Resumo: Os grupos Jê do Sul foram por muito tempo percebidos através da ótica do ‘modelo padrão’, que os considerava demograficamente reduzidos, isolados e nômades. Entretanto, os recentes avanços da arqueologia no Sul do Brasil tornaram possível questionar tal modelo. Neste artigo, nosso objetivo principal é demonstrar, através do mapeamento dos sítios arqueológicos e de suas datações, que podem ser identificadas áreas de alta densidade populacional com ocupações permanentes. Além disso, discutimos outras hipóteses com base na distribuição dos sítios: 1) sobre o povoamento do Sul do Brasil pelos grupos Jê; 2) sobre os processos de interação com outras populações (principalmente da família linguística Tupi-Guarani); e 3) sobre sua situação territorial no início do século XVI.
Palavras-chave:Jê do SulJê do Sul,Tradição Taquara/ItararéTradição Taquara/Itararé,Arqueologia regionalArqueologia regional,Sistemas de Informação Geográfica (SIG)Sistemas de Informação Geográfica (SIG).
Abstract: For a long time, the Southern Jê Amerindians were perceived through the lens of the ‘standard model’. They were considered demographically reduced, isolated and nomadic. However, recent advances in the archaeology of Southern Brazil allow us to question such model. In this paper, our main aim is to demonstrate, through the mapping of archaeological sites and their dates, that it is possible to identify areas of high population density with permanent occupation. In addition, we discuss other hypotheses based on site distribution such as the peopling of Southern Brazil by the Jê groups; the process of interaction with other populations (mainly from the Tupi-Guarani linguistic family); and about their territorial situation in the beginning of the 16th century.
Keywords: Southern Jê, Taquara/Itararé Tradition, Regional archaeology, Geographic Information Systems (GIS).
ARTIGOS
Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional
New perspectives on the archaeological cartography of the Jê in Southern Brazil
Recepção: 13 Junho 2016
Aprovação: 14 Outubro 2016
A expansão geográfica dos falantes das línguas do tronco Macro-Jê alcançou magnitude semelhante às populações Tupi, Karib e Arawak. As fontes linguísticas, históricas e etnográficas mostram diversidade e uma distribuição que abarcou, no Brasil, as regiões Nordeste, Sudeste e Sul, e partes do Centro-Oeste e do Norte, além também de porções da Bolívia, do Paraguai e da Argentina. A investigação arqueológica realizada desde o século XIX contribuiu para detalhar o quadro, com informações sobre aspectos materiais tão complexos e sofisticados quanto os verificados em termos sociais e cosmológicos pela etnologia. As informações mais completas no momento estão na região Sul do Brasil, onde foram encontrados os resultados mais eloquentes sobre os processos da ocupação Jê em termos cronológicos, de espacialidade e de inserção nas paisagens.
As novas perspectivas de investigação trazem resultados que superaram a concepção predominante sobre a demografia e a distribuição geográfica dos Kaingang e dos Xokleng – de que estes formariam pequenos grupos nômades e isolados em ambientes pouco produtivos. Seu proponente seminal é Métraux (1942), autor de uma típica projeção para o passado do contexto etnográfico do começo do século XX. Assim como Viveiros de Castro (1999, p. 115), vemos que os indígenas foram considerados “criaturas do olhar objetivante do Estado nacional”, como pertencentes ao Brasil-nação, ao invés de se buscar a “atividade propriamente criadora desses povos” (Viveiros de Castro, 1999, p. 115), vendo-os situados no Brasil.
No caso da Arqueologia, poucos consideraram adequadamente aspectos antropológicos ou históricos, fora da noção de aculturação. Entre 1965-1970, durante o desenvolvimento do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) no Brasil, foi adotada a abordagem difusionista, com o pressuposto que considerava possível “tratar a cultura de uma maneira artificialmente separada dos seres humanos” (Meggers, 1955, p. 129). Tal separação ignorou elementos antropológicos na definição dos conjuntos artefatuais arqueológicos, classificados sob o conceito de tradição do histórico-culturalismo norte-americano, definido como “grupo de elementos ou técnicas, com persistência temporal” (Willey; Phillips, 1958, p. 37). Mas houve avanço, com a localização de mais de cem sítios, inicialmente divididos em três tradições arqueológicas: ‘Taquara’ (Rio Grande do Sul), ‘Itararé’ (Santa Catarina, Paraná e São Paulo) e ‘Casa de Pedra’ (Paraná), organizados conforme os fragmentos cerâmicos. Em geral, dava-se primazia a atributos tecnológicos, como tratamento de superfície e antiplástico, de tal modo que algumas fases cerâmicas foram definidas com base em amostras de 15 fragmentos (Mentz Ribeiro, 1972). Posteriormente, a partir dos mesmos pressupostos do PRONAPA, alguns argumentaram que haveria apenas um conjunto, ao invés de três distintos (Miller Jr., 1978; Schmitz, 1988). Outros, com base na geografia dos registros arqueológicos, como Chmyz (1981), não seguiram estritamente o pressuposto de Meggers (1955) e associaram a tradição Itararé aos Xokleng e a Casa de Pedra aos Kaingang.
Ao desconsiderar a história Jê e ignorar que a maioria das fontes foi escrita em situação de guerra de conquista1 e de retração demográfica, foi fácil imaginá-los como agrupamentos nômades, pequenos e isolados. Afinal, os estudiosos seguiram o ‘modelo padrão’ (Viveiros de Castro, 1996). Buscando outra direção para superar as limitações do modelo, adotamos a consideração de Monteiro (1999, p. 248) sobre a história indígena no Brasil: “ainda sabemos pouco sobre a história desses povos”. Ele sugeriu ser necessário:
Recuperar os múltiplos processos de interação entre [os indígenas] e as populações que surgiram a partir da colonização europeia, processos esses que vão muito além do contato inicial e dizimação subsequente dos índios, apresenta-se como tarefa essencial para uma historiografia que busca desvencilhar-se de esquemas excessivamente deterministas (Monteiro, 1995, p. 228).
Nosso objetivo é reavaliar a imagem territorial e demográfica dos Kaingang e Xokleng, juntamente com populações extintas, como os Ingáin e Kimdá, que constituem os Jê do Sul. Pesquisas atuais mostram que nos últimos 1.800 anos os processos de ocupação passaram por continuidades em algumas áreas e mudanças em outras, em termos de padrão de assentamento e de subsistência (Saldanha, 2005, 2008; Copé, 2006; De Masi, 2006, 2009; Iriarte et al., 2008, 2013). Não temos resposta conclusiva, mas houve avanços que não seriam possíveis se o modelo padrão fosse aceito acriticamente e as bases teóricas ainda estivessem assentadas no degeneracionismo e em uma versão simplista da ecologia cultural (Noelli; Ferreira, 2007).
Este artigo é a primeira etapa de organização das informações, em termos geográficos, para formar um mapa da distribuição das evidências atribuídas aos ancestrais dos Kaingang e dos Xokleng, continuando uma revisão já sugerida (Noelli, 1996, 1999, 1999-2000, 2004; Silva; Noelli, 1996). Considerando que este é um projeto inicial e que há pouco espaço aqui, restringiremos a análise à distribuição espacial dos sítios arqueológicos, propondo duas hipóteses para testes e debates: 1) uma sobre o processo de colonização do Brasil meridional pelos Jê; 2) outra sobre a distribuição deles no início do século XVI. Futuramente, na continuidade da pesquisa, será apresentada uma interpretação da dinâmica da ocupação do espaço, de 2 mil anos antes do presente (A.P.) até a atualidade. Os dados históricos não serão contemplados, pois estão sendo processados em levantamentos nas fontes sobre os povos Jê do Sul. A produção de fontes históricas corresponde a um quarto do período de ocupação Jê no Brasil meridional e na Província de Misiones, produzidas desde o século XVI. Só no século XIX, por força da conquista e do confinamento dos Jê nas ‘áreas indígenas’ gerenciadas pelo Estado, é que começou a produção sistemática de registros escritos.
Estamos repensando o modelo padrão sobre a territorialidade e a demografia Jê do Sul, abandonando a imagem vigente de pequenos grupos geograficamente isolados. Deve-se abandonar a conceituação de ‘povos marginais’, resultante do determinismo ecológico e do evolucionismo de Steward (1949) e Lowie (1949). Lembramos que esta influência marcou considerações eminentes sobre os Kaingang e os Xokleng, considerados ‘povos marginais’, essencialmente caçadores-coletores, exploradores de ambientes improdutivos com tecnologia simples:
Their sociopolitical units were small, somewhat unstable, and frequently nomadic, and the relations of their members to one another were governed by kinship, age, sex, and associations. The size, permanency, and composition of their groups were strongly affected by subsistence patterns, each adapted to a distinctive environment, and by special local developments, such as clans, moieties, and associations. Sociopolitically, therefore, the Marginal peoples differed from one to another as much as they differed from other South American Indians (Steward, 1949, p. 678) […] [suas unidades socio-políticas] consisted either of a single kin group or of several loosely organized kin groups. Members of the unit were differentiated on the basis of age, sex, economic activities, and sometimes associations. [...] These tribes had very similar crisis rites, shamanism, and magic, and their technology and […] generally lacked the developed agriculture, building arts, and manufacturing processes found among other South American Indians. The sociopolitical patterns, however, varied with local conditions. Because the Marginal tribes lived in areas of limited resources and had elementary exploitative devices, the size and composition of their groups and many of their institutions had to be adapted to subsistence needs (Steward, 1949, p. 672).
Posteriormente, a maioria dos estudos sobre os Xokleng e os Kaingang foi influenciada por Henry (1941) e pela noção das áreas culturais de Galvão (1960), primeiro disseminador das ideias de Steward no Brasil. Os dados eram encaixados nas premissas do determinismo ecológico, como ocorria na Amazônia (Roosevelt, 1991; Viveiros de Castro, 1996, 1999).
Outro problema é a questão da origem dos Jê meridionais. De onde vieram?
Para os linguistas, desde Davis (1966, 1968), Rodrigues (2002) e Jolkesky (2010), eles vieram de fora do Brasil meridional e compartilham uma matriz cultural que define a família linguística Jê. Considera-se que, quando chegaram à região Sul, falavam uma língua oriunda do Brasil central, o proto-Jê meridional, de onde surgiu o Kaingang, o Xokleng, o Kimdá e o Ingáin (Wiesemann, 1978; Urban, 1992; Jolkesky, 2010). Contudo, a história dessas línguas deve ser pesquisada, pois eles não viveram sós, encontrando populações que viviam ali há pelo menos 12 mil A.P., bem como dividiram o processo de ocupação com os Guarani, que chegaram à região pouco depois, aproximadamente em 2.200 A.P. (Bonomo et al., 2015). Até agora, em termos arqueológicos, só uma parte das primeiras invasões Jê foi percebida no litoral do Paraná e de Santa Catarina pelos bioantropólogos (Neves, 1984), que detectaram processos de contato desde uma aparente integração social até o conflito e a expulsão das populações sambaquieiras. Em certos casos, identificou-se a afinidade entre populações Jê do litoral e interior (Neves, 1999). Tais conclusões foram refinadas, confirmando a complexidade das interações entre os Jê e sambaquieiros em diferentes partes da costa, revelando substituição de populações em algumas áreas e continuidade em outras (Okumura, 2007). Os processos de interação também notam-se na incorporação de sítios mortuários Jê do Sul à milenar paisagem sambaquieira (DeBlasis et al., 2014).
Existem marcadores biológicos, culturais e étnicos que podem mostrar as semelhanças e as diferenças entre os Jê do Sul: 1) são línguas intimamente aparentadas (Davis, 1966, 1968; Wiesemann, 1978); 2) possuem marcadores genéticos distintos, que podem indicar fluxo gênico com as populações sambaquieiras e guarani (Salzano; Sutton, 1965; Salzano; Freire-Maia, 1967); 3) compartilham elementos etnográficos, mas possuem várias diferenças (Ploetz; Métraux, 1930; Métraux, 1942; Haekel, 1952, 1953; Schaden, 1958; Hicks, 1966, 1971; Urban, 1978; Kühne, 1979, 1980; Veiga, 1994).
É importante ressaltar que a diversidade das línguas Jê meridionais poderia ser maior no passado, existindo, além dos Kaingang e Xokleng, os Ingáin, os Kimdá e os Gualacho, extintos até o início do século XX (Ambrosetti, 1895; Bertoni, 1916; D’Angelis, 2003). As investigações mais recentes indicam que a proto-língua de povos agricultores Jê, chegada ao sul do Brasil, sofreu uma cisão ao redor de 840 d.C., dividindo-se nos subgrupos oriental (Kimdá e Ingáin) e ocidental (Kaingang e Xokleng) (Jolkesky, 2010). Os Kaingang e os Xokleng separam-se ao redor de 1390 d.C. (Jolkesky, 2010). Para os Gualacho, não há dados suficientes para incluí-los em um dos subgrupos. Contudo, entendemos que essa estimativa ainda pode ser calibrada com as cronologias arqueológicas, buscando a equalização entre todos os dados disponíveis.
As semelhanças podem ser identificadas nos elementos comuns aos Jê, ou seja, naqueles que existem há mais tempo, compartilhados desde a matriz cultural. Um exemplo é a organização social dual, baseada em metades patrilineares e exogâmicas, conhecida entre os Kaingang (Veiga, 1994) e, possivelmente, existente no passado entre os Xokleng (Métraux, 1947). Tal padrão também ocorre nos Jê centrais e setentrionais (Maybury-Lewis, 1979), correspondendo a uma matriz comum ancestral2 . Agora, considera-se que o dualismo está presente no registro arqueológico Jê meridional: é o que se argumenta para a decoração na cerâmica (Silva, 2001) e para a arquitetura mortuária (Iriarte et al., 2008, 2013). No último caso, demonstra-se que, no padrão dual, dimensões e alinhamentos, os complexos de aterros anelares e montículos são análogos às distinções entre as metades (Crépeau, 1994, 2002; Iriarte et al., 2008, 2013). Destacamos o formato circular das estruturas cerimoniais e mortuárias como elo de ligação com as praças e aldeias circulares dos povos Jê centrais e setentrionais (Maybury-Lewis, 1979). Nas raras fontes históricas, há descrições de acampamentos circulares Xokleng, com praça central, erguidos para um rito de iniciação infantil (Paula, 1924), e pelo menos um relato de estrutura anelar ainda em uso no final do século XIX (Silva; Noelli, no prelo).
Quanto às diferenças, estas foram surgindo após a separação, devido aos processos históricos distintos vivenciados pelos subgrupos. Destacam-se, como exemplos dessas diferenças, as transformações pelas quais passaram os Xokleng. Normalmente citados como um caso típico de caçadores-coletores na Mata Atlântica, há relatos dos próprios Xokleng no início do século XX de que haveriam vivido no passado como sedentários e agricultores (Henry, 1941; Noelli, 1999-2000). A mobilidade parece ter sido adotada, nesse caso, como uma estratégia de resposta às pressões do sistema colonial europeu.
Ao invés de considerarem os linguistas, alguns arqueólogos acreditaram por muito tempo que os Jê seriam autóctones do sul do Brasil e de Misiones. Eles seguiram a hipótese difusionista de Menghín (1957), de que os Jê meridionais seriam a continuidade das populações caçadoras-coletoras altoparanaenses3, que, ao redor de 2 mil A.P., adotaram a técnica de polir líticos, cerâmica e agricultura, transformando-se na tradição ‘eldoradense’, devido aos achados no município argentino de Eldorado. Por exemplo, associando diretamente evidências da tradição Umbu e estruturas de terra, Schmitz et al. (2009) concluíram que os Xokleng resultaram deste contexto, sugerindo ainda que os Jê viviam no Sul antes da difusão da cerâmica (Schmitz; Rogge, 2011; Schmitz et al., 2013b).
Atualmente, com poucos dados estatísticos e sem comparações bioantropológicas, é difícil distinguir diferenças nos registros arqueológicos e relacioná-los aos grupos Jê historicamente conhecidos. A semelhança entre conjuntos artefatuais, tipos de assentamentos e entre outras evidências não permite agora o estabelecimento de uma distinção clara entre os registros arqueológicos de ascendentes Jê meridionais. O cenário torna-se mais complicado quando estamos diante de um palimpsesto com diferentes níveis temporais: 1) as primeiras incursões proto-Jê; 2) os períodos em que estes se ramificaram nos grupos historicamente conhecidos; 3) as movimentações após o século XVI. Apesar das limitações, já visualizamos variações regionais mensuráveis no registro arqueológico, das quais podemos ressaltar as diferenças estilísticas significativas na cerâmica (Souza, 2011) e os padrões de assentamento distintos, notados em áreas com prospecções intensivas – e.g. sítios a céu aberto, compartilhando centros cerimoniais compostos por densas concentrações de montículos funerários no vale do Ribeira, São Paulo (Robrahn, 1988), em contraste com pequenos conjuntos de casas subterrâneas, com aterros anelares e montículos nas partes mais altas dos planaltos rio-grandense e catarinense (De Masi, 2006; Saldanha, 2005; Iriarte et al., 2013). Mas tal objetivo será alcançado com a consideração de outras perspectivas teóricas sobre migração, difusão, fronteiras e estilo.
A cerâmica só recentemente foi utilizada como marcador para distinguir os registros arqueológicos Jê do Sul. Com dados etnográficos e históricos, Miller Jr. (1978) e Silva (1999) mostraram que as cerâmicas Kaingang e Xokleng possuíam padrões similares de matéria-prima, das cadeias operatórias de elaboração e das formas. Estes padrões contrastam com as sutis variações estilísticas do tratamento de superfície percebidas anteriormente (Chmyz, 1981; Brochado, 1984; Schmitz, 1988; Beber, 2004), e estilos regionais começaram a ser identificados nas comparações entre coleções (Saldanha; Copé, 1999; Souza, 2011).
Os sítios arqueológicos e os seus vestígios possuem muita semelhança em termos de forma e conteúdo, de tal modo que somente projetos de alcance regional com grande nível de detalhamento definirão quem foi que os produziu e quais são (ou se existem) as diferenças sutis. Até agora, podemos citar poucas pesquisas sistemáticas sobre padrões de assentamento, cronologia e cultura material em nível regional (Araújo, 2001; Saldanha, 2005; Copé, 2006; De Masi, 2006; Robrahn, 1988; Schmitz et al., 2002, 2010; Corteletti, 2008, 2012), e estas parecem apontar para diferenças regionais.
A explicação dessas semelhanças materiais pode ser compreendida a partir das conclusões da linguística ora vistas. Acreditamos que a solução aparecerá com uma análise sistemática que compare e verifique semelhanças e diferenças entre os dados disponíveis. Não basta uma simples sobreposição geográfica de registros arqueológicos, históricos e etnológicos. Deve-se adotar uma abordagem estatística das evidências materiais, junto com uma comparação crítica dos dados de fontes escritas. Portanto, o atual ‘estado da arte’ ainda impede a elaboração do mapa com uma nítida definição das ocupações Kaingang, Xokleng, Ingáin e Kimdá, forçando o uso de um rótulo genérico, Jê do Sul ou Jê meridional.
A referência espacial do mapa é a divisão políticoadministrativa dos estados. Adotamos as divisões municipais atuais, tarefa que demandou a atualização do cadastro de sítios arqueológicos e resultou na percepção de que o nosso registro de localização difere de várias publicações originais. Além da representação por municípios, obtivemos as coordenadas (publicadas ou estimadas) de aproximadamente 75% dos sítios arqueológicos. Para dar conta dos registros sem posicionamento geográfico, o mapa de distribuição combina os pontos dos sítios com a área dos municípios (Figura 1). Usamos o ArcGIS10.2 para georreferenciamento e demais análises, apresentando a classificação preliminar dos sítios em: 1) estruturas de terra (casas subterrâneas, aterros e montículos) e 2) outras formas de ocupação, incluindo sítios superficiais, locais com arte rupestre, abrigos e reocupações de sambaquis litorâneos. Apesar de generalizada, devido à escala do mapa, essa classificação permite notar variações regionais nos tipos de sítios4. Consideramos que a combinação de pontos dos sítios com a área dos municípios contempla espaços usualmente desconsiderados, como os territórios no entorno da aldeia principal, com os assentamentos-satélites, interligados por trilhas, que também levavam a áreas de roça, caça, pesca, coleta e de outras atividades. A alimentação do banco de dados arqueológicos foi realizada com publicações feitas até o ano de 2013 (Noelli et al., 2003; Souza; Merencio, 2013). O mapa estará completo adiante, com dados de fontes históricas. As publicações são artigos, livros, teses e dissertações acadêmicas, relatórios de investigações que não passaram por comitês editoriais e o Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Ministério da Cultura (IPHAN/MinC), órgão público responsável pelo patrimônio arqueológico do Brasil. O levantamento não é total sobre Relatórios de Impacto sobre o Meio Ambiente (RIMAs) e laudos, fontes de difícil acesso.
A quantidade de sítios por município indica registros parciais, pois os levantamentos estão longe da conclusão. Na maioria dos casos, os trabalhos de arqueologia apenas foram iniciados. Onde há muitos sítios, temos pesquisas: 1) mais intensas em termos de cobertura espacial; 2) isoladas, com baixa intensidade em termos de cobertura espacial; 3) com atuação contínua de uma mesma equipe; 4) e, eventualmente, um sítio subdividido em vários.
O mapa de distribuição dos sítios (Figura 1) mostra continuidade espacial, considerando a vizinhança/proximidade entre municípios. Os interstícios devem-se às lacunas da falta de investigação ou de publicação dos resultados e, raramente, à ausência de facto de evidências. A estratégia de pesquisa de campo da maioria dos levantamentos realizados também deixou lacunas, ocorrendo basicamente à beira-rio, onde se ignoram os assentamentos interfluviais e os mais afastados das margens dos cursos d’água. Por outro lado, transects nas linhas de transmissão e estradas também possuem lacunas.
A ocupação na topografia mais elevada e nas encostas, à distância dos cursos d’água, parece ser a posição predominante das antigas aldeias, embora haja variações (Reis, 1980; Robrahn, 1988; Araújo, 1995, 2001; Reis, 2002; Saldanha, 2005; Copé, 2006; Corteletti, 2012). Sabe-se que, em certas regiões, os assentamentos estão concentrados nos vales de rios (De Masi, 2006; Corteletti, 2012) e à beira-mar (Schmitz, 1988).
Os vieses nas prospecções reduzem a quantidade de sítios e formam uma imagem distorcida de vários aspectos, principalmente os demográficos. Além disso, foram poucas as pesquisas realizadas para resolver problemas relacionados à explicação sobre o tamanho e a distribuição espacial dos sítios arqueológicos. Os trabalhos dedicados a tais questões apontam unanimemente para a distribuição não aleatória dos sítios no espaço, com grandes aldeias centrais dispostas em pontos estratégicos da paisagem e cercadas por sítios-satélites menores, além de monumentos funerários e centros cerimoniais como referências territoriais importantes (Robrahn, 1988; Araújo, 2001; Saldanha, 2005; Copé, 2006; Souza, 2012, 2015; Corteletti, 2012; Iriarte et al., 2013).
Os municípios isolados também representam, em alguns casos, ocupações posteriores ao século XVII, após a descompressão demográfica massiva do holocausto Guarani. O esvaziamento Guarani no sul do Brasil proporcionou aos Jê mais possibilidades de circulação e a ocupação de territórios ‘vazios’, sem a necessidade de estabelecer redes de aldeias. Também possibilitou a oportunidade de retornar para áreas que eles ocuparam no passado, de onde foram expulsos pelos Guarani (Brochado, 1984; Noelli, 2004; Bonomo et al., 2015). A reocupação de territórios ‘vazios’, somada a uma aparente descontinuidade territorial entre os assentamentos, manifestada pela presença de agrupamentos isolados dos Kaingang e dos Xokleng nos séculos XVIII e XIX, explicaria os sítios arqueológicos isolados (Urban, 1978; Mota, 1994, 1998; Tommasino, 1995).
A baixa densidade em algumas áreas e os casos isolados, além da incipiência das pesquisas, podem representar unidades de fronteira. Embora haja poucos estudos sobre a delimitação de fronteiras em termos sincrônicos e diacrônicos, em algumas áreas é possível sugerir limites estabelecidos no passado e que parecem ter durado (Figura 1).
A grande quantidade de sítios em alguns municípios abre a perspectiva para estudos sobre demografia, até agora sem qualquer tipo de desenvolvimento5. Os municípios com mais de dez sítios arqueológicos – alguns alcançam 61 – indicam adensamento populacional. Usamos o ArcGIS 10.2 para criar um mapa de densidade kernel, com células de 100 km2. Como resultado, a Figura 2 apresenta o número médio de sítios a cada 100 km2. Algumas áreas despontam como locais de alta densidade de sítios: o vale do Ribeira e o adjacente planalto de Curitiba, o médio rio Tibagi, o médio rio Iguaçu e toda a borda leste do planalto catarinense e rio-grandense, no entorno das bacias dos rios Pelotas, Canoas e das Antas. É interessante notar que alguns desses locais têm algumas das mais longas histórias de ocupação Jê do Sul e seguiram ocupados por estes até o século XVI.
Se, até agora, poucos lugares foram alvos de prospecções com alta densidade6, de modo a cobrir amplas superfícies em quilômetros quadrados, esperamos que novas investigações aumentem a quantidade de sítios por município. Considerando nossa sugestão para o tamanho da área de ocupação do século XVI (Figura 3), pode-se inferir que a densidade demográfica da população foi muito maior do que a atual. Essa demonstração ainda está para ser feita, pois existe apenas um estudo de demografia histórica para o período colonial, realizado por Steward (1949, 2000), que projetou arbitrariamente números de 1940 (Henry, 1941) para o século XVI, ignorando explicitamente as fontes escritas e os processos históricos coloniais.
Por outro lado, as datações apontam para a longa duração das ocupações regionais. Apesar da necessidade de mais datações e da revisão e do aprofundamento das pesquisas arqueológicas já realizadas, alguns sítios apresentam uma continuidade de ocupação excepcional, se considerarmos a sobreposição de camadas datadas. No mínimo, essas continuidades merecem um teste para comprovar se foram efetivamente reais ou se resultam de falhas técnicas ocorridas durante as investigações. Em 23 sítios distintos encontramos os resultados conforme são apresentados no Quadro 1 e na Figura 4.
Dos sítios do Quadro 1, a maioria apresenta estruturas semi-subterrâneas, confirmando a longa ocupação dessa forma de arquitetura doméstica. Entretanto, encontram-se também sítios com montículos funerários entre os listados no quadro, sugerindo a importância longeva dos cemitérios na estruturação dos territórios Jê meridionais (Iriarte et al., 2008, 2013).
A permanência nos sítios leva a repensar o problema do tempo e da continuidade da ocupação, mesmo que as datas de certos sítios na Figura 4 aparentem claramente reocupações, e não uma presença contínua (e.g. SC-TA-04, Posto Fiscal, entre outros) (Schmitz et al., 2002, 2013b). Não é mais possível manter a interpretação de que os sítios seriam reocupados somente após um período de abandono. Por exemplo, devem-se considerar os estudos de solo antropogênico da Amazônia para testá-las em outros contextos: estimativas sobre o tempo de formação das terras pretas variam desde 1 a 0,002 cm por ano, mas o consenso recai sobre um processo lento, resultado de longa permanência (Erickson, 2003). Devem-se considerar os novos estudos cronológicos no Brasil de sítios continuamente ocupados (Fish et al., 2000; Martins; Kashimoto, 2000); pesquisas com novas abordagens estratigráficas e mais datas estão contribuindo para definir com precisão o processo de ocupação dos sítios (Saldanha, 2005; Copé, 2006; Copé; Saldanha, 2002). É curioso que evidências de longas ocupações datadas em sítios e regiões inteiras não sejam consideradas por alguns arqueólogos atrelados ao modelo padrão (Schmitz et al., 2002, 2013b). O conjunto de datas mostra a continuidade da presença Jê em algumas áreas: para facilitar a visualização desta continuidade, organizamos as datas conforme os municípios e, dentro de cada município, desde as mais antigas até as mais recentes; os municípios com maior número de datações são listados primeiro no Apêndice (ver também a Figura 3).
Brochado (1984) propôs a primeira versão plenamente subsidiada por dados arqueológicos da expansão Jê no Brasil meridional. Mas, como ele adotou as ideias de Menghín (1957), concebeu que a rota era apenas de difusão da cerâmica e da agricultura. Brochado (1984), como Menghín (1957), acreditava que os Jê estavam no sul antes da cerâmica e da agricultura, deixando de compreender que foi um processo de colonização humana, ao invés de difusão de cultura material.
A distribuição das datações permite verificar que o processo de ocupação da região Sul começou por São Paulo, no sentido norte-sul, conforme a linguística. Para considerar essa rota, é preciso observar a distribuição dos registros linguísticos e arqueológicos fora dessa região. Também é necessário conhecer a história da pesquisa, como vimos realizando (Silva; Noelli, 1996; Noelli, 1999; Souza, 2011).
O oeste paulista e o Mato Grosso do Sul contêm registros arqueológicos Jê do Sul, mas parecem representar outro momento da ocupação, mais recente, descartando o início dela pela calha do rio Paraná e metade oeste de São Paulo. Os dados arqueológicos da região de Parapuã e Tupã, localizados por Drummond e Philipson (1947) e Miller Jr. (1978), assim como outros, localizados nos municípios do quadrante noroeste do Paraná, em Porecatu e Lupionópolis, por Chmyz (1968), no médio rio Paranapanema e, mais recentemente, em Maringá e Apucarana, parecem representar as movimentações Jê entre os séculos XVII e XX, após o colapso Guarani (Tommasino, 1995; Mota, 2000; Noelli, 2004).
À beira do rio Paraná, nos municípios de Mundo Novo e Guaíra, o registro arqueológico embaixo da ocupação Guarani de cerca de 2000 A.P. resultou da primeira frente de colonização Jê vinda do centro do Paraná (Noelli, 2004).
O mesmo parece ser o caso do sítio José Vieira, em Cidade Gaúcha (Laming; Emperaire, 1959), sob a base da ocupação Guarani (1380 ± 150 A.P.), onde foram encontrados fragmentos denominados “Casa de Pedra intrusiva” (Chmyz, 1968). Por outro lado, as informações do sudeste de São Paulo, especialmente do vale do Ribeira, bem como as do nordeste do Paraná, principalmente do vale do rio Itararé e alto Paranapanema, permitem concluir (Araújo, 2001, 2007; Noelli, 2004) que a metade leste de São Paulo e a do Paraná foram os principais acessos dos Jê para o sul do Brasil. As datas do Alto Taquari, em São Paulo (1540 ± 150 A.P.), e de Sengés, no Paraná (1790 ± 210 A.P.), encontram-se entre as mais antigas para a ocupação Jê do Sul e confirmam, portanto, a posição da borda leste do primeiro planalto paulista e paranaense como rota migratória (Parellada, 2005; Araújo, 2007) (Figura 5).
Ainda não foram localizadas informações arqueológicas Itararé ao norte do vale do Ribeira7, mas parece que o flanco oriental do Planalto Paulista foi a região de acesso dos Jê. Considerando as relações linguísticas com a família Jê e outras do tronco Macro-Jê, situadas no Rio de Janeiro, no Espírito Santo e em Minas Gerais, mais as comparações a serem realizadas entre os vestígios arqueológicos da região Sul com os localizados ao norte da região Sudeste, é provável que ali seja descoberto o elo geográfico entre os Jê do Brasil meridional e os centrais (Brochado, 1984; Noelli, 2004; Araújo, 2007). Na área entre a Serra do Mar e um limite interiorano desconhecido da metade leste do estado de São Paulo até a fronteira com Minas Gerais, deve ocorrer o principal espaço da ocupação Jê, com recuo temporal que poderá alcançar 3 mil anos. Araújo (2007) notou uma possível continuidade entre a tradição Una8, de Minas Gerais, e a Itararé, do sul de São Paulo. Provavelmente, as evidências Itararé isoladas de São Paulo, como o sítio Topo do Guararema (Benedito; Panachuk, 2007) e as poucas estruturas subterrâneas conhecidas de Minas Gerais, representem exatamente pontos desta continuidade (Prous, 1992; Henriques Jr., 2006). Se confirmada a conexão entre as tradições Una e Itararé, as áreas nordeste de São Paulo e sudeste de Minas Gerais podem ter sido o local da formação da língua proto-Jê meridional, confirmando os modelos linguísticos (Urban, 1992) e parte do modelo de Brochado (1984).
A expansão Jê deve ser investigada considerando também a expansão Guarani, pelo Mato Grosso do Sul e oeste paulista, e Tupinambá, para o sul, via litoral atlântico, e interior, pela divisa São Paulo-Minas Gerais (Corrêa, 2014). Os dados apontam que houve disputa pelos mesmos territórios, com os Jê chegando antes, ocupando os vales de grandes rios e a beira-mar. Essa disputa teve uma dinâmica que culminou na abertura de brechas territoriais consideráveis entre os Jê, preenchidas pelos Guarani e pelos Tupinambá. Os Jê foram empurrados para os biomas com predomínio de campo, enquanto os dois conjuntos Tupi conquistaram as áreas do bioma Mata Atlântica (Brochado, 1984; Noelli, 2004).
A densidade populacional Jê do Sul aparentemente foi menor do que a dos grupos Tupinambá e Guarani. A dinâmica social e política faccionalista dos Jê do Sul (Fernandes, 2002) enfraquecia os laços entre as aldeias e aumentava a fragilidade nas disputas territoriais com os Guarani e os Tupinambá, que se organizavam em redes de aldeias aliadas para atuar em grandes grupos, quando disputavam novos territórios. Entretanto, há algumas áreas que tiveram sucesso na resistência contra os Guarani, gerando a necessidade de se procurar perceber onde ocorreu isso (Souza; Merencio, 2013; Souza et al., 2016).
Os Tupinambá separaram os Jê e os Macro-Jê que ocuparam partes da Serra do Mar e do litoral em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e em algumas áreas interioranas de Minas Gerais e de São Paulo. Tal separação, no vale do Ribeira, estabeleceu o limite setentrional litorâneo dos Jê do Sul, por volta de 2 mil A.P. Os Guarani causaram recortes territoriais mais amplos, comprimindo os Jê do Sul nas áreas elevadas da Serra Geral, desde o centro-sul do Paraná até os campos do planalto do Rio Grande do Sul. Neste processo de disputa territorial, considerando as evidências arqueológicas, verifica-se que os Guarani comprimiram os territórios Jê no alto Paranapanema e médio Iguaçu a aproximadamente 1.800 A.P.: 1) os expulsaram da beira-mar do Paraná ao Rio Grande do Sul a partir de 1.200 a 1 mil A.P; 2) os comprimiram no alto rio Uruguai a aproximadamente 1.500 A.P.; 3) os empurraram para os campos de Caxias do Sul a cerca de 1. 900 A.P.; 4) separaram os territórios dos vales do Ribeira e Tibagi e alto Iguaçu a cerca de 1.500 A.P., criando dois núcleos Jê que persistiam no século XVII.
A interação entre os Guarani e os Jê do Sul está documentada em pontos onde parecem ter existido fronteiras fluidas – seja pela influência nos atributos da cerâmica, seja pela presença de enclaves Guarani em áreas Jê (Chmyz, 1971; De Masi; Artusi, 1985; Mentz Ribeiro, 1991; Rogge, 2004; Volcov, 2011).
Entretanto, em certos pontos-chaves da ocupação Jê meridional nas terras altas, a reação à compressão dos territórios pelos Guarani parece ter variado. No estado do Paraná, tais áreas incluem o médio Iguaçu e o baixo Piquiri, onde a concentração de casas subterrâneas e montículos funerários aponta para uma ocupação densa, permanente e não facilmente conquistável pelos Guarani nas áreas onde há campos naturais (Souza; Merencio, 2013). Mais recentemente, Souza et al. (2016) demonstraram que as áreas comprimidas pelos Guarani, especialmente a leste da confluência do Canoas e do Pelotas, formadores do Uruguai, são aquelas onde proliferaram monumentos funerários Jê do Sul, onde há transição da Mata Atlântica para os campos de cima de Serra. Se considera tais monumentos como correlatos de intensa marcação territorial e maior nível de organização regional, o que conferiria vantagens na resistência aos forasteiros aos Jê dessas áreas (Souza et al., 2016).
As evidências arqueológicas interpretadas a partir das informações históricas mostram que os Jê do Sul concentravam-se nos territórios mais elevados acima do nível do mar, onde predominam as temperaturas mais baixas e as áreas de campo intercaladas com a mata de araucária. A porção superior de boa parte dos vales que terminam no litoral atlântico estava ocupada pelos Jê, enquanto que a planície costeira das regiões Sul e Sudeste era domínio Tupinambá (ao norte da ilha do Cardoso) e Guarani (ao sul de Antonina). A região de Misiones possui poucas datas (Apêndice), e estas se estendem desde o século XIII até o século XVI – posteriores, portanto, à expansão Guarani no rio Paraná.
Por fim, a dinâmica socioeconômica contribuiu para o contínuo crescimento populacional Guarani ainda no século XVI, longe de existir uma estabilização demográfica até o início do colapso demográfico. Os Guarani ocupavam, na fronteira de diversos territórios Jê, no limite das florestas subtropicais e da Mata Atlântica, incluindo ambientes de baixa temperatura, como a região de Curitiba e de Castro, as porções meridionais de Caxias do Sul e de São Francisco de Paula e o alto vale do rio Uruguai, sem contar outros nichos extremos para a sua policultura agroflorestal. A Figura 6 foi elaborada com essas informações, como hipótese para os territórios de ocupação dos Jê do Sul no século XVI, envolvidos e comprimidos pelos Guarani e pelos Tupinambá nas suas fronteiras. Algumas áreas periféricas Jê parecem se estender mais para oeste, no estado do Paraná, onde os jesuítas constataram Gualachos e Guayanás no século XVII (Cortesão, 1951; Chmyz, 1976), corroborando datações do período histórico. Algumas datas indicam enclaves Jê em áreas sem informações históricas do século XVI, como Misiones e o oeste do Rio Grande do Sul.
As dinâmicas territoriais e demográficas aproximaram e comprimiram as populações Jê do Sul, Guarani e Tupinambá em certas áreas, oportunizando a existência de trocas e conflitos. O resultado desses contatos pode ser verificado no ‘léxico Kaingang’, onde se encontram várias palavras Guarani para a cultura material. Também é possível que nos relacionamentos sociais e políticos houvesse contato, pois nas fontes históricas há casos de casamentos interétnicos.
A criação do mapa arqueológico dos Jê do sul é um desafio, atualmente com mais perguntas e lacunas do que com certezas. Este trabalho é uma pesquisa em construção, inteiramente aberta a novos dados e a outras interpretações, com a necessidade de ser realizada e debatida pelo conjunto de investigadores da colonização humana do Brasil.
A continuação dos levantamentos arqueológicos é o tópico mais central em um rol de temas importantes, sem esquecer da grande necessidade das abordagens regionais. Como são ao menos 2 mil anos de história contínua, há muito para fazer, especialmente sobre os processos regionais e locais. Existem muitas questões: 1) Qual o tipo de adaptação ao ambiente?; 2) Quais os tipos de contato interétnico? Algumas sínteses já produzidas demonstram o potencial dos estudos sobre interação na arqueologia sul-brasileira; 3) Quais os tipos de troca cultural?; 4) Como foram os conflitos com as populações chamadas tradições Umbu e Humaitá, e com as populações concorrentes na luta pelo espaço, como os Guarani e os Tupinambá? Esse tema tem despertado interesse recentemente, chamando a atenção para a possibilidade de os arqueólogos identificarem fronteiras políticas através de sua materialização na paisagem (Iriarte et al., 2008; Souza; Merencio, 2013; Souza et al., 2016); 5) Quais as mudanças e as continuidades que podem ser identificadas pela abordagem histórica?; 6) Qual o impacto ambiental? Sabemos, por exemplo, que há uma íntima relação entre as populações Jê do Sul e as florestas de araucária. Portanto, é preciso investigar se houve ação humana na dispersão da espécie (Noelli, 1999-2000, 2000; Bitencourt; Krauspenhar, 2006; Iriarte; Behling, 2007; Iriarte et al., 2014; Cardenas et al., 2015); 7) Quais as demografias regionais?
Como vimos, muitas dessas perguntas estão ainda por responder. Também é necessário ampliar a quantidade de datações para que os processos históricos locais e regionais sejam conhecidos, assim como é preciso obter mais dados para as análises de bioantropologia. Os estudos demográficos, arqueológicos e históricos precisam ser iniciados nos padrões mais contemporâneos, pois inexistem. A pesquisa histórica deve ser ampliada nas áreas de interesse arqueológico, para o reconhecimento de populações e de eventos documentados. Existe vasta quantidade de fontes publicadas e inéditas com informações virgens, com potencial para contribuir na renovação historiográfica sobre a formação da ‘sociedade brasileira’ colonial, da sua economia, cultura, demografia etc.
Há uma lacuna no campo das comparações entre os Jê. Há alguns trabalhos preliminares, especialmente linguísticos e etnológicos, que precisam de atualização e ampliação. Dado o volume de informações, é um campo aberto, praticamente uma ‘terra incógnita’ em termos acadêmicos, esperando por mais e novos pesquisadores interessados.
Por fim, é muito importante que as novas pesquisas passem a observar os debates teóricos e metodológicos que estão em curso no âmbito das abordagens mais atuais na Arqueologia, Etnologia Indígena e História Indígena, cujos vários tópicos deveriam inspirar exemplos. Acreditamos que eles devam ser estritamente incorporados, pois contêm os elementos e as indicações para uma renovação dos estudos Jê do Sul.
Jonas Gregorio de Souza. University of Exeter. Department of Archaeology 309 Laver Building, North Park Rd, Ex44QE. Exeter, Inglaterra (jonas.gregorio@yahoo.com.br)