RESUMO
Objetivos: Revisar estudos que investigaram a interface existente entre processamento auditivo central e processos de leitura em crianças e adolescentes.
Estratégia de pesquisa: Foram selecionados estudos publicados no período de 2008 a 2019, por meio de levantamento bibliográfico nas bases de dados eletrônicas BVS - Lilacs (Biblioteca Virtual em Saúde) e PubMed (US National Library of Medicine).
Critérios de seleção: Estudos disponíveis na íntegra; publicados em português, inglês ou espanhol; realizados com crianças ou adolescentes e que abordaram as interfaces de processamento auditivo central e processos de leitura. Foram excluídos artigos de revisões de literatura e artigos com menor nível de evidência científica.
Resultados: Foram encontrados 1124 estudos nas bases de dados pesquisadas. Destes, 19 foram excluídos, pois estavam em mais de uma base. Analisaram-se os títulos e resumos de 1105 artigos, sendo que 92 foram escolhidos para a leitura na íntegra e, ao final, 46 artigos foram selecionados. Na revisão, observou-se que a maior parte dos estudos era de delineamento transversal, avaliava habilidades do processamento temporal e realizava comparação entre grupos de escolares com e sem dificuldades em relação à leitura.
Conclusão: Os estudos revelaram que existe associação entre leitura e habilidades auditivas, à medida que a dificuldade em tarefas de habilidades auditivas é comum em participantes com dificuldades em habilidades de leitura.
Palavras-chave: Percepção auditiva, Testes auditivos, Leitura, Criança, Desenvolvimento do adolescente.
ABSTRACT
Purpose: To review studies investigating the existing interface between central auditory processing and reading processes in children and adolescents.
Research strategy: Studies published from 2008 to 2019 were selected through a bibliographic survey in the following electronic databases: BVS - Lilacs (Virtual Health Library) and PubMed (US National Library of Medicine).
Selection criteria: Studies available in full; published in Portuguese, English or Spanish; performed with children or adolescents; and that addressed the central auditory processing interfaces and reading processes. Literature review articles and articles with a lower level of scientific evidence were excluded.
Results: A total of 1124 studies were found in the databases searched. Of these, 19 were excluded as they were on more than one base. The titles and abstracts of 1105 articles were analyzed, of which 92 were selected for full reading and, at the end, 46 articles were selected. In the review, it was observed that most studies were cross-sectional, evaluated temporal processing skills and compared groups of students with and without reading difficulties.
Conclusion: Studies have shown that there is an association between reading and listening skills, as difficulty in listening skills tasks is common in participants with reading skills difficulties.
Keywords: Auditory perception, Hearing tests, Reading, Child, Adolescent development.
Revisão de Literatura
Processamento auditivo central e processos de leitura em crianças e adolescentes: revisão integrativa
Central auditory processing and reading processes in children and adolescents: integrative review
Recepção: 12 Junho 2020
Aprovação: 13 Outubro 2020
O processamento auditivo central é um conjunto de habilidades que permite ao ouvinte interpretar a mensagem ouvida de forma eficiente e efetiva(1,2). Dentre as habilidades que o compõe, estão as de processamento temporal, essenciais para a compreensão da linguagem e desenvolvimento da fala(3).
Distúrbios no processamento auditivo central são, frequentemente, relacionados às dificuldades de aprendizagem e aos transtornos da linguagem(1,4-7). Como a leitura é um importante meio de aquisição de novos conhecimentos, o estudo da relação entre os processos de leitura e as habilidades auditivas é justificado, visto que ambos são essenciais para a aprendizagem(8,9). Além disso, a avaliação do processamento auditivo central em escolares com dificuldades de aprendizagem é importante por contribuir para um diagnóstico preciso e, consequentemente, para o melhor processo terapêutico(1).
Nesse contexto, ressalta-se que a leitura se refere a uma maneira de aquisição de informações, com o objetivo final de compreender o texto escrito(10). Para tanto, um aspecto fundamental é a compreensão leitora, considerada um processo de reconhecimento, integração e construção de ideias(11). Além disso, a compreensão leitora desempenha importante papel no processo de alfabetização e abrange diversos processos cognitivos que estão inter-relacionados, a saber: capacidade de processar, armazenar e recuperar informações; habilidade de memória, de atenção, de raciocínio, de lógica, de processamento auditivo central e visual. Dentre esses, encontram-se, conjuntamente, os processos básicos de leitura, como o reconhecimento, isto é, a decodificação de palavras e a extração do seu significado na forma impressa que, embora sejam requisitos necessários, não são suficientes para que a compreensão ocorra(12-14).
Entre as habilidades necessárias para a aquisição de leitura e escrita, está a consciência fonológica, caracterizada como a capacidade de segmentar palavras, sílabas e fonemas(10) e que está intimamente relacionada à rota fonológica de leitura(11). Vale ressaltar que a competência leitora se desenvolve em estágios - logográfico, alfabético e ortográfico - e com a utilização de diferentes estratégias - logográfica, fonológica e lexical(11).
Dificuldades na consciência fonológica são, frequentemente, associadas a distúrbios de processamento auditivo central(10). Os mecanismos fisiológicos da audição, por sua vez, desempenham importante função no processamento acústico rápido, na percepção da fala, no aprendizado e na compreensão da linguagem, sendo, desse modo, um pré-requisito na aquisição da leitura e da escrita(10).
Diante do exposto, verifica-se que, embora a literatura apresente pesquisas que incluem o processamento auditivo central e a leitura, não há o mapeamento dos principais desfechos estudados e, sendo assim, é oportuna a construção de uma síntese para o avanço da pesquisa na área.
Revisar estudos que investigaram a interface existente entre processamento auditivo central e processos de leitura em crianças e adolescentes.
Trata-se de revisão integrativa da literatura, baseada em recomendações nacionais(15,16), que buscou responder à seguinte pergunta: “Qual a relação entre o processamento auditivo central e os processos de leitura em crianças e adolescentes”?
A primeira fase desta pesquisa consistiu na elaboração da pergunta norteadora da investigação. Para obtenção de respostas sobre esse questionamento, foi realizada pesquisa bibliográfica nas plataformas de busca Medline, por meio da PubMed (US National Library of Medicine), e BVS - Lilacs (Biblioteca Virtual em Saúde - Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde). Os dados foram coletados no período compreendido entre junho e setembro de 2018 e janeiro e dezembro de 2019.
Foram utilizados os descritores (MeSH - Medical Subject Headings - e DeCS - Descritores em Ciências da Saúde), bem como as palavras-chave “aspectos temporais auditivos” e “compreensão de leitura”, para recuperação dos assuntos na literatura. Os descritores e as palavras-chaves foram combinados entre si com a utilização dos operadores booleanos AND e OR. Assim sendo, a equação de busca utilizada foi: (tw:((“Percepção Auditiva” OR “Testes Auditivos” OR “Transtornos da Percepção Auditiva” OR “Aspectos temporais auditivos” OR “Auditory Perception” OR “Hearing Tests” OR “Auditory perceptual Disorders” OR “Temporal aspects of auditory”))) AND (tw:((leitura OR compreensão OR “Compreensão de Leitura” OR “Escrita Manual” OR escrita OR redação OR “Reading competence” OR reading OR comprehension OR handwriting OR writing))) AND (instance:”regional”) AND (db:(“LILACS” OR “IBECS” OR “INDEXPSI” OR “BINACIS” OR “LIS” OR “BBO” OR “CUMED” OR “DECS”) AND la:(“en” OR “pt” OR “es”)).
Para inclusão dos artigos, foram adotados os seguintes critérios: estudos disponíveis na íntegra; publicados no período de 2008 a 2019; nos idiomas português, inglês ou espanhol; realizados com crianças ou adolescentes e que estudaram as interfaces de processamento auditivo central e processos de leitura. Foram adotados como critérios de exclusão artigos de revisões de literatura e artigos com menor nível de evidência científica, conforme proposto pela literatura(17), ou seja, artigos de opinião de especialistas, relatos de casos ou séries de casos.
A princípio, os estudos foram selecionados com base na leitura dos títulos e resumos. Posteriormente, os artigos foram lidos na íntegra e as informações foram analisadas segundo o checklist do Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology – STROBE(18). O objetivo da iniciativa STROBE é auxiliar no relato de estudos observacionais, por meio do seu checklist(18).
O protocolo de análise dos estudos foi constituído dos seguintes itens: objetivo da pesquisa, delineamento, métodos, variáveis analisadas e resultados. Para tanto, duas autoras realizaram a leitura e análise dos estudos e, nos casos em que houve divergências em relação à inclusão ou não do estudo, os resultados das análises foram discutidos com uma terceira autora.
Foram encontrados 383 artigos na base de dados BVS – Lilacs e 741 artigos na PubMed, totalizando 1124 artigos. Destes estudos, 19 foram excluídos porque estavam presentes em mais de uma base. Por meio da análise do título e resumo, 1013 artigos foram excluídos por não responderem à pergunta norteadora do estudo. Assim, 92 estudos foram escolhidos para leitura na íntegra. Destes, 46 foram excluídos por não responderem à pergunta norteadora do estudo. Ao final, 46 artigos foram selecionados para a revisão (Figura 1). Embora a pergunta norteadora desta revisão tenha sido referente ao processamento auditivo central, os artigos apontaram, em sua maioria, para os aspectos temporais do processamento auditivo central. Além disso, a presente pesquisa revelou que a maior parte dos autores dos estudos selecionados optou por delineamentos mais simples (estudos transversais).
Dos 46 estudos selecionados para esta revisão, 58,6% eram estudos internacionais, 17 correspondem a estudos observacionais transversais, 4 experimentais, 7 longitudinais, 2 exploratórios, 14 casos controle e 2 coorte. Outro dado relevante é que apenas 6 estudos(19-24) não realizaram comparações entre grupos (Quadro 1). Ou seja, tais estudos foram realizados com crianças regularmente matriculadas em instituições de ensino(19-21,23,24), ou com crianças com suspeita de distúrbio do processamento auditivo central(22). Os demais estudos realizaram comparação entre 2(26-32,34,36-43,45,49,51,54-58,61), 3(25,33,44,46-48,50,52,53,59,60) ou 5(62) grupos de estudo. Observou-se, também, que em 4 estudos(26,35,62,63) foi realizado treinamento auditivo em grupos com alterações: participantes com dificuldade de leitura(26) e com distúrbio de aprendizagem(35,63). Em um único estudo(62), a comparação foi feita entre 5 grupos de estudo, realizando, além do treinamento auditivo, treinamento das habilidades de memória e atenção.
Os resultados da presente revisão indicaram que somente 11 estudos(23,32,42,43,45,46,51,54,60,62,63) não utilizaram testes que avaliam os aspectos temporais do processamento auditivo central. Entre os testes mais utilizados para avaliar os aspectos temporais estão o Gaps in Noise (GIN), o Teste de Padrão de Frequência (TPF) e o Teste de Padrão de Duração (TPD).
Quanto ao delineamento dos estudos, foi observado que a maioria apresentou delineamento transversal(10,19,20,22,24,25,27-34,37,38,49), seguido por estudos com delineamento caso controle(39,43-45,50,51,53-56,58-61).
Dentre os estudos selecionados para a presente revisão integrativa, grande parte possuía como cenário a clínica ou ambulatório da própria instituição de ensino. Diversos estudos(19-21,23,24,31,36,39,40,45,49-55,57,60) tiveram, pelo menos, parte da coleta de dados realizada na escola em que os participantes estavam matriculados. Nove estudos(22,32,41-43,48,58,59,61) não citaram o local de realização da coleta de dados.
De acordo com a literatura(9,64), testes de processamento auditivo central têm sido frequentemente utilizados para verificar a associação entre dificuldades escolares e alterações no desenvolvimento de habilidades auditivas. Assim sendo, crianças com queixas de dificuldades escolares normalmente apresentam resultados piores na avaliação do processamento auditivo central(64). Na presente revisão de literatura, a maioria dos estudos(10,25-35,37-40,44,45,47,48,50,51,53-58,60,63) avaliou habilidades do processamento auditivo central em crianças e adolescentes com dificuldade de aprendizagem ou com dislexia. A maioria dos autores concluiu que há alteração de processamento auditivo central nos participantes com dislexia e com distúrbio de leitura e escrita. Contudo, não houve grandes diferenças entre o desempenho de ambos os grupos, sendo sempre pior do que o do grupo controle.
Vale considerar que o processamento auditivo central abrange diversas habilidades e, dentre elas, as habilidades do processamento temporal(3). Os aspectos temporais da audição são essenciais para a fala e a compreensão da linguagem e sua inadequação pode refletir em dificuldades ortográficas e na codificação/decodificação, tanto de palavras como de frases(3).
A maioria dos estudos(23,32,42,43,45,46,51,54,60,62,63) utilizou testes que avaliam os aspectos temporais do processamento auditivo central. Deste modo, fica explícita a importância da inclusão de testes que avaliem o processamento temporal, ou seja, a ordenação e a resolução temporal, em protocolos de pesquisa e diagnóstico de crianças e adolescentes com queixas ou evidências de alterações de leitura e escrita.
Contudo, alguns estudos(10,28) evidenciaram que participantes com dificuldade na leitura e escrita(10) e dislexia(28) também apresentaram pior desempenho na habilidade auditiva de figura-fundo. Outro estudo(22) indicou que a habilidade de fechamento auditivo está comumente alterada em crianças com suspeita de distúrbio do processamento auditivo central e que esse distúrbio, frequentemente, coexiste com outros, relacionados a fatores cognitivos.
Os delineamentos transversal e caso-controle foram os mais utilizados nos estudos da presente revisão. Vale ressaltar, no entanto, que, embora os estudos com ambos os tipos de delineamento sejam importantes, eles apresentam diferenças significativas. Os estudos transversais objetivam abordar a associação entre os fatores de risco e a doença (desfecho), envolvendo amostra aleatória de uma população de interesse. São mais frágeis, já que as variáveis são avaliadas simultaneamente, revelando um “retrato” da situação no momento, e não permitem inferir sobre a causalidade dos aspectos estudados. Os estudos caso-controle, por sua vez, pretendem comparar um grupo de casos (doentes) com um grupo controle (sem a doença), em relação à presença ou ausência de um fator de exposição no passado. A limitação desse tipo de estudo é que a necessidade do levantamento da história pregressa dos participantes pode apresentar vieses de seleção e de informação(65,66).
Quatro estudos experimentais(26,35,62,63) realizaram treinamento auditivo no grupo de estudo e foi verificada significativa melhora no resultado das reavaliações.
Em um dos estudos(26), os autores utilizaram o software “Treinamento temporal auditivo com estímulos não verbais e verbais com fala expandida®”, que contém jogos verbais e não verbais, baseados no programa de treinamento auditivo Fast Forword Language. O objetivo da pesquisa foi verificar o desempenho de leitura e dos aspectos temporais da audição em crianças com dificuldades de leitura, após o treino auditivo. Para tal, foram realizados, além da avaliação audiológica básica, os testes de processamento auditivo central (Padrão de Frequência - Auditec, Padrão de Duração - Auditec e Gaps in Noise - GIN), a Avaliação de Habilidades de Leitura (Protocolo de Leitura e Escrita) e o Teste de Consciência Fonológica (CONFIAS)(26). No estudo, foram utilizados dois jogos para o treinamento: “Jogo do Caco” (não verbal) e “Jogo do Papagaio” (verbal)(26). Os autores desse artigo(26) concluíram que o treinamento auditivo foi efetivo para melhorar o desempenho nas habilidades auditivas temporais e de leitura em crianças com dificuldade de leitura.
Outros dois estudos experimentais(35,63) indicaram que, após o treinamento auditivo, o desempenho em habilidades auditivas melhorou, tanto no grupo com distúrbio de aprendizagem, quanto no grupo de escolares sem dificuldade de aprendizagem.
Estudo experimental(62) realizou treinamento que incluiu tarefas de atenção, memória e sensoriais auditivas. Os autores verificaram que em todos os grupos (grupo de atenção, grupo de memória, grupo sensorial, grupo placebo e grupo controle) os participantes demonstraram aprendizado nas tarefas treinadas. Contudo, o aprendizado não foi transferido para medidas de linguagem (leitura e consciência fonológica), já que tanto o grupo placebo, como o grupo controle melhoraram da mesma forma que os demais grupos treinados.
Com base nos artigos analisados na presente revisão, sobre a interface entre processamento auditivo central e processos de leitura em crianças e adolescentes, é possível concluir que há associação entre leitura e habilidades auditivas, já que a maioria dos participantes com dificuldades em habilidades de leitura também apresentam desempenho prejudicado em tarefas de habilidades auditivas. Os estudos revelaram que as habilidades auditivas que mais se encontravam alteradas eram a ordenação e a resolução temporal. Contudo, alguns estudos também revelaram alteração nas habilidades auditivas de figura-fundo para sons verbais e fechamento auditivo. Além disso, verificou-se que o treinamento auditivo é efetivo para a melhora no desempenho das habilidades auditivas e também pode ser efetivo para melhora no desempenho em tarefas de leitura.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais), pelo financiamento para a execução da pesquisa.
Autor correspondente: Cintia Alves de Souza. E-mail: cintiasouzafono@gmail.com