Resumo: A região de Santarém serviu de cenário para o desenvolvimento de uma das maiores sociedades regionais da Amazônia durante o período pré-colonial tardio. Os habitantes desta região, descritos pelas crônicas coloniais como ‘Tapajó’, ocuparam uma vasta área ao sul do sítio Santarém, centro sociopolítico dessa sociedade. No platô de Belterra, estabeleceram ocupações permanentes e autônomas, como o sítio Cedro, localizado a 30 km do sítio Santarém. Por meio do estudo do sítio Cedro, este trabalho visa aprofundar duas das vertentes desenvolvidas pelo paradigma histórico-ecológico: o método interdisciplinar e a perspectiva de longa duração. Através de análises cerâmicas e líticas, geoquímicas e arqueobotânicas, nosso estudo evidencia quatro áreas de atividade usadas pelos moradores do sítio: (1) uma área de preparo de alimentos, que também serviu de oficina cerâmica; (2) uma área de enterramento de vasilhas; (3) um bolsão ritual; e (4) um poço artificial. Ao relacionar o contexto arqueológico com o uso do espaço na longa duração, verifica-se que a presença de terra preta e de poços na área do platô de Belterra, que continuam sendo utilizados, nos permite refletir sobre as possíveis funções desses dois elementos durante a época pré-colonial e sobre a continuação de práticas sociais antigas na atualidade.
Palavras-chave: SantarémSantarém,ArqueologiaArqueologia,Ecologia históricaEcologia histórica,InterdisciplinaridadeInterdisciplinaridade,ArqueobotânicaArqueobotânica,GeoquímicaGeoquímica.
Abstract: The Santarém region served as the cradle for the development of one of the largest Amazonian societies during late pre-colonial times. The inhabitants of the region, described in colonial chronicles as “Tapajó,” occupied a large area south of the Santarém site, which was considered the socio-political center of this society. Permanent and autonomous settlements were established on the Belterra plateau, including the Cedro site (30 km from the Santarém site). This work uses the analysis of the Cedro site to explore two themes that have emerged from the historical/ecological framework: the interdisciplinary method and the long-term perspective. Using analysis of ceramics, stone, geochemical, and archaeobotanical analysis, we describe four areas used by the inhabitants: (1) a food preparation area that was also a ceramic workshop, (2) an area where vessels were buried, (3) a ritual pit, and (4) an artificial pond. Comparing the archaeological context with the long-term use of the space reveals the presence of both terra preta and ponds on the Belterra plateau that are still used by residents there. These findings allow us to reflect on possible functions of terra preta and ponds during precolonial times, as well as the continuation of ancient practices in the modern day.
Keywords: Santarém, Archaeology, Historical ecology, Interdisciplinary method, Archaeobotany, Geochemistry.
ARTIGOS
Uma abordagem interdisciplinar do sítio arqueológico Cedro, baixo Amazonas
An interdisciplinary approach to the Cedro archaeological site, Lower Amazon
Recepção: 21 Novembro 2018
Aprovação: 25 Fevereiro 2019
A região de Santarém apresenta uma longa história de ocupação humana, que remonta ao Pleistoceno final, com grupos nômades na Caverna da Pedra Pintada, em Monte Alegre ( Roosevelt et al., 1996). Em cerca de 6.000 AP, grupos semi-sedentários começaram a produzir cerâmica no sambaqui Taperinha e na Caverna da Pedra Pintada, os quais também apresentam vestígios de ocupações sedentárias a partir de 4.000 AP ( Roosevelt et al., 1991, 1996). Tais ocupações sedentárias também são encontradas em sítios ribeirinhos no baixo curso do rio Tapajós ( Alves, 2014; Gomes, 2008). Entre 1.000 e 350 AP, desenvolveu-se, na região, uma das maiores sociedades regionais da Amazônia descrita nas crônicas coloniais como ‘Tapajó’.
Os estudos de coleções que iniciaram a investigação dessas ocupações antigas focaram nas análises de objetos decorados e, portanto, caracterizaram principalmente a cerâmica Santarém, que ficou conhecida por seus elaborados padrões decorativos ( Barata, 1950, 1953, 1910b; Corrêa, 1965; Palmatary, 1960). Além disso, as teorias acerca da organização regional dessa sociedade se embasaram largamente no estimado valor simbólico dessa cultura material ( Palmatary, 1960; Roosevelt, 1980, 1987). No início do século XX, o etnólogo germano-brasileiro Curt Nimuendajú conduziu prospecções e escavações na região. O autor registrou 65 sítios arqueológicos, localizados ao Sul de Santarém, na região de Alter do Chão e Samaúma, Arapixuna, na margem Sul do Lago Grande de Vila Franca e na margem direita do Amazonas, entre o Lago Grande de Vila Franca e o Arapixuna ( Nimuendajú, 1952). No platô de Belterra, observou a presença de poços artificiais, tesos e caminhos indígenas ( Nimuendajú, 1952).
Projetos de pesquisa mais recentes (2006-2014) conduziram prospecções sistemáticas, abrangendo a totalidade da área escolhida, e não sistemáticas, abrangendo somente uma parte seletiva, em uma área de 12.000 hectares, na foz do rio Tapajós e no platô de Belterra – incluindo sítios na Floresta Nacional (FLONA) do Tapajós –, e identificaram 148 sítios arqueológicos pertencentes à cultura Santarém ( Alves, 2014; Figueiredo, 2019; Gomes et al., 2018; Schaan, 2016; Stenborg et al., 2012). O aspecto interdisciplinar, os objetivos e as metodologias desses projetos, alinhados com os conceitos promovidos pelo paradigma histórico-ecológico, ampliaram a abordagem do registro arqueológico na região, permitindo o estudo das relações entre as sociedades e o meio ambiente nessa área ( Levis et al., 2017; Maezumi et al., 2018a, 2018b; Stenborg, 2016). Dos 148 sítios identificados na região, 68 estão localizados no platô de Belterra. Esses sítios compartilham, além da cerâmica da cultura Santarém, estruturas de terra (poços, montículos, caminhos antigos), solos de terra preta e bolsões, considerados lixeiras rituais e fazem parte da cultura Santarém (Araujo da Silva, 2015, 2016; Gomes, 2012). Contudo, baseado no estado de preservação dos sítios, foram escavados sete sítios no platô de Belterra ( Figura 1), incluindo o sítio Cedro.
Neste artigo, apresentamos a caracterização de quatro áreas de atividade no sítio Cedro: (1) uma área de preparo de alimentos, que também serviu de oficina cerâmica; (2) uma área de enterramento de vasilhas; (3) um bolsão ritual; e (4) um poço artificial. Para tanto, combinamos múltiplas linhas de evidência contextuais e laboratoriais. Adicionalmente, durante a nossa participação nas prospecções e nas escavações conduzidas na área do platô de Belterra, foi observada continuidade no uso dos poços e dos solos antropogênicos pelos moradores atuais, que decidimos considerar nas nossas hipóteses funcionais sobre o uso dos espaços. Essa premissa se apoia em trabalhos de etnoarqueologia que propõem a possibilidade de continuidade cultural para certas práticas sociais, apesar das mudanças radicais ocorridas durante o período da conquista europeia ( Siegel; Roe, 1986; Silva; Rebellato, 2004).
O paradigma histórico-ecológico foi massivamente adotado pelos arqueólogos que trabalharam na Amazônia a partir dos anos 1980, como forma de contestar as teses da ecologia cultural e o neoevolucionismo, introduzidos no Brasil por Evans e Meggers (1950) durante a primeira metade do século XX. Este modelo, baseado na analogia etnográfica, argumentava que as condições ecológicas da Amazônia, consideradas desfavoráveis à prática da agricultura, não teriam permitido o desenvolvimento de grandes sociedades na área. A ecologia histórica tem como objetivo estudar as interações produtivas entre as sociedades e o meio ambiente, através de uma perspectiva regional e diacrônica, aplicando metodologias interdisciplinares ( Balée, 2006; Crumley, 1994, 2006; Erickson, 2008; Isendahl; Stump, 2018).
Na Amazônia pré-colonial, das interações entre as sociedades e o meio ambiente resultaram milhares de estruturas, como caminhos ( Heckenberger, 2005), poços ( Stenborg et al., 2018), montículos ( Machado, 2005; Roosevelt et al., 1991; Schaan, 2004), campos elevados ( Rostain, 2011) e estruturas geométricas formadas por valas ( De Souza et al., 2018; Watling et al., 2018), além da formação de solos antropogênicos ( Arroyo-Kalin, 2014; Kern, 2009; Lehmann et al., 2003) e de florestas antropizadas ( Levis et al., 2018; Maezumi et al., 2018a, 2018b). A fertilização intencional dos solos, a domesticação de plantas e os vários tipos de práticas agrícolas desenvolvidos na Amazônia pré-colonial permitem contradizer a ideia de que os solos supostamente inférteis da região nunca teriam permitido a emergência da agricultura, prática ligada por Meggers (1954) ao desenvolvimento das sociedades complexas.
Com o advento da ecologia histórica, combinada com a influência de correntes pós-processuais, como a arqueologia colaborativa e as ontologias relacionais, os arqueólogos assumiram uma visão mais heterogênea sobre as sociedades passadas. Desse modo, os seguidores da ecologia histórica combinaram os dados arqueológicos com as crônicas coloniais e as observações etnográficas, a fim de reconstruir uma história indígena dinâmica e de longa duração ( Roosevelt, 2000; Viveiros de Castro, 1996).
O presente artigo pretende seguir uma vertente mais recente da ecologia histórica, representada pelo uso das ciências sociais e naturais, para estudar os ambientes passados e acessar a influência antrópica nos sítios arqueológicos. Estudos deste tipo têm focado nos solos antropogênicos ( Schmidt et al., 2014), na composição florestal moderna e passada ( Maezumi et al., 2018a; Watling et al., 2017) e nas práticas de subsistências, através de análises arqueobotânicas e antracológicas ( Maezumi et al., 2018b). Esta perspectiva teórica será utilizada com a finalidade de acessar o uso do espaço intrassítio do Cedro. Este estudo é inovador por trazer o uso concomitante de análises cerâmicas e líticas contextuais, geoquímicas e arqueobotânicas para a pesquisa das áreas de atividade e as reconstituições das práticas quotidianas, com uma abordagem que se aparenta com a etnoarqueologia ( Siegel; Roe, 1986). Assim, o uso de paralelos etnográficos permite relacionar a arqueologia com o presente e possibilita tratar de um dos princípios-chave do paradigma histórico-ecológico: a perspectiva de longa duração.
A perspectiva de longa duração, incentivada pela ecologia histórica, abriu uma discussão sobre o papel da arqueologia para refletir sobre sustentabilidade ambiental no presente ( Hayashida, 2005; Heckenberger, 2014; Isendahl; Stump, 2018). Assim, na Amazônia, maior ecossistema florestal do mundo, os pesquisadores afirmam que o conhecimento indígena passado e presente sobre o manejo do meio ambiente poderia trazer soluções sustentáveis para frear o desmatamento intensivo da floresta amazônica e, por consequência, ajudar a lutar contra o aquecimento global ( Heckenberger, 2012; Posey; Balick, 2006). Uma das principais evidências arqueológicas apoiando este discurso é a criação dos solos antropogênicos (terra preta), caracterizados pela sua fertilidade, sustentabilidade e associação com uma alta biodiversidade ( Erickson, 2008; Madari et al., 2004; Schmidt, 2013).
Enquanto os dados sobre cultura material, geoquímica e arquebotânica apresentados neste trabalho provêm das escavações do sítio Cedro, as reflexões sobre a possível continuidade, no presente, de práticas sociais passadas são baseadas em dados das prospecções dos 68 sítios localizados no platô de Belterra, os quais são caracterizados pela presença de terra preta, sendo que 35 possuem poços naturais e artificiais utilizados para armazenar as águas de chuvas em uma área afastada dos rios principais ( Stenborg, 2016; Figueiredo, 2019). Durante as prospecções dos sítios, foi observado que moradores da área de Belterra continuam utilizando a terra preta para o cultivo das suas hortas e se aproveitam dos poços indígenas, que ainda retêm água para criar peixes e até introduzir outros animais aquáticos, como jacarés e tracajás. Baseando-se em outros estudos, sabemos que a manutenção de poços potencialmente contribui com o aumento da biodiversidade ( Pino et al., 2006). Assim, a observação, no presente, de práticas sociais passadas permite refletir tanto sobre a função dos solos e das estruturas dos sítios no platô de Belterra quanto sobre práticas de manejo sustentáveis no presente ( Figura 2).
O platô de Belterra, onde se localiza o sítio do nosso estudo, pertence à planície amazônica, cuja época de formação remonta ao período do Plio-Pleistoceno ( Sombroek, 1966). A elevação do platô situa-se entre 60 e 180 m acima do nível do mar, com altitude de 175 m no município de Belterra ( Sombroek, 1966). A região apresenta clima intertropical úmido, com temperatura média de 25 ºC (18-32,6 ºC). A vegetação do platô apresenta vários tipos de floresta tropical úmida. A média de precipitação anual é de 2.000 mm (1.900-2.110 mm), com precipitações mais intensas entre janeiro e maio ( Sandel; Carvalho, 2000). Apesar da existência de inúmeros igarapés, o platô é afastado dos grandes rios. Essa situação geográfica levou os seus antigos moradores a construírem poços, que, por vezes, se aproveitaram do relevo natural do terreno para armazenar as águas das chuvas ( Nimuendajú, 1952, 2004; Stenborg et al., 2018).
O sítio Cedro (UTM 21M 746707/9707942) localiza-se na margem da BR-163, a 23 m da rodovia. O sítio está a 30 km da foz do rio Tapajós, onde está localizado o maior sítio arqueológico associado à cultura Santarém, considerado como centro sociopolítico dessa sociedade ( Gomes et al., 2018; Roosevelt, 1993, 1999; Schaan, 2016). O sítio é atualmente moradia do senhor José Rocha de Souza e de sua família, que praticam agricultura de coivara e cultivam um quintal em sua terra. Todos os membros da família participaram das nossas atividades de pesquisa. Enquanto a casa e as suas dependências (caminhos, currais e horta) impactaram a parte sul do sítio arqueológico, a área ao norte da casa ainda está muito bem preservada. A cobertura vegetal do sítio consiste de densa floresta tropical úmida, com presença de várias espécies indicadoras de floresta antropogênica (por exemplo, castanheiras, açaizeiros, curuazeiros e tucumãzeiros) ( Balée, 1989).
O sítio foi delimitado e escavado entre julho e agosto de 2011, com definição de áreas intrassítio através de unidades de escavação e de sondagens ( Figura 3). Foram escavadas 13 unidades de 1 x 1 m, além de uma trincheira de 5 x 1 m, que foi aberta acima do poço. As unidades de 1 x 1 m foram expandidas à medida que se encontravam feições arqueológicas. Essas unidades foram escavadas por níveis artificiais de 10 cm, controlados por níveis naturais. Essas escavações resultaram na coleta de 7.954 fragmentos cerâmicos, 2.102 bolotas de argila queimada e 86 líticos ( Schaan; Martins, 2012) 1.
Foram analisadas 26 amostras de solo para geoquímica, 20 coletadas em contexto durante as escavações e seis em um perfil de solo de referência. Para a análise de fitólitos, foram analisadas, no total, 19 amostras: quatro do perfil de referência, seis do bolsão, cinco da unidade doméstica, duas dentro de uma vasilha enterrada e duas no seu contexto de deposição.
O pH do solo foi determinado em água [1:2.5]. A análise multielementar foi feita pelo laboratório NRM Ltda. Foram analisados os cátions básicos (Ca 2+, Mg 2+, K + e Na +), micronutrientes (Mn, Zn, e Cu), alumínio trocável (Al 3+), fósforo total e disponível (P Mehlich-1), carbono total (C), nitrogênio total (N) e a razão carbono-nitrogênio (C-N). A matéria orgânica foi calculada pela multiplicação do total de carbono por 1,72 ( Kern, 2009). A capacidade de troca de cátions (CTC) a pH 7 foi determinada pela soma dos cátions básicos (CTC= Ca 2+ + Mg 2+ + K + + Na +). A porcentagem de saturação por bases (V) foi calculada seguindo a equação estabelecida no World Reference Base for Soil Resources ( IUSS Working Group WRB, 2015): (%V = [(Ca 2+ + Mg 2+ + K + + Na +) / (Ca 2+ + Mg 2+ + K + + Na - + Al 3+) * 100).
O pH mede a acidez e o teor de Al 3+ indica a toxicidade do solo. Solos muito ácidos apresentam elevadas taxas de Al 3+ e, portanto, são também mais tóxicos para o desenvolvimento de plantas ( Falcão et al., 2009). A CTC e a saturação por bases (V) medem a fertilidade e o potencial produtivo do solo, pois indicam a retenção e a disponibilidade de macro (Ca, Mg, K e Na) e de micronutrientes (Zn e Mn) no solo ( Madari et al., 2009). A razão C-N mede a estabilidade da matéria orgânica à decomposição, solos mais estáveis são mais resistentes à degradação e têm maior capacidade de acúmulo de nutrientes. Múltiplas funções no solo são condicionadas pelos teores de matéria orgânica (MO), entre as quais equilibrar a CTC, a retenção de água e a estabilidade do solo (razão C-N). O carbono e o nitrogênio são indicadores dos conteúdos de matéria orgânica no solo ( Woods, 2009), como evidenciado acima, a MO foi estimada com base no teor de carbono total. O teor de P total e disponível é um indicador-chave de contextos antropogênicos que também é útil na distinção entre áreas de atividade ( Woods, 2009).
Latossolos distróficos apresentam acidez elevada (pH baixo), com alta concentração de Al 3+, baixos teores de matéria orgânica e, consequentemente, menores CTC e saturação por bases, resultando em um solo menos estável (baixa razão C-N) e com menor acúmulo de nutrientes. Em contrapartida, as terras pretas arqueológicas têm menor acidez (pH mais alto) e toxicidade (menores taxas de Al 3+), bem como altos teores de MO, CTC, saturação por bases, além de carbono orgânico apresentando elevadas concentrações de nutrientes e aumento nas proporções de N e P.
A análise da cultura material foi conduzida no Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Enquanto as indústrias líticas foram analisadas por Tallyta Suenny Araújo da Silva, a primeira autora deste artigo conduziu as análises cerâmicas. Foram analisados 1.424 fragmentos diagnósticos, dos 7.954 fragmentos de cerâmica coletados nas prospecções e escavações efetuadas no sítio Cedro. Esses fragmentos incluem bordas, bases, flanges, alças, apêndices modelados, estatuetas e todas as peças decoradas. Selecionamos as bordas, as bases e os flanges para estimar o número mínimo de vasilhas (NMV) e reconstituímos a circunferência original das vasilhas com a ajuda de um ábaco. Todas as vasilhas foram desenhadas por meio do programa CorelDraw X7, com fim de facilitar a classificação delas em categorias funcionais. O tempero dos fragmentos foi observado através de uma lupa binocular (4X), e a cor dos fragmentos foi determinada com base no Munsell Soil Color Book ( Munsell, 2009). A espessura dos fragmentos foi medida com um paquímetro um pouco abaixo do lábio. O tipo de queima foi descrito com base no trabalho de Rye (1976). Todos os tratamentos de superfície e de decorações foram registrados. Além das vasilhas, também foi analisada a cerâmica associada à produção e ao uso desses recipientes, como as bolotas de argila e as trempes. Enfim, a literatura especializada ( Rice, 1987; Rye, 1976; Shepard, 1985; Schiffer et al., 1994) permitiu classificar as vasilhas em três tipos funcionais de vasilhas: (1) para cozinhar, (2) para servir e (3) para armazenar líquidos.
Os vestígios arqueobotânicos analisados foram os fitólitos, que são corpos silicosos, formados entre e dentre as células das plantas ( Piperno, 2006). As plantas absorvem silício solúvel dos lençóis freáticos através das raízes e comumente o acumulam, via mecanismos genéticos e ambientais, em órgãos aéreos (folhas, caule e inflorescência), mas algumas plantas também silicificam órgãos subterrâneos (raízes e rizomas) ( Piperno, 2006). Após a decomposição da planta, os fitólitos são liberados no solo e, por sua composição mineral, são bastante resistentes a intempéries. São também considerados, a priori, evidências in situ da vegetação local, observados os processos tafonômicos e as propriedades do solo, que podem influenciar a sua preservação ( Madella; Lancelotti, 2012; Zurro et al., 2016). As associações taxonômicas são variadas, com algumas famílias, gêneros e espécies de plantas produzindo morfotipos diagnósticos, enquanto, por exemplo, a maioria das arbóreas eudicotiledôneas produz o mesmo morfotipo globular granulado ( Rovner, 1983). Para a Amazônia, estudos de coleção de referência têm aperfeiçoado a resolução taxonômica, possibilitando a diferenciação entre formações florestais através das assembleias de fitólitos ( Dickau et al., 2013; Watling et al., 2016), a identificação de famílias de árvores frutíferas ( Piperno, 2006) e a distinção entre as Arecaceae (palmeiras), as quais compreendem inúmeras espécies comestíveis e úteis ( Morcote-Ríos et al., 2016). Portanto, os fitólitos consistem de um excelente vestígio para se compreender tanto a cobertura vegetal no passado quanto o manejo desse recurso por populações pretéritas.
A extração de fitólitos foi conduzida pela segunda autora de acordo com o método de oxidação úmida descrito por Piperno (2006). Amostras de 100 g foram defloculadas em uma solução de 900 ml de água morna com 50 g de hexametafosfato de sódio (NaPO 3) 6, deixadas por 24 h em um misturador mecânico. A remoção de argilas foi conduzida por sedimentação e fracionada em siltosa (< 50 μm) e arenosa (> 50 μm) por peneira molhada. Carbonatos foram removidos em ácido clorídrico 10٪ (HCl) e a matéria orgânica, com ácido nítrico (HNO 3). Os fitólitos foram flotados em uma solução de metais pesados (ZnBr 2) e retirados por pipeta. As lâminas foram montadas utilizando-se Entellan©, e a identificação dos fitólitos foi feita em microscópio Axiovision© 40 nas magnificações 200x (> 50 μm) e 500x (< 50 μm), respectivamente. A identificação baseou-se na coleção de referência do Laboratório de Arqueobotânica da Universidade de Exeter e em extensa literatura especializada ( Chandler-Ezzel et al., 2006; Dickau et al., 2013; Gu et al., 2013; Iriarte; Paz, 2009; Kondo et al., 1994; Madella et al., 2014; Morcote-Ríos et al., 2016; Pearsall, 2010, 2016; Piperno, 2006; Twiss et al., 1969; Watling et al., 2017). Seguimos o Código Internacional para Nomenclatura de Fitólitos ( Madella et al., 2005), traduzido para o português.
Os resultados sobre a funcionalidade dos espaços no sítio Cedro são interpretados à luz de dados etnoarqueológicos, que demonstraram os padrões de antropização do solo e de distribuição das áreas de atividade entre comunidades tradicionais na Amazônia ( Schmidt, 2013; Silva; Rebellato, 2004), sem necessariamente assumir uma ausência de mudanças culturais, como acontecia no modelo da ecologia cultural.
O sítio Cedro apresenta uma grande área de solos antropogênicos, superficialmente formada por terra preta, circundada por áreas de terra marrom 2, que contrastam com o latossolo natural da área. Contudo, manchas de terra marrom foram registradas em meio à terra preta, tanto em superfície quanto em profundidade, particularmente em algumas áreas de atividade ( Figura 3). A extensão do sítio baseada na distribuição da terra preta foi estimada em 6 ha ( Schaan; Martins, 2012), o que, em termos de comparação representa o tamanho atual de uma aldeia Kuikuro no alto Xingu ( Heckenberger, 2005). Porém, consideramos que a dimensão original do sítio era provavelmente maior, haja vista o impacto das atividades modernas dos moradores em uma parte do sítio.
O sítio Cedro apresenta antrossolo (terra preta: 10YR 3/1 a 4/3) sobre latossolo amarelo distrófico (10YR 6/8). O perfil de referência apresentou latossolo amarelo distrófico extremamente ácido (pH 3,8-4,1), abundante em Al 3+, com baixas CTC e saturação por bases (V), assim como acúmulo limitado de matéria orgânica, de nutrientes (Ca, Mg, Mn, Zn e K), de elementos (C, N e P totais) e de razão C-N (11,1-12). Ou seja, um solo pouco fértil e não estável. Nos contextos aqui analisados, a camada de latossolo apresentou teores de fósforo (total e disponível) mais altos do que no perfil de referência. Essa alteração na concentração de fósforo corrobora a influência antrópica no sítio Cedro, haja vista que este elemento apresenta grande mobilidade vertical por lixiviação e por processos pedogênicos ( Kampf et al., 2003; Kern, 2009). Adicionalmente, o acúmulo de fósforo no latossolo variou de acordo com cada área de atividade ( Figura 4).
Foram realizadas seis datações radiocarbônicas em carvões coletados durante as escavações das diferentes feições ( Quadro 1). As datações dos carvões corroboram as datações obtidas anteriormente por Schaan (2016), à exceção da trincheira onde não foram datados os depósitos arqueológicos. Assim, essas datações confirmam a ideia de uma expansão tapajônica tardia com assentamentos permanentes na área do platô de Belterra ( Stenborg, 2016). Os séculos XIV e XV são considerados, pela literatura, como a época de apogeu da cultura tapajônica na região do baixo Amazonas ( Quinn, 2004; Roosevelt, 1999).
Utilizamos pesquisas etnoarqueológicas para classificar quatro áreas de atividades localizadas em três espaços diferentes da aldeia ( Siegel; Roe, 1986; Silva; Rebellato, 2004). Os espaços foram caracterizados pela cor e pela textura do solo, assim como pela densidade e pelo nível de fragmentação dos artefatos. Eles estão divididos em espaços (1) público e comunitário, (2) privado e doméstico e (3) de descarte. O primeiro é caracterizado pela presença de terra marrom e de uma baixa densidade de artefatos, pois costuma ser mantido limpo de descartes ( Silva; Rebellato, 2004). O segundo espaço apresenta maior quantidade de vestígios e é onde estão localizadas duas das áreas de atividade analisadas neste trabalho: (1) para o preparo de alimentos, que também serviu de oficina cerâmica, e (2) de enterramento de vasilhas. Essas áreas estão associadas a um piso doméstico caracterizado por superfície compacta e pouca densidade artefatual, pois foram somente coletadas pequenas vasilhas, carvões e concreções lateríticas. O espaço de descarte contém as outras duas áreas de atividades analisadas neste trabalho: (1) um bolsão ritual e (2) um poço artificial. Essas duas áreas, por sua vez, são caracterizadas pela presença de uma camada profunda de terra preta e alta densidade de artefatos arqueológicos, havendo mais artefatos decorados nessas feições do que nas áreas adjacentes ( Schaan; Martins, 2012).
A análise lítica resultou na classificação dos artefatos em sete tipos: (1) alargador de orelha, (2) rodela de fuso, (3) machado, (4) núcleo, (5) lasca, (6) abrasador e (7) não classificados. Foi encontrado somente um alargador, feito de hematita, abaixo de uma das vasilhas enterradas (a seguir, apresentamos a descrição do contexto). Foram coletadas três rodelas de fuso, sendo que duas estavam na área de preparo de alimentos. Uma dessas rodelas é confeccionada em hematita e possui decoração típica das rodelas de fuso associadas à cultura Santarém. Fragmentos de machados estavam dispersos no sítio. Os fragmentos de núcleo e as lascas em sílex são associados a itens de troca ou de comércio, pois esta matéria-prima encontra-se nas localidades de Monte Alegre e Itaituba (Araujo da Silva, 2015). ‘Dentes de raladores’ em sílex foram encontrados em maior quantidade, associados a área de cozimento. Os fragmentos de abrasadores são majoritariamente confeccionados em arenito, material disponível graças à formação Alter do Chão. Enfim, os líticos não classificados dividem-se em fragmentos de artefatos polidos, fragmentos de arenito, que podem corresponder à matéria-prima, ou a fragmentos de abrasadores, lateritas e seixos em quartzo.
Baseada em ampla literatura especializada ( Deboer, 1991; Deboer; Lathrap, 1979; Lagrou, 2007; Rice, 1987; Rye, 1976; Shepard, 1985; Silva; Lima, 2015), a análise tecnofuncional da cerâmica possibilitou a classificação das vasilhas do Cedro em três categorias, sendo: 97 para cozinhar, 258 para servir e seis para armazenar líquidos ( Figura 5). As vasilhas para cozinhar possuem formas restritas e globulares. Elas geralmente apresentam uma borda direta, com lábio redondo. Algumas vasilhas também têm um gargalo e apresentam bordas expandidas ou invertidas, com lábios redondos, reforçados ou pontudos. Elas são alisadas em ambas superfícies e podem apresentar decorações de incisão, ponteado, ponteado arrastado ou filete aplicado na borda. Essas decorações simples podem ter contribuído para aumentar a resistência térmica das vasilhas, pois eram expostas ao fogo, como sugerido pelas marcas de fuligem que apresentam ( Schiffer et al., 1994). Essas vasilhas são temperadas com pouco cauixi, caco moído e rocha triturada. Elas apresentam queima redutiva e diâmetro médio da boca entre 7,7 cm a 24 cm. A espessura média das paredes varia entre 0,6 cm e 0,9 cm.
As vasilhas para servir são tigelas irrestritas e apresentam três variações formais: (1) tigelas médias a grandes, com base anular, bordas extrovertidas ou paredes formando uma carena com uma boca expandida, invertida ou restrita; (2) pequenas tigelas com uma boca restrita e (3) tigelas fundas com paredes verticais ou curvas e borda invertida ou expandida. Essas vasilhas são alisadas em ambas superfícies e apresentam decorações mais variadas do que as vasilhas para cozinhar, como engobo vermelho, pintura vermelha, filete aplicado com incisão, ponteado ou excisão. Elas são temperadas com pouco cauixi, caco moído e rocha triturada, com queima redutiva. Para as tigelas médias e grandes, o diâmetro médio da boca varia entre 18,4 cm e 19,5 cm e a espessura média das paredes varia entre 0,6 cm e 1 cm. As tigelas pequenas apresentam diâmetro médio da boca de 7,3 cm e espessura média das paredes de 0,4 cm.
As vasilhas para armazenar líquidos são restritas, e apresentam gargalo com uma borda reta e paredes encurvadas. Elas têm a superfície alisada em ambos lados e são temperadas com pouco cauixi, caco moído e rocha triturada. Essas vasilhas são decoradas com engobo vermelho, filete aplicado ou incisão. Elas apresentam queima redutiva. O diâmetro médio da boca é de 6,7 cm e a espessura média das paredes é de 0,6 cm.
A Figura 6 apresenta os morfotipos de fitólitos identificados e suas respectivas associações taxonômicas. As assembleias de fitólitos dos contextos analisados apresentaram uma diversidade de morfotipos que são vestígios de plantas nativas comestíveis, úteis e domesticadas cultiváveis, bem como indicadoras da cobertura vegetal do sítio. No total, 60 morfotipos de fitólitos foram identificados no sítio Cedro, dos quais 23 são significativos para os contextos aqui analisados. Informações detalhadas sobre os demais são encontradas em Alves (2017). Entre os 29 fitólitos diagnósticos da família Poaceae (gramíneas), destacamos o buliforme angular da folha de Oryza sp. (arroz selvagem) e o bilobado com pontas cavadas (Oryzeae). Além das gramíneas, oito morfotipos de monocotiledôneas foram identificados: globular espinhado de Arecaceae (palmeiras), globular espinhado simétrico cf. Euterpeae/Mauritiinae (Arecaceae), globular espinhado alongado cf. Attaleinae (Arecaceae), globular espinhado com projeções curtas cf. Euterpe sp. – açaí (Arecaceae), corpos coniformes cf. Bactris/ Astrocaryum spp. – pupunha/tucumã (Arecaceae), corpo poligonal cf. Cyperus sp. (Cyperaceae), cilíndro com eixo e saliências cf. Maranta arundinacea – araruta (Marantaceae) e cilíndro com domo reto cf. Calathea allouia – ariá (Marantaceae). A família Asteraceae é representada por plaquetas opacas perfuradas. Quatro morfotipos identificados são produzidos por eudicotiledôneas lenhosas (arbóreas) e arbustos: plaqueta pontilhada da semente de Celtis sp. – gurupiá (Cannabaceae), corpo com facetados irregulares, produzidos nas folhas de Annonaceae, globular granulado produzido no lenho de árvores e arbustos e esclerênquimas com protrusões das folhas e cascas de árvores e arbustos. Os morfotipos globular, granulado e esclerênquima são conjuntamente descritos nas seções a seguir como ‘arbóreas’. Adicionalmente, fitólitos de espiga e palha de Zea mays (milho), das células secretoras de Manihot esculenta (mandioca), assim como os produzidos na casca de Cucurbita sp. (abóbora) foram identificados.
Arbóreas (variação: 61-66%) dominam as assembleias de fitólitos provenientes do perfil de referência (TP1) com pequenas proporções de Annonaceae (média: 1%) e de Celtis sp. (<1%), os quais, somados às Arecaceae (2-9%), indicam cobertura vegetal fechada no latossolo do sítio Cedro ( Figura 7). A proporção de Arecaceae aumenta da base para o topo do perfil, em detrimento de variações nas herbáceas. Cabe ressaltar que os morfotipos de Arecaceae mais frequentes são os de Mauritiinae/Euterpeae, seguidos por Attaleinae e Bactris/ Astrocaryum spp. Portanto, todas as Arecaceae representadas são plantas úteis tanto como alimento quanto como matéria-prima; as Attaleinae também são consideradas indicadoras de perturbação na estrutura vegetal. Annonaceae e Celtis sp. também são comestíveis e indicadoras de floresta secundária ( Knüpffer; Hanelt, 2001; Levis et al., 2017). O aumento nas Arecaceae, em conjunto com a constante presença de Annonaceae e Celtis sp., sugere intervenção humana na vegetação do entorno do sítio Cedro, fora do solo antropogênico. Esse impacto na vegetação no entorno de sítios arqueológicos também foi observado na FLONA Tapajós ( Levis et al., 2017, 2018; Maezumi et al., 2018a), bem como em outras partes da Amazônia ( Lins et al., 2015; Quintero-Vallejo et al., 2015). Entre as herbáceas (33-37,5%), as Poaceae (11-29,5%) são mais abundantes e também incluem Marantaceae (variação: 3,5-9,5%), Asteraceae (1,5-8,5%) e Cyperaceae (< 1%).
As unidades 1, 4, 5, 7, 8, 10, 11 e 13 pertencem todas a um contexto de piso doméstico, medindo, aproximadamente, 18 m de diâmetro, do qual foi escavado uma área de 8,5 m 2 ( Figura 3). A parte oeste do piso não foi escavada devido à presença de uma área de plantio. A área utilizada para o preparo de alimentos e para a confecção de cerâmica foi identificada por meio da presença de uma estrutura de combustão, aos 43 cm de profundidade, abaixo do piso de casa, sendo eles contemporâneos (unidades 7 e 8). Essa estrutura estava associada a fragmentos cerâmicos, líticos, muitas bolotas de argila (637,6 g) e adobe queimada, assim como a carvões e sementes carbonizadas.
O latossolo sob o piso da casa consiste de um solo culturalmente estéril, extremamente ácido (pH 4,3) e abundante em Al 3+ (toxicidade alta). Esse latossolo tem baixos CTC, saturação por bases, acúmulo de nutrientes, bem como pequenas concentrações de C e N totais e de P (total e disponível). De todo modo, o teor de P ainda é o maior documentado no sítio, consistente com os resultados provenientes do piso da casa, que apresentou o antrossolo mais enriquecido do sítio Cedro. Como mencionado anteriormente, altos teores de P no solo estéril são indicadores do impacto antropogênico em sua composição ( Kampf et al., 2003). As amostras provenientes da área de cozimento apresentaram solo moderadamente ácido (pH 5,5-5,9), indicando maior alteração na acidez do solo nesta área do sítio. O impacto antrópico na composição do solo é corroborado por alta CTC, saturação por bases e matéria orgânica comparadas ao perfil de referência ( Figura 8). Da mesma forma, as maiores proporções de enriquecimento nutritivo e elementar foram registradas nesse contexto. Elevadas concentrações de C, N e P totais resultaram em um solo estável (razão C-N: 18,2) e possibilitaram o acúmulo de nutrientes, os quais têm picos de concentração na área de cozimento. Prováveis fontes de C, nutrientes (Zn, Mg e K) e P disponível são os resíduos de fogueira ( e.g. cinza, carvão e sementes carbonizadas) documentados na área de cozimento. Estimamos que restos de alimento animal sejam fontes adicionais de Ca e P.
Foi identificada maior quantidade de vasilhas, especialmente com a função de cozinhar, nesta área do sítio, a qual também foi o espaço com mais variação de pastas cerâmicas. Artefatos líticos como rodelas de fusos, um machado, um abrasador e pequenas lascas de sílex do tipo ‘dentes de raladores’ também foram coletados. Apesar desses últimos artefatos terem sido associados por muito tempo ao preparo exclusivo da mandioca, novos estudos mostram uso mais diversificado ( Dickau et al., 2012; Duarte-Talim, 2015; Perry, 2004). No caso de ‘dentes de raladores’, esse possível uso diversificado é reforçado pela presença de fitólitos de mandioca, milho, cf. araruta e cf. ariá nas amostras provenientes da fogueira. Na literatura etnográfica, lascas desse tipo são geralmente preparadas por mulheres e utilizadas no preparo de alimentos (Araujo da Silva, 2015; Prous et al., 2009-2010). Dentro da estrutura de combustão, foi encontrado um abrasador de arenito com sulcos negativos associado à decoração cerâmica (Araujo da Silva, 2015).
As amostras de fitólitos provenientes dessa unidade mostram clara distinção entre os contextos de antes e de depois da construção do piso ( Figura 9). Abaixo do piso (latossolo), a assembleia de fitólitos constitui-se de uma mistura de fitólitos de arbóreas (média de 53%) e herbáceas, majoritariamente Poaceae (média de 34%) e Marantaceae (média de 8%). Um fitólito de milho e os morfotipos de açaí, pupunha/tucumã e outros de Arecaceae (média de 1,5%) também foram identificados em pequenas proporções nessas amostras, possivelmente depositados durante a abertura do buraco para fogueira.
Consistente com o contexto de queima e com a grande quantidade de carvão, fitólitos de arbóreas aumentaram (média de 61%) nas amostras da fogueira. Além disso, a proporção de Poaceae diminuiu (média de 20%), enquanto a de Marantaceae aumentou (média de 12,5%). Como mencionado, entre as Marantaceae foram identificados fitólitos de cf. araruta e cf. ariá, registrando o consumo dessas raízes no Cedro em concomitância com mandioca, milho e abóbora, todos presentes no contexto de cozimento. Adicionalmente, foram recuperados fitólitos de outras plantas nativas comestíveis ( e.g. Annonaceae, Arecaceae, Cyperus sp., Celtis sp.). Entre as Arecaceae (média de 8%), os fitólitos produzidos por pupunha/tucumã foram mais abundantes (6%). A maior presença de fitólitos de palmeiras é consistente com a grande quantidade de sementes carbonizadas de palmeiras, coletadas na fogueira durante as escavações. A predominância de fitólitos de pupunha/ tucumã indica o favorecimento dessas palmeiras comestíveis pelos habitantes do Cedro. A decomposição de todos esses recursos vegetais contribuiu com o enriquecimento do solo nesse contexto.
Três vasilhas enterradas foram encontradas abaixo do piso doméstico, nas unidades 11 e 13. Tanto as mudanças de coloração e de textura dos sedimentos quanto as datações radiocarbônicas comprovam que essas vasilhas foram enterradas depois da construção do piso ( Schaan; Martins, 2012). A vasilha 1 foi encontrada aos 48 cm de profundidade no latossolo e estava associada a fragmentos de carvão e a bolotas de argila queimada. Um alargador de orelha em hematita foi coletado abaixo dessa vasilha, sendo classificado como um artefato indicador de alto status. Na amostra coletada sob essa vasilha ( Figura 10), foi documentada a prevalência de fitólitos de arbóreas (67.5%), incluindo Arecaceae (1%), Annonaceae e Celtis sp. (média < 1%). As proporções de Poaceae (17,5%) e de Marantaceae (10%) são similares às registradas nos níveis superiores da unidade doméstica, as quais possivelmente resultam do evento de abertura do buraco para deposição da vasilha 1.
As duas outras vasilhas (vasilhas 2 e 3) estavam emborcadas, uma dentro da outra, e foram coletadas aos 19 cm de profundidade. Trata-se de duas grandes vasilhas (uma delas tem 44 cm de diâmetro) usadas para servir alimentos com estilo semelhante ao restante da indústria cerâmica do sítio Cedro. Elas também estavam associadas a carvões e bolotas de argila, porém nenhum desses contextos apresentou cinzas. O único vestígio ósseo encontrado é um pequeno fragmento triangular, medindo 1,8 x 1,6 cm,
coletado dentro da segunda vasilha, que é um osso de mamífero exposto a fogo baixo durante um período prolongado ( Troufflard, 2017). A escavação das vasilhas não comprovou um contexto de enterramento secundário, porém, por questões de preservação, essa opção não pode ser totalmente descartada ( Troufflard, 2017). De fato, a preservação de possíveis ossos pode ter sido comprometida por vários fatores, como a acidez do solo, as bioturbações ou, ainda, o tipo de prática funerária. A ausência de dentes no presente contexto, que são os ossos que melhor se preservam, poderia resultar de uma inumação primária, seguida de uma inumação secundária dos ossos ou da cremação dos mesmos sem os dentes (informação verbal) 3.
Sob a vasilha 2, também foi registrada a predominância de fitólitos de arbóreas ( ca. 51,5%), somadas a baixas proporções de Arecaceae e de Celtis sp. (média < 1%). Entre as herbáceas, fitólitos produzidos por Asteraceae foram os mais frequentes (25%), seguidos por Poaceae (18%) e por pequenas quantidades de Marantaceae (3,5%), Cyperaceae e Oryzeae (< 1% cada). Adicionalmente, um fitólito de milho foi identificado nessa amostra. Considerando-se a ausência de Asteraceae nas outras amostras provenientes do contexto de vasilhas enterradas, a abundância de seus fitólitos nesta amostra possivelmente resulta da deposição intencional de alguma planta desta família abaixo da vasilha 2 ou de bioturbação; as amostras provenientes da vasilha 2 apresentam assembleias fitolíticas similares, mas com proporções distintas na base e no meio da vasilha. Fitólitos de arbóreas predominaram tanto na base (72,5%) quanto no meio (58%), seguidos por Poaceae (22% na base e 38% no meio), enquanto Arecaceae (média de 1,5%), Marantaceae (1,5-2%), Cyperaceae (média < 1%) e Celtis sp. (< 1%) ocorreram em baixas quantidades ( Alves, 2017).
As assembleias de fitólitos das amostras oriundas do contexto de vasilhas enterradas registram famílias de plantas comestíveis e/ou úteis (milho, Annonaceae, Arecaceae, Celtis sp., Cyperaceae, Marantaceae e Oryzeae) ( Knüpffer; Hanelt, 2001), também documentadas em outros contextos domésticos, corroborando seus usos pelos habitantes do sítio Cedro. Contudo, considerando-se que os buracos para deposição das vasilhas foram abertos através do piso da casa, as assembleias de fitólitos das amostras coletadas nesse contexto provavelmente representam uma mistura de fitólitos pertencentes à camada de latossolo e aqueles movidos do piso da casa para dentro do buraco durante o evento de abertura e de deposição das vasilhas.
O bolsão escavado no sítio Cedro possui um formato de funil, mede 1,10 m de profundidade e tem 1,40 m de diâmetro. Diferenças de coloração no sedimento do bolsão indicam que foi provavelmente formado por dois eventos separados na estratigrafia por uma lente de latossolo aos 54-64 cm. Ele apresenta solos mais escuros nos níveis superiores (10YR 4/3 marrom) do que nos inferiores (10YR 5/4 marrom-amarelado), e sua cor contrasta com o latossolo (10YR 5/8 marrom-amarelado) circundante ( Schaan; Martins, 2012). Além da sua coloração contrastante, os dois eventos de formação do bolsão, documentados durante as escavações, são corroborados pelas datações, quantidade e qualidade dos artefatos contidos nele, bem como pela assinatura geoquímica e pela assembleia de fitólitos.
O antrossolo do bolsão apresenta variações de acordo com os dois eventos formativos. Na parte inferior, o solo é extremamente ácido (pH entre 4,1-4,5) e com maior toxicidade. Todas as variáveis (CTC, saturação por bases, razão C-N, acúmulo de matéria orgânica e concentração de elementos e nutrientes) apresentam valores menores do que a parte superior. A camada superior (terra marrom) apresenta pequeno aumento em todas a variáveis, particularmente nos teores de nutrientes (Zn, Mn, Mg e K) resultantes de resíduos de queima ( e.g. cinza e carvão) e da decomposição de restos de planta ( Figura 11). Adicionalmente, os baixos teores de Ca e de P são consistentes com a ausência de ossos macroscópicos durante as escavações e reforçam a ausência de ossos microscópicos.
Esse bolsão foi parcialmente escavado através das unidades 6 e 9. O primeiro evento de formação caracteriza-se pela deposição de uma cabeça antropomorfa modelada de estilo Santarém, com poucos fragmentos cerâmicos na base do bolsão. Este fragmento pertence provavelmente a um vaso globular, característico das louças cerimoniais da cultura Santarém ( Figura 12). A sua iconografia apresenta um indivíduo usando alargadores de orelha, o que é um atributo de prestígio geralmente presente nas figuras das louças cerimoniais. Como já mencionado, um alargador de orelha em hematita foi encontrado no contexto doméstico, abaixo de uma das vasilhas enterradas. O segundo evento apresenta mais vestígios materiais depositados em solo antropizado. A cultura material associada ao evento de reabertura é caracterizada por vasilhas grandes e decoradas para servir alimentos, muitas vasilhas para cozinhar alimentos, trempes e pedras fissuradas pela exposição ao fogo, o que é uma prática utilizada no preparo de alimentos ( Oyuela-Caycedo, 1995). Existem outras evidências de combustão na área, tais como abundância de carvão, fragmentos de cerâmica queimados e um fragmento estourado por choque térmico.
A predominância de fitólitos de arbóreas em todo o perfil é consistente com os demais contextos analisados no sítio ( Figura 13). No primeiro evento, os fitólitos de arbóreas constituem 60% (Arecaceae – 5,5%) das amostras, enquanto herbáceas constituem 40% (Poaceae - 28%). A assembleia de fitólitos da lente de latossolo adicionada aos 54-64 cm apresentou pequenas variações nas proporções de arbóreas (57% - Arecaceae ausente) e herbáceas (42% - Poaceae com 32%). Enquanto, no segundo evento, herbáceas diminuem (35,5% - Poaceae com 23%) e arbóreas aumentam (63% - Arecaceae com 2,5%), também coerente com a abundância de carvões no topo do bolsão. Seis fitólitos de abóbora foram identificados nesse evento. A distribuição de palmeiras também mostra uma distinção clara entre os dois eventos de formação do bolsão. Completamente ausente nas amostras provenientes da lente de latossolo, ou seja, exclusivamente associado aos dois eventos formativos, o morfotipo de pupunha/tucumã aparece em maior proporção no primeiro evento (4,5%) do que no segundo (2%). Os demais morfotipos ocorrem em baixíssimas proporções em ambos eventos. Similar à área de cozimento, o registro de fitólitos indica maior descarte de pupunha/tucumã no bolsão, corroborando a interpretação de preferência por essas palmeiras no sítio Cedro. Baixas proporções de Celtis sp. foram registradas em todas as amostras, e espécies de Annonaceae foram mais frequentes nas amostras do primeiro evento. Também estão presentes em ambos eventos de deposição Marantaceae (variação: 4-10%), incluindo ariá e araruta, Cyperus sp. (< 1%), arroz selvagem ( Oryza sp. < 1%) e milho. Um fitólito de espiga e um de palha de milho foram coletados nas amostras do primeiro evento, e cinco fitólitos de espiga, nas amostras do segundo. Resumidamente, as assembleias de fitólitos registram os eventos formativos do bolsão e plantas alimentícias descartadas nessa área.
A escavação do poço revelou que se trata de uma estrutura artificial e permitiu estimar o seu tamanho original, que seria de 1,1 m de profundidade e 12 m de diâmetro ( Schaan; Martins, 2012). A cavidade é preenchida por terra preta (com mais de 60 cm de profundidade) e por muitos artefatos, devido ao processo de erosão causado pelas chuvas. Existe um pequeno teso em formato de meia lua na parte sudeste do poço, provavelmente formado pelo sedimento retirado da cavidade, servindo como rampa de acesso ( Schaan; Martins, 2012).
Amostras provenientes da base (latossolo), parede (terra marrom), borda e teso (terra preta) foram analisadas. O poço apresentou uma camada de antrossolo sobre o latossolo amarelo distrófico. O latossolo apresentou indícios de impacto humano em sua composição, especialmente no teor de Ca, Mg e de P total e disponível, acidez do solo (pH 4,7) e CTC, os quais são elevados em relação ao perfil de referência. O latossolo também apresentou baixa saturação por bases, concentração de matéria orgânica, C e N totais e de nutrientes provenientes de decomposição vegetal e queima (Zn, Mn e K).
Dividida entre terra marrom (parede) e terra preta (bordas), a camada de terra preta apresenta solo estável (relação C-N: 14,2-17,8), com aumento gradual de nutrientes e elementos. As amostras provenientes da terra marrom (10YR 4/2 e 4/3) apresentaram altas concentrações de P e Ca, assim como maior concentração de matéria orgânica, nutrientes, estabilidade do solo (relação C-N: 16,7-19,7), CTC e saturação por bases, em solo menos ácido (pH 5,1-5,3). A terra marrom se formou a partir da sedimentação do poço, durante a qual uma quantidade moderada de cultura material se acumulou, sendo que as características da cultura material indicam que se moveram de camadas superiores ( Schaan; Martins, 2012). Portanto, a terra marrom documentada no poço apresenta processo de formação distinto daquele observado em outras partes da Amazônia ( Denevan, 2009; Sombroek, 1966; Woods; McCann, 1999). As amostras provenientes da borda exterior apresentaram maior CTC, saturação por bases, acúmulo de matéria orgânica, nutrientes e elementos, assim como solo ácido (pH 4,5) e ligeiramente menos estável (relação C-N: 14,2) comparada à borda interior do poço (relação C-N: 14,5), a qual tem solo mais neutro (pH 5).
Muitas bolotas de argila queimadas foram coletadas no poço e tinham a função de sustentar as suas paredes ( Schaan; Martins, 2012). A estrutura apresenta muitos fragmentos de vasilhas, especialmente nas partes mais profundas, e possui mais diversidade artefatual do que as áreas adjacentes. Foram coletados fragmentos de vasilhas decoradas, como apliques antropomorfos e um fragmento de estatueta semilunar. A presença dessas cerâmicas associadas a contexto cerimonial dentro do poço pode resultar de uma ação intencional.
A interpretação das quatro áreas de atividade do sítio Cedro foi baseada na combinação dos dados geoquímicos, arqueológicos e arqueobotânicos, assim como em pesquisas etnoarqueológicas. A área de preparo de alimentos foi caracterizada pela presença de uma estrutura de combustão, associada a pequenas lascas de sílex do tipo ‘dentes de ralador’, e vasilhas utilizadas para cozinhar alimentos. As análises de fitólitos mostram a presença de várias plantas nativas comestíveis, assim como a presença de milho, mandioca, ariá, araruta, abóbora e pupunha/tucumã. As análises também apontam para o uso deste local para a produção cerâmica, como evidenciado por uma grande quantidade de bolotas de argila e adobe queimada, ambas características de oficinas cerâmicas ( Rivera-Casanovas, 2003). Ressaltamos que o uso do mesmo espaço para cozinhar e confeccionar cerâmica não é raro na etnografia amazônica, ocorrendo, por exemplo, entre os Asurini do Xingu ( Silva, 2008).
A área de bolsão é caracterizada pela presença de vasilhas decoradas e de artefatos relacionados com o preparo (trempes, pedras fissuradas pela exposição ao fogo e vasilhas para cozinhar) e consumo (grandes vasilhas para servir) de alimentos. As análises geoquímicas também comprovam a ocorrência de queima nos eventos de formação do bolsão. Ressaltamos que a queima de artefatos após realização de rituais já foi documentada em bolsões de outros sítios da cultura Santarém e foi interpretada como maneira de desativar a agência desses artefatos, junto ao seu isolamento por enterramento ( Gomes, 2012).
As análises de fitólitos mostram a presença de plantas comestíveis dentro do bolsão, como abóbora, pupunha/tucumã, arroz selvagem, ariá, araruta e milho, sendo que a presença de milho poderia estar relacionada ao preparo de bebidas fermentadas, utilizadas durante uma festividade comunitária. Contudo, esta hipótese precisa ser testada em confronto com dados provenientes de contextos semelhantes pertencentes à cultura Santarém. O milho aparece como elemento central em algumas teorias acerca da organização regional dos Tapajó que consideram o cultivo desta planta com excedente de produção pago em forma de tributos a chefias regionais ( Roosevelt, 1980, 1999).
As vasilhas enterradas abaixo do solo doméstico não puderam ser seguramente associadas a um contexto funerário, porém o simples fato de terem sido enterradas e de serem associadas a um artefato ligado ao prestígio (alargador de orelha em hematita) lhes confere estatuto especial. Além do mais, existem contextos etnográficos que documentam a associação simbólica de vasilhas enterradas com pessoas, independentemente da presença dos ossos ( Fonseca, 2018). A prática de enterramento em contexto doméstico abaixo de piso está documentada etnograficamente entre os Krahó, que costumam realizar um enterramento primário dentro de casa, seguido de um enterramento secundário, onde os ossos são limpos e pintados antes de serem colocados dentro de uma vasilha ( Carneiro da Cunha, 1978).
Algumas diferenças entre o estatuto dos indivíduos determinam o local do enterramento, pois os membros mais importantes da comunidade são enterrados nos espaços públicos. Por exemplo, no sítio Porto, na foz do rio Tapajós, existe um cemitério com 11 urnas que estava localizado na praça central ( Schaan; Alves, 2015; Schaan, 2015a). Porém, neste caso, as vasilhas estavam cobertas por centenas de fragmentos cerâmicos e algumas delas apresentavam microfragmentos ósseos. Esse fato recorda as descrições etno-históricas que documentam a presença de rituais funerários onde ocorria o consumo dos ossos triturados pelos Tapajó ( Schaan, 2015b).
O poço escavado no sítio Cedro poderia ter tido diversas funções nesta área afastada dos grandes rios. Era certamente usado para armazenar água para o consumo e as atividades de cultivo durante o período de seca. Esse argumento é sustentado pelos resultados das análises geoquímicas e de fitólitos que comprovam a presença de plantio no sítio. Elevados teores de cálcio e de fósforo no solo proveniente do poço artificial do Cedro são interpretados como indício do uso dessa estrutura como curral para animais aquáticos. Destacamos que uma estrutura pré-colonial de tamanho quase idêntico (12 m x 1,2 m) ao poço artificial do sítio Cedro foi escavada na região do Lago do Limão, na Amazônia central, onde era chamada pelos moradores atuais de ‘curral de tartaruga de índio’ ( Moraes, 2006). Essa apelação atual, a presença de buracos de estacas ao redor da estrutura e o uso de paralelos etno-históricos mencionando o uso de currais cheios de tartarugas ( Acuña, 1641; Carvajal, 2011 [1542]) levaram os arqueólogos a sugerirem que tal estrutura poderia ter sido de fato utilizada como curral ( Moraes, 2006). Na mesma região, foram identificados vários ossos de tartarugas coletados em contextos arqueológicos, reforçando, assim, a ideia de consumo desses animais na época pré-colonial ( Prestes-Carneiro et al., 2015). No platô de Belterra, os poços que ainda armazenam as águas de chuva são, por vezes, utilizados pelos moradores para o armazenamento de animais, como tartarugas, peixes e até jacarés. Assim, essa seria uma prática social de longa duração, sendo descrita nos relatos etno-históricos, evidenciada no registro arqueológico e observada entre os moradores na atualidade.
Os resultados apresentados neste artigo relativos às estruturas e à vegetação permitem pensar que o sítio Cedro poderia ter sido ocupado de forma permanente durante cerca de 200 anos, entre os séculos XIV e XVI. O conjunto de dados contextuais e laboratoriais aponta para essa possibilidade, seja pelo aumento no teor de fósforo no latossolo de todas as áreas de atividade em relação ao perfil de referência, pela presença de plantas indicadoras de antropização ( e.g. Celtis sp. e Attaleinae) dentro e fora da área de terra preta, pelas construções expostas nas escavações, pela cultura material produzida localmente ou pelas datações que situam a habitação do sítio entre os séculos XIV e XVI. Todos esses dados contradizem a ideia de uma complementaridade dos ambientes de várzea e de terra firme, onde os sítios do segundo ambiente apresentariam exclusivamente uma ocupação de tipo sazonal ( Denevan, 1996). De fato, apesar de concordamos com a ideia de que, por volta de 1.300 AD, assentamentos no platô de Belterra teriam se desenvolvido como estações sazonais durante o período de cheia, com âmbito de permitir as atividades de produção de alimentos longe das várzeas inundadas ( Stenborg, 2016), o nosso estudo mostra que o sítio Cedro foi uma aldeia permanente e autônoma durante o período pré-colonial tardio, como demonstrado pelas diversas áreas de atividade investigadas.
A cultura material nos informa acerca de sua conexão à cultura Santarém, com a qual os habitantes do Cedro partilhavam técnicas de produção e de decoração da cerâmica ( Schaan, 2016; Troufflard, 2017). Os artefatos líticos indicam o acesso tanto a técnicas quanto a matéria-prima obtidas em uma rede de longa distância regional (Araujo da Silva, 2015). As estruturas aqui apresentadas também conectam os moradores do Cedro ao restante da região. Além do poço artificial e do bolsão que, como mencionado anteriormente, são regionalmente distribuídos em sítios da cultura Santarém, a prática de enterramento de vasilhas em pisos domésticos foi registrada em outros sítios da cultura Santarém ( Alves, 2017). Assim, os resultados apresentados reforçam a ideia da existência de aldeias maiores, como Aldeia e Porto, e aldeias menores autônomas com uma relação de heterarquia entre elas ( Figueiredo, 2019; Gomes et al., 2018; Schaan, 2016; Stenborg et al., 2012; Troufflard, 2017). Porém, enquanto algumas pesquisas demonstram essa autonomia das aldeias menores através das semelhanças das louças domésticas e da liberdade observada no registro da parafernália ritual, comparado com os achados arqueológicos das grandes aldeias ( Gomes et al., 2018), observamos que, no caso do sítio Cedro, existem semelhanças em ambas louças domésticas e rituais, tanto nas formas quanto na iconografia das cerâmicas ( Troufflard, 2017). As diferenças observadas em relação às aldeias maiores encontram-se, sobretudo, nas receitas das pastas cerâmicas, que apresentam muito menos uso de cauixi do que as pastas dos artefatos das grandes aldeias ( Schaan, 2016; Troufflard, 2017). Assim, argumentamos que a autonomia das aldeias menores é observada especificamente na produção cerâmica, enquanto no registro ritual observamos o compartilhamento de crenças religiosas em nível regional, além de uma centralização dos rituais de larga escala nas aldeias maiores.
Por fim, ressaltamos que a nossa análise do sítio Cedro, baseada na perspectiva de longa duração, permite abrir uma reflexão sobre a continuação das práticas sociais passadas no presente. De fato, a utilização das áreas de terras pretas para o cultivo de espécies e dos poços, que retêm água para a introdução de fauna aquática no platô de Belterra, representa uma continuação dessas práticas. Também observamos que o manejo passado incentivou a biodiversidade tanto florística quanto faunística. Nessa linha, as estratégias de subsistência adotadas no sítio Cedro incluíram o manejo de plantas nativas, aliado ao cultivo de plantas exógenas, caracterizando a prática de policultura agroflorestal. Semelhante prática foi registrada também nos sítios Porto e Serra do Maguari ( Alves, 2017); neste último, um estudo combinando paleoecologia terrestre (fitólitos) e lacustre (pólen) demonstrou que essa forma de exploração dos recursos vegetais é milenar na região e deixou efeitos prolongados na atual composição florística do sítio ( Maezumi et al., 2018a). Assim, este trabalho, que representa o primeiro estudo detalhado e interdisciplinar de um sítio arqueológico do platô de Belterra, traz dados que permitem entender melhor a dinâmica regional das aldeias e de seus habitantes na região do baixo Amazonas, contribuindo, assim, para um maior entendimento sobre as relações das populações e das paisagens por elas criadas.
*Autora para correspondência: Joanna Troufllard. University of Florida. Gainesville, Florida, 32611. United States ( joanna.troufflard@gmail.com).