Resumo: Este artigo discute o papel que as antigas ocupações exerceram na constituição do que se considera como floresta amazônica, tendo como base dados arqueológicos e arqueobotânicos da transição Pleistoceno/Holoceno e partindo das relações entre humanos e ambientes (destacando eixos de heterogeneidade). A ocupação de lugares estratégicos da paisagem, a alteração permanente da composição do ambiente e o manejo de uma gama variada de plantas, principalmente de palmeiras, levam a pensar que alguns conceitos sobre mobilidade e incipiência cultural de grupos humanos antigos carecem de revisão. Com proposta de estabelecer diálogo entre informações de trabalhos ecológicos, botânicos, biogeográficos, etnográficos e arqueológicos, procuramos demonstrar que o retorno para lugares promovidos é uma estratégia de ocupação que remonta às ocupações mais antigas. Destacando as plantas como marcadores importantes, apresentamos uma proposta de conceito de inclusão para situar o planejamento dos usos de recursos diversificados e suas modificações do/no ambiente, transformando estes em lugares persistentes.
Palavras-chave: Ocupação humanaOcupação humana,ArqueobotânicaArqueobotânica,Pleistoceno/HolocenoPleistoceno/Holoceno,AmazôniaAmazônia.
Abstract: Based on archaeological and archaeobotanical data from the leistocene/Holocene transition and human-environment relationships (highlighting axes of heterogeneity), this article discusses the role ancient human occupations played in the formation of what we know as the Amazon Forest. Occupation of strategic locations on the landscape, permanent alterations of environmental composition, and the management of a variety of plants, especially palms, lead to a recognition that archaeologists may need to reconsider how they apply concepts of mobility and cultural incipience to ancient human groups. We seek to demonstrate that returning to promoted places is a strategy of occupation that dates to the earliest settlement by constructing a dialog between ecological, botanical, biogeographical, ethnographical, and archaeological information. Highlighting plants important indicators, we present a proposal for a concept of inclusion to explore the planned uses of diversified resources and resulting modifications within/of the environment, that transformed it into persistent places.
Keywords: Human occupation, Archaeobotany, Pleistocene/Holocene, Amazon.
DOSSIÊ CENÁRIOS E PROCESSOS DAS PRIMEIRAS OCUPAÇÕES HUMANAS NO BRASIL: O PAPEL DA PESQUISA ARQUEOLÓGICA
A floresta é o domus: a importância das evidências arqueobotânicas e arqueológicas das ocupações humanas amazônicas na transição Pleistoceno/Holoceno
The forest is home: the importance of archaeobotanical and archaeological evidence for human occupations of the Amazon during the Pleistocene/Holocene transition
Recepção: 29 Maio 2019
Aprovação: 22 Julho 2019
Os primeiros modelos para a chegada de populações humanas na América do Norte tiveram como referência caçadores de megafauna. Esses modelos, em seguida, serviram como base para buscar as evidências da presença de humanos na América do Sul (Dillehay, 1999; Lynch, 1990; Roosevelt, 2002). Sendo assim, a ocupação humana foi procurada através dos artefatos associados à caça da megafauna, especialmente buscas por pontas de projétil e por afinidades com pontas do estilo Clovis (Dillehay, 1999; Lothrop, 1961; Roosevelt, 2002; Roosevelt et al., 2002). Diante desse cenário, a ocupação humana foi definida por fatores limitantes do ambiente, especialmente pela disponibilidade de proteína para ocupações da Amazônia (Sponsel, 1986; Gross, 1975; Headland; Bailey, 1991). Observa-se esse viés em propostas teóricas, apesar de haver diversidade espacial e temporal no que tange às ocupações humanas conhecidas arqueologicamente – as quais remontam ao final do Pleistoceno e à transição ao Holoceno inicial (Dillehay, 1999, 2008; Bueno; Dias, 2015) – e também de existir diversidade de culturas e de estratégias dos povos indígenas atuais (Fausto; Neves, 2018).
Para as ocupações arqueológicas iniciais, os dados disponíveis sobre estratégias de obtenção de recursos ainda são limitados. De modo geral, parte-se do pressuposto de que os povos mais antigos da Amazônia eram caçadores-coletores com alta mobilidade e que estavam em busca do que a natureza poderia oferecer para satisfazer suas necessidades diárias (Roosevelt et al., 2002). A rejeição do tal modelo de fatores limitantes, observada no decorrer das pesquisas direcionadas pelo paradigma da ecologia histórica (Balée, 2006), entre outros fatores, tem base na busca por uma melhor compreensão da diversidade ambiental e cultural. Sob a perspectiva da diversidade ambiental, os antigos caçadores-coletores teriam tido amplo espectro de recursos, especialmente em ecótonos ecológicos. E sobre a diversidade cultural, podemos presumir que as soluções e as decisões dos povos seriam múltiplas economias.
Para a Amazônia, temos muitos dados referentes a populações tradicionais atuais ou acerca de um passado mais recente que demonstram padrões de ocupação ligados, mas não determinados, por elementos ambientais. Um dos padrões observados é que locais de ocupações anteriores são importantes para a escolha de novas áreas de moradia. Stuchi (2010) mostra que sítios arqueológicos com formação de terra preta1 são locais frequentemente reapropriados por agricultores, indígenas e ribeirinhos para a abertura de novas roças. Havt (2001, p. 103), fazendo uma etnografia sobre os Zo’é, povo indígena tupi-guarani que habita a região do rio Erepecuru, na calha norte do rio Amazonas, mostra que, mesmo no caso de grupos com maior mobilidade, ‘renovar o repertório de caminhos já trilhados’ é uma prática recorrente, e a reocupação de capoeiras antigas pode se dar por uma série de motivos de ordem prática e simbólica. Além disso, as observações das práticas de reuso preferencial de recursos florestais entre os Ka’apor e Caiapó (Balée, 1994; Posey, 1985) serviram como dados inferenciais na construção do paradigma da ecologia histórica aplicada na Amazônia (Balée, 2006, 2012).
Concebendo os caçadores-coletores como humanos em busca desses recursos de subsistência, com uso transitório do espaço, escapam da discussão os vínculos desses humanos como possuidores dos territórios e dos recursos. Rejeitamos a relação entre natureza e economia que considera o forrageiro óptimo como estratégia de obtenção de recursos. Segundo esta perspectiva, as sociedades forrageiras, sob influência da sazonalidade ou de disponibilidade de recursos, apresentariam como resposta a mobilidade (Binford, 1980), sendo que a escassez de recursos seria a explicação para a alta mobilidade na Amazônia. Ao rejeitar a ideia de forrageiro óptimo, estamos concordando com a definição de construção cultural de nichos como localidades enriquecidas com plantas úteis promovidas pela atividade humana (Smith, B., 2011a). Entretanto, as seis categorias de manejo apresentadas no modelo de Smith, B. (2011a) não são suficientes para abarcar os exemplos conhecidos no ambiente amazônico. Por exemplo, a ideia de que espécies vegetais de crescimento rápido seriam plantadas e as de ciclo longo teriam seus indivíduos manejados no próprio local de ocorrência não necessariamente condiz com manejo dessas duas categorias na Amazônia. Outro ponto é que assentamentos não são nexos de manejo de árvores. Dizendo isso, estamos propondo que um período fundamental do manejo tem que ocorrer em situações de alta mobilidade planejada. Sugerimos que a agência humana na transformação do seu meio pode ser integrada às paisagens culturais2 do final do Pleistoceno. Reunimos dados sobre a etnografia amazônica, a diversidade biogeográfica, a fisiologia botânica e as paisagens culturais de florestas, para aplicá-las à interpretação do registro arqueobotânico do final do Pleistoceno e do início do Holoceno, bem como a interpretação da mobilidade dessas populações.
Pretendemos demonstrar que o caminhar sobre os próprios passos está presente desde as manifestações mais antigas da presença humana na Amazônia, não sendo restrito à busca por locais de terra preta. Um sistema resiliente e cumulativo de manipulação do ambiente, ligado à mobilidade planejada, pode ser demonstrado por meio de alguns estudos de caso sobre vestígios arqueobotânicos presentes em sítios arqueológicos do Holoceno inicial: Caverna da Pedra Pintada, Peña Roja e Cerro Azul (Figuras 1 e 2).
Os vestígios paleoetnobotânicos de sítios ocupados no Holoceno inicial oferecem fortes indícios da exploração rotineira de plantas perenes. A ocupação do Holoceno inicial no sítio Caverna da Pedra Pintada (Monte Alegre, Pará) (Figuras 1 e 2, letra A nas imagens) aponta para a reocupação consecutiva desse abrigo natural (Roosevelt, 1998, 2000; Roosevelt et al., 1996). Nas camadas do abrigo que Roosevelt et al. (1996, p. 376, tradução nossa) denominou de “[...] estratos paleoíndios [...]” (transição para o Holoceno e Holoceno inicial), encontraram-se vestígios botânicos carbonizados de espécies frutíferas, palmeiras e castanheira, entre elas: Bertholletia excelsa (castanha-do-pará), Sacoglottis guianensis (achuá), Mouriri apiranga (apiranga), Byrsonima crispa (muruci-da-mata), Talisia esculenta (pitomba), Vitex cf. cymosa (tarumã), Attalea microcarpa (sacurí), Attalea spectabilis (curuá), Astrocaryum vulgare (tucumã) e Hymenaea cf. parvifolia ou oblongifolia (jutaí) (Roosevelt, 1998; Roosevelt et al., 1996). Afirma-se, ainda, que algumas das espécies arbóreas estão adaptadas à atividade humana de queimar e cortar árvores, sugerindo-se que essas ocupações poderiam ter começado a mudar as características da floresta.
Escavações realizadas em 2014 pelo projeto Arqueologia de Monte Alegre, Pará, liderado por Edithe Pereira (equipe da qual também fazemos parte), permitiram revelar uma estratigrafia similar à documentada por Roosevelt et al. (1996), com camadas que abrangem o Holoceno inicial datadas ca. entre 12.400 e 9.000 AP (datas calibradas). A análise dos inúmeros carvões recuperados com peneira seca de 1,5 mm está em curso. Nas camadas mais antigas, os vestígios de sementes e de frutos incluem pelo menos oito tipos morfológicos que corresponderiam aos taxa (espécie ou gênero) distintos de palmeiras (Arecaceae), coloquialmente chamados de coquinhos, e a dois taxa de palmeiras que produzem polpas: bacaba (Oenocarpus sp.) e buriti (Mauritia flexuosa) (Pereira et al., 2016). Vestígios de três espécies de árvores – castanha-do-pará (B. excelsa), jutaí (Hymenaea sp.) e muruci (Byrsonima cf. crassifolia) – completam um conjunto de plantas perenes de alto valor nutritivo. Na camada IV, os humanos ocupando o abrigo diversificaram os recursos perenes que utilizavam de alguns taxa de palmeiras, presentes em momentos anteriores (Tabela 1). Os retornos a esse lugar persistente envolveram consumo de plantas de diversas estações, entre as quais algumas que poderiam ter sido adquiridas nas proximidades do abrigo e outras que crescem em microambientes distantes.
Morcote-Ríos e Bernal (2001) registraram o uso de 29 gêneros de palmeiras em vários sítios arqueológicos das Américas, entre os quais constam Acromia, Astrocaryum, Attalea, Mauritia e Oenocarpus, encontrados desde o Holoceno inicial. Considerando a ubiquidade de palmeiras, esses autores defendem que as atividades das populações humanas foram responsáveis por parte da distribuição das mesmas (Morcote-Ríos; Bernal, 2001).
Na Colômbia, percebe-se ainda a exploração intensiva de palmeiras no sítio Peña Roja (Figuras 1 e 2, letra C nas imagens), ca. 9.250-8.090 AP (datações radiocarbônicas não calibradas) (Mora Camargo, 2003). As palmeiras de polpa (M. flexuosa, Oenocarpus bacaba, Oenocarpus mapora, Oenocarpus bataua e Euterpe precatoria) e com endocarpos duros (Astrocaryum sciophilum, Astrocaryum aculeatum, Astrocaryum jauari, Attalea maripa, Attalea insignis e Attalea racemosa) ocorrem em quantidades elevadas ao longo de 70 cm do perfil (Mora Camargo, 2003; Morcote-Ríos et al., 2014). O estudo demonstra a utilização de palmeiras no Holoceno inicial com retornos ao lugar de Penã Roja durante 1.200 anos. Já nas ocupações ceramistas do mesmo sítio, de ca. 500-1.400 AP, foram constatadas baixas quantidades das mesmas palmeiras (Mora Camargo, 2003).
A intervenção humana com essas palmeiras abrangeu três unidades ecológicas onde as espécies habitam (Morcote-Ríos et al., 1998). Além das palmeiras, há árvores frutíferas como Anaueria brasiliensis, Brosimum cf. guianense/cf. lactescens, Vantanea peruviana, Sacoglottis sp., Parkia multijuga e Caryocar glabrum (esta última com semente comestível e registro de uso da polpa como veneno para peixe) (Morcote-Ríos et al., 2014). Os autores observam que a maioria das árvores frutíferas e das palmeiras está entre as espécies hiperdominantes3. Isso sugere que esse padrão poderia ser atribuído à preferência dos povos do final do Pleistoceno pela extração de recursos altamente abundantes ou, ainda, à contribuição das atividades desses povos à dispersão, à distribuição e à densidade dessas espécies (Morcote-Ríos et al., 2014). Oliver (2008) sugere que o conjunto de espécies pode ser o precursor de um sistema de silvicultura. Além das palmeiras e das árvores frutíferas, por volta de 8.100 AP, os ocupantes do sítio de Peña Roja começaram a utilizar cultígenos exógenos, como Cucurbita sp. (abóbora), Calathea allouia (ariá) e Lagenaria siceraria (cabaça), o que sugere também que o cultivo de certas espécies é uma prática do Holoceno inicial/médio (Piperno; Pearsall, 1998; Watling et al., 2018). Aceituno e Loaiza (2018), em revisão dos dados paleoetnobotânicos do Holoceno inicial de Peña Roja e dos demais sítios na Colômbia, sugerem que sistemas de produção de comidas se desenvolveram com base nas árvores frutíferas e nas plantas tuberosas. Eles afirmam, ainda, que o uso, o manejo e o controle de plantas aumentaram progressivamente desde a transição Pleistoceno/Holoceno, alterando a diversidade e a distribuição das plantas.
Os dados iniciais de outra pesquisa desenvolvida por Gaspar Morcote-Ríos, em um sítio colombiano chamado Cerro Azul (Figuras 1 e 2, letra B nas imagens), apresentou datas da transição do Pleistoceno para o Holoceno. Mesmo ainda havendo carência de datas para a maior parte do período, a estratigrafia dos primeiros testes escavados no sítio mostra uma sequência ininterrupta de vestígios de ocupação. Até o momento, os pesquisadores apresentaram apenas duas datações absolutas, sendo a dos níveis iniciais da ocupação uma data não calibrada de 10.360 ± 40 AP (Morcote-Ríos et al., 2017).
As análises de restos botânicos carbonizados e de fitólitos apontam para uso expressivo de palmeiras de diferentes fisionomias da paisagem. Macrovestígios de sementes carbonizadas foram recuperados em grande quantidade, entre ele estão, por exemplo, E. precatoria e O. bataua. Os fitólitos também confirmaram a expressiva ocorrência de palmeiras, com destaque para identificação em nível de espécie de M. flexuosa (Morcote-Ríos et al., 2017).
Assim como em Monte Alegre, em Peña Roja, a alta diversidade de palmeiras e de árvores frutíferas foram recursos utilizados nestes contextos do Holoceno inicial. Observamos, ainda, a diversidade nas espécies dos dois registros arqueobotânicos sendo influenciada pelas variações na composição da floresta amazônica (Figura 1). Será que as espécies, hoje hiperdominantes, entre as que estavam hiperdominantes no final do Pleistoceno poderiam demonstrar uma preferência por recursos com maiores densidades? Ou tornaram-se hiperdominantes em razão dos comportamentos humanos (Morcote-Ríos et al., 2017)?
Ainda que conscientes da diversidade biogeográfica que compõe a região amazônica (Moran, 1989; Ab’Saber, 2003), a leitura predominantemente observada na literatura arqueológica é correspondente à definição da Amazônia como uma grande massa de floresta tropical extremamente homogênea. Os primeiros arqueólogos a trabalharem na região dividiram a Amazônia em dois ambientes: a terra firme e a várzea (Meggers, 1971). Desde então, um longo debate foi travado para discutir como estes dois ambientes poderiam ser mais ou menos propícios para assentamentos humanos e quais seriam seus possíveis potenciais para a aquisição de proteína (Gross, 1975) e para a agricultura (Carneiro, 1983; Lathrap, 1977; Meggers, 1974). Seguindo a dicotomia, a várzea foi tida como local que permite maior produtividade biótica, caracterizando-se como ambiente excepcional ao padrão amazônico e situando-se como o berço da produtividade de recursos agrícolas nessa região (Denevan, 1996; Roosevelt, 1991), uma visão chamada de determinismo agrícola pelo segundo autor do presente artigo (Moraes, 2015).
Com um maior acúmulo de dados ambientais e arqueológicos, temos condições de afirmar que esta homogeneidade geográfica, biológica e cultural é falsa. Para além de sítios em áreas de várzea e de terra firme, um grande número de pesquisadores tem trabalhado com ocupações humanas em áreas que fogem das categorias dicotômicas: savana, serras, montanhas e áreas de cachoeira e de cabeceiras. Especialmente no sul da bacia amazônica, onde a floresta ombrófila restringe-se ou desaparece, observam-se arqueólogos considerando as especificidades dos ecótonos resultantes e suas transformações (Schaan et al., 2012; Watling et al., 2017; Pugliese et al., 2018; Magalhães et al., 2019) (Figura 1).
O primeiro, e talvez mais marcante, ponto de diversidade biogeográfica está relacionado com os rios que compõem a bacia amazônica. Ainda que não defina toda a diversidade, uma classificação simples proposta por Sioli (1983) divide os principais rios da Amazônia entre rios de águas brancas, claras e pretas. As diferenças da água estão relacionadas com as características litológicas, a composição das águas e a vegetação das cabeceiras dos rios (Parker et al., 1983). Essas mesmas particularidades e as morfologias fluviais variando entre meandros, regiões encachoeiradas, entre outros fatores, levam também à existência de diferença da fauna aquática (Henderson; Crampton, 1997). A diversidade da fauna certamente influenciou as tecnologias e as estratégias desenvolvidas pelas populações que estavam interessadas na obtenção desses recursos (Prestes-Carneiro et al., 2016; Moraes, 2015).
As projeções arqueológicas sobre a caça dos primeiros povos a ocuparem o território amazônico contemplaram, principalmente, a caça da fauna terrestre nas construções dos seus modelos arqueológicos para usos de território. Esses modelos de caçadores antigos, trazidos da literatura sobre o povoamento da América do Norte (Sauer, 1947), precisam ser repensados no contexto amazônico, onde a fauna aquática ocorre em grande diversidade. Ao pensarmos em uma arqueologia indo contra a homogeneidade cultural, que também se faz valer de analogias e de comparações, poderia ser mais apropriado utilizar as antigas ocupações humanas das regiões costeiras do oeste norte-americano e do oeste peruano, onde os humanos pescaram em abundância, a exemplo de Daisy Cave, Quebrada Tacahuay, Quebrada Jaguay e Ring Site (Reitz et al., 2017; Rick et al., 2001).
Restos de peixes estão presentes entre os vestígios do sítio Caverna da Pedra Pintada, um dos mais antigos conhecidos na Amazônia (Roosevelt et al., 1996). Sítios de tipo concheiro aparecem por volta de 10 mil anos nos Llanos bolivianos (Lombardo et al., 2013) e, ao redor de 7 mil anos, estão presentes em vários pontos da Amazônia (Pugliese et al., 2018). Obviamente, não estamos querendo afirmar que, neste período, as sociedades estavam se tornando pescadoras, mas que se tratava de um recurso abundante e importante em diferentes estratégias de subsistência, as quais também parecem ser de amplo espectro. Como mencionamos anteriormente, as possibilidades de explorar estes recursos são distintas, de acordo com as particularidades hidrográficas de cada local da Amazônia.
A definição de planície de floresta densa e homogênea deixa despercebida também uma grande diversidade litológica. Com isso, tem-se a ideia de que sociedades com estratégias de obtenção de recursos através da caça evitaram a Amazônia por conta da dificuldade de caçar nos ambientes muito fechados, mas também em razão da escassez de matéria-prima lítica adequada para a produção de ferramentas e de abrigos naturais no ambiente (Lathrap, 1968; Meggers, 1971). Mais uma vez, estamos diante do modelo norte-americano da necessidade de pontas líticas como evidência de estratégia de caça.
De fato, grandes porções da Amazônia, ainda que com diversidade litológica significativa, não possuem afloramentos rochosos, mas isso não pode ser aplicado para toda a região. Mesmo com levantamentos ainda com pouca cobertura e resolução, como pode ser observado no mapa geológico do Pará (Vasquez, 2008), a diversidade litológica é significativa. Na bacia do rio Tapajós, por exemplo, os dados iniciais de um projeto que estamos implantando em uma zona de grande diversidade litológica mostram que o silexito está disponível em associação com uma formação calcária. Ainda que sem informações precisas sobre o contexto, provavelmente, é desta região que vem a maior parte das poucas pontas de projétil líticas conhecidas na Amazônia (Roosevelt, 2002; Meggers; Miller, 2003). Além disso, alguns sítios com potencial de preservação de vestígios orgânicos mostram que matérias-primas alternativas, como ossos, podem ter substituído as pontas líticas, inclusive com melhor performance para reavivagem, após desgaste ou quebra durante o uso (Bueno, 2003; Xamen Wai Wai, informação verbal4).
Outro dado relevante, disponibilizado pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (CECAV, 2016), aponta para um número muito significativo de abrigos e de cavidades em suportes muito variados na região amazônica. No município de Rurópolis, Pará (Figura 2), na rodovia Transamazônica, existem dezenas de cavidades registradas. Pereira e Silva (2014), em uma descrição preliminar das evidências arqueológicas nestas cavidades, identificaram arte rupestre, pinturas e gravuras em cinco sítios. Esses dados nos levam a refletir, como veremos adiante, que, ainda que abrigos naturais não sejam uma prerrogativa para ocupações antigas na Amazônia, nos casos onde essas feições foram verificadas por pesquisas arqueológicas, a correlação foi em grande parte positiva. Litologias de arenito, concreção ferruginosa, calcário e granito formaram abrigos que foram ocupados pelos humanos há pelo menos 13 mil anos (Pereira, 2012; Miller, 2009; Magalhães et al., 2019) (Figuras 1 e 2, letra E nas imagens).
As características do solo, associadas ao relevo e à composição química dele, são extremamente importantes para a cobertura vegetal a ser observada no ambiente (Herrera et al., 1978; Zuquim et al., 2019). Isso difere da perspectiva pioneira que definiu a Amazônia como várzea, com sedimentos fluviais geologicamente recentes, e como terra firme, com sedimentos antigos e lixiviados. Levantamentos mais precisos das características de solo compartimentaram a área em regiões bem mais diversificadas. Dois tipos de solos, Acrisols e Ferrasols, são predominantes na Amazônia, com cobertura geográfica da bacia de 31,6% e 28,9%, respectivamente5 (Figura 2). Existem, no entanto, regiões onde são encontrados solos de 12 outros grupos: Plinthosols, Gleysols, Cambisols, Leptosols, Arenosols, Fluvisols, Regosols, Lixisols, Podzols, Alisols, Histosols e Nitisols, em ordem de prevalência (Quesada et al., 2011).
Estima-se que o bioma amazônico possua, somente contabilizando árvores, entre 12.500 e 16.000 espécies (Hubbell et al., 2008; Steege et al., 2013). A distribuição dessas espécies, contudo, é irregular; muitas são raras, ocorrendo com pouca frequência, enquanto algumas são hiperdominantes. Duzentos e vinte e sete (227) espécies são responsáveis por quase metade dos indivíduos da flora amazônica. Steege et al. (2013) ainda registraram variações na dispersão geográfica e ambiental dessas árvores mais abundantes. Constata-se que as espécies hiperdominantes concentram-se em uma ou duas das seis divisões geográficas da bacia6 e em um dos grandes tipos de floresta, a qual foi classificada, a grosso modo, em cinco formações: terra firme, várzea, campinarana em areias, pântano e igapó. Quando se adentra a lista das espécies raras de árvores, observa-se dispersões geográficas ainda menores (Hopkins, 2007; Steege et al., 2013), fazendo com que existam muitas composições amazônicas, com plantas diferentes. Em cada localidade, a composição florística é influenciada, além dos milhões de anos de evolução, pelo solo, pela litologia, pela topografia, pela hidrologia, pela precipitação e pelas ações humanas (Laurance et al., 2010; Phillips et al., 2003; Salo et al., 1986) (Figuras 1 e 2).
Neste artigo, exploramos alternativas aos legados político-intelectuais do discurso sobre a floresta amazônica como um paraíso de biodiversidade ou um inferno verde, que teria influência sobre a nossa percepção acerca das economias humanas desde o final do Pleistoceno, e também a uma visão normativa de agricultura. Propomos que a diversidade física e ambiental da Amazônia pode ser explorada segundo uma estratégia de ocupação de alta mobilidade, porém com frequente retorno para locais previamente manejados, aumentando a disponibilidade de recursos, principalmente baseados no manejo de plantas perenes, como palmeiras e árvores frutíferas.
Descrições da floresta como inferno verde ou paraíso baseavam-se na percepção da ecologia e da experiência humana com a estrutura florística. Como exemplo de visão negativa, temos a publicação de Meggers (1971), na qual, depois de comparar dados arqueológicos com informações etnográficas de povos indígenas de regiões consideradas pela autora como terra firme, e também com informações coletadas por cronistas sobre os povos que moravam próximo das várzeas do rio Amazonas, ponderou que limitações ambientais e escassez teriam determinado a trajetória de desenvolvimento social e político das populações. Do outro lado, temos, por exemplo, as afirmações de Roosevelt (1991, p. 112), de que:
Os habitats ribeirinhos e de terra firme ricos em nutrientes tinham, consequentemente, recursos vegetais e animais em abundância para a subsistência humana e não teriam sido uma barreira para o forrageio, o sedentarismo, o crescimento populacional e a agricultura.
Consideramos que ambas as posições foram fundamentadas tratando de partes distintas, porém restritas, da estrutura florística: a distribuição espacial da biodiversidade ou as espécies que compõem a biodiversidade. O inferno verde seria uma visão produzida pela distribuição espaçada de indivíduos de uma mesma espécie, já que, quando se tem milhares de espécies, qualquer uma poderá ser encontrada com baixa frequência, o que corresponde a maior tempo de procura. O modelo do paraíso amazônico difere deste por procurar saber quantas espécies úteis estavam disponíveis, ou seja, quão amplo o espectro de recursos poderia alcançar. Hoje, sabemos que as interações de fatores incluem, ambas, a distribuição e a utilidade da biodiversidade.
Ainda que populações humanas empreguem plantas amazônicas de diversas formas – como remédios, venenos, matérias-primas para construção, elementos de rituais –, exploramos aqui as plantas de alto valor alimentício. Dezenas de espécies com folhagem, frutos e/ou sementes comestíveis exibem indicadores da manipulação humana, por se encontrarem no processo de domesticação (Clement, 1999), incluindo pelo menos 85 espécies de plantas lenhosas (Levis et al., 2017). A diversidade de plantas possíveis para o consumo é muito abundante (Cavalcante, 1972; Lévi-Strauss, 1952). Trabalhando a intersecção da questão desses possíveis recursos com suas frequências, Levis et al. (2017) demostram que 20 árvores em processo de domesticação encontram-se entre as espécies hiperdominantes. Sua distribuição geográfica é maior, ocorrendo em concentrações, sendo isso uma demonstração quantitativa da existência de florestas antrópicas atuais e de sistemas agroflorestais. Quando as florestas são dominadas por uma espécie útil, elas recebem os próprios nomes: buritizal, cacoal, castanhal, açaizal, entre outros (Balée, 1989). Em estudos etnobotânicos, Prance et al. (1987) demonstram que, para os Ka’apor, Tembé, Chácobo e Panaré, a maioria das espécies na floresta de terra firme é útil.
Outras transformações antrópicas na cobertura vegetal estão registradas sobre as terras pretas e em ilhas de florestas Caiapó (apêtê), onde há altas variedade e concentração de espécies úteis. Junqueira et al. (2010, 2011) descrevem a junção de utilidade e de biodiversidade, adotando o termo agrobiodiversidade. Além disso, a terminologia sistema agroflorestal7 caracteriza o manejo desse tipo de floresta, cujos membros multiespecíficos são escolhidos (Bass, 1992). Posey (1985) observou a criação de apêtê pelos Caiapó, onde eles identificam utilidades para mais de 95% das espécies de plantas e também plantavam árvores em roças de diversas idades para atrair caça para o sistema manejado. O legado indígena na formação de sistemas agroflorestais é considerado, hoje, como possibilidade para sustentabilidade em atividades agrícolas de pequena escala na Amazônia (Junqueira et al., 2011), porém carece de informação sobre como estas áreas foram formadas. Borrero (2015) indica que as primeiras estratégias seriam de subsistência generalizada enquanto os humanos passavam por um período de adaptação, necessária para os caçadores-coletores adquirirem os conhecimentos e as habilidades de modificação do ambiente, além de identificarem locais que seriam atraentes o suficiente para se fixarem e transformarem. Apesar de útil como modelo, esta afirmação nos parece demasiado funcionalista.
Quando os humanos povoaram a Amazônia, as formações vegetais que seus descendentes viriam a produzir, os bosques culturais, ainda não existiam. Mesmo que uma clareira tenha origem natural, como a queda de uma árvore, as ações humanas, cuidando de espécies úteis no espaço, transformariam o ambiente em bosque, atendendo sua definição botânica de pequenas áreas com abertura entre dosséis e diminuição da densidade de indivíduos menores. O resultado de dezenas de bosques na longa duração seria o que Balée (2013) define como floresta cultural. Neste estágio, dependendo da continuidade ou da descontinuidade do manejo, do ponto de vista espacial, esses ambientes poderiam se confundir com florestas naturais, sendo a concentração de espécies úteis justamente o que diferenciaria uns dos outros. Ademais, algumas florestas culturais demonstram características persistentes da abertura fundadora, com densidade de árvores, biomassa e área basal significantemente menores do que na floresta madura (Odonne et al., 2019). Antes da interferência humana, as espécies presentes na floresta cultural teriam dispersão mais esparsa dos indivíduos, ou seja, em uma área qualquer haveria alta biodiversidade, mas poucas árvores da mesma espécie. Com essa estrutura das distribuições esparsas, sugerimos que não seria muito frutífero perambular por caminhos aleatórios pela floresta tropical em busca de alimentos vegetais (o modelo de caçadores-coletores de alta mobilidade). Se adotado como base de entendimento, este argumento induz à interpretação desse elemento da ecologia para sustentar conclusões como: baixas densidades populacionais; um hiato de ocupação no Holoceno médio; espaços disponíveis no Holoceno tardio para difusão de populações ou para colonização cultural; importância de plantas domesticadas para uma economia estável; e sedentarismo após a horticultura. No entanto, há necessidade de que haja um trajeto de história cultural, em vez de ecologicamente adaptativo, entre as ocupações remotas e as florestas antropizadas de hoje.
Observa-se, no registro arqueológico do final do Pleistoceno e no início do Holoceno, que sítios mostram pelo menos mil ou dois mil anos de ocupação, sugerindo que gerações de pessoas nasceram e cresceram utilizando esses lugares. Isso nos leva para a necessidade de pensarmos novos modelos da floresta, suas modificações, bem como de rever os conceitos de mobilidade humana.
Apesar de bosques frutíferos integrarem os sistemas produtivos em diversas partes do mundo (como plantações de maçã, amêndoa, laranja, oliva, tâmara, entre outros), na arqueologia, pouco se considera a formação vegetal de floresta como agricultura. A agricultura nunca serviu de modelo para os períodos antigos, onde, se presume, haviam principalmente caçadores-coletores. Observamos que a interpretação dos períodos antigos normalmente segue uma lógica de considerar o sistema econômico recente e, sequencialmente, subtrair suas características ‘novas’ para descrever estados de produção anteriores. Em outras palavras, trata-se de um contexto político-intelectual da pesquisa arqueológica cujo legado econômico é a valorização do Holoceno tardio e, junto com ele, a consideração de avanços como a agricultura. Acreditamos que esse circuito de raciocínio precisa ser invertido8: precisamos entender a situação mais antiga para acrescentar novidades e invenções ao longo do histórico traçado.
Para a agricultura e a domesticação das plantas, os modelos construídos no Novo Mundo inspiravam-se nos processos de domesticação documentados para populações do Oriente Médio (região do Crescente Fértil) e da China (Smith, B., 1994). A proposta é de que a domesticação ocorreu pelo manejo de plantas realizado por populações sazonalmente móveis, muitas vezes em regiões montanhosas do vale central do México, dos Andes e do leste da América do Norte (Sauer, 1947; Smith, B., 1994). A base para essa ideia estava centrada principalmente na pesquisa de sítios do tipo caverna e de região árida, onde os vestígios arqueológicos de plantas se preservaram melhor (Iriarte, 2007). Dizia-se que as plantas manipuladas seriam de crescimento anual, com sementes nutritivas processadas com moedores e pilões (Smith, B., 1994). E, assim, foi estabelecida uma relação quase automática entre a presença desses artefatos e a domesticação de plantas.
Trabalhos subsequentes nas Américas, realizados a partir da década de 1980, mudaram o foco dos lugares de domesticação das montanhas para os vales dos rios. Também mostraram que as populações que domesticaram plantas tinham um comportamento mais sedentário. Assim, para esses autores, o manejo in situ foi o primeiro passo para a domesticação de plantas (Smith, B., 1994), sucedido pela seleção de atributos desejáveis dentro da população manejada e pela expansão da produção de comida para áreas que iam além dos corredores dos rios (Smith, B., 1994). Em todos os casos, observa-se que as origens de espécies seriam pontuais, mas dispersas, seguidas por expansões das plantas domesticadas (Iriarte, 2007). Trabalhos arqueobotânicos desenvolvidos nos neotrópicos demonstram a manipulação e a domesticação no Holoceno inicial de plantas anuais, como “[...] abóboras (Cucurbita moschata, C. ecuadorensis), araruta (Maranta arundinacea), mandioca (Manihot esculenta), ariá (Calathea allouia), inhame (Dioscorea spp.) e milho (Zea mays) [...]” (Iriarte, 2007, p. 172, tradução nossa). E pesquisas genéticas demostram a domesticação da pupunha (Bactris gasipaes) (Clement et al., 2010).
Trajetórias intelectuais paralelas e distintas são observadas entre os arqueólogos interessados na produção de alimentos na Amazônia, incluindo B. Meggers, D. Lathrap, A. Roosevelt, D. Piperno e D. Pearsall. Alguns elementos-chave dos seus modelos são os corredores dos rios, o sedentarismo populacional, as plantas anuais no processo de domesticação e os assadores de cerâmica. Entretanto, na medida que os estudos paleoetnobotânicos vêm se desenvolvendo na Amazônia, tem-se acumulado uma base com dados diretos dos vestígios das plantas, a partir dos quais os modelos ambientais e culturais devem ser revistos (Iriarte, 2007; Oliver, 2008; Piperno; Pearsall, 1998; Smith, B., 1994).
Hoje, os modelos para a utilização de recursos vegetais avançam para além do foco em agricultura e domesticação, expandindo-se para outros mecanismos de manejo das plantas. Harris (2007) aponta para a probabilidade de árvores e arbustos tropicais terem sido cultivados em quintais, em sistema distinto da agricultura, mas são necessários parâmetros de pesquisa estabelecendo critérios a fim de que se reconheça este sistema. Sabemos que os processos de engenharia dos ecossistemas, entre eles a criação de nichos, são mais diversos e plurais, incluindo transplante de árvores frutíferas perenes, transplante e manejo in situ de plantas tuberosas e modificações de lugares para aumentar a abundância da caça (Smith, B., 2011a). Smith, B. (2011a) observa, ainda, que não há obrigatoriedade de manipulação genética ou morfológica de espécies para que haja modificação na paisagem. A arqueologia, então, tem se aberto à riqueza de pesquisas etnográficas e ecológicas, para repensar a complexidade das atividades humanas e das plantas na longa duração. Aspirando contribuir para uma nova proposta conceitual, argumentamos que alta mobilidade pode ser vinculada a conceitos de permanência em lugares significativos, e também que a dialética dos argumentos deve partir do Pleistoceno tardio, e não, por subtração, desde o Holoceno tardio. As florestas e suas plantas perenes têm especificidades, incluindo a sua geografia de domesticação. Assim, passamos a considerar a etnologia, a ecologia e o conceito de bosque para reler o registro arqueológico.
Uma contribuição importante dos estudos etnográficos dá-se no entendimento de como os caminhos pela floresta são um tipo de paisagem cultural. Os caminhos dos Nukak e Caiapó foram transformados por criação e melhorias dos bosques às margens das trilhas (Politis, 1996; Posey, 1985, 1993). Suas atividades durante as caminhadas promovem mudanças na distribuição e na abundância das espécies desejadas, para que essas plantas estejam distribuídas ao longo das rotas de movimento humano. Na paisagem construída, as trilhas funcionam tanto como marcadores de espaço quanto como lugares de acampamento (Knapp; Ashmore, 1999). Elas conectam lugares de parada. Para o povo Nukak, que apresenta alta mobilidade residencial, os lugares de parada têm menos visibilidade, porém os territórios tradicionalmente ocupados estão fixos com relação aos grupos residenciais e regionais, que geram bosques pontuais (Politis, 1996). Comparativamente, as aldeias dos Caiapó têm permanência, porém há trilhas além da aldeia para pessoas se deslocarem. Ao longo das trilhas, Posey (1985) observou, só de árvores, 185 indivíduos de 15 espécies ao longo de três quilômetros.
A visibilidade dos bosques é ainda maior nos lugares de parada, como acampamentos e aldeias. Balée (1989, 2010) afirma que as modificações florísticas feitas por populações sedentárias ao redor de suas casas e quintais revelam uma transformação paisagística de alto grau. Dentro de quintais indígenas, tem sido documentada diversidade de espécies úteis em alta densidade (Balée, 1994; Posey, 1985; Thomas; Van Damme, 2010). Observa-se, similarmente, em levantamentos com comunidades rurais atuais nos arredores dos sítios arqueológicos com terra preta, que a floresta exibe alto grau de agrobiodiversidade (Junqueira et al., 2010, 2011). E, mesmo interpretando-se a agrobiodiversidade como legado das ocupações indígenas, os levantamentos também demonstram a introdução e o manejo de uma diversidade de plantas exóticas à Amazônia na terra preta, que são contribuições dos ocupantes recentes à biodiversidade. Populações sedentárias não contradizem o uso das trilhas, considerando a ida dessas pessoas para outros pontos estratégicos no território, sejam eles bosques ou outros recursos e destinos sociais. Rival (1993) observa que grupos Huaoroni conhecem todos os bosques culturais de pupunha (B. gasipaes) na região onde moram e continuam os visitando anualmente. Podemos concluir que as concentrações atuais seguem as atividades humanas em lugares de parada e ao longo das trilhas.
A criação de concentração de espécies úteis tem sido interpretada alternativamente como: 1) perda de sementes durante o transporte do recurso e de seu depósito na lixeira (Zent; López-Zent, 2004; Ribeiro et al., 2014); 2) plantio intencional (Posey, 1993); ou 3) práticas humanas de manejo que “[...] interferem nos processos ecológicos, promovendo florestas domesticadas em volta de habitações [...]” (Levis et al., 2018, p. 13, tradução nossa). Aderimos à segunda afirmação, ou seja, acreditamos que as pessoas ativamente modificaram a estrutura e a disposição de plantas no mundo ao seu redor, criando espaços culturais. E o essencial em nossa interpretação é que são diferentes os significados formados durante o manejo de bosques e de roças.
A herança teórica sobre roças, que se originou no Oriente Médio e serviu como modelo da transição de um modo de vida de caçador para agricultor, especifica uma maneira cultural de manejar as plantas. O cultivo de um espaço aberto seria semeado para aumentar a concentração de espécies anuais sob alta incidência de luz e competição vegetal limitada (Zeder, 2011; Sherratt, 1980). Mas seria mais essencial que, dentro da roça, as relações entre as caraterísticas das plantas e as práticas de cultivo seguissem um processo coevolutivo de domesticação. Os grãos, os mais estudados, gradativamente acumularam elementos da síndrome de domesticação (Fuller et al., 2014). Em termos de benefícios, considera-se que o cultivo poderia servir para caçadores-coletores evitarem riscos e lidarem com sazonalidade na disponibilidade de recursos (Fuller et al., 2014). No Oriente Médio, o cultivo de frutíferas perenes tem sido demonstrado como atividade posterior ao cultivo de grãos. Alguns autores propuseram a coivara amazônica como um sistema de cultivo para a agricultura das plantas já domesticadas (Carneiro, 1960, 1961; Meggers, 1971; Roosevelt, 1980). No entanto, a versão externa do modelo, o cultivo de espaços abertos, abrange desde o manejo inicial de plantas desejadas à sua produção intensiva na área aberta. Seria no espaço da coivara que plantas amazônicas viriam a ser manejadas? Ou o manejo também poderia acontecer, de fato, em áreas fechadas? Levis et al. (2018) apresentam um modelo de fatores que transformam florestas maduras em florestas culturais. Os dados explorados no artigo são principalmente de sítios arqueológicos do Holoceno tardio associados com áreas de terra preta, mais um exemplo de modelo que liga assentamento com modificações.
Percebemos que a natureza do manejo do espaço de produção de plantas perenes, como árvores, é inerentemente diferente dos modelos de agricultura desenvolvidos através das experiências do Oriente Médio. Além da diversidade de plantas na floresta tropical amazônica, devemos olhar para a maneira como as pessoas as apropriam. No alto Xingu, por exemplo, as populações indígenas plantam bosques de pequi (Caryocar brasiliense) como oferta para uma criança que nasce. Neste ato, elas estão garantindo que, aproximadamente no momento em que a criança chegue à idade adulta, ela seja ‘proprietária’ de um bosque já produtivo (Smith, M.; Fausto, 2016). Neste intervalo, as aldeias podem mudar de lugar, mas as concentrações serão pontos fixos para os quais as pessoas podem retornar frequentemente.
Os Zo’é, indígenas com os quais estamos tendo a oportunidade de trabalhar, têm uma estratégia de obtenção de recursos alimentícios de alta mobilidade. Uma das principais fontes de proteína é a caça de primatas. Entretanto, caçar estes primatas envolve o conhecimento e a apropriação do ambiente de forma sistematizada. Mapear o curso da vida e a locomoção dos primatas caçados envolve o conhecimento das plantas pelas quais eles se interessam. Geralmente, existem coincidências também entre as plantas de interesse para a caça e para os caçadores. Manejar essas plantas ou se apropriar, ou continuar manejos antigos, promove tanto a caça quanto a coleta. É comum, então, que plantas úteis, presentes nos caminhos de caça, sejam consideradas propriedades de quem abriu o caminho e de quem também vai continuar o manejo. Árvores multicentenárias, como castanheiras, são ótimos exemplos de um modelo de manejo que não esgota o ambiente e que, mesmo diante de uma estratégia de alta mobilidade, exige retornos periódicos aos mesmos espaços.
Retornando aos modelos, podemos comparar as particularidades de manejo das plantas perenes com as plantas tradicionalmente associadas à agricultura. Vemos que as árvores e os arbustos perenes, semeados ou propagados por mudas, se beneficiam com incidência de luz ampla o suficiente para seu estabelecimento. Entretanto, essas plantas não exigem abertura total da área, como é o caso de uma roça para a produção das plantas com curto ciclo de vida, um modelo de manejo inspirado no Velho Mundo. Os trabalhos humanos no manejo da floresta seguem um cronograma longo, em comparação com uma roça, pois a frutificação e, assim, o retorno aos cuidados com as árvores acontecem anos depois do momento de propagação. A promoção dos bosques também variaria conforme as espécies que estão sendo concentradas, podendo incluir o uso de fogo para a supressão de competição, a propagação (semente ou muda) de plantas de interesse, para aumentar sua frequência, e a limpeza localizada próxima às árvores desejadas (Smith, B., 2011a, 2011b; Levis et al., 2018). Mesmo plantadas em localidades mais abertas, árvores úteis para alimentação cresceriam durante anos junto ao restante da vegetação tropical e alcançariam idade reprodutiva em espaços também habitados por plantas não úteis. Propomos que as populações humanas do Holoceno inicial, que iniciaram o manejo da floresta e a transformação da paisagem amazônica em um mosaico de bosques, estavam conscientes, através da sobreposição de diferentes mobilidades, das particularidades das árvores frutíferas, das palmeiras e de suas distribuições. Pensando que o conhecimento do território é necessário para se ter êxito na caça, de fato, não haveria outro cenário possível.
Vemos que o estabelecimento de bosques neotropicais também pode ser facilitado para certas plantas, em função das suas fisiologias e da reação à atividade humana. As palmeiras babaçu (Attalea speciosa) e tucumã (Astrocaryum aculeatum) exibem resistência ao fogo; o tucumã e o sacurí (A. microcarpa) são palmeiras invasoras (Berger; Moraes, 2005; May et al., 1985; Nelson, 1994; Schroth et al., 2004). Após o fogo, o babaçu não só rebrota, mas está demonstrado que, em áreas com queimadas em múltiplos anos, a quantidade da palmeira aumenta (Nelson, 1994). Observa-se que, enquanto o tucumã em crescimento não é completamente resistente ao fogo, a germinação de suas sementes é promovida pelo fogo (Schroth et al., 2004). Outras árvores também são resilientes em áreas onde atividades humanas abrem a vegetação, por exemplo, as castanheiras, que, além de colonizarem áreas de clareira e coivara, exibem resistência ao fogo com a habilidade de rebrotar após queimar (Paiva et al., 2011; Scoles et al., 2014). Essas espécies e os bosques que elas formam têm, então, uma resiliência própria, cujo produto será uma floresta cultural.
A manipulação de plantas e o conhecimento sobre as tecnologias de propagação entre populações indígenas remontam ao Holoceno inicial, como demonstrado pelo processo de domesticação da mandioca (Manihot esculenta) (Watling et al., 2018). Certas espécies produzem safras substanciais e, hoje, encontram-se em concentrações, entre elas bacaba (O. bacaba), buriti (M. flexuosa), babaçu (A. speciosa), patauá (O. bataua), taperebá (Spondias mombin), pupunha (B. gasipaes), camu-camu (Myrciaria dubia), ingá (Inga spp.), tucumã (A. aculeatum) e pequiá (Caryocar villosum) (IBGE, 2017; May et al., 1985; Shanley; Medina, 2018). Na atualidade, a exploração dos castanhais (B. excelsa), açaizais (Euterpe oleracea e E. precatoria) e babaçuais constitui importante fonte de alimentação e de renda para muitas comunidades ribeirinhas e indígenas (May et al., 1985; Muñiz-Miret et al., 1996; Wadt et al., 2008). Enquanto cada espécie manipulada (mais de 180 são conhecidas) tem sua produtividade própria, a concentração por manejo agroflorestal amplia sua disponibilidade. Especificidades sobre, e em que período, cada um desses tipos de concentrações se desenvolveu e se espalhou na Amazônia são questões a serem ainda investigadas.
Em termos econômicos, se uma população humana dependesse só de bosques de um microambiente ou monodominantes, é provável que ela correria riscos de sofrer com uma safra de baixa produtividade (comparável ao cultivo de uma espécie anual). Manejos de plantas, para reduzir riscos na quantidade e na variabilidade de recursos alimentícios disponíveis e para proporcionar segurança em relação à sazonalidade, são propostos como fatores que contribuem para a domesticação e o cultivo entre caçadores-coletores (Fuller et al., 2014). Na Amazônia, os bosques e, consequentemente, suas florestas culturais são geralmente compostos por várias espécies. Poderíamos considerar que a distribuição espacial de algumas espécies em microambientes específicos, como o buriti em terras encharcadas, complementa recursos de outras áreas. Uma maior confiança na acessibilidade dos recursos está ligada à natureza de uma floresta diversa, onde a variação anual na produtividade de uma espécie está balanceada pela variedade de plantas disponíveis. Em estágio reprodutivo, as árvores frutíferas também garantem segurança alimentar por muito tempo. Dezenas de safras estarão atreladas à sua localização e, como o manejo de muitas espécies não levou à dependência total da planta na ação humana, mesmo que um bosque pare de ser manejado, sua produtividade com as árvores maduras pode continuar. E, como elemento final da resiliência do sistema, a diversificação na distribuição espacial da floresta entre os microambientes estimula o retorno de humanos e de outros animais, garantindo continuidade do manejo, mesmo que seja com menor intensidade.
A formação de florestas culturais é um fenômeno reconhecido em diversas regiões do mundo, onde concentrações de árvores existem, sendo, recorrentemente, promovida por práticas de manejo. Florestas de pinho em, pelo menos, três continentes foram exploradas e promovidas extensivamente; suas estruturas e dinâmicas ecológicas eram alteradas pelo manejo de fogo (Richardson et al., 2007). Na Califórnia, encontram-se florestas de carvalho (Quercus spp.) manejadas tradicionalmente com queima controlada (Bowcutt, 2013).
Em outros exemplos, como entre os Batek e Semang, da Malásia, observa-se variabilidade nas atitudes sobre a posse e a exploração de árvores frutíferas (Endicott, 1988). Os indígenas Batek De’ (subgrupo Batek) consideram que recursos não colhidos não podem ter dono, mas as árvores frutíferas nos diferentes vales dos rios são do grupo que habita o vale, e outros devem pedir licença antes de as utilizar. Essa visão contrasta com os indígenas Semang ocidentais, para os quais as árvores são de quem as plantou ou descobriu. Tais árvores são herdadas pelos filhos ou por quem as recebeu do dono, ainda em vida (Endicott, 1988). Uma diversidade cultural na estrutura de manejo de recursos florestais deveria ser esperada para a Amazônia, no entanto, lidando com ocupações antigas, aqui apontamos somente a relação do manejo à suposta alta mobilidade, e não à total diversidade das florestas culturais.
Para o Holoceno inicial, na Amazônia, o uso dos recursos de árvores frutíferas em lugares persistentes parece ter marcado constantemente o retorno das populações sobre seus próprios passos. Ao longo de gerações, estes lugares foram adquirindo novos significados. A história do lugar passou a ser um estoque de fatos e de acontecimentos que podem influenciar sua utilização futura.
A mobilidade de ‘caçadores-coletores’ é frequentemente mapeada na escala de pequenos grupos locais, desconsiderando as múltiplas escalas em que as pessoas interagiram, para além da extensão das redes de contato e movimentação de objetos e tecnologias. Essa perspectiva está mudando com a consideração de lugares persistentes, em estudos como os do Mesolítico europeu. Entende-se os lugares persistentes como elementos no sistema de mobilidade estendido. Para o Mesolítico, foi observado que o contato, as trocas e as interações se desenvolveram na escala do indivíduo, dos grupos locais e dos grandes sistemas regionais, catalisando uma complexa rede social e econômica de necessidades (Lovis et al., 2006). Tais redes de mobilidade são manifestadas em lugares persistentes. Quando pensamos na conexão de lugares com as pessoas que os utilizavam, devemos lembrar que Kelly (1992) observou o potencial para uma composição fluida dos grupos que podemos associar às diversas escalas de interação, pois, além de encontrar pequenos grupos forrageando com alta mobilidade, haviam momentos em que a população se organizava em agrupamentos maiores.
Olhando para os dados do Holoceno inicial e médio, observamos que um viés nos estudos sobre plantas foi a busca pelas primeiras espécies domesticadas9 e a associação, quase imediata, aos primeiros indícios de sedentarismo (Oliver, 2008; Piperno; Pearsall, 1998). Um viés que foca atenção em plantas domesticadas como elementos transformadores de sistemas econômicos impede a observação dos primeiros registros de plantas perenes como marcadores importantes no mundo cultural. Não queremos dizer que os sistemas de produção do Holoceno inicial na Amazônia eram todos iguais. Ao contrário, as metodologias de produção de bosques eram sistematicamente distintas em relação à abertura e à periodicidade de manejo exigidas. A lógica dominante do manejo de plantas perenes não conduzia à intensificação de produção de forma similar a como ocorreu no Holoceno médio, em mistura com os cultivos anuais, ou fora da Amazônia, na costa pacífica da América do Sul, onde não houve manejo agroflorestal. Seguindo o mesmo raciocínio, não é surpreendente que a área provável de domesticação de plantas anuais/bianuais, como mandioca, pimenta, feijão, amendoim e arroz, encontra-se fora ou à margem da floresta (Clement et al., 2010; Dickau et al., 2012; Hilbert et al., 2017; Piperno; Pearsall, 1998).
Há, por meio da ecologia histórica, aceitação de que a paisagem é produto do acúmulo de modificações sucessivas. Com dados etnográficos e históricos detalhados sobre populações amazônicas, podemos construir analogias sobre as práticas de manejo de seus antecedentes, sendo que seu legado teria permitido o uso do sistema atual. No uso da ecologia histórica como ferramenta de análise para contextos arqueológicos, procura-se dimensões temporais de transformação na composição dos recursos ambientais. Muitas vezes, são considerados distúrbios de coivara e sítios de terra preta como ambientes que servem de ponto inicial para entender manejo (Arroyo-Kalin, 2010; Oliver, 2008; Piperno; Pearsall, 1998). As terras pretas datadas ao Holoceno tardio foram frequentemente usadas como exemplos de áreas de cultivo anual de alta produtividade apropriadas às plantas domesticadas (Arroyo-Kalin, 2010; Clement et al., 2015). Entretanto, o início do cultivo está interpretado através das evidências de coivara que aparecem no Holoceno médio por meio de carvões em registros paleoambientais, especialmente de depósitos lacustres (Oliver, 2008; Piperno; Pearsall, 1998). Removendo a prática de coivara, resta uma horticultura itinerante, quando há evidências de plantas domesticadas (Oliver, 2008). Apesar do foco no humano como agente de transformação paisagística, seguindo esta lógica, a construção da natureza do forrageiro (Pleistoceno final), em momentos iniciais, seria definida pela exclusão de elementos introduzidos posteriormente ao longo do Holoceno. Se esses ‘forrageiros’ praticavam, então, manejo, seus primeiros sinais seriam as mais antigas terras pretas, áreas de coivaras ou ocorrência de planta domesticada, que seria beneficiada por distúrbio humano. Chamaremos esta visão de ‘conceito de exclusão’ (Figura 3A).
Em vez de retirar progressivamente as mudanças mais recentes (do Holoceno tardio ou médio) para entender paisagens antigas, é necessário partir dos dados, mesmos que parciais, do Pleistoceno final, analisando-se sua paisagem cultural e a manipulação de recursos. Se considerarmos que a hiperdominância pode ser um resultado da ação humana, sem necessariamente pensarmos na necessidade de distúrbio, a sequência do manejo amazônico não pode ser entendida com base em modelos externos.
Se as seis áreas definidas pelos estudos de Steege et al. (2013) representam uma Amazônia diversa, a diversidade das estratégias humanas seria um fato. Se as estratégias humanas de manejo no Holoceno inicial são diversificadas, são necessários os dados arqueológicos diretos destas ocupações para entender o início do manejo. Qualquer tentativa de interpretá-los excluindo variedades domesticadas do registro de sítios do Holoceno tardio falharia em alcançar esta diversidade. Os poucos dados que temos de Pedra Pintada e Peña Roja são bons exemplos disso, pois, apesar de demonstrar registro de plantas semelhantes (palmeiras), a intensidade de ocorrência das espécies é diferenciada de um contexto para outro.
Se pensarmos que o processo de construção, posse e uso das paisagens é cumulativo (inclusivo), os resultados seriam diferentes Amazônias, tanto no Holoceno tardio quanto no presente. Apresentamos esta proposta como um ‘conceito de inclusão’ (Figura 3B). Na Amazônia moderna, não se encontra um conjunto de plantas que caracteriza a floresta cultural, mas sim aumentos da abundância de variadas espécies úteis em diferentes combinações (Franco-Moraes et al., 2019). Isso sugere que o manejo de cada localidade tem suas particularidades, que só podem ser acessadas através de dados diretos de períodos antecedentes.
Se estamos propondo grande profundidade de tempo para as transformações antropogênicas da floresta, e se existem questões não resolvidas sobre os dados do Holoceno tardio, estas questões devem ser resolvidas antes que possam ser utilizadas como comparativo para o Holoceno inicial. McMichael et al. (2017) e Piperno et al. (2019) apresentaram críticas à antropização da floresta, com a justificativa de que os levantamentos de Steege et al. (2013) são feitos desproporcionalmente em áreas de ocorrências mais densas de sítios arqueológicos e as mais modificadas por populações tradicionais atuais ou de um passado recente. Deve-se notar que a distribuição geográfica de toda a pesquisa científica na Amazônia apresenta um padrão semelhante, devido às condições de acesso aos locais, sendo, portanto, um produto de pesquisas (dados arqueológicos compilados por Tamanaha, 2018), e não uma natureza subjacente. Onde os levantamentos arqueológicos foram realizados intensamente, e além da margem do rio, os sítios ocupam todas as posições geográficas10.
Levis et al. (2017) apresentaram dados que indicam que o viés geográfico das parcelas estudadas não explica grande parte dos padrões observados. Além disso, as três espécies de palmeira domesticadas, hiperdominantes, consideradas por Piperno et al. (2019) como com ausência de evidências quanto à modificação na distribuição ou na abundância provocada pelos humanos, são diferentes das cinco espécies destacadas por Levis et al. (2017).
Acreditamos que populações do Holoceno inicial focaram seu manejo vegetal em plantas perenes, especialmente palmeiras, com altos rendimentos que, hoje, se concentram em florestas culturais. Nesse sentido, reafirmamos que não devemos tentar excluir as plantas anuais para chegar nas espécies perenes, e sim partir delas para entender este processo como cumulativo (conceito de inclusão). Os processos de manejo através da aglomeração de plantas são interpretados a partir dos registros paleoetnobotânicos, além de dados mais explorados sobre os graus de modificações fenotípicos e/ou genotípicos11 (Clement et al., 2010).
Devemos nos questionar se as concentrações de palmeiras registram processos de manejo iniciados no começo do Holoceno. Essa possibilidade abre a janela para padrões de mobilidade e de instalação no espaço não associados às terras pretas ou às áreas de modificação intensiva. Um manejo bem sucedido na Amazônia demanda mudanças na estrutura do meio, na concentração de recurso vegetais e de suas dispersões. Essas concentrações tornaram-se, provavelmente, locais para um retorno das populações.
Os poucos dados arqueológicos que temos para o Holoceno inicial mostram uso intensificado das palmeiras durante as primeiras fases, porém, quando propagam as evidências de terras pretas e o uso de plantas domesticadas, há diminuição na ocorrência e variedade das palmeiras observadas. Se partirmos dos dados do Holoceno tardio, não alcançaremos esta diversidade, que só é observada nos contextos mais antigos.
Os modelos de entrada dos povos nas Américas apresentam a trajetória humana como uma constante migração, onde ocupações humanas ‘avançavam’ para dentro dos continentes, ao longo de mil ou mais anos. No entanto, projetamos que a realidade era diferente na vida individual. As pessoas não se deslocavam todo dia para áreas mais distantes, mas estabeleceram rotas de aquisição de recursos, permitindo uma relação entre pessoas e os locais onde habitavam. Além de conhecer os locais de moradia, essas pessoas conheceram seus recursos e o pulso da vida ecológica, iniciando os processos de manejo de plantas e o estabelecimento de território. Enquanto a mobilidade se manteve elevada, as pessoas caminhavam por cima dos próprios passos, estabelecendo lugares persistentes12. Juntamente às escalas, as composições dos grupos devem ter flutuado com ritmos culturais e anuais, similar ao que ocorreu no Mesolítico europeu, com conexões a longa distância, agregações de população em certas ocasiões e atividades nas quais grupos menores se dispersaram pelo território. Esses ritmos de movimento progressivamente permitiram a exploração e a migração por vários cantos dos continentes. Como refletido por Whallon e Lovis (2016), o complexo processo de colonização estabelece uma rede de lugares interconectados por meio da compilação de conhecimento espacial, relacionada às sequências de relevos distintos e estruturados no ritual, sagrado e cosmológico.
Estudos realizados na Amazônia sobre ocupações iniciais precisam dialogar com aqueles conduzidos em outras regiões do continente, em função da vida cotidiana. As pessoas não eram ‘adaptadas’ a uma ecologia específica que obedecia, geograficamente, os biomas que reconhecemos hoje. Populações estabeleciam limites territoriais por questões culturais, abrangendo lugares conhecidos e, muitas vezes, prestigiando diversidade (Turner et al., 2003).
Os humanos que ocuparam a Amazônia no final do Pleistoceno e no começo do Holoceno podem ser estudados através do conceito de inclusão, ao invés do de exclusão. O que a arqueologia procura nas suas culturas materiais, economias, paisagens culturais, ontologias etc. engloba tudo o que é do ser humano. Mesmo que, atualmente, sejam poucos os sítios arqueológicos que oferecem informações sobre a transição Pleistoceno/Holoceno na Amazônia, para trabalhar com o conceito de inclusão, é fundamental buscar dados das ocupações iniciais e não os interpretar com base nos dados mais recentes. Nosso conhecimento acadêmico sobre os lugares persistentes e as plantas manejadas não virá dos componentes de um sistema do Holoceno médio ou tardio, com exclusão de algumas espécies ou das práticas de cultivo. Observar a ação humana na Amazônia pelo conceito de inclusão permite pensar na história de longa duração das paisagens amazônicas, suas continuidades e descontinuidades, e estes fatores, tomados em associação com a evolução natural do ambiente, permitiriam observar dados arqueológicos e botânicos com maior precisão.
Além das florestas manejadas integrarem um sistema de mobilidade, devemos cogitar a utilização de plantas cultivadas, entre as quais estão as domesticadas, no estudo de mobilidade à longa distância (Zvelebil, 2006). Soa-se estranho que em uma disciplina como a Arqueologia, com prioridade em artefatos e aquisição de habilidades referentes a eles, as plantas não sejam consideradas como artefatos. Elas estão tão integradas economicamente quanto outros bens, podendo ser procuradas e trocadas. Além disso, os humanos ensinam e aprendem o conhecimento técnico necessário às estratégias de manejo para plantas, onde cada espécie exige um conhecimento quanto à distribuição, ao desenvolvimento, à fisiologia e à reprodução.
Os movimentos continentais de espécies exóticas para a floresta e de espécies amazônicas para outras regiões da América do Sul são provas da existência de redes de mobilidade que interligavam as populações do Holoceno inicial, em escala continental (Piperno; Pearsall, 1998). E a interconectividade de populações humanas dentro da Amazônia está registrada nas extensões geográficas alcançadas, desde o Pleistoceno, por suas árvores úteis.
Aceitando-se que a percepção do meio e dos lugares persistentes foi guiada por outras lógicas, não existe sentido na divisão da arqueologia atual entre os biomas (Amazônia, Cerrado, Andes etc.), provocando a necessidade de discussão acadêmica entre pesquisadores em todas as regiões. Ademais, havendo conexões sociais e econômicas (incluindo de troca) de longa distância no início do Holoceno, conceitualmente não tem lógica a ruptura das mesmas com a adoção de maior sedentarismo entre as populações. Na análise das escolhas tecnológicas de diferentes grupos, precisamos adentrar aos elementos sociais, em vez de estabelecer um discurso de ‘desconhecimento’, do mesmo modo que abandonamos determinismo ambiental como modelo de diferenciação sociopolítica.
Em síntese, a proposta de observar o registro arqueológico e arqueobotânico pensando em inclusão chama atenção para a necessidade de produzir mais dados a respeito das primeiras ocupações da Amazônia. Isso permitiria falar de forma explícita de uma diversidade cultural, que caracteriza populações humanas, e sua inserção na paisagem desde o final do Pleistoceno.
*Autora para correspondência: Myrtle Pearl Shock. Universidade Federal do Oeste do Pará. Rua Vera Paz. Santarém, PA, Brasil.CEP 68035-110 (profshock@gmail.com).