DEBATE
Amazônia indígena: a floresta como sujeito1
Indigenous Amazonia: the forest as a subject
Amazônia indígena: a floresta como sujeito1
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, vol. 15, núm. 1, e20190009, 2020
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi
Recepção: 19 Fevereiro 2019
Aprovação: 23 Agosto 2019
Resumo: Cultivada, manejada pelos humanos durante milênios, a floresta amazônica alterou-se, tornou-se ‘outra’, sem deixar de ser floresta; manteve a sua autonomia de sujeito – sujeito da sua própria renovação e reprodução. Em outras palavras, a Amazônia tornou-se ‘antropogênica’ – a um só tempo cultural e natural, fruto de uma relação de mão dupla entre sujeitos: o Homem e a Floresta, na qual a ação de um não anula a do outro. Graças à Antropologia, sabemos que as sociedadesindígenas da Amazônia conferem dignidade de pessoa ou sujeito aos não humanos. A relação entre sujeitos (simétrica, de troca e reciprocidade) é uma relação ética e também poética. Por outro lado, o que prevalece na civilização ocidentalé a relação sujeito-objeto (assimétrica, autoritária, de poder e dominação), da qual se origina a Natureza-objeto, em oposição ao Homem-sujeito, único detentor de Cultura. Ora, ‘o outro como objeto’ é a negação do outro e a negaçãoda ética. Nisso reside a alteridade radical dos modos de ser e pensar indígenas com relação ao Ocidente. Essa ‘alteridade indígena’ tem, para nós, valor de tesouro e sabedoria. Há, porém, um Ocidente criança e poeta que se reconhece nospovos indígenas e na sua experiência de mundo.
Palavras-chave: Sujeitos não humanos, Relação ética e poética, Alteridade indígena, Amazônia antropogênica, Sabedoria amazônica.
Abstract: Managed and cultivated by humans for millennia, the Amazon rainforest was altered, but (as the subject of its own renovation) is still a forest. In other words, Amazonia became ‘anthropogenic’ – both cultural and natural, the result ofa two-way relationship between subjects: Man and the Forest, with the activities of one not nullifying those of the other. Thanks to anthropology, we know that the indigenous societies of Amazonia confer the dignity of a person or subjecton non-humans. The relationship between subjects (symmetrical, dialogic, reciprocal) is an ethical as well as poetical relationship. On the other hand, what prevails in western civilization is the subject-object relationship (asymmetrical, authoritarian, dominating), which generates Nature as an object, opposed to Man as a subject, the sole bearer of Culture. Meanwhile, “the other as an object” means denying the other and denying ethics. This is the substance ofthe radical alterity of indigenous ways of being and thinking with regard to the West; this “indigenous alterity” for us is a treasure of wisdom. Yet there is a childlike, poetic West that recognizes itself in the indigenous people and in their experience of the world.
Keywords: Non-human subjects, Ethical and poetical relationship, Indigenous alterity, Anthropogenic Amazonia, Amazonian wisdom.
Se nos predispusermos à recepção não preconceituosa da psique indígena, e de tudo o que ela representa neste momento de crise dos valores ditos modernos, estaremos trabalhando para introduzir em nossa consciência de hoje a alteridade radical’, uma lógica que nos é desconhecida, uma estética nova, uma espiritualidade que não conhecemos, uma percepção, uma sensibilidade, um modo de ser que ignoramos. Esta é a grande tarefa utópica para o século XXI brasileiro.
(Gambini, 2000, p. 26).No decorrer dos últimos 35 anos, aproximadamente, a Ciência fez uma série de descobertas fundamentais relativas à Amazônia, no campo da Antropologia e da Arqueologia. Surgiram novos objetos teóricos, como as ‘matas culturais’ e os ‘solos antropogênicos’, que soterraram de vez o mito da floresta virgem. Avançou-se consideravelmente na compreensão das ecologias praticadas pelas sociedades indígenas contemporâneas, das suas filosofias e cosmologias. O ‘tempo arqueológico’ de longa duração veio completar este quadro, introduzindo nele a profundidade e a grandiosidade da dimensão temporal. O que importa, hoje, não é a extensão e a excelência do nosso saber sobre o outro, mas a revelação de um saber radicalmente outro e o reconhecimento, pela sociedade brasileira, dessa ‘alteridade indígena’, do seu valor.
AMAZÔNIA ANTROPOGÊNICA: A FLORESTA-JARDIM, A FLORESTA-SUJEITO
O que houve na Amazônia, durante toda a sua longa história pré-colonial, não foi a clássica antropização dos espaços naturais, a Cultura suplantando a Natureza de modo violento e irreversível, com base na pura e simples ‘negação da floresta’ (Quadro 1). O que houve foi o aparecimento, a invenção de uma autêntica ‘cultura da floresta’2, isto é, a transformação cultural da floresta, o seu ‘cultivo’, sem que ela deixasse de ser floresta. Isso aconteceu porque, nas sociedades indígenas da planície amazônica, prevalece, não a relação sujeito-objeto, antropocêntrica, de poder e dominação3, mas a relação entre sujeitos, humanos e não humanos, baseada na troca e na reciprocidade.
De fato, sabe-se que essas sociedades conferem aos animais e às plantas, via de regra, os caracteres subjetivos da pessoa humana: consciência de si, motivações, afetos, capacidade comunicativa e sociabilidade e, com eles, estabelecem relações de pessoa para pessoa. Nas cosmologias ameríndias, observa o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro:
. . . os humanos não têm o monopólio da posição de agente e sujeito; o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. . . . As relações entre uma sociedade indígena e os componentes de seu ambiente são pensadas e vividas como relações sociais, isto é, relações entre pessoas, ou ainda, como uma comunicação entre sujeitos que se interconstituem no ato e pelo ato da troca – troca que pode ser violenta e mortal, mas que não pode deixar de ser social.
(Viveiros de Castro, 2005, pp. 123, 126-127).Mesmo sendo cultivada e manejada pelos indígenas há mais de dez mil anos, a floresta amazônica mantém a sua autonomia de sujeito – sujeito da sua própria renovação e reprodução. Sendo sujeito (termo de uma relação ética), é ela quem ensina aos humanos as boas práticas ecológicas, batizadas hoje de ‘sustentáveis’.
As práticas ecológicas indígenas fazem aumentar, ao invés de reduzir, a biodiversidade florestal; elas tendem a modificar sutilmente os ecossistemas amazônicos, gerando ecologias induzidas e localizadas, ilhas de recursos cuja diversidade biológica é manejada e modelada em benefício das gerações presentes e futuras. O destino a longo prazo de uma plantação aparentemente abandonada é tornar-se ‘outra’. Os vestígios mais evidentes de cultivo humano se extinguiram, e o que resta hoje é uma porção de floresta mais rica e biodiversa, caracterizada pela alta frequência de espécies florestais úteis aos humanos (como a pupunheira, o pequiá, a bacaba, a copaíba), sinais remanescentes de antigo cultivo ou manejo florestal, ou seja, indicadores de uma ‘mata cultural’4. Os castanhais da região de Marabá, no Pará, por exemplo, são considerados hoje uma mata cultural, ou ‘floresta antropogênica’.
O arqueólogo Marcos Magalhães propôs recentemente a ideia de uma “Amazônia antropogênica”, isto é, de uma Amazônia que é, a um só tempo e indissociavelmente, Cultura e Natureza. ‘Antropogênico’, aqui, deixa de ser simplesmente sinônimo de ‘cultural’ (gerado pelo homem) para designar o natural que foi alterado pelo cultural, tornou-se outro, sem deixar de ser ‘natural’ – sutil metamorfose essa (a antropogênese, o ‘devir antropogênico’) que se dá necessariamente na longuíssima duração, ou seja, numa escala de tempo ‘arqueológica’:
Considerar a floresta amazônica, ou parte dela, como sendo de origem antropogênica nos faz pensar que em algum tempo muito recuado e segundo modos práticos diversos, ela teve uma antropogênese para que hoje muitas de suas espécies sejam consideradas resultado da seleção cultural, mesmo em matas primárias autônomas.
. . . A ideia de que só florestas naturais primárias se desenvolvem em ambientes sem influência humana não se sustenta, pois haveria florestas de origem cultural que também se desenvolvem como florestas primárias. Por serem antropogenicamente consolidadas, as ações antrópicas teriam surgido em períodos muito recuados e hoje essas florestas se sustentariam e multiplicar-se-iam naturalmente, sem a necessidade da intervenção do ser humano. . . . [Na Amazônia], temos ambientes que ao longo de muitos séculos passaram por tantas interferências antrópicas que as espécies que neles predominam e florescem naturalmente são aquelas selecionadas culturalmente e não as nativas que um dia lá existiram. Isto é, são [ambientes] naturais porque, apesar de serem florestas antrópicas, compostas por espécies culturalmente selecionadas, as espécies dominantes não precisam mais do Homem, pois são autônomas, por se terem tornado antropogênicas.
(Magalhães, 2016, pp. 11, 386).A Amazônia não foi simplesmente ‘antropizada’, numa relação unidirecional entre sujeito e objeto, agente e paciente. Ela tornou-se ‘outra’: antropogênica. Ali, diz Magalhães (2016, p. 386), “os ambientes antropizados [culturais, cultivados] tornaram-se antropogênicos [naturais, autônomos]”, numa relação de mão dupla, recíproca e reversível, entre dois agentes ou sujeitos: o Homem e a Floresta, na qual “a ação de um não anula a do outro” (Magalhães, 2016, p. 43). A Floresta-sujeito alterou-se, tornou-se outra, sem deixar de ser floresta. Ela incorporou e assumiu como ‘sua’ a seleção cultural das espécies, a tal ponto que os ambientes onde isso aconteceu podem ser considerados, hoje, ‘mata primária’!
De acordo com a experiência ameríndia, é da natureza do ser, em qualquer uma das suas manifestações, diferir de si mesmo, tornando-se outro. Cada ser é não só o que é, mas também, virtualmente, o que não é. A diferença (intensiva, de afetos) é interna ao ser, e a alteridade é constitutiva da identidade. Cada denominação (humanos, animais, plantas, espíritos etc.) designa menos uma classe ou gênero de seres do que um tipo de experiência, uma qualidade, um modo de ser ou um ponto de vista, sempre passível de reversão5. Por isso, diríamos que o ser ameríndio é menos um ‘ser’, uma essência, do que um ‘vir-a-ser’, um ‘tornar-se-outro’.
No mundo ocidental, regido pelo pensamento lógico e pelo princípio de não contradição, as diferenças são externas e extensivas, e servem para repartir os indivíduos em uma série de essências ou identidades fixas (classe, gênero ou espécie). “Cada ser é só o que é, e só o é por não ser o que não é” (Viveiros de Castro, 2006, p. 324). Floresta é floresta, plantação é plantação!
A Amazônia subverte essa ideia, duplamente. Se, para arqueólogos e antropólogos, boa parte da floresta amazônica, de natureza antropogênica, foi, por assim dizer, ‘plantada’ ao longo dos séculos pelos humanos6 (sem esquecer a ação dos animais dispersadores de sementes: pássaros, macacos, roedores, morcegos etc.), para os indígenas, a floresta é uma imensa plantação não humana – “sobre-humana”, segundo o antropólogo Philippe Descola, sendo cultivada pelos espíritos protetores (Descola, 1986, p. 398). Para os Achuar, povo da Amazônia equatoriana, a floresta é cultivada por Shakaim, espírito tutelar das plantas, mestre dos destinos vegetais e “grande jardineiro da floresta” (Descola, 1986, p. 271). Entre os Jodï da Venezuela, no dizer dos antropólogos Stanford e Egleé Zent, “many so-called ‘wild’ plants are considered to be the cultivated crop of spiritual or mythical figures, which in turn are viewed as the farmers of the forest” (S. Zent & E. Zent, 2012, p. 303). Na perspectiva dos Yanomami, as árvores da floresta e as plantas cultivadas não crescem sozinhas, mas por obra de Në roperi, o espírito da fertilidade, que faz crescer a vegetação por onde passa e se parece com um ser humano, mas é visível apenas para os xamãs:
É ele que faz acontecer a riqueza da floresta e que, desse modo, alimenta os humanos e a caça. É ele que faz sair da terra todas as plantas e frutos que comemos. Seu nome é o de tudo o que prospera, tanto nas roças como na floresta. . . . Assim que o xamã faz dançar Në roperi, as flores começam a desabrochar nas árvores. Em seguida, os galhos ficam férteis e carregados de frutas.
(Kopenawa & Albert, 2015, pp. 207, 209).Para os Yanomami, a floresta é inseparável da terra que a suporta, chamada por eles de ‘pele da floresta’. Urihi a, a ‘terra-floresta’, é uma entidade viva, animada, segundo o antropólogo Bruce Albert, por “uma complexa dinâmica de trocas, de conflitos e de transformações entre as diferentes categorias de existentes que a povoam, sujeitos humanos e não humanos, visíveis e invisíveis” (Albert & Kopenawa, 2003, p. 46).
Assim fala o xamã yanomami Davi Kopenawa:
O que os brancos chamam natureza, em nossa língua, é urihi a, a terra-floresta. . . . A floresta está viva, é daí que vem sua beleza. É ela que nos anima. Está bem viva. Os brancos talvez não ouçam seus lamentos, mas ela sente dor, como os humanos. Suas grandes árvores gemem quando caem e ela chora de sofrimento quando é queimada. . . . A floresta tem um sopro de vida muito longo. É a sua respiração. O sopro dos humanos, ao contrário, é muito breve. Vivemos pouco tempo e morremos depressa. Já a floresta, se não for destruída sem razão, não morre nunca. Não é como o corpo dos humanos. Ela não apodrece para depois desaparecer. Sempre se renova. É graças à sua respiração que as plantas que nos alimentam podem crescer. A floresta tem coração e respira, mas os brancos não percebem. Não acham que ela esteja viva. . . . É nossa floresta que cria desde sempre os animais e peixes que comemos. Ela alimenta seus filhotes e os faz crescer com os frutos de suas árvores.
(Kopenawa & Albert, 2015, pp. 468-479).A esta Floresta-sujeito, sensível e inteligente, termo de uma relação profundamente ética e poética, contrapõe-se a visão ocidental da floresta como natureza, meio ambiente ou paisagem, isto é, ‘objeto’ do nosso olhar estético-cultural, das nossas representações artísticas, do nosso conhecimento científico e das nossas leis de proteção. A ‘paisagem’ depende do nosso olhar, enquanto a ‘mãe-terra’ ou ‘terra-floresta’ é o que sustenta a existência humana.
A RADICAL ALTERIDADE INDÍGENA COM RELAÇÃO AO OCIDENTE (ADULTO, MASCULINO E PROSAICO)
Os ameríndios surgem historicamente, e de forma exemplar, como ‘o outro do Ocidente’, ou seja, como ‘objeto do Ocidente-sujeito’ – pois esta é a fórmula do antropocentrismo ocidental: o ‘eu’ como sujeito e o outro como objeto. O sujeito antropocêntrico (o Ocidente, sujeito da Conquista) precisa do outro como objeto para se afirmar como sujeito, ‘eu’ soberano.
O filósofo e historiador Tzvetan Todorov, estudioso da Conquista da América sob o ângulo da “questão do outro”, analisa: “a descoberta do outro tem vários graus, desde o outro como objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente dele” (Todorov, 2011, p. 360).
“O outro como sujeito: igual ao eu, mas diferente dele” expressa a plena aceitação do outro, ou seja, o “reconhecimento ético” (Leopoldo & Silva, 2017, p. 95) enquanto reconhecimento e aceitação da ‘Igualdade com Diferença’. Mas o que Todorov descobriu, ao investigar a percepção que Cristóvão Colombo e os demais europeus tinham dos ameríndios, foram outras duas figuras da alteridade, figuras corrompidas, ‘degradadas’:
Segundo Todorov (2011, p. 64), a contradição entre as duas proposições – entre “o assimilacionismo, que implica uma igualdade de princípio”, e “a ideologia escravagista, que pressupõe a inferioridade dos índios” – se resolve, na mente de Colombo, numa alternativa grosseira: os índios “que ainda não são cristãos só podem ser escravos: não há uma terceira possibilidade”.
Sobre Colombo, diz ainda Todorov (2011, pp. 58, 66, 68-69):
Colombo recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. . . . Mesmo quando não se trata de escravidão, o comportamento de Colombo implica o não reconhecimento do direito dos índios à vontade própria; implica que os considera, em suma, como objetos vivos. . . .
Como Colombo pode estar associado a estes dois mitos aparentemente contraditórios, um em que o outro é um “bom selvagem”, e o outro em que é um “cão imundo”, escravo em potencial? É porque ambos têm uma base comum, que é o desconhecimento dos índios, a recusa em admitir que sejam sujeitos com os mesmos direitos que ele, mas diferentes. Colombo descobriu a América, mas não os americanos. Toda a história da descoberta da América, primeiro episódio da Conquista, é marcada por esta ambiguidade: a alteridade humana é simultaneamente revelada e recusada.
Ademais, Todorov (2011, pp. 95-96) aponta uma diferença fundamental entre ameríndios e europeus na sua relação com o mundo:
Há duas grandes formas de comunicação, uma entre os homens, e outra entre os homens e o mundo; . . . os índios cultivam principalmente esta última, ao passo que os espanhóis cultivam principalmente a primeira. Estamos habituados a conceber somente a comunicação inter-humana, pois, o “mundo” não sendo um sujeito, o diálogo com ele é bastante assimétrico (se é que há diálogo).
O mundo não sendo um sujeito, os europeus não dialogam com ele – à diferença dos índios, diz Todorov (2011). De fato, as culturas ameríndias oferecem um modo de ser e pensar próprio, radicalmente ‘outro’ com relação ao Ocidente, porque não se baseia na relação sujeito-objeto, antropocêntrica, mas na relação sujeito-sujeito, cosmocêntrica – estendida ao mundo, aos não humanos. A relação entre sujeitos (simétrica, dialógica, de troca e reciprocidade) é uma relação ética e também poética. Ao promover uma sociabilidade generalizada entre sujeitos humanos e não humanos, ela estabelece o domínio universal da Cultura – no universo indígena, não há Natureza, tudo é Cultura7.
Por outro lado, o que prevalece na civilização ocidental é a relação sujeito-objeto (assimétrica, autoritária, arrogante, de poder e dominação), da qual se origina a Natureza-objeto, em oposição ao Homem-sujeito, único detentor de Cultura. Ora, ‘o outro como objeto’ é a negação do outro e a negação da ética.
Há, porém, um Ocidente minoritário, criança e poeta, que se reconhece nos povos indígenas – na sua experiência ética e poética, na sua capacidade de dialogar com o mundo, na sua adesão ao invisível e ao sagrado.
Apresentamos no Quadro 1 uma proposta dos principais indicadores da alteridade indígena (exceto os da esfera política).
O Ocidente não é monolítico, claro, tem suas brechas e fraturas. Em alguns momentos, é capaz de se aproximar dos modos de ser, perceber e pensar ameríndios, não tanto pela via da Ciência, mas pela via da Arte enquanto Poesia, experiência poética. Isto porque pensar, perceber e expressar o mundo como sujeito é uma experiência (ética, além de poética) universal, compartilhada pelos povos indígenas com as crianças e os artistas e poetas, não só do Ocidente, mas de todos os quadrantes e de todas as épocas8. Por isso, o Ocidente criança e poeta, ‘parente’ dos ameríndios, está virtualmente situado na coluna esquerda do Quadro 1, em oposição ao Ocidente adulto e prosaico, situado à direita.
O que a Ciência ocidental tem conseguido ultimamente, é:
fazer sua revolução epistemológica e cumprir seu papel ético no campo da Antropologia, ciência do outro, quando o outro deixa de ser objeto para ser sujeito do conhecimento9, e todas as vezes que um(a) antropólogo(a) cumpre para valer o seu próprio rito de passagem: a iniciação ao outro, à radical alteridade do outro, sendo ensinado(a) pelo outro; há exemplos extraordinários disso (cf.Pozzobon, 2002);
colocar-se como aliada política (e afetiva) dos povos indígenas10;
reconhecer subjetividades não humanas no campo da Biologia, traduzindo-as em termos científicos: inteligência animal, inteligência vegetal/florestal11;
‘personalizar’ a Natureza no campo do Direito, considerando-a como ‘sujeito de direito’12;
ser uma boa intérprete das filosofias, cosmologias e ecologias indígenas.
O Ocidente ‘criança e poeta’ vai além13. O homem ou a mulher ocidental, enquanto ‘poeta’ (guiado/guiada por um pensamento ético e poético), se reconhece nos povos indígenas e na sua experiência de mundo. Se há um terreno comum entre o Ocidente e as culturas ameríndias da floresta tropical, o terreno de um mútuo reconhecimento e uma brecha no seu antagonismo, é este. Crianças e poetas de todo o mundo se reconhecem nos povos indígenas, habitantes da Terra-Floresta, pois estes são como as crianças e os poetas14, por ‘verem o invisível’ (invisível ao adulto prosaico) e atribuírem alma a todas as coisas. Há um animismo poético irmão do animismo ameríndio.
O filósofo Gaston Bachelard, ao explorar os domínios da “imaginação material e dinâmica” na poesia, viu na riqueza e vivacidade das imagens poéticas
. . . um animismo que verdadeiramente anima, que encontra no mundo inanimado todas as nuanças de uma vida sensível e voluntária, que lê a natureza como uma móvel fisionomia humana. . . . Os poetas, em seus devaneios cósmicos, falam do mundo com a linguagem do mundo. . . . No devaneio cósmico, nada é inerte, nem o mundo, nem o poeta em devaneio; tudo é animado por uma vida secreta, portanto tudo fala com sinceridade. O poeta escuta e repete. A voz do poeta é uma voz do mundo.
(Bachelard, 1942, p. 207, 1960, p. 162).O mundo, sendo sujeito, ‘fala’ ao poeta e através do poeta! A imaginação poética, para Bachelard (1942, p. 25), é “a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade” (ou seja, o visível, a exterioridade) e é o que nos proporciona “a faculdade de nos maravilhar”. O psicoterapeuta junguiano Roberto Gambini, por sua vez, confere à psique indígena brasileira “um peculiar senso de maravilhamento diante dos mistérios da vida e da natureza” (Gambini, 2000, p. 165), dignifica o animismo ameríndio por “atribuir sacralidade às coisas” e descreve “o grande drama de nossa origem, na data de 1500”15:
Tínhamos então, e ainda nos sobrou mais do que conseguimos acolher, uma verdadeira enciclopédia de mitos, imagens e sentidos, e isso se chama alma. Alma antiga ligada à Terra, arraigada no solo. A alma estava na luz do Sol, no escuro da noite, nos astros, nas árvores, nos rios, na semente que brotava, nos animais. Os antropólogos do século XIX pejorativamente chamaram essas concepções de animismo, um modo primitivo de funcionamento psíquico por atribuir sacralidade às coisas. O fato é que o território brasileiro como um todo estava impregnado de sacralidade, porque o homem anterior ao “descobrimento” comungava, ao viver, com a natureza e com tudo que a povoava. Esse tesouro humano, criação lentamente configurada no decorrer de milênios, foi destruído de um só golpe por obra de um olhar estrangeiro que o distorceu e negou.
(Gambini, 2000, p. 161).De maneira inigualável, o escritor e poeta Euclides da Cunha percebeu e expressou a Hileia – e toda a physis amazônica – como sujeito. Pois é na Amazônia que
as coisas duramente objetivas se revestem de uma anômala personalidade. Matas a caminharem, vagarosamente, viajando nas planuras, ou estacando, cautas, à borda das barreiras a pique, a refletirem, na desordem dos ramalhos estorcidos, a estupenda conflagração imóvel de uma luta perpétua e formidável; lagos que nascem, crescem, se articulam, se avolumam no expandir-se de uma existência tumultuária . . .; rios pervagando nas solidões encharcadas, à maneira de caminhantes precavidos, temendo a inconsistência do terreno, seguindo “com a disposição cautelosa das antenas dos furos”. . . . É a terra moça, a terra infante, a terra em ser, a terra que ainda está crescendo . . . Agita-se, vibra, arfa, tumultua, desvaira. A sua fisionomia altera-se diante do espectador imóvel. Naquelas paisagens volúveis imaginam-se caprichos de misteriosas vontades.
(Cunha, 2008, pp. 24-26).Precisamente, é aos artistas enquanto poetas que o filósofo Henri Bergson concede o privilégio de uma percepção ‘outra’, poética, libertadora. Contra a nossa percepção ordinária – estreita, utilitária, prosaica – das coisas e dos seres enquanto ‘objetos’, irrompe e resplandece, segundo ele, a percepção “dilatada e ilimitada” própria aos artistas, cuja função é “ver e fazer-nos ver o que não percebemos naturalmente”, isto é, aspectos da realidade que permaneciam virtuais e invisíveis até serem “revelados”, a exemplo da imagem fotográfica que ainda não foi imersa no banho de revelação. “O poeta é este revelador”16, afirma Bergson (2011, pp. 10-12), por ele ser, literalmente, um “distraído” – “ao invés de perceber para agir, ele percebe para perceber” (Bergson, 2011, nota 33, p. 45).
Ademais, ao relacionar os objetos da nossa percepção ordinária com a imobilidade e a imutabilidade, Bergson (2011) nos ajuda a entender melhor a natureza do sujeito, qual seja: sujeito é o completamente ‘outro’, isto é, o novo, o diferente: vivo, ativo, movente, mutável (de natureza temporal), autônomo, criador, indeterminado, imprevisível, surpreendente – em oposição ao objeto, isto é, o ‘mesmo’: fixo, estático, estável (de natureza espacial e atemporal), idêntico, invariável, mensurável, visível e previsível, representado, subjugado, passivo, morto.
Neste sentido, sujeito é o vir-a-ser, o devir, o tornar-se-outro, a exemplo do sujeito ameríndio por excelência: a Floresta Amazônica.
EPÍLOGO. LIÇÕES DE SABEDORIA AMAZÔNICA: POR UMA RELAÇÃO ÉTICA E POÉTICA COM O MUNDO
É possível combinar/articular/correlacionar cosmologias indígenas e Ecologia Histórica, na Amazônia? Articular, por exemplo, o animismo ameríndio (tudo é sujeito) com a existência de matas culturais? Sim, e o pesquisador e teórico Marcos Magalhães nos ajuda nisso. A articulação se dá, precisamente, dentro do novo conceito de “antropogênese amazônica”, ou de “Amazônia antropogênica”, por ele proposto (Magalhães, 2016, 2018). Como vimos, a floresta amazônica só se tornou “antropogênica” (sendo ‘jardim’, sem deixar de ser ‘floresta’17) em razão de ela ter sido Sujeito para o Homem ao longo dos milênios – por ter havido entre o Homem e a Floresta uma relação face a face, ética e poética, de Sujeito para Sujeito.
O saber específico proveniente desta relação: a ecocosmologia (ou cosmoecologia) dos Povos da Floresta, com suas infinitas versões e variações, constitui uma sofisticada criação cultural (material e simbólica) e compõe um ‘sistema’ tão grandioso, complexo e diverso quanto a própria floresta amazônica. Para nós, este saber tem valor de sabedoria. A falência do homem ocidental, do modo ocidental de relacionar-se com o outro, humano ou não humano (uma relação entre sujeito e objeto, violenta, autoritária, arrogante, colonialista, dominadora), exige uma alternativa radical. Essa alternativa, o Brasil a possui em grau de excelência: é um dos seus maiores tesouros. Tesouro nativo, vilipendiado desde o princípio, quando o Ocidente para cá se estendeu com violência surda e cega, com base na total negação do outro, contra a alma e o corpo indígenas. Tesouro da sabedoria ameríndia: o não humano como sujeito – uma relação ética e poética com o outro. Hoje, o Ocidente falido, espalhando a catástrofe planetária, ‘reinventa’ as sabedorias ancestrais por ele negadas, criando ‘novas’ práticas e ‘novos’ conceitos: sustentabilidade, agroecologia, agrofloresta, permacultura, agricultura sintrópica, ecologia profunda, teoria de Gaia etc. Não há como negar a “contemporaneidade absoluta” (Kopenawa & Albert, 2015, p. 34) dos povos originários – para usar a fórmula certeira de Eduardo Viveiros de Castro. De fato, os povos originários, os ameríndios, com sua sabedoria milenar, amazônica, florestal, sua cultura da floresta, são cada vez mais atuais e contemporâneos, cada vez mais na ordem do dia – do planeta e da humanidade.
POST-SCRIPTUM
No Brasil, país situado, como se sabe, no Extremo-Ocidente, as culturas indígenas, que resistiram e sobreviveram ao genocídio, são culturas de resistência (e de ‘re-existência’) – como as culturas de matriz africana, suas irmãs gêmeas. Resistindo e se mantendo vivas em território próprio, elas mantêm viva a sua alteridade radical com relação ao Ocidente (ao Estado, ao Capital): algo inadmissível para o pensamento autoritário. Por isso, continua em vigor a lógica do genocídio, cujo meio e fim é a tomada das terras indígenas18.
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Notas
Autor notes
* Autor para correspondência: Patrick Pardini. Universidade Federal do Pará. Museu da UFPA. Av. Gov. José Malcher, 1192, Nazaré. Belém, PA, Brasil. CEP 66055-260 (pardini@ufpa.br).