase III serão:
- PARD – Ensaio Diagnóstico de Fase IV: depois que o PARD for validado na fase III, ele poderá ser aplicado em sua versão final, com segurança e comparando seus resultados com diferentes centros de referência.
Atualmente, a Divisão de Fonoaudiologia é responsável por 4% de todos os atendimentos realizados no Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP, o maior hospital escola da América Latina, sendo a grande maioria desses atendimentos direcionados aos pacientes com disfagia.
Um bom protocolo clínico segue um percurso que deve estar em constante desenvolvimento. Mesmo com o surgimento de novas tecnologias diagnósticas, um protocolo clínico é imprescindível, uma vez que essas tecnologias nem sempre estão disponíveis a todos os pacientes e profissionais. As novas tecnologias costumam ter um alto custo (não somente pelo valor do equipamento, mas também pela capacitação profissional exigida) e podem, em alguns casos, envolver procedimentos invasivos. A finalização ideal desse percurso significa poder contar com um protocolo clínico validado, que possa suprir com eficiência as demandas de cada Instituição.
Claudia Regina Furquim de AndradeDepartamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil