Carta ao Editor
Por que devemos falar sobre transtorno do desenvolvimento da linguagem
Why we need to talk about developmental language disorder
Recepção: 13 Maio 2020
Aprovação: 17 Agosto 2020
O transtorno do desenvolvimento da linguagem (TDL) não é uma condição recente. Ao contrário, as primeiras descrições de crianças com dificuldades para adquirir linguagem na ausência de outras doenças datam de 1822(1). Entretanto, mesmo após dois séculos de muita evidência científica sobre o tema, até 2016 não havia consenso sobre critérios diagnósticos e terminologia para se referir a esses casos.
Diversos termos já foram utilizados: afasia congênita, atraso de linguagem, distúrbio de linguagem, prejuízo de linguagem, dentre outros(1). Em 1981, Leonard cunhou o termo specific language impairment (SLI)(2), que passou a ser o mais utilizado por pesquisadores da área. Sistemas classificatórios, como CID-10(3) e DSM-IV(4), porém, não aderiram a essa terminologia.
Essa pluralidade de termos também ocorreu - e ainda ocorre - no Brasil, mas dois grupos de pesquisadores contribuíram para o uso predominante do termo proposto por Leonard e traduzido para o português como distúrbio específico de linguagem (DEL): o dos foniatras e professores mestre Alfredo Tabith Junior e doutor Mauro Spinelli (PUC-SP) e o da fonoaudióloga e professora doutora Debora Maria Befi-Lopes (USP-SP). Apesar do pioneirismo dos foniatras(5-8), a produção científica e intelectual nessa área é mais expressiva no grupo liderado por Befi-Lopes(9-17).
O diagnóstico de DEL baseava-se em critérios de inclusão e exclusão. Para ser incluída nessa classificação, a criança deveria apresentar desempenho inferior a 1,25 desvio padrão abaixo da média (10º percentil) em, ao menos, duas medidas de linguagem(18). Os critérios de exclusão envolviam quaisquer alterações que justificassem o baixo desempenho, como deficiência intelectual (DI) ou auditiva, alterações neurológicas, síndromes ou transtornos psiquiátricos(19). O desempenho em testes de quociente intelectual (QI) não verbal, por exemplo, deveria ser superior a 85, garantindo que crianças com desempenho limítrofe (70-85) não receberiam tal diagnóstico. Esse conjunto de sintomas denotava sua natureza específica, reforçando a discrepância entre a dificuldade para desenvolver linguagem e a facilidade com outras habilidades (e.g. motoras, intelectuais, visuais, etc).
Embora conceitualmente satisfatória, mais de 20 anos de pesquisas na área evidenciaram alguns problemas com essa classificação. Por exemplo, crianças com desempenho linguístico compatível com o critério de inclusão, mas com desempenho cognitivo limítrofe, ficavam, simplesmente, sem diagnóstico, pois não podiam ser classificadas como DEL, nem como DI(20). Além disso, muitos estudos mostraram que, mesmo crianças que preenchiam completamente os critérios para DEL, apresentavam, em média, um pior funcionamento executivo do que aquelas em desenvolvimento típico(21). Essas crianças também tinham mais sintomas compatíveis com outros quadros (e.g. transtorno do deficit de atenção e hiperatividade – TDAH, transtorno do desenvolvimento da coordenação – TDC), sugerindo comorbidade entre eles. Esses fatores puseram em xeque o caráter específico do DEL e levantaram uma discussão sobre a utilidade de se adotar critérios diagnósticos tão rígidos(22,23).
Em 2014, o International Journal of Language & Communication Disorders desencadeou uma ampla discussão, ao publicar uma edição especial sobre o tema(22). A partir desse debate, um grupo de pesquisadores ingleses desenvolveu o primeiro estudo multidisciplinar e internacional para chegar a um consenso na área. O estudo contou com profissionais experientes em desenvolvimento infantil, de dez áreas distintas (e.g. Fonoaudiologia, Pediatria, Psicologia e Educação) e seis nacionalidades. Utilizando o método Delphi, os pesquisadores chegaram, finalmente, a um consenso sobre critérios diagnósticos e a terminologia a ser utilizada para definir esses quadros(24,25).
A proposta estabelece duas etapas para o diagnóstico. A primeira envolve identificar se as dificuldades de linguagem apresentadas pela criança são persistentes e significativas. Para tal, é necessário responder: 1) se as alterações de linguagem têm um impacto funcional em sua rotina diária; 2) se ela teve oportunidade suficiente para aprender a língua (principalmente no caso daquelas expostas a contextos bilíngues); e 3) se existem manifestações sugestivas de prognóstico desfavorável (e.g. dificuldades de compreensão ou de imitação, restrição do uso de gestos e expressões faciais). Respostas positivas a esses questionamentos aumentam a chance da criança, de fato, apresentar um transtorno de linguagem.
Considerando a existência de um transtorno, a segunda etapa consiste em identificar se existem ou não outros quadros associados. Quando existe uma condição biomédica associada às dificuldades de linguagem, o consenso sugere a terminologia language disorder associated to..' (transtorno de linguagem (TL) associado a...). Por exemplo, crianças com transtorno do espectro autista (TEA), com dificuldades persistentes para desenvolver linguagem, devem receber o diagnóstico de TL associado a TEA. Por outro lado, quando não há associação com uma condição biomédica conhecida, o termo recomendado é developmental language disorder (DLD)(24) ou transtorno do desenvolvimento da linguagem (TDL).
Diferentemente do critério para DEL, o diagnóstico de TDL permite a existência de comorbidade com quadros sem associação direta com o desenvolvimento de linguagem, como TDAH ou TDC. Sendo assim, o quadro de TDL, dentro da proposta, abrange todos os indivíduos até então diagnosticados com DEL, mas também inclui aqueles casos que não eram contemplados: crianças com desempenho cognitivo limítrofe em tarefas não verbais, que não caracterizem DI, e crianças com algumas comorbidades.
A proposta do consenso foi cuidadosa e democrática e sua repercussão teve grande abrangência. Levantamento da terminologia usada em artigos publicados nos últimos dez anos na Web of Science(23) mostrou mudanças significativas na prevalência do termo consensual DLD (TDL) sobre SLI (DEL). Além disso, a nova terminologia estimulou ações de conscientização que têm impactado positivamente tanto indivíduos com TDL e suas famílias, quanto a prática clínica(26).
Porém, a adoção dessas recomendações é questionada por alguns pesquisadores. Debates sobre o assunto foram promovidos pela American Speech-Language-Hearing Association (ASHA), durante o seu 29º simpósio anual de pesquisa, realizado em novembro de 2019, sob coordenação da Dra. Mabel Rice, e também no primeiro volume de 2020 do periódico Perspectives of the ASHA Special Interest Groups(27).
Os argumentos contrários ao consenso remetem, principalmente, à abrangência dos critérios diagnósticos em relação às habilidades cognitivas(28). O grupo liderado por Rice considera que o termo TDL seria muito abrangente e inespecífico, dificultando a identificação de crianças que falham especificamente em habilidades verbais (DEL). Para resolver essa questão, Leonard propõe que as pesquisas sobre TDL especifiquem se a população estudada se encaixaria numa definição mais restritiva, compatível com a definição de DEL, o que tornaria possível analisar o impacto dos critérios de escolha de classificação(29).
Nunca haverá concordância total sobre a terminologia, entre os especialistas. Entretanto, a alta prevalência do TDL (aproximadamente 7%)(18,20,30), combinada à persistência das dificuldades, faz com que a adoção de um consenso seja necessária e urgente. Qualquer terminologia tem pontos positivos e negativos. Critérios diagnósticos, assim como terminológicos, são dinâmicos e avançam com a produção do conhecimento. Não se deve questionar se um novo termo é infalível, mas se ele traz vantagens sobre o anterior. Em muitos países, a rigidez do diagnóstico para DEL restringia o acesso a serviços de assistência a uma ampla parcela que não se encaixava em nenhuma categoria e não recebia diagnóstico, nem acompanhamento.
Ademais, a falta de consenso sobre a terminologia dificultava a realização de campanhas unificadas de conscientização, voltadas a profissionais, pais, sociedade civil e gestores. Atualmente, a campanha RADLD (Raising Awareness of Developmental Language Disorder) tem um papel fundamental na ampliação desse movimento e, hoje, conta com embaixadores em diversos países, falantes de variadas línguas. Desde 2017, foi proposto um dia de conscientização e ações coordenadas em todo o mundo para dar visibilidade à condição. Acredita-se que essas crianças precisam de mobilização conjunta de esforços de diversos profissionais para avançar na realização do diagnóstico diferencial, na implantação de tratamentos eficazes e na conquista de direitos sociais associados a essa condição.
Autor correspondente: Noemi Takiuchi. E-mail: noemi.takiuchi@gmail.com