Artigo Original
Recepção: 29 Dezembro 2016
Aprovação: 4 Outubro 2017
DOI: 10.1590/2317-6431-2016-1836
RESUMO
Introdução: O desempenho no vocabulário pode variar em razão de estímulos ambientais e contexto socioeconômico e cultural. Objetivo: Comparar o desempenho em prova de vocabulário expressivo entre pré-escolares da rede pública e privada de ensino, na faixa etária de 4 a 5 anos, e analisar os processos de substituição mais frequentes.
Métodos: A amostra foi composta por 86 pré-escolares, na faixa etária de 4 a 5 anos, de ambos os gêneros, sem sinais indicativos de síndromes, distúrbios neurológicos ou de linguagem. A amostra foi dividida em dois grupos: G1- grupo de pré-escolares da rede pública de ensino e G2- grupo de pré-escolares da rede privada de ensino. Todos os pré-escolares foram submetidos à triagem fonoaudiológica e à avaliação do vocabulário expressivo, por meio do Teste de Vocabulário do ABFW. Os dados coletados foram submetidos à análise estatística, utilizando o teste Exato de Fisher e o teste T (p<0,05), considerando as ocorrências de Designações por Vocábulos Usuais, de Não Designações e de Processos de Substituição, por campo conceitual.
Resultados: O G2 apresentou melhor desempenho que o G1 no teste de vocabulário, havendo diferença significativa para todos os campos conceituais. Entretanto, quando comparado o desempenho dos pré-escolares com os parâmetros do teste, a maioria dos pré-escolares do G1 e do G2 apresentou desempenho adequado. Os processos de substituição mais frequentes foram os de hiperônimos e co-hipônimos próximos.
Conclusão: Pré-escolares da rede privada de ensino apresentaram melhor desempenho em prova de vocabulário expressivo. Além disso, os processos de substituição ocorreram com mais frequência em pré-escolares da rede pública de ensino, sendo os mais frequentes os de hiperônimo e co-hipônimo próximo.
Palavras chave: Vocabulário, Semântica, Pré-escolar, Desenvolvimento da linguagem, Testes de linguagem.
ABSTRACT
Introduction: Vocabulary performance may vary due to environmental stimuli, and socioeconomic and cultural context.
Purpose: To compare the performance of expressive vocabulary of children attending public and private schools, aged from four to five years, and analyze the most frequent substitution processes.
Methods: The sample consisted of 86 preschool children, aged from four to five years, male and female, without signs of syndromes and neurological or language disorders, divided into G1: Group of preschoolers in the Public School, and G2: Group of preschoolers in the Private School. All children were submitted to speech-language screening and expressive vocabulary evaluation through the ABFW Vocabulary Test. Data were submitted to statistical analysis, using Fisher’s Exact Test and T-test (p <0.05), considering the occurrences of Designations by Usual Word, Non-Designations and Substitution Processes according to conceptual fields.
Results: G2 presented better performance in the vocabulary test than G1, with statistically significant difference for all conceptual fields. However, when comparing pre-school performance with test parameters, most G1 and G2 preschoolers presented adequate performance. The most frequent substitution processes were those of hyperonymy and close co-hyponymy.
Conclusion: Private school preschoolers present better performance in expressive vocabulary tests. In addition, substitution processes occurred more frequently in preschoolers in the public school system, and the most frequent ones were hyperonymy and co-hyponymy.
Keywords: Vocabulary, Semantics, Child, Preschool, Language development, Language tests.
INTRODUÇÃO
A aquisição de palavras é o marco inicial da comunicação oral entre a criança e o meio em que vive. As primeiras palavras são adquiridas por volta dos 12 meses, seguidas por períodos de aumento lento e gradual do vocabulário e por períodos de “explosão de vocabulário”, que continuam por toda vida escolar, até aproximadamente os 16 anos, quando a aquisição de vocabulário passa a depender do meio no qual o sujeito está inserido(1).
Todas as palavras conhecidas por uma pessoa fazem parte do seu léxico mental, que é acessado de acordo com a necessidade do uso(2,3) para representar, por meio de palavras, objetos, ações e acontecimentos(3,4). A aquisição da linguagem e do vocabulário, em particular, é extremamente complexa e depende não apenas de características particulares de cada indivíduo, no que se refere às habilidades cognitivas, mas de influências do ambiente no qual está inserido e das relações sociais estabelecidas(1,3).
O vocabulário pode variar em função dos estímulos e das interações recebidas no ambiente familiar e escolar, bem como do contexto socioeconômico e cultural(5). Nesse contexto, a escola tem um papel importante para o desenvolvimento da linguagem da criança, visto que representa possibilidades de construção e ampliação do léxico, em razão das diversas situações de comunicação, a partir de interações com vários interlocutores, de forma individual e coletiva.
A linguagem envolve quatro sistemas intercalados para a sua aquisição e desenvolvimento, que são: o pragmático, que está relacionado ao uso na comunicação social; o fonológico, que envolve a percepção e a produção dos sons para a formação de palavras; o semântico, que correlaciona palavras aos seus significados e o gramatical, que se refere às regras sintáticas e morfológicas para associar palavras em frases que possam ser compreendidas(6).
Adquirir o domínio semântico das palavras é requisito indispensável para um bom desempenho no desenvolvimento da linguagem de maneira ampla e abrangente, uma vez que atribuir e compreender o significado das palavras é necessário para que a comunicação aconteça de forma satisfatória(7). A capacidade de compreender e emitir vocábulos, ou seja, o vocabulário receptivo e expressivo, é indicativa do nível de linguagem da criança e apresenta forte relação com a inteligência e o posterior desempenho acadêmico(2,8).
Durante a aquisição e expansão lexical, podem ocorrer desvios semânticos, que são resultado de a criança ainda não ter o conjunto de traços que diferencia o uso das palavras nos diferentes contextos linguísticos(2,9,10,11,12). Tais desvios tendem a desaparecer ou diminuir conforme a criança expande seu vocabulário(2,10). O uso do termo desvio, também compreendido como processo de substituição de vocábulo, tem o intuito de representar a falta de correspondência entre o significado da palavra pronunciada pela criança e o significado da palavra alvo, tendo como base a fala do adulto. Esses processos de substituição são normalmente observados no período de desenvolvimento do vocabulário, desaparecendo ou diminuindo significativamente com o aumento da idade e expansão lexical(2).
Avaliar o vocabulário infantil permite verificar a capacidade lexical(8,13) e os mecanismos que as crianças utilizam, no que diz respeito à quantidade de vocábulos(13) e à atribuição do sentido dado a eles(9). Já a análise dos processos de substituições de vocábulos evidencia as diferenças e semelhanças das unidades lexicais utilizadas pela criança(13).
A presença de processos de substituições de vocábulos na fala da criança é resultado da tentativa de nomear uma palavra alvo que não consta em seu léxico(2,9,10,11) – característica comum do processo de aquisição lexical(2,10). A criança leva, em média, cinco meses entre aprender um novo vocábulo e fazer uso efetivo deste, o que vai depender do contexto no qual a criança está inserida e a necessidade do uso de tal vocábulo, em especial(1).
Segundo a literatura(4,14,15,16,17), escolares da rede pública de ensino apresentam desempenho mais baixo, quando comparados a escolares da rede privada, tanto em tarefas de linguagem oral, quanto em tarefas de leitura e escrita. Essa desigualdade no desempenho pode ser decorrente de diferenças no nível socioeconômico, tipo de estimulação extraescolar recebida, ambiente familiar desfavorável, problemas emocionais, nível de motivação para o tipo de tarefa proposta, entre outros motivos(14).
Um estudo(4) que verificou o desempenho de vocabulário de crianças institucionalizadas e comparou com o desempenho de crianças pertencentes à rede pública e particular de ensino, verificou que as crianças institucionalizadas demonstraram desempenho inferior na prova de vocabulário, em relação aos grupos controle de crianças da rede pública e particular. Entretanto, quando comparado o desempenho entre as crianças não institucionalizadas, não houve diferença significativa em relação ao desempenho do vocabulário e o tipo de escola. Segundo os autores, esse achado pode ser explicado pelo fato de a escola pública participante do estudo possuir boa qualidade de ensino e ser considerada como referência na região.
Diante disso, este trabalho teve como objetivo comparar o desempenho em prova de vocabulário expressivo entre pré-escolares da rede pública e privada de ensino e analisar os processos de substituição de vocábulos mais frequentes. O artigo traz, como inovação, o anseio em analisar a tipologia de erros e, assim, contribuir com uma perspectiva qualitativa da diferença de desempenho entre os grupos de pré-escolares da rede pública e privada.
MÉTODOS
Pesquisa de caráter transversal, exploratório e quantitativo, aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade de Passo Fundo, em seus aspectos éticos e metodológicos, de acordo com as diretrizes estabelecidas na Resolução 466/2012 e complementares do Conselho Nacional de Saúde, registrada sob número CAEE 23298713.5.0000.5342. Todos os pais e/ou responsáveis pelos pré-escolares assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), autorizando a participação das crianças na pesquisa. Também responderam a um questionário de múltipla escolha, englobando características referentes à renda mensal, ao histórico fisiopatológico e ao desenvolvimento da linguagem e da fala.
Os dados foram coletados em uma escola de educação infantil da rede pública e em uma escola de educação infantil da rede privada, em um município brasileiro localizado ao norte do Estado do Rio Grande do Sul. A escola da rede pública localizava-se na periferia da cidade, em região menos favorecida, segundo nível socioeconômico. Já a escola da rede privada, localizava-se no centro da cidade e atendia exclusivamente filhos de funcionários de um hospital. Os responsáveis pelas escolas autorizaram a coleta da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Institucional.
Todas as crianças, na faixa etária de 4 a 5 anos, de ambos os gêneros, efetivamente matriculadas nas escolas, foram convidadas a participar da pesquisa, totalizando 114 crianças na escola pública e 109 crianças na escola privada. Dessas, 98 crianças retornaram com a autorização assinada e com o questionário de múltipla escolha, englobando características referentes à renda mensal, ao histórico fisiopatológico, ao desenvolvimento da linguagem e da fala, devidamente preenchido.
Os pré-escolares foram submetidos à triagem fonoaudiológica, que incluiu a avaliação da linguagem. Primeiramente, foram utilizadas três cenas de sequência lógica e as crianças foram solicitadas a colocá-las na ordem cronológica dos acontecimentos. Em seguida, deveriam contar uma história baseada na sequência em que as figuras foram dispostas. Foram avaliadas a adequação das respostas, a execução de ordens solicitadas, a organização lógica do pensamento e a estrutura gramatical das palavras. Os critérios passa-falha considerados foram: organização adequada das cenas da sequência lógica, narração das três cenas em sequência e narração com predomínio de relato ou descrição(18).
Posteriormente, foi realizada a avaliação fonológica das crianças, por meio do instrumento Avaliação Fonológica da Criança (AFC)(19), que permitiu a obtenção de uma amostra de nomeação espontânea, envolvendo todos os fones contrastivos, em todas as posições que ocorrem na sílaba e na palavra. Essa amostra de fala foi gravada, e transcrita foneticamente, para análise do inventário fonético e do sistema fonológico das crianças(19).
Concluída a triagem, os escolares foram submetidos ao Teste de Vocabulário do ABFW(9), que analisa diferentes categorias do vocabulário. Essa avaliação possibilitou verificar a competência lexical e os mecanismos utilizados pelas crianças, no que se refere à quantidade de vocábulo – Designações por Vocábulos Usuais (DVU), Não Designações (ND) e Processos de Substituição (PS) – utilizados em lugar da palavra alvo. Esse instrumento é composto por nove campos conceituais (Vestuário; Animais; Alimentos; Meios de Transporte; Móveis e Utensílios; Profissões; Locais; Formas e Cores; Brinquedos e Instrumentos Musicais), totalizando o reconhecimento e a nomeação de 118 figuras.
Todas as avaliações foram realizadas individualmente e gravadas em vídeo e áudio, para posterior transcrição e análise. Foi necessária uma sessão com duração média de 40 minutos.
Em cumprimento dos critérios de exclusão, das 98 crianças avaliadas, 12 foram excluídas por apresentarem desvio fonológico, sinais indicativos de síndromes, atrasos e/ou distúrbios de linguagem, distúrbios neurológicos, deficit de atenção e hiperatividade (nove crianças da rede pública e três da rede privada de ensino).
Logo, 86 pré-escolares que atenderam aos critérios de inclusão da pesquisa – autorização dos pais e/ou responsáveis por meio da assinatura do TCLE, preenchimento completo do questionário, idade entre 4 e 5 anos, ausência de relatos ou sinais indicativos de síndromes, distúrbios neurológicos ou de linguagem e desvio fonológico – compuseram a amostra, sendo divididos em dois grupos: G1 - grupo de pré-escolares da rede pública de ensino, composto por 41 crianças e G2 - grupo de pré-escolares da rede privada de ensino, composto por 45 crianças. A distribuição da amostra quanto à idade, gênero e renda familiar (média do número de salários mínimos mensais), para G1 e G2, está apresentada na Tabela 1.
Conforme observado na Tabela 1, não houve diferença estatisticamente significativa na média de idade entre G1 e G2. Além disso, a distribuição dos grupos, quanto ao gênero, mostrou-se homogênea, na amostra. Entretanto, o G2 apresentou renda familiar mensal, em média, estatisticamente maior que G1.
Inicialmente, as respostas foram transcritas em protocolos específicos do teste e calculados os percentuais de DVU, ND e PS, para cada categoria (campo conceitual) do teste. Em seguida, esses percentuais foram comparados entre os grupos de pré-escolares (G1 e G2) e entre os valores de referência do teste, conforme idade(9), quanto ao desempenho adequado ou abaixo do esperado. Por fim, os processos de substituição foram classificados segundo a tipologia(9) e analisada a frequência para G1 e G2. Os valores obtidos foram tabulados em planilha eletrônica e submetidos a tratamento estatístico. A fim de comparar as variáveis renda familiar, total de DVU, ND e PS e média de DVU, ND e PS, por campo conceitual, entre G1 e G2, foi utilizado o teste T para duas amostras independentes. Já para comparar as variáveis faixa etária, gênero, percentual de pré-escolares com desempenho adequado e classificação dos processos de substituição entre G1 e G2 foi utilizado o teste Exato de Fisher. Todas as análises estatísticas foram realizadas no software Bioestat 5.0 (2007), adotando-se nível de significância 5% (p<0,05).
RESULTADOS
Em relação às ocorrências de Designações por Vocábulos Usuais (DVU), de Não Designações (ND) e de Processos de Substituição (PS), para o G1 e o G2, observou-se que o G1 apresentou, em média, escores de DVU (77,71) inferiores ao G2 (98,60), sendo essa diferença significativa (0,003). Tal achado revelou que pré-escolares da rede púbica de ensino nomearam, de forma usual, menor número de vocábulos que pré-escolares da rede privada. Além disso, a ocorrência de ND, em ambos os grupos, foi menor que a ocorrência de PS, ou seja, foi raro as crianças não designarem o objeto. Em geral, quando as crianças não realizam a DVU, realizam um processo de substituição (Figura 1).
Quanto à média de percentuais de ocorrências por campo conceitual, verificou-se que o G1 apresentou menor ocorrência de Designações por Vocábulos Usuais (DVU) que o G2, em todos os campos conceituais, sendo essa diferença significativa. Além disso, as crianças do G1 não nomearam maior número de vocábulos para todos os campos conceituais, exceto para os campos conceituais de Vestuário e de Móveis e Utensílios, sendo essa diferença também significativa. Por fim, no que se refere à ocorrência de Processos de Substituição (PS), o G1 realizou mais processos de substituição que o G2, em todos os campos conceituais, também com diferença significativa. A média dos percentuais de DVU, ND e PS, por campo conceitual, para G1 e G2, está apresentada na Tabela 2.
No que se refere ao desempenho adequado para o teste(9) Designações por Vocábulos Usuais (DVU), considerou-se desempenho adequado o valor de referência em cada campo semântico, conforme a faixa etária proposta no teste(9). Verificou-se que a maioria dos pré-escolares, tanto do G1, quanto do G2, apresentou escore adequado para todos os campos conceituais, exceto no campo Locais, para o G1. Além disso, observou-se que, no campo conceitual Alimentos, embora a maioria dos pré-escolares de ambos os grupos tenha apresentado escore com desempenho adequado, o percentual do G1 foi menor que o do G2, sendo essa diferença significativa. O percentual de pré-escolares com desempenho adequado para o teste(9) DVU, para G1 e G2, está indicado na Tabela 3.
Quanto à ocorrência de Processos de Substituição (PS), observou-se que as substituições por co-hipônimo próximo e por paráfrases culturais foram realizadas por todos os pré-escolares, de ambos os grupos. Além disso, observou-se que os processos de modificação de categorial gramatical, substituição por hiperônimo, substituição por co-hipônimo distante e por parassinônimos, ou equivalentes, foram realizados por maior número de pré-escolares do G1 que G2, sendo essa diferença significativa. O processo de valorização do estímulo visual foi realizado por maior número de pré-escolares do G2, havendo diferença significativa. A classificação dos PS realizados por escolares do G1 e G2 está demonstrada na Tabela 4.
DISCUSSÃO
Os achados desta pesquisa revelaram que o desempenho geral no Teste do Vocabulário do ABFW(9) de pré-escolares da rede pública de ensino foi inferior ao desempenho apresentado por crianças da rede privada. Entretanto, quando comparado o desempenho obtido com os escores esperados de acordo com a idade, a maioria dos pré-escolares, tanto da rede pública, quanto da privada, atingiu os escores mínimos esperados, com exceção do campo conceitual Locais. Portanto, não é possível afirmar que pré-escolares da rede pública estejam com o vocabulário defasado, pois a maioria apresentou escores esperados para a idade, de acordo com o teste(9).
Uma das razões de haver diferença no desempenho entre escolares de instituição pública e privada pode ser justificada pela desigualdade no nível socioeconômico e cultural(10). No presente estudo, o número de salários mínimos mensais (pais/responsáveis) dos pré-escolares do G1 foi, em média, inferior ao de pré-escolares do G2. Pesquisa(20) revelou que o nível socioeconômico influencia diferentes aspectos do desenvolvimento infantil, incluindo comportamentos relevantes à saúde, à aprendizagem e ao desenvolvimento socioemocional, com efeitos desde o nascimento até a idade adulta.
Outro estudo(21) observou associação positiva entre a ocorrência de atraso de linguagem infantil e a baixa renda mensal familiar, constatando que houve maior incidência de crianças com alteração de linguagem em famílias com baixa renda familiar. Entretanto, o nível socioeconômico não é fator exclusivo para determinar expectativas positivas ou negativas, em relação ao desempenho infantil. Uma vez que escolares de nível socioeconômico mais favorecido podem apresentar desempenho acadêmico baixo, escolares de nível socioeconômico menos favorecido também podem apresentar desempenho acadêmico alto(22).
Além do nível socioeconômico, outros fatores podem contribuir para a diferença entre o desempenho, como o ambiente de estimulação humano-familiar(23), a escolaridade materna(2,8,21,24) e a diversidade sociocultural(8,21,25). Segundo a literatura, as características da forma como os pais falam com seus filhos são fatores que contribuem positivamente para a composição do vocabulário da criança(3), sendo que, quanto mais escolarizados os pais, maior é a riqueza dos estímulos oferecidos à criança(26). Além disso, quanto mais as crianças são estimuladas no seu entorno, maior é a ativação e o acesso ao vocabulário(27,28).
Apesar de o nível socioeconômico sugestionar os recursos físicos e materiais que a família pode proporcionar a criança, é sempre necessária a análise conjunta de outros fatores, que também podem influenciar o desempenho do vocabulário, como as características ambientais, as interações comunicativas vivenciadas e o estilo comunicativo utilizado pelos pais(5).
Outros estudos também verificaram melhor desempenho de escolares que frequentavam escolas privadas(4,14,15,16,17), o que pode estar relacionado ao fato de escolas privadas, em geral, oferecerem maior incentivo à qualificação e à formação continuada do professor, além de infraestrutura mais ampla, com salas de recursos mais equipadas e maior número de profissionais.
Estudo(4) que fez comparação entre escola pública e privada, em pré-escolares da mesma faixa etária, também encontrou mais processos de substituição em escolares da rede pública, em comparação com os da rede privada. Os escores obtidos nos campos conceituais Profissões e Locais concordaram com os de outros estudos(3,4), nos quais os pré-escolares apresentaram pior desempenho nas categorias citadas. A maior dificuldade de ambos os grupos para nomear as figuras correspondentes ao campo conceitual Profissões pode estar atribuída ao fato de tais palavras remeterem a conceitos mais abstratos para as crianças, dificultando sua assimilação(4,11).
O campo conceitual Locais pode se apresentar complexo para as crianças, visto que tende a ser menos representativo e conhecido, devido à idade em que se encontram essas crianças(4,10,13) à possibilidade de não conhecerem/reconhecerem o estímulo e ao fato de a nomeação depender do input visual fornecido(11,13). Melhor desempenho nos campos conceituais supracitados requer maior domínio lexical, pois o sujeito necessita de boa capacidade de representação e abstração para a significação desses conceitos(4,13). Melhor desempenho nas categorias Animais, Formas e Cores e Brinquedos e Instrumentos Musicais” também foi encontrado em outro estudo(4).
Quanto ao campo conceitual Alimentos, menor percentual de desempenho adequado foi observado para pré-escolares da rede pública. Esse achado pode estar relacionado à baixa renda mensal familiar, que impossibilita que determinados alimentos façam parte da dieta das crianças de escola pública, como por exemplo, abacaxi. Além disso, pode estar relacionado a fatores culturais e/ou regionais, como, por exemplo, a substituição de “macarrão” por “massa”. Confirmando esses dados, outro estudo(10) obteve variações regionais, constatando diferença na designação de alguns vocábulos para escolares residentes na cidade de Maceió. Destacou-se, por exemplo, a nomeação dos vocábulos “balança” e “escorregador”, presentes no campo semântico Brinquedos e Instrumentos Musicais.
É fundamental que, na elaboração e na aplicação de testes de linguagem, especificamente do vocabulário, sejam consideradas as variações que podem ocorrer em relação à população(10). Quando considerado o vocabulário, em particular, sempre é importante diferenciar processo de substituição por diferença cultural, como, por exemplo, “privada” por “vaso”; “chupeta” por “bico” (variações observadas no vocabulário regional das crianças do presente estudo).
A substituição de palavras por seu hiperônimo é motivada pela facilidade semântica, uma vez que o hiperônimo é a forma mais abrangente de nomear uma figura, facilitando sua aprendizagem. O uso de hiperônimos é indicativo de que a criança ainda faz generalizações semânticas, não usando traços semânticos que especificam o vocabulário(10).
A quantidade de pré-escolares de escola pública que realizaram substituição por co-hipônimo distante foi maior, em comparação com pré-escolares de escola privada. Maior ocorrência desse processo também foi encontrada em outros estudos(10,13). A substituição de uma palavra por outra é resultado da falta de termo mais apropriado a ser utilizado(10), sendo que as crianças preferem utilizar vocábulos da mesma categoria semântica da figura alvo e nomes baseados nas propriedades visuais da mesma, considerando as relações semânticas(13).
O processo de substituição por hipônimo teve grande ocorrência entre os pré-escolares deste estudo. Contudo, esse achado não foi verificado em outro estudo, realizado com pré-escolares da mesma faixa etária(10). Além disso, um número expressivo de pré-escolares, de ambos os grupos, realizou substituição do vocábulo esperado por designação de função, o que pode ser explicado pelo fato de a criança ainda não possuir a palavra adequada para nomear a figura, porém compreende a funcionalidade de tal vocábulo(2,9,10,11).
O processo de valorização de estímulo visual foi realizado em maior número de vezes por pré-escolares da rede privada - tal processo acontece quando a criança nomeia um componente que se destaca na figura(9). Isso ocorreu porque, na figura correspondente ao vocábulo alvo “salada”, a maioria dos pré-escolares da rede pública evocou a palavra “comida” ou “verdura”, realizando um processo de substituição do tipo hiperônimo, enquanto que os pré-escolares da rede privada evocaram um ou mais dos elementos que compunham a figura (tomate/alface/milho/ervilha). Estudo(29) apontou que, quando a criança não compreende a imagem apresentada ou a desconhece como um todo, tende a arriscar um vocábulo aleatório presente na figura para nomeá-la, da mesma forma que, se o conceito da figura não está adquirido, a criança prefere atribuir a ela nomes já conhecidos de imagens que são visualmente semelhantes(13).
Por fim, a alta ocorrência do processo de substituição por paráfrases culturais e/ou regionais, como por exemplo, a substituição de “macarrão” por “massa”, verificada em ambos os grupos, revelaram que diferenças relacionadas à regionalidade também podem interferir no desempenho do vocabulário expressivo(2,10).
CONCLUSÃO
Os pré-escolares da rede pública de ensino apresentaram desempenho inferior aos pré-escolares da rede pública, em prova de vocabulário expressivo. Entretanto, quando comparado o desempenho obtido com os parâmetros do teste, a maioria dos pré-escolares da rede pública apresentou desempenho satisfatório.
Dentre os processos de substituição de vocábulos, normalmente observados na faixa etária estudada, a substituição por co-hipônimo próximo e paráfrases foi realizada por todos os pré-escolares, de ambos os grupos. Já os processos de modificação de categorial gramatical, substituição por hiperônimo, substituição por co-hipônimo distante e por parassinônimos, ou equivalentes, foram realizados com maior frequência por pré-escolares da rede pública, enquanto que o processo de valorização do estímulo visual, por pré-escolares da rede privada.
O estudo trouxe contribuições sobre a importância que a pré-escola oferece para o desenvolvimento semântico, assim como a reflexão de que variáveis, como o nível socioeconômico, grau de escolaridade dos pais, recursos e qualidade do ambiente de estimulação podem influenciar no desempenho do vocabulário. Entretanto, apresentou, como limitação, a necessidade de ampliar a amostragem, com a inclusão de um número significativo de escolas de rede pública e privada, e de aprofundar a interação de todas as variáveis mencionadas.
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Autor notes
Autor correspondente: Ana Rita Brancalioni. E-mail: fonoaninha@yahoo.com.br
Declaração de interesses