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Resultados audiológicos em um grupo de crianças com microcefalia pela síndrome congênita do Zika virus
Bárbara Cristina da Silva Rosa; Doris Ruthy Lewis
Bárbara Cristina da Silva Rosa; Doris Ruthy Lewis
Resultados audiológicos em um grupo de crianças com microcefalia pela síndrome congênita do Zika virus
Audiological results in a group of children with microcephalia by congenital Zika virus syndrome
Audiology - Communication Research, vol. 25, e2293, 2020
Academia Brasileira de Audiologia
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RESUMO

Objetivo: investigar a audição de crianças com microcefalia pela síndrome congênita do Zika vírus.

Métodos: a amostra foi composta de 11 crianças com microcefalia causada pela síndrome congênita do Zika vírus. A coleta teve início no primeiro semestre de 2017, sendo finalizada no primeiro semestre de 2018. Procedimentos realizados: avaliação otorrinolaringológica e audiológica: observação do comportamento auditivo e audiometria de reforço visual; imitanciometria, emissões otoacústicas evocadas por estímulo transiente, potencial evocado auditivo de tronco encefálico por via áerea e potencial evocado auditivo por estado estável com estímulo narrow band CE-chirp. As respostas comportamentais foram comparadas com as respostas do potencial evocado auditivo de estado estável.

Resultados: apresentaram respostas dentro do esperado para idade, na avaliação comportamental 11 crianças, com 20 dB bilateralmente para tons calibrados em campo, nas frequências de 500 Hz, 1 kHz, 2 kHz e 4 kHz, sendo que 2 delas conseguiram realizar a audiometria em campo com fone de inserção bilateralmente. Em relação às emissões otoacústicas, todas tiveram respostas presentes em ambas as orelhas, 10 crianças apresentaram timpanometria tipo A e uma (1) do tipo Ar. Quanto ao potencial evocado auditivo, as 8 crianças avaliadas apresentaram resultados dentro da normalidade, com nível mínimo de respostas em 20 dBNAn bilateralmente. No potencial evocado auditivo de estado estável, 6 crianças avaliadas apresentaram nível mínimo derespostas em 500 Hz, 1 kHz, 2 kHz e 4kHz, em 20 dBNAn, bilateralmente.

Conclusão: as crianças avaliadas não apresentaram perda auditiva neurossensorial.

Palavras-chave: Audição, Perda auditiva, Potenciais evocados, Microcefalia, Zika vírus.

ABSTRACT

Purpose: to investigate the hearing of children with microcephaly due to congenital Zika virus syndrome.

Methods: the sample consisted of eleven children with microcephaly due to the congenital Zika virus syndrome. The collection was carried out in the first semester of 2017 until the first semester of 2018. Procedures performed: otorhinolaryngological and audiological evaluation: observation of auditory behavior and visual reinforcement audiometry; immittance testing, transient evoked otoacoustic emissions, brainstem auditory evoked potential, and auditory steady-state evoked potential with narrow band CE-chirp stimulus. The behavioral responses were compared with the responses of the auditory steady-state evoked potential.

Results: eleven children presented responses as expected for age in the behavioral assessment, with 20 dB bilaterally for tones calibrated in the field at frequencies of 500 Hz, 1kHz, 2 kHz, 4 kHz, with 2 children being able to perform field audiometry with bilateral earphone insertion. Regarding the transient evoked otoacoustic emissions, all presented responses in both ears, ten children had tympanometry type A and one had type Ar tympanometry. Regarding the auditory evoked potential, 8 children had results within the normal range, with a minimum level of response at 20 dBnHL bilaterally. In the auditory steady-state evoked potential, 6 children had a minimum response level of 500 Hz, 1 kHz, 2 kHz, and 4 kHz, bilaterally, at 20 dBnHL.

Conclusion: the children did not present sensorineural hearing loss.

Keywords: hearing, hearing loss, evoked potentials, microcephaly, Zika virus.

Carátula del artículo

Artigo Original

Resultados audiológicos em um grupo de crianças com microcefalia pela síndrome congênita do Zika virus

Audiological results in a group of children with microcephalia by congenital Zika virus syndrome

Bárbara Cristina da Silva Rosa
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
Doris Ruthy Lewis
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
Audiology - Communication Research, vol. 25, e2293, 2020
Academia Brasileira de Audiologia

Recepção: 21 Janeiro 2020

Aprovação: 23 Abril 2020

INTRODUÇÃO

Em junho de 2016, o Brasil registrou a ocorrência de 8.039 casos de microcefalia e/ou outras alterações do sistema nervoso central (SNC). A região de maior ocorrência foi o Nordeste, com 74,4% (n=2070) dos casos notificados1. No estado de Sergipe, por exemplo, entre 2015-2016, foram confirmados 128 casos de microcefalia. Em 2017, houve uma redução para apenas quatro casos notificados e, em 2018, houve a notificação de dois casos1-3.

Considerando que a prevalência de microcefalia em 2010, no país, era de 5,7/100 mil, tendo um aumento de 20 vezes em 2015, passando para 8.039 /100 mil e, a partir das recentes descobertas realizadas no país4 sobre a relação desse quadro com a infecção pelo Zika vírus (ZIKV) no período intrauterino, o Ministério da Saúde5 passou a recomendar que as gestantes adotassem medidas preventivas de combate ao mosquito Aedes aegypti.

A característica da microcefalia é a circunferência da cabeça abaixo do normal para a idade e sexo, com desenvolvimento inadequado. Pode ser de origem congênita ou ocorrer nos primeiros anos de vida, ser de grau leve a severo, levando a alterações no desenvolvimento cognitivo, atraso nas funções motoras e de fala, hiperatividade, convulsões, dificuldades de coordenação e equilíbrio, além de outros quadros cerebrais ou neurológicos6,7.

As crianças com síndrome congênita pelo Zika vírus, além das alterações acima citadas, apresentam maiores complicações, tais como disfágicas, visuais, auditivas e diferenças melódicas do choro8.

Diante disso, a Organização Mundial de Saúde (OMS)9 recomendou que todos os neonatos com microcefalia realizem avaliação e acompanhamento do desenvolvimento infantil, inclusive diagnóstico e monitoramento audiológico, até os 3 anos de vida10,11.

De fato, a síndrome congênita pelo ZIKV é um indicador de risco para deficiência auditiva10-12. O protocolo a ser adotado para essa população, inicialmente, é o potencial evocado auditivo de tronco Encefálico (PEATE). No PEATE, há a possibilidade da utilização dos novos estímulos, como a geração do chirp: Ichirp, CE-chirp, LS chirp e narrow band CE-chirp (NB CE-chirp). Esses estímulos permitem melhor visualização na morfologia do PEATE, quando comparados ao estímulo clique. Além do PEATE, também são utilizados os novos estímulos no potencial evocado auditivo de estado estável11,13-16.

Sendo assim, o objetivo desta pesquisa foi descrever os resultados das avaliações comportamental e eletrofisiológica da audição em crianças com microcefalia pela síndrome congênita do Zika vírus.

MÉTODO

Trata-se de pesquisa de corte transversal, analítico e observacional, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Federal de Sergipe (CAAE 60891716600005546). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi entregue aos pais ou responsáveis, sendo informados todos os procedimentos da pesquisa e a possibilidade de, a qualquer momento, desistirem de participar.

O estudo foi realizado em dois locais: a) Ambulatório de Audiologia do curso de graduação em Fonoaudiologia da Universidade Federal de Sergipe, campus universitário Professor Antônio Garcia Filho, na cidade de Lagarto, estado de Sergipe. O ambulatório tem atendimento específico para crianças com microcefalia, que são avaliadas e acompanhadas nas áreas de audição e estimulação precoce, linguagem e motricidade orofacial; b) Após a avaliação audiológica na clínica-escola, as crianças que realizaram o PEATE foram submetidas ao exame de PEAEE NB CE-chirp, numa Unidade Básica de Saúde (UBS) próxima à moradia de várias delas, localizada na cidade de Itabaiana, estado de Sergipe.

As crianças com microcefalia foram encaminhadas pelo Ambulatório de Estimulação Precoce da universidade, para realização da avaliação audiológica. Do grupo inicial de 15 crianças, quatro foram excluídas por não concluírem os exames, devido às faltas e internações recorrentes. A coleta das 11 crianças foi iniciada em fevereiro de 2017, estendendo-se até julho de 2018.

Quanto aos critérios de elegibilidade, foram adotados como inclusão: crianças com microcefalia, com sorologia confirmada para síndrome congênita do ZIKV. Essa sorologia foi realizada por um grande instituto de ciências biomédicas do país, sendo possível graças a uma parceria que entre o Estado e o instituto, que confirmou a transmissão de todas as crianças da amostra, com idades entre 0 (zero) e 3 anos, que realizaram a avaliação audiológica. Os critérios de exclusão adotados foram: crianças resfriadas, gripadas e/ou com obstrução no meato acústico externo.

Procedimentos

Foram realizados os seguintes procedimentos, incluindo-se exames comportamentais e objetivos da audição e orientações para a reavaliação da audição/retestes: avaliação otorrinolaringológica (composta por exame clínico e otoscopia), meatoscopia, imitanciometria, segundo a classificação de Jerger17 e audiometria.

Os procedimentos de avaliação audiológica realizados variaram de acordo com a idade, a condição de desenvolvimento cognitivo, visual e neuromotor da criança avaliada:

Meatoscopia: inspeção visual do meato acústico externo da criança, de modo a se verificar impedimentos para realização do exame audiológico.

Imitanciometria: utilizada para avaliar a integridade da orelha média e da membrana timpânica, as curvas foram classificadas em tipo A (mobilidade normal do sistema tímpano-ossicular); tipo Ad (hipermobilidade do sistema tímpano-ossicular); tipo Ar (baixa mobilidade do sistema tímpano-ossicular); tipo B (ausência de mobilidade do sistema tímpano-ossicular) e tipo C (pressão de ar da orelha média desviada para pressão negativa). Em relação aos reflexos estapedianos, foram considerados presentes em níveis normais quando ocorreram entre 70 e 100 dB acima do limiar da via aérea e considerados ausentes quando não ocorreram até a saída máxima do aparelho17,18.

Audiometria: utilizada para avaliar o sistema auditivo periférico e o limiar auditivo do sujeito, utilizando a classificação de Northern e Downs19.

Audiometria de observação de comportamento auditivo (BOA - behavioral observation audiometry) 0-6 meses: utilizada para crianças até 6 meses, visando avaliar o desenvolvimento auditivo. Foram utilizados os seguintes instrumentos: chocalho, reco-reco, guizo, prato, agogô, além de tons puros calibrados e a pesquisa do reflexo cocleopalpebral (RCP), com o agogô.

Audiometria de reforço visual (VRA - visual reinforcement audiometry): trata-se de audiometria condicionada com o reforço visual, em campo livre e fone de inserção, utilizada para crianças de 6 meses até 3 anos. A criança permanece na cabine acústica, sentada no colo do responsável e, no momento em que se mostra atenta ao examinador, é apresentado a ela um estímulo sonoro por meio de uma caixa acústica, sendo a resposta da criança acompanhada da apresentação do estímulo visual.

Potencial evocado auditivo de tronco encefálico por via aérea: clique por via aérea em 60, 40 e 20 dBNAn. Para realizar este exame, a criança estava em sono natural, deitada na maca ou no colo da mãe. Iniciava-se, então, a higienização da pele, na fronte e nas mastoides, com pasta abrasiva (Nuprep®), de modo a se remover a oleosidade e facilitar a fixação dos eletrodos de superfície. Os eletrodos foram dispostos nas mastoides direita (A) e esquerda (B); os eletrodos ativos em Fz e o terra em FPz - colocados na fronte. Foi, então, apresentado o estímulo clique, por meio de um fone de inserção modelo Ear Tone 3A. Neste estudo, os eletrodos utilizados eram da marca Meditrace 200®. Para o registro das latências e amplitudes das ondas I, III e V, os parâmetros utilizados foram: taxa de apresentação de 27,7/seg; número de estímulos 2000, janela de 20 ms; filtro 100-3000 Hz, com polaridade alternada15.

Potencial evocado auditivo por estado estável: as frequências avaliadas foram 500, 1000, 2000 e 4000 Hz, bilateralmente, tornando mais rápido o registro. O registro de 20 dBNAn foi detectado automaticamente pelo equipamento, com taxas de modulação próximas a 90 Hz, com fator de correção pelo fabricante. O estímulo utilizado foi o narrow band (NB) CE-chirp nas quatro frequências, bilateralmente, em diferentes taxas de repetições, próximas a 90 Hz, com resposta periódica, no domínio da frequência, por via aérea. A impedância para a realização do registro foi abaixo de 3 k Ω . A duração do exame foi, em média, de sete minutos, sendo o tempo registrado automaticamente pelo software do equipamento.

Emissões otoacústicas: foram utilizadas as emissões otoacústicas evocadas por estímulo transiente e considerada a média da relação da resposta e ruído (S/R) maior ou igual a 3 dB, nas frequências de 1.0 e 1,5 kHz e relação S/R maior ou igual a 6 dB, nas frequências de 2.0, 3.0 e 4.0 kHz20.

Instrumentos

Inicialmente, foi realizada uma entrevista elaborada pela pesquisadora, para coleta dos dados, de modo a caracterizar os sujeitos do estudo, no que se refere aos seguintes aspectos: pré-natal, nascimento, dados de gênero, histórico de saúde, queixas neuropsicomotoras, auditivas, de linguagem, acompanhamentos em saúde e histórico familiar de perdas auditivas.

Para a avaliação da audição, foram utilizados os seguintes equipamentos: otoscópio Pochet Júnior 22840, da marca Welch Allyn; audiômetro modelo AD-629B, da marca Interacoustics, com fones TDH e campo livre; equipamento Intelligent Hearing System – IHS, para registro do PEATE; equipamento EP 25, para o registro do PEAEE, com estímulo NB CE-chirp; imitânciometro AT 235, da marca Interacoustics e o equipamento portátil de emissões otoacústicas Otoport, da marca Otodynamics.

ANÁLISE DOS DADOS

Após a coleta dos dados, os resultados obtidos foram tabulados em planilha Excel 2010 (programa Microsoft Office®) e, a seguir, foi realizada análise estatística descritiva, quanto às variáveis: idade da criança e da mãe, gênero, período de instalação da perda auditiva, etiologia da microcefalia e condições socioeconômicas. Além do software Excell 2010, foi utilizado, também, o SPSS V20 e o Minitap 16.

Posteriormente, os achados foram interpretados para categorizar a audição como normal, condutiva ou neurossensorial e, também, quanto ao grau, se leve, moderado, severo ou profundo.

Os exames realizados - audiometria em campo, PEATE, PEAEE NB CE- chirp, emissões otoacústicas e imitanciometria - foram tabulados no programa Excel 2010 e, posteriormente, realizados os testes estatísticos, para verificar se a amostra apresentava ou não distribuição normal.

Os testes estatísticos utilizados foram: t-Student, exato de Fisher, Igualdade de Duas Proporções, Intervalo de Confiança para Média e p-valor. O nível de significância adotado foi de 5%.

RESULTADOS

Das 11 crianças avaliadas nesta amostra, foi verificado o percentual de 27,3% (n=3) do gênero feminino e 72,7% (n=8) do gênero masculino, com p-valor de 0,033. Durante a avaliação audiológica, observou-se a média de idade de 27 anos e 4 meses (±4,1) meses, sendo a mínima de 18 meses e a máxima de 32 meses. No que se refere ao perímetro cefálico (PC) ao nascimento, a média foi de 30 cm, a máxima de 31 cm e a mínima de 28 cm.

Em relação à percepção das mães sobre a acuidade auditiva das crianças, 100% referiram que elas escutavam bem (n=11).

Quanto à avaliação do comportamento auditivo, todas as crianças realizaram a avaliação audiológica em 500 Hz, 1 kHz, 2 kHz e 4 kHz em campo, com repostas presentes em todas as frequências até 20 dB. Do total da amostra, 2 conseguiram realizar a audiometria com reforço visual com fone de inserção bilateralmente, obtendo respostas em todas as frequências, bilateralmente, em 15 dB.

Quanto aos resultados das emissões otoacústicas por estímulo transiente (EOAT),visualizou-se maior número de ausências de respostas nas frequências mais baixas, especificamente na banda de frequência de 1 kHz bilateralmente, sem diferença estatística. (Tabela 1).

Tabela 1
Comparação da distribuição das emissões otoacústicas por estímulo transiente


Quanto aos reflexos estapedianos, uma (1) criança apresentou irritabilidade exacerbada em todas as tentativas de execução, não sendo possível levar o procedimento adiante. A distribuição dos reflexos estapedianos está apresentada na Tabela 2.

Tabela 2
Distribuição do reflexo estapediano na orelha direita e orelha esquerda


Na timpanometria, 10 crianças apresentaram curva tipo A, bilateralmente e uma (1) criança apresentou curva do tipo Ar, bilateralmente, sendo esta reavaliada em três momentos diferentes. A curva, porém, permaneceu a mesma, embora todos os demais exames se mostrassem dentro da normalidade. A distribuição das curvas timpanométricas está demonstrada na Tabela 3.

Tabela 3
Distribuição da curva timpanométrica na orelha direita e orelha esquerda


Quanto ao PEATE, foi observado que 72,7% das crianças (n=8) conseguiram concluir o exame em sono natural e 27,8% (n=3) não conseguiram concluí-lo. Essas 8 crianças apresentaram o PEATE em 20 dBNAn, bilateralmente.

Após a realização do PEATE, as crianças foram convidadas para a realização do PEAEE NB CE-chirp. Da amostra geral do PEATE, composta por 8 crianças, 6 retornaram para realização do PEAEE NB CE-chirp.

Quanto ao PEAEE NB-chirp, 6 das crianças realizaram o exame em sono natural, apresentando respostas em 500 Hz, 1 kHz, 2 kHz e 4 kHz em 20 dBNAn, bilateralmente, com fator de correção segundo o fabricante, conforme demonstra a Tabela 4.

Tabela 4
Distribuição das respostas do potencial evocado auditivo por estado estável com estímulo narrow band CE-chirp


Na Tabela 5, pode-se visualizar a descritiva completa de toda a bateria de exames executados e os seus respectivos resultados.

Tabela 5
Descritiva completa de toda a bateria de exames executados e os resultados (N=11)


DISCUSSÃO

A microcefalia já é um indicador de risco para deficiência auditiva e esta amostra evidenciou outro indicador: a infecção congênita denominada Síndrome Congênita do Zika Vírus. Da forma como ocorreu no Brasil, essa infecção evoca a necessidade de estudos que investiguem vários aspectos do desenvolvimento das crianças, como avaliação e monitoramento audiológico dessa população afetada10. Poucos estudos com amostra significativa podem ser encontrados na literatura8,12,21, descrevendo os efeitos da infecção congênita na audição. Em longo prazo, novos resultados de pesquisas poderão contribuir para o entendimento desses agravos.

No Brasil, em 2015, foi realizada uma pesquisa12 de grande evidência científica, que descreveu o diagnóstico audiológico infantil decorrente da epidemia da síndrome do Zika vírus. A amostra era composta por 70 crianças, na faixa etária de 0 (zero) a 10 meses. Inicialmente, foi realizado o PEATE, utilizando o estímulo clique, sendo considerada resposta dentro da normalidade quando ocorria a reprodutibilidade da onda V em 35 dBNAn. Em casos alterados no PEATE inicial, era realizado o exame de potencial evocado auditivo de tronco encefálico por frequência específica (PEATE-FE), nas frequências de 500 Hz e 2000 Hz. Os achados de deficiência auditiva neurossensorial encontrados nessa amostra foram de 5,8% (n=4).

Em relação à observação do comportamento auditivo em campo, as 11 crianças avaliadas responderam nas frequências apresentadas, 500 Hz, 1 kHz, 2 kHz e 4 kHz, bilateralmente. Entretanto, apenas duas realizaram a audiometria com reforço visual e possibilitaram o uso do fone de inserção. Três crianças apresentavam deficit visual, sendo um fator limitante para realização da audiometria de reforço visual.

Um estudo analisou uma base de dados da PubMed com 599 publicações, sendo selecionadas 36 com os seguintes principais achados: hipoplasia do nervo óptico, atrofia macular, cataratas e alterações visuais e auditivas22. Essa população apresenta maior atraso neuropsicomotor, o que dificulta a realização desse exame, que tem maior grau de dificuldade. De fato, como esperado, essas crianças apresentam maiores comprometimentos motores e visuais. Devido a este fator, são necessárias algumas adaptações na avaliação audiológica comportamental, como, por exemplo, apresentação dos estímulos com maior duração1,6,19,22,23.

Importante ressaltar que, mesmo com todas as tecnologias disponíveis na área da Audiologia, a avaliação audiológica comportamental da população infantil é imprescindível, sendo considerada padrão ouro. Para realizá-la, o fonoaudiólogo deve ter experiência, tanto na avaliação de crianças normais, como também das que apresentam alterações neurológicas, sempre usando o protocolo recomendado para essa população infantil. A amostra avaliada neste estudo apresentou respostas dentro do esperado para idade19.

Nos resultados das emissões otoacústicas por estímulo transiente (EOAT), foi verificado maior número de ausências de respostas nas frequências mais baixas, especificamente na banda de frequência de 1 kHz, bilateralmente. Estes achados estão de acordo com alguns estudos, que também observaram alterações de respostas na frequência de 1kHz. Um deles realizou uma pesquisa com amostra composta por 284 neonatos que foram submetidos à EOATs, sendo observado maior percentual de falha (90,1%) na frequência de 1 kHz. Segundo os autores, tais falhas podem ser decorrentes de ruídos ambientes e fisiológicos. A população avaliada neste estudo apresentava seus próprios ruidos decorrentes da deglutição e respiração, o que justificaria essas ausências de respostas em 1 kHz24,25.

Em outro estudo realizado com amostra de 43 crianças com SCZV, foi observada ausência de respostas nas EOAT em 13 delas21. Com as EOAT, foi possível analisar a função coclear de maneira rápida, objetiva e não invasiva, sendo esse procedimento muito importante na prática clínica para realização do crosscheck20,26.

No presente estudo, quanto à timpanometria, dez crianças apresentaram curva tipo A, com mobilidade dentro da normalidade do sistema tímpano-ossicular. Uma criança apresentou curva do tipo Ar apenas na orelha direita, com característica de baixa mobilidade do sistema tímpano-ossicular17; os outros exames audiológicos estavam dentro da normalidade. Na literatura que trata dessa população, não há registro de achado de alteração no exame de timpanometria com essa característica, sendo relatada, apenas, a presença de artrogripose – um conjunto de alterações nas articulações que pode justificar essa alteração22,27.

A avaliação audiológica dessa população é de suma importância, sendo preconizada por diversas entidades de classe e pesquisadores, por apresentar indicadores de risco para deficiência auditiva e a microcefalia decorrente do ZIKV1,9-11.

Na literatura, observa-se12 a relação entre o ZIKV e os casos de microcefalia, que se caracterizam por malformações cranioencefálicas e que podem acarretar alterações auditivas, principalmente no sistema nervoso central. Nas oito crianças avaliadas com o PEATE, foram visualizados integridade da via auditiva periférica e nível mínimo de respostas em 20 dBNAn, bilateralmente. Outro estudo descreveu a integridade da via auditiva28.

Quanto ao PEAEE NB CE-chirp, as seis crianças avaliadas apresentaram respostas em 500 Hz, 1 kHz, 2 kHz e 4 kHz, bilateralmente em 20 dBNAn, o que está de acordo com alguns estudos sobre população infantil, concordando com a avaliação comportamental auditiva. A realização do PEAEE para crianças, principalmente na população neurológica, é de extrema relevância, pois disponibiliza informações fidedignas quanto ao nível mínimo de respostas, sendo importante em casos de perdas auditivas de diferentes configurações, em frequências específicas, condutivas e neurossensoriais, que necessitarão de adaptação de aparelhos de amplificação sonora13-15.

Quanto à utilização dos novos estímulos no potencial evocado auditivo de estado estável CE-chirp, importante destacar que o presente estudo foi o primeiro a investigá-los nessa população, demostrando sua efetividade, visto que reduzem o tempo na execução dos exames. A detecção das respostas no PEAEE é automática e, se os parâmetros de ruído máximo forem respeitados, o tempo de realização pode ser de apenas sete minutos. Por ser uma população com maior comprometimento visual e neurológico, deixando em dúvida as respostas comportamentais, é fundamental a utilização de medidas eletrofisiológicas objetivas.

Diante do surto enfrentado em 2015, a OMS9, além de recomendar, como mencionado, que todos os neonatos com ZIKV realizassem avaliação e acompanhamento do desenvolvimento na infância, também adotou diretrizes para essa população, como a realização da triagem auditiva neonatal por meio do potencial evocado auditivo, avaliação otorrinolaringológica e audiológica com 7 meses e 12 meses, além do monitoramento de filhos de mulheres com ZIKV até o terceiro ano de vida. Em 2017, a organização decretou o fim da emergência em Saúde Pública decorrente do ZIKV e sua associação com a microcefalia e outras alterações neurológicas.

O Joint Committee on Infant Hearing10 também descreveu que a infecção congênita denominada como Síndrome Congênita do Zika Vírus é um indicador de risco para deficiência auditiva em recém-nascidos e crianças, destacando a importância do protocolo inicial da triagem auditiva ser com o PEATE, além do monitoramento audiológico dessa população.

No Brasil, o cenário foi atípico, pois não havia preparo suficiente para realização desses procedimentos. Ainda hoje, a triagem auditiva neonatal universal não foi implantada de forma universal no país, nem há serviços suficientes com equipamentos de exames eletrofisiológicos para essa avaliação, o que limita, sobremaneira, o atendimento dessa população.

Atualmente, as crianças com síndrome congênita pelo ZIKV são encaminhadas para avaliação e acompanhamento nos serviços criados, sendo 51 equipes de Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e 67 Centros Especializados de Reabilitação (CER) para atender a essa demanda (Ministério da Saúde, 2017)2,29. Desde 2015, 127 serviços de saúde foram credenciados, representando uma ampliação do atendimento e acompanhamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Desses, 63% estão concentrados na região Nordeste, que é a área mais atingida pelo ZIKV2,29.

Pelo fato de a síndrome congênita do Zika virus ser um indicador de risco para deficiência auditiva, é importante a identificação precoce desse quadro, de modo a possibilitar a intervenção imediata, oferecendo condições para o desenvolvimento da fala, da linguagem, da sociabilidade, do psiquismo e do processo educacional da criança, permitindo prognósticos mais favoráveis nesses campos.

Todas as crianças com síndrome congênita pelo ZIKV deverão realizar o monitoramento audiológico até o terceiro ano de vida, devido aos indicadores de risco para deficiência auditiva, como preconizado por diversas entidades de classe.

Como visto, a microcefalia pela síndrome congênita do ZIKV pode afetar a audição, a cognição e a atividade neuropsicomotora, sendo necessárias pesquisas para avaliação e sistematização de dados relacionados a alterações no sistema nervoso da criança e, consequentemente, no sistema auditivo. Mais estudos nessa área são necessários, de modo a contribuir para novos protocolos de avaliação e intervenção precoce.

CONCLUSÃO

Neste estudo, as crianças avaliadas não apresentaram perda auditiva neurossensorial, mantendo audição dentro do padrão de normalidade.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
Trabalho realizado no Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de Sergipe – UFS – Lagarto (SE), Brasil.
Financiamento: Nada a declarar.
Declaração de interesses
Conflito de interesses: Não.
Autor notes
Contribuição dos autores: BCSR idealização do estudo, planejamento, coleta, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final para publicação; DRL orientadora, interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final para publicação.

Autor correspondente:Bárbara Cristina da Silva Rosa. E-mail: barbaracsrosa@yahoo.com.br

Tabela 1
Comparação da distribuição das emissões otoacústicas por estímulo transiente


Tabela 2
Distribuição do reflexo estapediano na orelha direita e orelha esquerda


Tabela 3
Distribuição da curva timpanométrica na orelha direita e orelha esquerda


Tabela 4
Distribuição das respostas do potencial evocado auditivo por estado estável com estímulo narrow band CE-chirp


Tabela 5
Descritiva completa de toda a bateria de exames executados e os resultados (N=11)


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