Resumo: No trecho encachoeirado a jusante do alto rio Madeira, entre uma porção de sítios arqueológicos, um chama a atenção: o sítio Teotônio localiza-se em um platô na margem direita da cachoeira homônima, hoje submersa pela construção da Usina Hidrelétrica Santo Antônio. A significância dessa paisagem, incluída a piscosidade da cachoeira, parece ter contribuído para que no sítio Teotônio se concentrem todos os conjuntos cerâmicos que estão dispersos de maneira esparsa pelos sítios da região. Esses diferentes conjuntos tecnológicos cerâmicos perfazem mais de três milênios de ocupação do sítio. Tendo como guia a análise tecnológica das cerâmicas, é possível inferir distintas formas pelas quais as populações indígenas ocuparam o Teotônio ao longo do tempo. Tratando-o como um microcosmo da história de longa duração do alto rio Madeira, é possível identificar distintas temporalidades no uso desse lugar.
Palavras-chave:Lugares significativos e persistentesLugares significativos e persistentes,PaisagemPaisagem,Cerâmica arqueológica da AmazôniaCerâmica arqueológica da Amazônia,História de longa duraçãoHistória de longa duração,Sítio TeotônioSítio Teotônio.
Abstract: In the portion of the Upper Madeira River which contains multiple waterfalls, the Teotônio archaeological site is especially notable: it is located on a plateau on the right side of the waterfall bearing the same name, and has been submerged by the construction of the Santo Antônio dam. The significance of this landscape, which includes an exceptional abundance of aquatic resources, seems to have contributed to the fact that all the known ceramic assemblages of the region are concentrated there, occurring over the more than three thousand years that the site was occupied. Technological analysis of this material permits inferences on the different ways these indigenous populations occupied Teotônio over time; treating this site as a microcosm of the long-term history of the Upper Madeira allows distinct temporalities in the use of this location to be identified.
Keywords: Meaningful and persistent places, Landscape, Archaeological ceramics of the Amazon, Long-term history, Teotônio site.
DOSSIÊ
A temporalidade das ocupações ceramistas no sítio Teotônio
Temporality of archaeological ceramics at the Teotônio site
Recepção: 07 Agosto 2019
Aprovação: 22 Outubro 2019
Quando ela pôs o pé no chão da mesquita, sentiu-se inundada de doçura, de afeto e de ternura . . . Começou a devorar o ambiente, intrigada, com o olhar ardente de desejo: as paredes, o teto, as colunas . . .
(Mahfuz, 2008a, p. 239).O fascínio que as mesquitas e ruas do Cairo despertam em um pequeno garoto, ou em sua mãe, impedida por um longo tempo de frequentar seus bairros por imposição de seu austero marido. A casa dessa tradicional família cairota figura de diferentes maneiras em múltiplos cenários sociopolíticos do Egito da primeira metade do século XX, em pleno domínio britânico. Em seu apreço pela História para a constituição das personagens da “Trilogia do Cairo”, o romancista Nagib Mahfuz sutilmente aponta a agência dos lugares nas relações sociais e nos comportamentos pessoais (Mahfuz, 2008a, 2008b, 2008c).
A saga e a trajetória familiar dos El-Gawwad nessas décadas de colonização britânica se confundem, na narrativa de Mahfuz, com a história do próprio Egito. A descrição intensa dos bairros e lugares, mergulhados em uma tensão entre tradição e modernidade, transforma a capital egípcia em personagem. Becos, vielas, mesquitas e palácios convidam o(a) leitor(a) a adentrar nesse labiríntico emaranhado de sobreposições históricas e acúmulos materiais.
Essa analogia literária ajuda a entender o papel e a agência da cachoeira do Teotônio sobre as diferentes ocupações humanas em suas margens. A materialidade se vincula fortemente ao desenvolvimento da narrativa na trilogia de Mahfuz, elaborando as personagens de uma maneira em que os ‘lugares’ se tornam fundamentais para a compreensão das relações sociais e interpessoais estabelecidas.
Nessa obra literária, assim como com a hoje submersa cachoeira do Teotônio, paisagem e lugar são agentivos. O que se pretende realizar aqui é propor, a partir dessa perspectiva, uma sistematização de dados e de interpretações a respeito das ocupações de povos ceramistas no sítio arqueológico Teotônio.
O sítio arqueológico Teotônio localiza-se em um platô na margem direita da cachoeira homônima, submersa desde a construção da barragem da Usina Hidrelétrica (UHE) de Santo Antônio. No trecho encachoeirado do rio Madeira, que perfaz o recorte geográfico do que aqui se considera seu alto curso, a cachoeira do Teotônio seria a segunda para quem subia o rio (Figura 1).
As pesquisas arqueológicas no sítio se iniciaram no âmbito do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônica (PRONAPABA), por Miller (1992), na década de 1970. Após um hiato de pesquisas, a região retornou à baila arqueológica por conta dos trabalhos ligados ao licenciamento ambiental das UHE de Santo Antônio e Jirau. No Teotônio, essas intervenções foram pontuais (Zuse, 2014). A partir de 2011, através do Projeto Alto Madeira (PALMA), vinculado ao Laboratório de Arqueologia dos Trópicos do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (Arqueotrop/MAE-USP), retomaram-se as pesquisas sistemáticas no sítio (Almeida, 2013). O cenário construído permite apontar a existência de ocupações antigas, no Holoceno inicial, por volta de nove mil anos AP (Watling et al., 2018). Além disso, ao redor de seis mil e quinhentos anos AP, ocorrem indícios de formação de terra preta, talvez os primeiros identificados na Amazônia (Mongeló, 2015). Os registros de populações ceramistas no sítio surgem ao redor de três mil anos AP1 e perduram até pelo menos o início da era colonial (Almeida, 2013; Kater, 2018).
O registro arqueológico identificado no sítio Teotônio sugere, portanto, uma longa sequência, com poucos hiatos, de ocupação humana. Diante dessa configuração particular do Teotônio, sugere-se que ele seja um microcosmo do processo histórico regional (Almeida & Kater, 2017): excelente para se testar hipóteses a respeito de longas sequências de ocupações, bem como em suas consequências na antropização da floresta.
Os trabalhos realizados no sítio aludem à importância da cachoeira para o entendimento dessas relações e da longa cronologia de ocupação (Almeida, 2013; Almeida & Kater, 2017; Kater, 2018; Mongeló, 2015; Neves, 2016). Portanto, assim como ocorre na cidade do Cairo, retratada pela pena de Mahfuz, a formação da paisagem e a agência do lugar são fundamentais para se refletir sobre as ocupações ceramistas no sítio Teotônio.
Há certa tendência de se aceitar que uma das grandes capacidades da Arqueologia é conseguir abordar os fenômenos sociais a partir da longa duração (e.g.Hodder, 1987). Braudel (1990), o proponente desse conceito para a História, apontou para a pluralidade do tempo, sugerindo que os acontecimentos históricos ocorriam em distintas temporalidades: sucediam a partir do entrelaçamento de diferentes níveis e forças temporais em ação. Ao tempo sincrônico, melhor compreendido através da longa duração, aquela em que o tempo é quase imóvel – geográfico – e que insere o ser humano em relação ao meio que o cerca, em que permanências são mais visíveis e mudanças mais lentas, inseriu-se historicidade (Braudel, 1990, p. 13). As demais durações, a média e a curta, esta sobre a história breve, ocorrencial e do indivíduo, e aquela de uma história social, com os ritmos lentos dos grupos e instituições sociais e econômicas, se comporiam junto à longa duração sem dificuldades, sendo possível explicar um fenômeno por meio dessas diferentes forças em jogo (Braudel, 1990, p. 15).
Nesse balanço entre agência e estrutura – curta, média e longa duração –, a História não rejeita o ser humano, o coloca como um agente dinâmico dentro de uma estrutura que põe limites, não a ponto de torná-lo um reprodutor apático da cultura, mas como alguém capaz de interferir no rumo histórico e nele deixar marcas, transformando-o em diferentes escalas e ritmos temporais (Bourdieu, 1996; Sahlins, 2006).
O conceito da longue durée permitiu desdobramentos diversos em diferentes campos das humanidades, entre eles, no Brasil, a proposta de se realizar uma história indígena de longa duração através da Arqueologia (e.g.Brochado, 1984; Corrêa, 2013; Neves, 1999; Noelli, 1996). Para tal, seria preciso manejar, a partir dessas temporalidades (Braudel, 1990), perspectivas teóricas que abordem diferentes escalas espaço-temporais para interpretação do registro arqueológico, o que requer entrecruzar distintos aspectos da materialidade. Assim, os variados ritmos de mudança, do tempo geográfico, social e individual, seriam perscrutados.
A Ecologia Histórica reconhece a importância da continuidade histórica e cultural dos povos indígenas na antropização da Amazônia ao longo do tempo (e.g.Balée & Erickson, 2006; Clement et al., 2015). Ao assumir uma relação dialética entre ‘meio ambiente/natureza’ e ser humano, essa proposta teórica alinha a ação individual realizada através de escolhas cotidianas reiteradas, voltadas à transformação da composição vegetal, como as matas de castanha, ou à formação da terra preta (Neves, 2012). Assim, diferentes temporalidades entram em jogo para explicar a composição florestal amazônica e seu manejo.
A Arqueologia da Paisagem também reforça a existência de um resultado dialético entre estruturas físicas e ambientais e seres humanos (Clement et al., 2015). Sem se tratar da oposição natureza versus cultura ou da materialização de determinada ocupação (Ingold, 1993), a paisagem pode ser entendida como a confluência de realizações de tempos passados que se incorporam em um presente (González-Ruibal, 2006), onde convivem distintas temporalidades (Ingold, 1993). Através dela, seria possível identificar certos padrões de como as diferentes comunidades operavam a forma de habitar a paisagem, algo que não é rígido, pois está sujeito a reelaborações e transformações (Ingold, 1993). Os lugares diferenciados na paisagem são como nós em uma tessitura, pontos nevrálgicos em redes de relações, de contatos e de cosmologias. Ao ter maior importância, se tornam lugares significativos e, ao serem continuamente ocupados e/ou ressignificados, se tornam persistentes (Zedeño & Bowser, 2009).
Uma contradição da Arqueologia é que ela é construída com objetos feitos, em geral, em eventos de curta duração, enquanto o acesso às pessoas é pontual. Na atribulação do evento, restam somente os resquícios dessas atividades individuais. Nesse sentido, no ajuste entre as distintas durações braudelianas e a análise do registro arqueológico, credita-se, então, à cerâmica ser objeto privilegiado para se transitar entre a curta e a média duração (cf.Kater, 2018).
Isso, pois, ao mesmo tempo em que uma análise tecnológica cerâmica permite a identificação de escolhas individuais feitas pelas ceramistas, o que evidencia sua agência no processo de manufatura (Stark et al., 2008), elas também estão ancoradas em diferentes processos de ensino-aprendizado, emaranhados de significações as quais estavam atreladas ao fazer e usar cerâmica (Raymond, 2009; Silva, 2013). A tentativa de se propor classificações para o material cerâmico resulta desse entendimento (e.g.Stark et al., 2008; Silva, 2013), e é isso o que o método descrito no item a seguir busca identificar.
Além disso, a tecnologia cerâmica identificada pela análise alcança outra esfera da média duração. Os padrões socioeconômicos de organização social, inferidos através das reconstituições do conjunto artefatual cerâmico (Rice, 1987; Rye, 1981), representam temporalidades mais estáveis e, por isso, mais facilmente observáveis pela Arqueologia. No sentido de Braudel (1990), por se tratar de uma história social, que possui um ritmo mais lento, ligado aos grupos e às instituições sociais, mais uma associação seria possível: combinar aferições sobre o registro arqueológico com modelos linguísticos (Brochado, 1984; Corrêa, 2013; Neves, 1999; Noelli, 1996). Apesar das contingências de cada grupo, bem como da consciência de que não há uma associação indelével entre cultura material e língua, que grupos linguísticos são fluidos e culturalmente dinâmicos (e.g.Gosselain, 2000; Silva, 2013), ainda se considera ser uma hipótese válida de pesquisa (Anthony, 2007; Neves, 2012).
Por fim, enquanto eixo narrativo dessa história de muitas temporalidades em ação, no qual a interpretação de um evento depende da decapagem das diferentes camadas de força que o produziram (Braudel, 1990), propõe-se que ele seja realizado por meio de histórias encaixadas (cf.Kater, 2018). Essa construção narrativa depende do encadeamento de histórias, uma dentro da outra, referenciando-se, nas quais novas personagens ocasionam uma nova história dentro da que já vinha sendo contada, integrando-a, mas gerando desdobramentos (Todorov, 2006).
Os métodos de campo utilizados decorrem de anos de pesquisa em Arqueologia amazônica (Moraes, 2006; Lima, 2008; Neves, 2012). A partir de um plano cartesiano, executou-se uma malha com 161 tradagens (realizadas com cavadeiras manuais) de 20 x 20 m de espaçamento, a fim de cobrir horizontal e verticalmente a dispersão dos vestígios. Embasados nessas intervenções, definiram-se áreas de interesse, onde se realizaram, em níveis artificias de 10 cm, 21 unidades de escavação com área de 1 m2. O material proveniente de cada um dos níveis artificias foi coletado separadamente. As camadas arqueológicas foram identificadas ao fim da escavação de cada uma dessas unidades (cf.Almeida, 2013; Kater, 2018; Mongeló, 2015).
Os resultados das intervenções arqueológicas realizadas pelo PALMA, no sítio Teotônio, permitiram observar uma estratigrafia longa e complexa, composta por camadas associadas a materiais líticos sem cerâmica tanto em latossolos quanto em terras pretas de índio (Mongeló, 2015), bem como depósitos profundos de terra preta que atingem quatro metros, com ao menos três camadas associadas a material cerâmico (Almeida, 2013; Kater, 2018).
Um fenômeno bastante comum na Amazônia – e que parece ter acontecido no sítio Teotônio – é que os próprios povos indígenas que reocupavam um determinado local também podiam redepositar camadas de solo e material cerâmico (e.g.Lima, 2008; Moraes, 2010). Além disso, a atividade antrópica recente (i.e. construção de estradas, mineração ilegal de terra preta) por vezes removeu camadas arqueológicas inteiras. Portanto, em termos espaciais, apesar de certa sobreposição dos estratos cerâmicos e de contextos bem preservados, a distribuição das diferentes camadas é bastante heterogênea, com casos de misturas pós-deposicionais entre alguns conjuntos (cf.Kater et al., 2020).
Ao chegar de campo, o material é higienizado e posteriormente triado. Separados em base, parede, apêndices/apliques e borda, os fragmentos de cada um dos níveis são contabilizados e pesados. Após numeração, passa-se à análise individual dos fragmentos mais informativos, como bordas e bases, pois permitem inferências sobre o contorno formal do vaso, além de paredes com decoração. O método de análise cerâmica também está ancorado em anos de pesquisa arqueológica na Amazônia (Almeida, 2013; Lima, 2008; Neves, 2012). Aplica-se a cada fragmento uma ficha que contém 27 atributos e cuja finalidade é criar uma malha descritiva e identificar aspectos recorrentes de técnicas de produção de objetos que resultam de cadeias operatórias similares (Silva, 2013). Somam-se aos aspectos produtivos para a definição dos conjuntos tecnológicos a estratigrafia e a sua cronologia. Nesse sentido que se aplica o conceito de conjunto ou tradição tecnológica2.
Nessa ficha, observa-se, por exemplo, a escolha quanto à matéria-prima (como a argila e o antiplástico utilizado), à técnica de manufatura empregada e ao grau de alisamento dado à superfície, ao tipo de queima, à presença de decoração plástica e/ou pintada e em quais padrões foram aplicadas, às marcas de uso que restaram, bem como às características da forma. Estas são obtidas através de projeções de desenhos de borda, reconstituídas a partir de critérios de confiabilidade (i.e. regularidade, tamanho, inclinação da borda), sendo fundamentais para se verificar a capacidade volumétrica e a variabilidade morfológica dos vasos (Rice, 1987; Rye, 1981).
Essa teia descritiva, correlacionada aos aspectos deposicionais dos fragmentos, cria a possibilidade de se propor uma classificação em conjuntos tecnológicos, uma das etapas do estabelecimento de contextos culturais do passado (Raymond, 2009). Esse método foi aplicado a 8.320 fragmentos cerâmicos, provenientes das unidades de escavação realizadas. Foram identificados seis diferentes conjuntos tecnológicos cerâmicos, alguns com paralelos na bacia amazônica: a Tradição Pocó-Açutuba, a Tradição Barrancoide/Borda Incisa, a Tradição Regional Jamari e a subtradição Jatuarana da Tradição Polícroma da Amazônia. Dionísio e Morro dos Macacos são conjuntos locais e foram definidos por Costa (2016) e Zuse (2014) (Quadro 1).
A Tradição Pocó-Açutuba foi classificada por P. Hilbert e K. Hilbert (1980), Lima et al. (2006), Guapindaia (2008) e Neves et al. (2014). No Teotônio, a maioria das peças possui uma pasta porosa e leve, principalmente quando há acréscimo de carvão. A técnica de manufatura predominante é a roletada e as paredes são pouco espessas, com exceção de algumas bordas reforçadas e expandidas, flanges e algumas poucas bases. Pouquíssimas marcas de uso são encontradas. O material se encontra bastante fragmentado.
O polimento das superfícies é bem esmerado. Há combinação de superfícies bem alisadas com escovado e/ou estrias de alisamento. Os tratamentos de superfície são abundantes, os engobos possuem alta variabilidade cromática, como acontece com a pintura. As decorações plásticas são realizadas com a pasta mais seca. Nos pontos angulares das vasilhas (e.g. carenas e flanges), quase sempre há combinação entre ambas.
Morfologicamente, o que se apreendeu da reconstituição de bordas foi que metade dos vasilhames possui forma de calota, com borda direta, expandida ou com flanges labiais, com volumes inferiores a 1,3 litros. Os vasilhames semiesféricos perfazem um quarto da amostra e também comportam pequenos volumes, menores do que cinco litros. Os poucos vasos com bocas constritas e fechadas possuem a maior capacidade volumétrica, mesmo assim não ultrapassando 17 litros. Ressalta-se que muitas bordas são irregulares e não reconstituem uma vasilha com boca esférica. No cenário regional, apesar de ele ainda não ser tão claro, esse padrão morfológico parece não se repetir (Costa, 2016; Zuse, 2014). Além disso, pontos de inflexão e carenas foram encontrados (em 5% da amostra), o que sugere que alguns desses vasos possuem contornos complexos. Uma recorrência notável foi a associação entre os vasos de calota de pequenos volumes (menores de 1,5 litros), sem indícios de fuligem e com alta presença (95%) de tratamento de superfície ou decorações plásticas e cromáticas. Diante desse cenário, não é incoerente afirmar que tal predominância de vasos com função de serviço e consumo de alimentos sólidos ou líquidos (cf.Rice, 1987) desempenha papel central para a sociedade que os produziram.
Quanto à cronologia, foi datado um fragmento com características da Tradição Pocó-Açutuba em 3.250 anos AP (não calibrado) (cf.Kater, 2018, pp. 185-187). Tal data a equipara com a mais antiga já obtida para essa Tradição, 3.280 anos AP, por P. Hilbert e K. Hilbert (1980). Apesar de certa cautela, vale ressaltar que essa data no sítio Teotônio reforça o cenário de antiguidade das ocupações Pocó-Açutuba no alto rio Madeira, por volta do terceiro milênio (Costa, 2016; Zuse, 2014). As mais recentes datações para esse contexto na região são por volta de 1.800 anos AP, na Ilha Dionísio (Costa, 2016) (Figura 2).
Não há datas para o conjunto Morro dos Macacos, no sítio Teotônio, em contrapartida, em todos os demais sítios, a datação foi ao redor de 1.800 anos AP, exatamente junto às últimas evidências da Tradição Pocó-Açutuba no alto rio Madeira (Zuse, 2014). O período de 1.800 anos AP será, portanto, estendido para o sítio Teotônio. No material, observou-se alta concentração de grãos angulosos de quartzo hialino e/ou leitoso de antiplástico. As decorações plásticas são realizadas com a pasta úmida e com um instrumento de ponta côncava, em diferentes espessuras e profundidades.
É notável a pouca variabilidade morfológica. Todas as vasilhas reconstituídas possuem forma de calota com contorno simples ou infletido, mas sempre com boca aberta. Flanges são recorrentes e locais onde se identificam decorações plásticas. Quanto à capacidade volumétrica, os vasos são pequenos, não ultrapassando três litros. É exígua a presença de carenas, o que difere o Teotônio dos demais sítios em que esse conjunto é encontrado (Zuse, 2014). Apesar da possibilidade da ampliação da variabilidade morfológica com a sequência das pesquisas, é interessante notar que as três morfologias reconstituídas para o conjunto Morro dos Macacos são exatamente aquelas mais populares, inclusive em termos volumétricos, da Tradição Pocó-Açutuba (Figura 3).
A Tradição Barrancoide/Borda Incisa no alto rio Madeira foi definida por Zuse (2014). Como em diversos outros pontos da bacia amazônica (Lima, 2008; Neves, 2012), parece haver certa continuidade com a Tradição Pocó-Açutuba, sobretudo em relação à cerâmica. Em contrapartida, há uma alteração nas escolhas das áreas de ocupação, com incursões e assentamentos em ilhas e em áreas afastadas das cachoeiras (Zuse, 2014). Os indícios arqueológicos mais seguros que revelam esse processo de transformação da Tradição Pocó-Açutuba para a Barrancoide/Borda Incisa são datados por volta de 1.550 anos AP, no entorno da cachoeira do Teotônio, tanto no sítio homônimo quanto no Santa Paula, na margem oposta do rio Madeira (Almeida, 2013; Kater, 2018; Zuse, 2014).
Ainda que haja certa mistura de cerâmica Barrancoide com outros conjuntos tecnológicos nas camadas do sítio (cf.Kater et al., 2020), pode-se perceber que o tamanho e a quantidade do antiplástico aumentam em comparação ao material Pocó-Açutuba, mas há diminuição do uso do carvão. A presença de apliques modelados é pequena no Teotônio, se comparado com os demais sítios estudados no alto rio Madeira (Zuse, 2014). Os escovados que ocorrem nos fragmentos se diferenciam do material Pocó-Açutuba por serem menos orientados, isto é, a oleira faz movimentos em diferentes direções, sobrepondo e entrecruzando as ranhuras, e como no caso das decorações plásticas, que são abundantes, são realizadas com a pasta mais úmida. Incisões de diferentes espessuras são corriqueiras e ocorrem, por vezes, associadas aos ponteados e excisos – com padrões geométricos em linhas horizontais, verticais, transversais, curvilíneas em paralelo – ou, por vezes, formando motivos abstratos. Com espessura e alinhamento irregular, é comum a existência de ‘rebarbas’. Bordas reforçadas com aspecto roletado também são identificadas.
Vasilhas de contorno simples, com formas esféricas ou de calota, fechadas e abertas, são as mais recorrentes. No entanto, há presença de vasilhames com contorno constrito, como vasilhas infletidas e de formas fechadas. Flanges são muito raras. Assadores com grandes diâmetros foram observados. Outra mudança bem perceptível em relação ao conjunto Pocó-Açutuba é o tamanho da capacidade volumétrica dos vasos, que, em algumas formas, triplica, bem como de sua maior variabilidade morfológica, com um incremento claro do arsenal de vasos para preparo e armazenagem (Figura 4).
A Tradição Jamari foi definida por Miller (1992, 2009) e reconfigurada por Almeida (2017). Originária do rio homônimo, afluente da margem direita do rio Madeira, possui longa sequência em seu baixo-médio curso. No sítio Teotônio, a cronologia da Tradição Jamari é incerta, necessitando de mais datações para o contexto, mas se estima que o início da ocupação ocorra antes de 1.300 anos AP.
A pasta possui tons variando entre o marrom-avermelhado e cinza. A queima redutora foi a mais frequente, com menor proporção de oxidante e com núcleo redutor. Esse conjunto possui a maior média de espessura dos fragmentos em todo o sítio. As superfícies são bem alisadas ou polidas, sendo pouco notável a presença de estrias de alisamento. É importante também ressaltar que foram identificadas (a) marcas de quebra ou lascamento com sinais de ponto de impacto e (b) presença de fuligem nas áreas de quebra da cerâmica (cf.Kater, 2018, p. 238), elementos que sugerem alterações pós-deposicionais da camada Jamari.
Há predomínio de formas sem ângulos. Quando eles ocorrem, são sutis. Também foram identificados vasos rasos com forma esférica, semiesférica e em calota; globulares, com bocas e pescoços levemente constritos. Pratos rasos e assadores também foram observados. Os nove tipos morfológicos comportavam tamanhos distintos, de capacidade volumétrica com até oitenta litros. As abundantes marcas de uso nos fragmentos (i.e. fuligem) permitiram uma boa aferição da função dos vasos, mostrando que existe uma relação entre o tamanho do vasilhame e a sua morfologia para escolha de uso (cf.Kater, 2018, pp. 245-250). As cerâmicas da Tradição Jamari possuem, ainda, a menor taxa de fragmentação no sítio, talvez por sua espessura ou pelo tamanho das vasilhas originais (Orton, 1989). O sítio Teotônio é o único em que se identificou material associado à Tradição Jamari no alto rio Madeira (Kater, 2018) (Figura 5).
O conjunto Dionísio foi definido por Zuse (2014) e Costa (2016). Trata-se de uma manufatura regional do alto rio Madeira, sendo identificada em sítios insulares a montante da cachoeira do Teotônio. Possui a menor amostra resgatada de todo o sítio Teotônio, mas toda ela composta por vasilhas semi-inteiras e inteiras, padrão de deposição que também se identifica no sítio Ilha Dionísio (cf.Costa, 2016). Apesar de não haver datações para esse contexto no sítio Teotônio, sabe-se que nas ilhas esse conjunto ocorre entre 1.000 e 780 anos AP (Costa, 2016).
Pela amostra ser diminuta, pôde-se observar apenas alguns elementos que compõem o conjunto como um todo, mas que se enquadram naquilo que apontam Zuse (2014) e Costa (2016). As morfologias identificadas no sítio Teotônio são bastante similares àquelas encontradas nos sítios insulares com predomínio do conjunto Dionísio. A primeira vasilha possui base convexa-côncava, com furo no centro, realizado pós-queima, mas teve sua borda retirada por impactos recentes. A segunda é bastante semelhante à anterior, mas varia na forma, por ser mais fechada. A terceira possui forma simples e aberta, base plano-convexa e 48 cm de diâmetro. Finalmente, a vasilha escavada pelo PALMA possui forma esférica, boca aberta e contorno infletido, borda extrovertida e base convexa (Figura 6).
Por fim, a subtradição Jatuarana, da Tradição Polícroma da Amazônia (TPA), foi originalmente definida por Miller (1992) e reestudada por Almeida (2013), Pessoa (2015) e Vassoler (2016). Para o sítio Teotônio, o material da subtradição Jatuarana perfaz a maior amostra analisada. Boa parte do material está bem conservada, o que auxilia visualizar que as superfícies estão, em geral, bem alisadas. Os tratamentos de superfície são bastante comuns, enquanto marcas de uso não são frequentes.
As decorações pintadas são encontradas em maior proporção do que as plásticas, embora ambas sejam características desse conjunto tecnológico. A pintura vermelha (muitas vezes sobre engobo branco ou barbotina) é a mais abundante. Incisos e acanalados são as decorações plásticas mais comuns, enquanto excisos, ponteados e ungulados aparecem discretamente. As decorações plásticas podem aparecer associadas à pintada, criando diversos motivos, como chevron, labirinto, serpente bicéfala, voluta simples e dupla e formas geométricas. Observando o contexto geral do alto rio Madeira, inclusive a partir de vasos inteiros (Vassoler, 2016), pode-se perceber que ocorreu uma repetição de determinados padrões e motivos iconográficos em diferentes fragmentos.
Observaram-se doze diferentes morfologias. O que se percebe é uma vasta parafernália artefatual, com vasos de distintos tamanhos, capacidades volumétricas que chegam até cento e vinte litros, e que podem desempenhar as mais diferentes funções, mesmo sendo observadas em uma mesma morfologia. Como as demais pesquisas apontam (Almeida, 2013; Pessoa, 2015; Vassoler, 2016; Zuse, 2014), percebe-se que a subtradição Jatuarana possui alta variabilidade interna na cerâmica em termos tecnológicos e morfológicos e talvez não seja um fenômeno tão padronizado, apesar de um estilo (Rice, 1987; Rye, 1981) compartilhado. Percebe-se, ainda, que há uma alteração na configuração regional após certo tempo da presença Jatuarana, um padrão já observado no baixo rio Madeira, com a fase Borba, e na Amazônia Central, com a fase Guarita (e.g.Moraes, 2013). A despeito de uma datação de 1.250 anos AP para o contexto Jatuarana no sítio Teotônio (Almeida, 2013), a única até agora desse período, identifica-se predomínio dessas ocupações após 950 anos AP (Figura 7).
A partir desse momento, em contrapartida a essa aparente padronização estilística nos sítios da região, visualiza-se pluralidade e diversificação no uso do espaço e nas funções que cada um dos assentamentos comporta. O que ocorre é um aumento desses sítios e a criação de novas e distintas formas de se ocupar a paisagem (Almeida, 2013; Pessoa, 2015; Vassoler, 2016; Zuse, 2014). As áreas das cachoeiras Santo Antônio e Teotônio ainda são densamente ocupadas, talvez com moradias, mas alguns possuem montículos, como no Novo Engenho Velho (Pessoa, 2015). A montante dessas cachoeiras, foram encontrados sítios funerários com deposição de vasilhas inteiras (Vassoler, 2016). No sítio Teotônio, a ocupação Jatuarana ocorre até os tempos coloniais.
A relação dos povos indígenas com a cachoeira do Teotônio a torna a base pela qual se emoldura a narrativa a respeito das distintas ocupações que ocorreram no sítio, como o mar Mediterrâneo foi para Braudel (1990). A cachoeira do Teotônio foi por milhares de anos uma parada obrigatória para aquelas pessoas que subiam ou desciam o rio Madeira. Não somente por seus significados e importância, atualizados ao longo do tempo, mas também pela falta de navegabilidade que as águas turbulentas impunham, sendo a primeira intransponível por barco no alto curso desse rio (cf.Kater, 2018). Além disso, desde o período colonial, sabe-se que foi uma das áreas mais piscosas de toda a bacia amazônica, representando uma abundante fonte de recursos aquáticos (Goulding et al., 1996).
A partir da definição de Zedeño e Bowser (2009), a cachoeira do Teotônio se trataria, portanto, de um lugar significativo. A conjunção entre os dados geológicos, que demonstram que a cachoeira do Teotônio existe há pelo menos oito mil anos (Tizuka, 2013), e os arqueológicos, que evidenciam ocupações humanas ao redor de nove mil anos até o presente (Neves, 2016; Watling et al., 2018), também a sugere como um lugar persistente (Zedeño & Bowser, 2009). Por isso, é entendida como o elemento de longa duração que enquadra a história de ocupação humana na região, mostrando como esse lugar arqueológico não é restrito a um determinado tempo (Lucas, 2015). Protagonista, a cachoeira é um substrato rochoso e fluido, comum a qualquer narrativa a respeito do lugar.
Por ser, como lugar significativo, um entroncamento de redes e movimentos populacionais ao longo do tempo (Almeida & Kater, 2017), organiza diferentes territorialidades, em uma temporalidade de longa duração, de tempo geográfico. Esse enfoque em larga escala permite vislumbrar as permanências e as lentas mudanças nessas relações entre seres humanos e o meio que os cercam, entre os distintos grupos indígenas e a cachoeira do Teotônio.
Na presente edição, Watling et al. (2020) apresentam um compêndio de dados e reflexões a respeito do manejo de plantas nos sítios do entorno da cachoeira do Teotônio. Ainda que a domesticação de plantas seja um tema bastante debatido (Fausto & Neves, 2018), pode-se argumentar que a presença humana ao lado da cachoeira, em sua intensa e contínua permanência, tenha papel fundamental no desenrolar desses processos, algo que também é inferido pela formação de terras pretas por volta de 6.500 anos AP (Mongeló, 2015, 2020). Ao mesmo tempo, Watling et al. (2020) apresentam como essas estratégias não são estáticas, mas se alteram de acordo com a conjuntura cultural e econômica das distintas ocupações do sítio. Algo semelhante ao que ocorre com a tecnologia cerâmica.
Portanto, ao mesmo tempo em que o uso da cachoeira do Teotônio é baliza da longa duração, as demais temporalidades nela interferem, ao trazerem alterações nas formas de ocupar a paisagem e no papel que o entorno da cachoeira do Teotônio desempenha na territorialidade das distintas ocupações humanas. Nesse sentido, encarar os conjuntos tecnológicos cerâmicos como resquícios e indícios da média duração é útil para visualizar esse cenário de diferentes ritmos de mudança. Ainda que a Arqueologia não se acerque das ontologias que a definiam como um lugar significativo, é possível entrever os diferentes meios e estratégias pelos quais a cachoeira se inseria, nas distintas conjunturas, na paisagem e no território. Talvez, pelas tecnologias cerâmicas – a forma pela qual se obtém esse recorte em uma escala menor, da média duração –, haja pistas de como esses grupos manejavam o lugar. De toda forma, a presença dos seis conjuntos, que estão regionalmente dispersos, nos permite reforçar essa visão geral do sítio Teotônio como um microcosmo do processo histórico de longa duração no alto rio Madeira (Almeida & Kater, 2017).
Esse pano de fundo pode ajudar na compreensão do que significa a presença antiga da Tradição Pocó-Açutuba no sítio Teotônio, que o equipara aos locais com as evidências mais antigas desse conjunto (P. Hilbert & K. Hilbert, 1980). Um dos elementos utilizados para definição da Tradição Pocó-Açutuba foi tê-la identificado em contextos que indicavam predileção desses grupos em ocupar lugares significativos da paisagem, como lagos, encontros entre grandes rios e cachoeiras (Neves et al., 2014). A antiguidade da ocupação Pocó-Açutuba do sítio Teotônio não seria, portanto, fortuita, mas deliberada, por conta do prévio e longo histórico de ocupação, que talvez já o tinha consolidado como lugar significativo.
Esse padrão de organização “em relação a locais sagrados comuns . . . associado à organização de diversas comunidades locais em relação a um local central compartilhado . . . [em que] atribuem significados históricos às marcas do ambiente” (Hill, 2013, p. 49) – que parece ter ocorrido no período da Tradição Pocó-Açutuba no sítio Teotônio desde seu início –, tem sido colocado como algo partilhado por populações da família Arawak (Heckenberger, 2005; Hill, 2013). Neves et al. (2014), seguindo as discussões antropológicas, também sugerem que a dispersão da Tradição Pocó-Açutuba pode estar associada à dispersão de povos de língua Arawak.
Ancorada na longa duração da importância da cachoeira, a ocupação Pocó-Açutuba no sítio Teotônio estabelece uma nova conjuntura no sítio, com uma maneira de usá-lo que se distingue das anteriores, uma temporalidade de média duração que vai durar aproximadamente 1.400 anos no alto rio Madeira. Apesar de evidências mais antigas de sedentarização, como sugerem as terras pretas da camada Massangana (Mongeló, 2015), essa ocupação traz novos usos ao lugar. Ao observar a composição da parafernália artefatual cerâmica reconstituída para a Tradição Pocó-Açutuba no sítio Teotônio, em que há prevalência de vasilhames com pequenos volumes para consumo de líquidos e/ou sólidos, percebe-se, do ponto de vista da organização social, que a caracterização desse conjunto indica ênfase em vasos para eventos que reiteram a significação de lugares sagrados compartilhados, que fortalecem a rede de relações existentes. Cogita-se que a proeminência dessas morfologias remeta ao consumo de bebidas fermentadas (cf.Kater, 2018), aspecto central de inúmeras sociedades ameríndias (Almeida, 2015). A presença marcante do milho durante essa ocupação, excelente matéria-prima para fermentados, é mais um indício para essa hipótese (Watling et al., 2020).
Na mesma direção interpretativa da cerâmica enquanto indícios de temporalidades é que se encara o conjunto Morro dos Macacos. Por repetir as morfologias mais populares do conjunto Pocó-Açutuba, por volta de 1.800 anos AP, bem no período final da ocupação Pocó-Açutuba (Costa, 2016), sugere-se que esse conjunto seja um indício de movimento curto, de esfera individual, que vai propiciar mudanças que, posteriormente, podem ser percebidas conjunturalmente.
Essa mudança ocorre no tempo dos eventos, através da inovação tecnológica desse conjunto, após um longo período de estabilidade. Cogita-se que haja inserção de novos grupos e/ou alterações nessas redes de relações, que podem incluir festas, nas quais integrantes que delas participavam (i) inovam na manufatura cerâmica e/ou (ii) mantêm-se parcialmente ligados às formas pelas quais aprenderam a fazer cerâmica, mas continuam, como se vê pelas morfologias, vinculados às maneiras de se utilizar o sítio: um lugar compartilhado, de uso significativo para a formalização e a manutenção de redes, com forte predominância de vasos que talvez fossem destinados para consumo de fermentados. Uma mostra de como, em certos contextos, podemos inferir sobre impulsos breves, mas que podem ser sintomas de alterações em média escala, mesmo que a longa duração pareça ainda quase inabalada.
O contexto observado para a Tradição Barrancoide/Borda Incisa consistiria na consolidação de um processo social que se alterou na média duração, da forma social de ocupação das populações indígenas do entorno da cachoeira do Teotônio, cujo primeiro indício foi o conjunto Morro dos Macacos, um pulsar superficial. Em termos de tecnologia cerâmica, há certa concordância de que a Tradição Barrancoide/Borda Incisa possui continuidade com a Tradição Pocó-Açutuba ( Lima, 2008; Zuse, 2014), sugerindo que o processo de ensino-aprendizagem de produção cerâmica tenha se mantido em alguns aspectos. Mas ocorre uma mudança das formas sociais e da economia, pois há uma expansão e diversificação dos lugares e das formas de essas populações habitarem a paisagem (e.g. construção de montículos), uma intensificação na formação de terra preta e um aumento no tamanho e na quantidade de material cerâmico, pelos quais se infere um adensamento demográfico (Kater, 2018; Zuse, 2014).
Nesse cenário de mudança conjuntural, rearranjos na estrutura política podem ter ocorrido, com alteração na forma de se utilizar o sítio Teotônio, não mais um epicentro privilegiado para festividades e rituais, mas uma ocupação mais fixa, habitacional. Os indícios microbotânicos (Watling et al., 2020) também indicam uma mudança das plantas privilegiadas em relação à ocupação Pocó-Açutuba. Apesar de, provavelmente, se modificar a maneira pela qual o sítio era utilizado, não alterou o interesse em estar próximo à cachoeira. Assim, o espaço físico da cachoeira reafirma-se enquanto fenômeno de longa duração, base geográfica pelas quais populações se organizaram, ainda que se tenha alterado o significado que possuía e as relações que lá se engendravam.
A hipótese inicial sobre a ampliação das redes de trocas e a manutenção de vínculos que se davam durante a ocupação Pocó-Açutuba, com a inserção do conjunto Morro dos Macacos, se reforça ao se observar o papel que a ocupação da Tradição Jamari possui na cachoeira do Teotônio, ainda mais se relacionadas às mudanças já percebidas com a Tradição Barrancoide/Borda Incisa. Originária do rio Jamari (Miller, 2009), provavelmente associada aos povos falantes das línguas Tupi-Arikém (Almeida, 2017; Miller, 2009), essa tradição homônima possui longa cronologia naquela região. Portanto, sua identificação unicamente no sítio Teotônio no alto rio Madeira reforça, mais uma vez, a significação da cachoeira e seu entorno na longa duração. A despeito das incertezas sobre a datação para esse material, essa parece ser, no sítio Teotônio, aquela que melhor representa o processo de intensificação do manejo do ambiente, com formação de espessos depósitos de terra preta, grande profusão de vasos de grandes volumes e material cerâmico com abundante presença de fuligem, indicando amplo uso ao fogo. Ao mesmo tempo, ao se observar o contexto do sítio Santa Paula, que, no mesmo período, possuía ocupação Barrancoide/Borda Incisa e evidências de construções monticulares (Zuse, 2014), pode-se cogitar que tenha havido um sistema multilinguístico no alto rio Madeira, havendo convivência de populações de língua da família Arawak (Barrancoide/Borda Incisa) e Tupi (Jamari).
Portanto, dentro dessa nova configuração social, de média duração, uma provável rede de relações multilinguísticas pode ter se ordenado, reconfigurando aquela que existia durante o período com ocupações de povos produtores de cerâmica Pocó-Açutuba – e na qual o conjunto Morro dos Macacos tenha sido um evento sintomático e ocorrencial da mudança. Não só esse cenário com cerâmicas da Tradição Barrancoide/Borda Incisa e Jamari alude a esse fenômeno, mas também a deposição de vasos inteiros e semi-inteiros do conjunto Dionísio, no sítio Teotônio. Assim, apesar de haver ocupação densa e permanente no sítio, trocas permaneceram, bem como havia diferentes níveis de relações entre os vários grupos que habitavam o alto rio Madeira. Os vasos do conjunto Dionísio são como diagnósticos da posição privilegiada que o sítio e a cachoeira do Teotônio possuem na esfera regional (Almeida & Kater, 2017).
Há, contudo, outra mudança conjuntural com a subtradição Jatuarana. Ainda encaixada aos vínculos de longa duração com a cachoeira do Teotônio, na média duração, dos grupos sociais e economia, podemos perceber uma alteração com essa ocupação. O que se percebe no registro arqueológico é que a variabilidade artefatual cerâmica e as formas de ocupação anteriores são substituídas por uma aparente repadronização em termos estilísticos e na paisagem, um novo pulso de transformação conjuntural, em que a cerâmica passa a possuir um estilo marcado, enquanto a paisagem e seu manejo ganham dimensões que até então não parecem ter possuído.
Na cachoeira do Teotônio ainda orbitam inúmeras ocupações, bastante sedentárias, como já havia ocorrido com as ocupações Barrancoide/Borda Incisa e Jamari. Porém, a subtradição Jatuarana é uma nova conjuntura que se enquadra no pano de fundo da longa permanência da cachoeira, na qual novos espaços são buscados para, por exemplo, exclusivamente enterrarem os mortos. As predileções e as estratégias de manejo florestal também se alteram, como sugerem os dados de Watling et al. (2020). Ao estilo visual compartilhado pelas cerâmicas, em detrimento da grande diversidade de padrões tecnológicos, ou da forma de habitar os sítios (ora com montículos, ora sem; próximos ou distantes das cachoeiras), a explicação seria voltada às escolhas, individuais ou de pequenos grupos, enraizadas nos processos de ensino-aprendizado que indicam pulsos de curta duração.
A interpretação da cachoeira do Teotônio e de seu entorno como um lugar arqueológico melhor se delineia se observamos as distintas temporalidades que convivem em cada um desses momentos históricos. Formada como um artefato moldado pela e na história de diferentes ocupações humanas, nelas, eventos de curta duração ajudaram a significar o sítio e a cachoeira, encaixando histórias ligadas a outras temporalidades. Isso pode ser comparado com a cidade do Cairo narrada por Mahfuz, onde há um fervilhar cotidiano no qual as pessoas atuam, movimentam-se e se transformam, mas não de qualquer forma, pois as conjunturas socioeconômicas e culturais mostram que durante certos períodos há formas privilegiadas de ‘ser’ e de ‘estar’ na paisagem. Nesses diferentes níveis temporais que compõem a história indígena de ocupação da cachoeira do Teotônio, percebem-se inúmeros movimentos e também estruturas que não são simplesmente esquecidas ou abandonadas, mas continuam a interferir e a se (re)encaixar, deixando rastros que indicam a persistência do lugar.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (processos 2017/11817-9 e 2018/24509-3) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento de parte da pesquisa. A Fernando Almeida e Guilherme Mongeló, pelo convite para colaborar neste dossiê; às/aos colegas que de alguma forma, seja nos trabalhos de campo ou em laboratório, ajudaram no desenrolar da pesquisa; aos moradores da Vila Nova de Teotônio, pela sempre gentil acolhida.
* Autor para correspondência: Thiago Kater. Universidade de São Paulo. Museu de Arqueologia e Etnologia. Av. Prof. Almeida Prado, 1466. São Paulo, SP, Brasil. CEP 05508-070 (thiagokater@gmail.com).