RESUMO
Objetivo: traduzir e adaptar culturalmente o questionário Expected Consequences of Hearing aid Ownership para aplicação na população brasileira.
Métodos: o Expected Consequences of Hearing aid Ownership é constituído por 15 questões e investiga a expectativa de adultos com perda auditiva quanto ao uso de aparelho de amplificação sonora individual. A tradução foi realizada por três professores tradutores-intérpretes de inglês, que não tiveram contato prévio com o instrumento. Um grupo revisor constituído por um profissional da Fonoaudiologia, um da Psicologia e do Serviço Social, reuniu a melhor tradução encontrada para cada questão em um único questionário em português. Para melhorar a qualidade da tradução, outros três tradutores realizaram nova versão para o inglês e o grupo revisor analisou, comparando-as com o original. Para pré-testagem, o questionário foi aplicado por dois avaliadores em 30 pacientes com diagnóstico de deficiência auditiva.
Resultados: foi realizada a tradução para o português: “Questionário de Expectativa com Uso de Auxiliares Auditivos”. Durante o processo de tradução, houve pequenas diferenças entre as versões, sendo, em sua maioria, referentes à tradução literal. Para a adaptação, as três traduções foram analisadas e, por consenso, foram escolhidas as melhores expressões e palavras em todas as questões, adaptando o texto ao conhecimento e compreensão da população brasileira.
Conclusão: o questionário Expected Consequences of Hearing aid Ownership encontra-se traduzido e adaptado para a cultura brasileira e pode ser utilizado como importante ferramenta para fonoaudiólogos no conhecimento das expectativas do paciente e melhor delineamento do processo de reabilitação.
Palavras-chave: Perda auditiva, Inquéritos e questionários, Audição, Preferência do paciente, Auxiliares de audição.
Abstract
Purpose: To translate and culturally adapt the Expected Consequences of Hearing aid Ownership (ECHO) for application in the Brazilian population.
Methods: The Expected Consequences of the Hearing aid Ownership questionnaire consists of 15 questions and investigates the expectation of adults with hearing loss regarding the use of an Individual hearing aid. The translation was carried out by three English translating teachers who had no previous contact with the instrument. A review group made up of a professional in speech therapy and another in psychology and social work gathered the best translation found for each question in a single questionnaire in Portuguese. To improve the quality of the translation, three other translators made a new version in English, and the review group analyzed it by comparing them with the original. For pre-testing, the questionnaire was offered by two evaluators for 30 patients diagnosed with hearing loss.
Results: A translation into Portuguese was made: “Questionário de Expectativa com uso de Auxiliares Auditivos.” During the translation process, there was little difference between the versions, mostly referring to a literal translation. For adaptation, the three translations were analyzed and by consensus the best expressions and words were chosen for all questions, adapting the text to the knowledge and understanding of the Brazilian population.
Conclusion: The Expected Consequences of Hearing aid Ownership questionnaire has been translated and adapted to the Brazilian culture. This questionnaire can be used as an important tool for speech therapists in understanding the patient's expectations and can better outlinethe rehabilitation process.
Keywords: Hearing loss, Surveys and questionnaires, Hearing, Patient preference, Hearing aids.
Artigo Original
Adaptação cultural do questionário Expected Consequences of Hearing aid Ownership para o português brasileiro
Cultural adaptation of the Expected Consequences of Hearing Aid Ownership questionnaire for Brazilian Portuguese
Recepção: 06 Novembro 2020
Aprovação: 16 Abril 2021
A perda auditiva pode causar muitos efeitos negativos no indivíduo, principalmente em idosos com perda auditiva pós-lingual. Dentre as privações sensoriais, pode ser considerada uma das mais incapacitantes, pois acarreta diminuição no contato social, gerando comprometimentos emocionais, muitas vezes devastadores(1). Tais consequências podem ser minimizadas com o uso do aparelho de amplificação sonora individual (AASI), principalmente em perdas de grau leve ou moderado, permitindo o resgate da percepção dos sons da fala e ambientais, promovendo a melhora da comunicação(2) .
Em 2004, com intuito de ampliar o cuidado com a pessoa com deficiência auditiva, foi instituída a Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva, por meio das Portarias GM/MS nº 2073 e SAS/MS nº 587(3), que, a partir de então, previu a implantação de medidas de intervenção na história natural da deficiência auditiva, por meio de ações integrais de promoção de saúde, intervenção (envolvendo concessão de AASI) e reabilitação auditiva. Em 2011, foi decretado o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver Sem Limites, que garante, dentre outros direitos, a promoção do acesso a tecnologias assistivas e recursos de acessibilidade, complementando políticas anteriores(4).
No processo de adaptação de AASI, muitos usuários apresentam resistência e dificuldade em se adequar a essa nova situação, em decorrência de diversos fatores, tais como a aceitação da perda auditiva, o estigma do uso da amplificação, a dificuldade em assimilar as orientações e a expectativa sobre o AASI. Dessa forma, torna-se importante investigar qual a perspectiva do paciente em relação ao dispositivo de amplificação, para prevenir possíveis abandonos do tratamento, relacionados à aceitação e estigma da perda auditiva e sua terapêutica(5,6).
No Brasil, alguns questionários de autoavaliação, entre eles, o IOI-HA (International Outcome Inventory for Hearing Aids), o SADL (Satisfaction with Amplification in Daily Life) e o HHIA (Hearing Handicap Inventory for the Adults) foram traduzidos e adaptados à realidade do nosso país, investigando a restrição de participação, o grau de satisfação do usuário, os benefícios obtidos com uso do AASI e a redução da incapacidade auditiva com uso da amplificação(7-9).
Para ter acesso à expectativa com uso do AASI, Cox e Alexander, em 2000, projetaram o ECHO (Expected Consequences of Hearing aid Ownership), desenvolvido como um instrumento complementar para o questionário SADL (Satisfaction with Amplification in Daily Life)(10).
O questionário contém 15 questões, divididas em quatro subescalas: Efeitos Positivos (seis itens associados com benefício acústico e psicológico); Serviços e Custos (três itens associados com competência profissional, preço do produto e número de consertos); Fatores Negativos (três itens relacionados com a amplificação de ruído ambiental, presença de realimentação e uso efetivo de telefone) e Imagem Pessoal (três itens relacionados com fatores estéticos e o estigma do uso do AASI) (Anexo 1).
Por se tratar de um questionário curto e possivelmente de fácil aplicação, o uso desse instrumento pode nortear o profissional em relação à seleção das características físicas e eletroacústicas do AASI. Com conhecimento das expectativas reais do paciente, o profissional pode delinear o processo de reabilitação de maneira mais individual e humanizada.
Para tornar isso possível, o objetivo deste trabalho foi traduzir e adaptar culturalmente o Expected Consequences of Hearing aid Ownership (ECHO) para aplicação na população brasileira.
O estudo foi desenvolvido após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Faculdade de Odontologia de Bauru, sob número 2.389.762 e aquiescência dos pacientes para a participação no trabalho e publicação dos dados, por meio de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A adaptação cultural do instrumento seguiu as etapas indicadas por Guillemin et al., em 1993(11), que incluem: tradução do idioma inglês para o português brasileiro, adaptação linguística e revisão das equivalências gramatical e idiomática. Não foi necessário realizar a etapa optativa, que visa adequar as pontuações das perguntas após as adaptações. Adicionalmente, foi realizada a etapa de avaliação da reprodutibilidade interpesquisadores e intrapesquisadores.
O questionário foi distribuído para três professores tradutores-intérpretes de inglês, que não tiveram contato prévio com o instrumento e não se conheciam, visando elaborar, individualmente e sigilosamente, a primeira versão para o português. O procedimento foi realizado com intuito de gerar três traduções independentes do ECHO.
Para melhorar a qualidade da tradução final, foi realizada retrotradução ao idioma original. Para tanto, uma cópia do ECHO foi encaminhada para três outros tradutores, desconhecedores do texto original, que realizaram uma nova versão para o idioma inglês. Esses novos tradutores se apresentavam na mesma condição linguística e cultural dos primeiros tradutores e não foi permitido que tivessem contato com o texto original, escrito em inglês, evitando, assim, qualquer influência na tradução das palavras.
A etapa de revisão constou da escolha da melhor tradução para as questões e modificação por aproximação de termos mais adequados, escolhidos para permitir a compreensão pela população brasileira. O grupo revisor multiprofissional foi constituído por uma fonoaudióloga, uma psicóloga e uma assistente social (brasileiras, conhecedoras com fluência da língua inglesa), que analisaram todas as versões dos documentos.
As versões retrotraduzidas foram comparadas com a original em inglês e as melhores opções de palavras foram escolhidas, a fim de evitar ambiguidade. Os documentos resultantes foram analisados e as diferenças encontradas nas traduções foram reduzidas, a partir da escolha das melhores expressões e palavras em todas as questões, adaptando o texto ao conhecimento cultural brasileiro, mediante consenso.
A adaptação cultural do ECHO português brasileiro teve como objetivo estabelecer a equivalência cultural entre as versões inglesa e portuguesa do questionário. A equivalência cultural é estabelecida ao se verificar que não há dificuldades de compreensão das questões elaboradas, ou dos termos utilizados por parte da população pesquisada, quando, no mínimo, 80% dos indivíduos mostram que não têm algum tipo de dificuldade para responder a cada questão formulada(11). Caso esse número ultrapassasse o limite estabelecido, a questão seria submetida, individualmente, a novo processo de tradução e versão. Para tanto, o questionário foi aplicado pelo entrevistador 1, que realizou a leitura oral de cada questão, a fim de incluir indivíduos com alteração visual ou analfabetismo.
Participaram da pesquisa 30 indivíduos que contemplavam os seguintes critérios de inclusão: assinatura do TCLE; adultos; nativos da língua portuguesa; diagnóstico de perda auditiva pós-lingual; usuários da instituição de realização da pesquisa; sem experiência prévia com uso de AASI; bom estado de saúde geral; capacidade de compreensão para responder ao questionário.
Para avaliar a reprodutibilidade do material, o questionário foi aplicado outras duas vezes com cada participante da pesquisa. Para se testar a reprodutibilidade interpesquisadores, foi aplicado por um segundo entrevistador (entrevistador 2). Por fim, o questionário foi aplicado, novamente, pelo entrevistador 1 para avaliar a reprodutibilidade intrapesquisadores. O intervalo entre cada aplicação foi de, aproximadamente, 50 minutos.
Os dados obtidos foram tabulados em planilha Microsoft Excel. Para obter os resultados da média, mediana, número mínimo, máximo e desvio padrão, foi utilizada uma estatística descritiva. Para cada questão, foram analisadas as respostas obtidas de todos os participantes, na primeira e na segunda aplicação. Em relação à reprodutibilidade intrapesquisador, utilizou-se o teste Coeficiente de Spearman e para realizar a comparação entre cada aplicação interpesquisadores do ECHO, foi realizado o teste de Wilcoxon.
Após o cumprimento das etapas propostas, o questionário foi traduzido e adaptado para o português brasileiro (Apêndice 1) como “Questionário de Expectativa com Uso de Auxiliares Auditivos”.
Durante a etapa de revisão, os termos divergentes entre as versões foram discutidos e, mediante consenso dos revisores, optou-se por aqueles que mais facilitassem a compreensão de leigos.
Para pré-testagem, o documento final foi aplicado a 30 indivíduos, sendo 16 (53%) homens e 14 (47%) mulheres, com média de idade de 65 anos, sendo a idade mínima de 32 anos e a máxima de 89 anos. Durante a aplicação, não houve hesitação ou questionamentos por mais de 20% dos participantes para nenhuma questão, não sendo necessária, portanto, a revisão de nenhum termo. Observou-se que o questionário foi aplicado rapidamente e de fácil compreensão, facilitando seu uso clínico, principalmente na população idosa, que foi a faixa etária predominante na amostra em questão.
A reprodutibilidade intrapesquisadores foi avaliada por meio do teste Coeficiente de Spearman, em que percebeu-se significância de reprodutibilidade entre as aplicações, da maioria das questões, incluindo as subescalas Efeito Positivo, Recursos Negativos e Imagem Pessoal.
A comparação da reprodutibilidade interpesquisador foi analisada por meio do teste de Wilcoxon, que demonstrou não haver diferença significativa entre os resultados obtidos por ambos os avaliadores, para todas as questões do questionário e também para as subescalas.
Pôde-se constatar que não houve diferença significativa entre a primeira e segunda aplicação para os parâmetros de média, mediana, número mínimo, número máximo e desvio padrão (Tabela 1).
As questões classificadas como itens adicionais, referentes ao tempo de experiência com o AASI, uso diário do dispositivo e grau de dificuldade de audição, foram avaliadas com o Coeficiente de Concordância de Kappa e houve concordância entre todas as questões, apresentando valores próximos a 1.
A média obtida entre as duas aplicações para cada questão variou entre 3,55 e 6,87 pontos. A maior expectativa foi encontrada na questão número 6 - “O meu aparelho auditivo valerá a pena” -, que obteve média de 6,87 entre as duas aplicações. A questão que apresentou menor média foi a número 4 - “As pessoas notarão mais minha perda auditiva quando eu usar aparelho auditivo” -, com média de 3,55 entre as aplicações, como pode ser observado na Tabela 2.
Em relação às subescalas do questionário (Efeito Positivo, Serviços e Custos, Recursos Negativos e Imagem Pessoal), foi possível perceber que nos dados de média, mediana, número mínimo, número máximo e desvio padrão não houve diferença entre a primeira e a segunda aplicação, conforme demonstrado na (Tabela 3).
Este estudo traduziu e adaptou o questionário ECHO para o português brasileiro, visando disponibilizar uma ferramenta para quantificar e qualificar as expectativas do paciente antes da adaptação e uso do AASI. A relevância de adaptá-lo culturalmente se justifica pela necessidade de utilizar uma ferramenta validada internacionalmente para avaliar as expectativas do paciente no processo de adaptação de AASI.
A deficiência auditiva tem grande impacto na vida do indivíduo e pode trazer consequências sociais, psicológicas e profissionais(12). A tecnologia de amplificação sonora é capaz de minimizar esses efeitos negativos(13). Contudo, a individualidade reflete diretamente nas expectativas para com o uso do AASI, fator muito importante a ser notado, a fim de que a abordagem fonoaudiológica, e consequente adaptação, sejam bem-sucedidas para cada paciente, pois, afinal, não há um protocolo estabelecido na literatura, para aconselhamento(14).
Para realizar a tradução e adaptação cultural, utilizou-se a metodologia proposta previamente(11). Nas etapas de tradução, retrotradução e revisão, foram realizadas as adaptações culturais necessárias pelas equipes de tradução e revisão. Na etapa de pré-testagem, foi realizada a aplicação em uma amostra da população-alvo, pelos pesquisadores.
Mediante a aplicação do questionário, foi possível, também, adicionar uma fase metodológica extra: avaliar a reprodutibilidade intra e interpesquisadores. Observou-se significância entre as duas aplicações intrapesquisadores, demonstrando a confiabilidade do questionário, assim como realizado anteriormente por Scheffer e Mondelli(15).
A reprodutibilidade interpesquisadores também foi avaliada por meio de uma terceira aplicação, realizada pelo entrevistador 2. A análise estatística evidenciou que as aplicações por diferentes profissionais não apresentou diferenças significativas, concordando com o resultado anterior da versão alemã do questionário, que também demonstrou pouca interferência da personalidade nos resultados de aplicação(16).
Além disso, foi possível observar que a subescala Serviços e Custos foi mais pontuada, conforme demonstrado na Tabela 3, podendo-se deduzir a interferência do fato que os indivíduos eram usuários do SUS e, apesar de compreenderem o benefício da adaptação, ansiavam pela orientação quanto aos custos adicionais que a prótese poderia acarretar (pilhas e desumidificador, por exemplo). Esse dado é confirmado ao se observar a Tabela 2, em que a maior pontuação foi direcionada à questão “O meu aparelho auditivo valerá a pena”.
Em estudos realizados anteriormente, foi demonstrado que usuários de AASI, principalmente inexperientes, apresentavam expectativas positivas exageradas em relação às características do AASI que, geralmente, são consideradas negativas(10,17). Portanto, é necessário ressaltar a importância do conhecimento quanto às expectativas do paciente e à atuação do fonoaudiólogo no processo de adaptação e reabilitação do futuro usuário de AASI, uma vez que esse profissional pode orientar e realizar os ajustes adequados, objetivando a redução de queixas que se relacionam ao AASI ou à audição(18).
Dessa forma, conhecer a expectativa do futuro usuário de AASI auxiliará na compreensão das suas necessidades e na melhor escolha de características e ajustes do dispositivo, visando sua reabilitação e melhor qualidade de vida.
Foi possível traduzir e adaptar culturalmente para o português brasileiro o questionário Expected Consequences of Hearing aid Ownership (ECHO), uma vez que foi observada reprodutibilidade significativa intrapesquisador para a maioria das questões e não houve diferença significativa interpesquisador.
O questionário ECHO mostrou ser de fácil aplicação e de ampla utilização para diferentes faixas etárias, o que o torna útil para verificar as expectativas do paciente e nortear o profissional fonoaudiólogo durante a adaptação e orientação do paciente quanto às expectativas irreais, prevenindo possíveis frustações com o uso da amplificação.
*Autor correspondente: Maria Fernanda Capoani Garcia Mondelli. E-mail: mfernandamondelli@hotmail.com