Resumo: Os registros das condições existentes durante a formação dos sítios arqueológicos foram obtidos a partir de pesquisas interdisciplinares. Inseridas no campo da arqueobotânica, as diatomáceas são microalgas capazes de indicar as condições pretéritas. Quando presentes nos solos arqueológicos, podem indicar cursos d’água próximos ao sítio ou inferir condições paleoambientais. Este artigo apresenta pioneiramente o registro de diatomáceas em toda a coluna bioantracológica de um sambaqui. Nesse sentido, amostras do Sambaqui Porto da Mina (Quatipuru, Pará, Brasil) foram analisadas ao longo da coluna sedimentar. As diatomáceas encontradas reforçam a ideia da permanência dos grupos sambaquieiros no local de construção por pelo menos 210 anos. As inferências ecológicas obtidas apontam que o assentamento estava em um ambiente geograficamente diverso, com entrada de água doce, salobra e marinha. Assim, a inclusão da análise das diatomáceas no contexto arqueológico representa uma técnica adicional para os estudos de reconstrução ambiental.
Palavras-chave:AlgasAlgas,ConcheirosConcheiros,HolocenoHoloceno,PaleoecologiaPaleoecologia.
Abstract: Records of the conditions during the formation of archaeological sites were obtained from interdisciplinary investigations. In archaeobotany, diatoms are microalgae that can depict these previous conditions; when present in archaeological soils, they indicate the presence of watercourses near the site or may permit inferences about paleoenvironmental conditions. This study is the first to describe the diatom record throughout the entire anthracological column of a shell mound. Samples from the Porto da Mina Shell Mound (Quatipuru, Pará, Brazil) were analyzed along the sedimentary column. The diatoms found in the mound reinforce the notion that groups have been associated with the shell mound at the site for at least 210 years. The ecological inferences indicate that the settlement was in a geographically diverse environment, with fresh, brackish, and marine water entering. The inclusion of diatom analysis in the archaeological context represents an additional technique for environmental reconstruction studies.
Keywords: Algae, Holocene, Paleoecology, Shell mound.
Artigos Científicos
Registros arqueobotânicos em um sambaqui amazônico: utilização de microalgas (Diatomáceas, Bacillariophyta) como indicadoras de alterações ambientais
Archaeobotanical records in an Amazonian shell mound: microalgae (Diatomacea,Bacillariophyta) as indicators of environmental changes
Recepção: 23 Abril 2019
Aprovação: 23 Março 2020
Sambaquis são sítios arqueológicos caracterizados pela deposição de sedimentos, resíduos vegetais, restos de animais, artefatos arqueológicos e sepultamentos. Os conteúdos, acumulados de maneira intencional, acarretam uma sequência complexa que revela a cronologia cultural temporal e, dessa forma, fornecem informações sobre o uso de recursos locais (DeBlasis et al., 1998; Gaspar, 2000; Lima et al., 2002; Scheel-Ybert et al., 2009; Gaspar et al., 2013; Villagran & Giannini, 2014; Coe et al., 2017).
No Brasil, os sambaquis datam de 8.000 a 1.000 anos Antes do Presente (AP) e representam ambientes ocupados pelos grupos sociais pré-coloniais adaptados a ambientes costeiros e ribeirinhos em cenários deposicionais (DeBlasis et al., 1998, 2007; Gaspar, 2000). De acordo com Macario et al. (2014), os sambaquis brasileiros estão localizados ao longo de 2.000 km da costa brasileira. Os mais estudados são os sambaquis situados nas regiões Sul e Sudeste (Wagner et al., 2011), e os menos documentados estão localizados no Pará (PA), Norte do Brasil (Silveira & Schaan, 2005).
Os sambaquis encontrados na costa Norte e Nordeste são considerados diferentes, quando comparados aos localizados no Sul e Sudeste do Brasil, quanto à sua configuração, principalmente em decorrência da existência de fragmentos cerâmicos em todos os níveis ou camadas estratigráficas (Lopes et al., 2018). Porém, é importante ressaltar que os pescadores-coletores do litoral das regiões Norte, Sudeste e Sul integram um único sistema sociocultural, sem prejuízo das especificidades regionais e temporais (Gaspar, 2000).
A compreensão da formação desses sítios arqueológicos auxilia na elaboração de modelos de evolução ambiental e dos processos culturais dos grupos sociais que ocupavam as regiões costeiras, assim como da biodiversidade existente durante o Holoceno, através do estudo de organismos fósseis ou em processo de fossilização encontrados ao longo das camadas estratigráficas (Villagran & Giannini, 2014).
Foi necessário adotar metodologias e ferramentas de diferentes áreas, como das ciências arqueológicas, geológicas, antracológicas, geoquímicas, arqueofácies, paleoambientais e biológicas (e.g. Bissa et al., 2000; Gaspar, 2000; Scheel-Ybert et al., 2009; Villagran et al., 2009; Souza et al., 2010; Macario et al., 2014; Villagran & Giannini, 2014; Beauclair et al., 2016; Coe et al., 2017; Lopes et al., 2018).
Uma das relações mais tradicionais tem sido a abordagem interdisciplinar da arqueologia com as ciências biológicas (Grana, 2018). Entre as múltiplas afinidades dessas ciências, um dos campos mais desenvolvidos é o da arqueobotânica, cujos estudos estão concentrados nos vestígios de plantas, sejam eles madeiras, frutos, sementes, folhas, fibras, pólen, esporos, fitólitos ou algas (Figueiral & Willcox, 1999; Celant et al., 2015). Embora as diatomáceas sejam amplamente utilizadas em estudos de paleoecologia (e.g. Battarbee, 1986; Vanlandigham, 2006; Villagran et al., 2009), pouco se sabe sobre a presença de microalgas em sambaquis.
As diatomáceas possuem parede celular composta de sílica polimerizada (SiO2nH2O) e apresentam alta resistência física e química, resistindo inclusive a ambientes sedimentares (Battarbee, 1986; Julius & Theriot, 2010), sendo excelentes indicadoras para estudos arqueológicos e paleoambientais.
Ecologicamente bem-sucedidas, as diatomáceas ocorrem em uma ampla gama de habitats e são importantes nos ciclos biogeoquímicos da atmosfera (Falkowski et al., 2000; Yool & Tyrell, 2003; Kociolek & Williams, 2015). Além disso, essas microalgas, por sua ocorrência, capacidade de colonização e tolerâncias ambientais específicas, respondem rapidamente às mudanças ambientais, atuando, por isso, como eficazes indicadores biológicos em estudos de reconstrução e interpretação arqueológica (Round et al., 1990; Lobo et al., 2002; Grana et al., 2014).
Recentemente, Grana (2018) avaliou os trabalhos que aplicaram a análise de diatomáceas em estudos arqueológicos, sintetizando as potencialidades e limitações dessas microalgas silicosas nas diferentes escalas temporais e espaciais. O levantamento realizado por essa autora representa um marco conceitual na relação das diatomáceas com a arqueologia, além de apontar medidas para garantir a qualidade das informações obtidas através dessas algas. A abordagem das diatomáceas nos contextos arqueológicos permite enriquecer os resultados, uma vez que, a partir dessas microalgas, é possível inferir as condições ambientais existentes na área de estudo (Battarbee, 1986; Round et al., 1990; Julius & Theriot, 2010).
No Brasil, estudos utilizando as diatomáceas como indicadoras de mudanças paleoambientais podem ser encontrados tanto na região costeira (Medeanic et al., 2001; Nascimento et al., 2003; Saupe & Mosimann, 2003; Senna et al., 2005; Medeanic & Torgan, 2006; Ribeiro et al., 2010; Santos-Fischer et al., 2016) quanto em ambientes de água doce (Costa-Boddeker et al., 2012; Almeida & Bicudo, 2014; Ruwer et al., 2018). No contexto das pesquisas arqueológicas, estudos envolvendo as diatomáceas como proxy são escassos (Bissa et al., 2000; Boyadjian et al., 2007, 2016; Villagran et al., 2009; Amaral et al., 2012; Villagran & Giannini, 2014). No que tange o registro de diatomáceas em sítios arqueológicos no litoral do estado do Pará, essas informações são inexistentes.
Dessa forma, este artigo objetiva conhecer a biodiversidade das diatomáceas encontradas no Sambaqui Porto da Mina e utilizar os dados de autoecologia1 para inferir as alterações ambientais ocorridas durante seu processo de construção e ocupação. Em um contexto maior, visa também auxiliar na compreensão da evolução paleoambiental ocorrida nos últimos 5.000 anos AP na costa norte amazônica.
O município de Quatipuru está localizado no nordeste paraense (00º 53’ 49” S-47º 00’ 19” W) (Figura 1), possui relevo do tipo tabuleiros aplainados, com terraços e várzeas de maré, sedimentos argilo-orgânicos, com ocorrência dos solos hidromórficos argiloso e humoso (Souza-Filho & El-Robrini, 1996; Souza-Filho et al., 2009). Os ecossistemas encontrados nessa área são variados, formados por uma extensa rede hidrográfica, com presença de manguezais, campos salinos, restinga, praias, várzea de maré e terra firme, sendo escolhida para a construção dos sambaquis (Senna et al., 2011; Lopes et al., 2018).
Entre os sambaquis localizados na região, encontra-se o Sambaqui Porto da Mina (PA: SA-5), originalmente recuperado por M. Simões (1981) em um levantamento realizado pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) para sítios da região do Salgado.
O Sambaqui Porto da Mina reflete o modelo de povoamento do litoral paraense, caracterizado por diferentes migrações oriundas do Noroeste e Norte da América do Sul (M. Simões, 1981), sendo um dos representantes da Tradição da Fase Mina estabelecidas para a Amazônia oriental (Lopes et al., 2018).
A estratigrafia proposta para o sítio sugere quatro camadas de ocupação, cujas datações mais recentes (Lopes, 2016) demonstram uma sequência cronológica para a ocupação do sítio da base para o topo, sendo que, na camada I, a datação é de 5.280 ± 30 anos AP; na camada II, de 5.200 ± 30 anos AP; na camada III, de 5.070 ± 30 anos AP; e, na camada IV, de 130.9 ± 03 pMC (Porcentagem de Carbono Moderno).
É importante frisar que, atualmente, o Sambaqui Porto da Mina se encontra afastado do litoral com a distância de 7 km em relação à sede municipal de Quatipuru, com acesso pela rodovia PA-446. O sítio localiza-se perto do igarapé Furo da Mina (M. Simões, 1970, 1981; Lopes, 2016) e situa-se sobre substrato areno-argiloso, possuindo bordas recortadas, características de um sítio do tipo sambaqui.
As intervenções no Sambaqui Porto da Mina seguiram retificação em perfil estratigráfico com as seguintes dimensões de 200 cm x 400 cm x 280 cm (Figura 2), conforme descrito no trabalho de Lopes et al. (2018). A coluna sedimentar foi seccionada a cada 10 cm para identificação das camadas e lentes estratigráficas. Com base na coloração observada no topo do sambaqui (0-10 cm), duas amostras foram selecionadas, de forma a abranger qualquer variação existente no perfil (Figura 3). Na coluna sedimentar, foram coletadas 28 amostras para análise de diatomáceas, sendo duas referentes à primeira camada, de 0-10 cm. O material coletado foi separado em malha de 2 mm na triagem individual das amostras. Com base na composição da coluna estratigráfica e na datação por 14C, foram identificadas quatro camadas de deposição, com as datações e os intervalos listados na Tabela 1.
Neste artigo, denominamos a coluna sedimentar com o termo coluna bioantracológica, dada a presença de vestígios zoológicos (moluscos, artrópodes, peixes, mamíferos), botânicos (raízes, pólen, madeira), fúngicos, microbiológicos, de ossos humanos, manchas de carvão e, a partir das análises realizadas neste trabalho, também se verificou o registro de microalgas (diatomáceas). Assim, o termo bioantracológico abrange os componentes encontrados ao longo da construção do sambaqui.
No total, foram selecionadas 28 amostras referentes a cada 10 cm do perfil, que foram preparadas seguindo o protocolo padrão para recuperação de diatomáceas de amostras de sedimento (Battarbee, 1984). Para isso, pesou-se 0,5 g de material seco e, para a oxidação de matéria orgânica, foi utilizado H2O2 (37%); após o fim da reação, foi adicionado 1 ml de HCl (37%), para eliminar os carbonatos (European Committee for Standardization, 2003). Em centrífuga, as amostras oxidadas foram tratadas com água deionizada a 1.200 RPM, por três minutos, até que a solução atingisse pH neutro.
As lâminas permanentes foram montadas utilizando-se 2 ml do material oxidado e o meio de inclusão utilizado foi o Naphrax (IR = 1,73). As imagens foram obtidas em aumento de 1.000×, por meio do microscópio binocular AxioImager A1, com sistema de captura de imagem. As imagens adquiridas foram padronizadas e as pranchas foram confeccionadas no programa CorelDraw X8®.
Para a identificação das espécies encontradas, foram obtidas medidas de comprimento, largura e densidade de estrias em 10 µm. A literatura utilizada para a identificação são referências para a América do Sul (Metzeltin & Lange-Bertalot, 1998, 2007; Metzeltin al., 2005), a fim de evitar a adaptação taxonômica forçada (Tyler, 1996). Para espécies indefinidas ou não reportadas nesses trabalhos, foram consultadas as publicações de Krammer e Lange-Bertalot (1986, 1988, 1991). As informações ecológicas foram obtidas através da revisão da literatura (Lowe, 1974; Denys, 1991; Van Dam et al., 1994; Lobo et al., 1995, 1996; Moro & Furstenberger, 1997).
O sistema de classificação adotado foi o de Medlin e Kaczmarska (2004) e Round et al. (1990). A riqueza (S) foi calculada considerando-se o número de espécies encontradas em cada nível estratigráfico. A frequência relativa de ocorrência foi calculada segundo Fonseca (2006), ou seja, refere-se ao número de amostras de dada espécie em relação ao número de níveis estratigráficos analisados. As categorias estabelecidas foram: rara = < 10%, comum = 10-50% e constante = > 50%.
Para avaliar a diversidade de espécies entre as quatro camadas da coluna bioantracológica, uma análise de componentes principais (PCA) foi performada, considerando-se a frequência de ocorrência dos táxons e as datações para cada camada. Todas as análises estatísticas foram realizadas utilizando o pacote estatístico PAST 3.22 (Hammer et al., 2001).
A assembleia de diatomáceas encontradas no Sambaqui Porto da Mina esteve representada por 44 táxons, distribuídos em 32 gêneros. Na Tabela 2, estão listadas as características morfométricas, ecológicas, frequência de ocorrência e distribuição das espécies na coluna bioantracológica. A maioria das espécies foi categorizada como rara (66%), seguida das espécies comuns (30%); as enquadradas como constantes foram apenas Aulacoseira granulata (Ehrenberg) Simonsen e Pinnularia divergens var. mesoleptiformis Krammer e Metzeltin. Estas espécies foram encontradas em quase todos os níveis amostrados.
Aulacoseira granulata possui distribuição cosmopolita, hábito planctônico e ecologia relacionada a ambientes de água doce, com baixa condutividade, águas em regime de mistura e com condições de alto fluxo (Bicudo et al., 2016). A espécie P. divergens var. mesoleptiformis está relacionada a ambientes com baixa condutividade, pH levemente ácido e ricos em matéria orgânica.
A assembleia de diatomáceas encontradas no Sambaqui Porto da Mina esteve representada por espécies com valvas bem preservadas e por muitos fragmentos. Essa composição pode ser decorrente do processo de formação e manutenção do sítio arqueológico, onde as atividades de sepultamento, descarte de material e compactação das camadas promovem a ruptura das células. Na Figura 4, estão registrados os indivíduos inteiros encontrados ao longo da coluna. É possível observar que as espécies ocorrem em formas e tamanhos variados.
O ótimo estado de preservação das valvas sem indícios de degradação química reflete a qualidade das diatomáceas como bioindicadoras, indicando também o bom estado de conservação do sítio arqueológico. As espécies encontradas permitem inferir que o ambiente está submetido a poucas interferências, dada a fragilidade das estruturas (Battarbee, 1986; Julius & Theriot, 2010).
A presença de indivíduos com diferentes tamanhos (5-120 µm) reflete a importância da análise do material não peneirado para inferir a biodiversidade das diatomáceas na coluna. Em estudo com sambaquis, Villagran et al. (2009) relacionaram a presença de diatomáceas com a fração grossa do material mineral (100-200 µm). Entretanto, nossos resultados indicam que o peneiramento e/ou fracionamento do material arqueológico subestimam a real diversidade das diatomáceas. É importante considerar que as espécies apresentam variação de tamanho decorrente do seu ciclo de vida (Round et al., 1990). A importância de analisar o material não peneirado também pode ser mensurada dada a diversidade de organismos encontrados como espículas de esponja, bactérias e fungos filamentosos e que normalmente não são observados.
Os maiores valores de densidade de diatomácea foram encontrados no intervalo 50-60 cm (camada IV) e a maior riqueza foi registrada no nível estratigráfico 100-110 cm (camada III) (Figura 5). A baixa densidade encontrada pode estar relacionada à quantidade de material utilizado (0,5 g) para a preparação das lâminas permanentes. Dessa forma, em estudos arqueológicos, sugerimos que seja selecionada uma quantidade maior de material.
Os dados ecológicos das diatomáceas permitem inferir que o Sambaqui Porto da Mina recebia influência de água doce, salobra e marinha, sendo caracterizado como estuarino. Nos estuários amazônicos, a sazonalidade, a distribuição anual das chuvas, a evapotranspiração e o regime das marés contribuem decisivamente para a variação do teor de sais das águas estuarinas, ocasionando diferenças entre o período chuvoso e a estiagem (Berrêdo et al., 2008). A dinâmica fitoplanctônica é diretamente influenciada por essa variação na salinidade, sendo registradas diferenças na composição da comunidade em diferentes estuários da costa amazônica paraense (Paiva et al., 2006; Sousa et al., 2008, 2009; Matos et al., 2011). As dinâmicas ambientais favorecem a alta diversidade desses ambientes.
A diversidade registrada na coluna bioantracológica do Sambaqui Porto da Mina pode ser explicada pelos eventos de alterações ambientais e/ou climáticas ocorridos durante o Quaternário. E são inferidas por meio de estudos sobre os processos sedimentares, como demonstrado através dos dados apresentados por Souza-Filho et al. (2009) para a região costeira do Pará.
Entre as variáveis que mais oscilaram durante as alterações climáticas, a temperatura possui suma importância para a manutenção do ambiente biótico (Drisdell et al., 2008). A elevação da concentração de oxigênio, observada durante o Holoceno, indica aumento da atividade fotossintética realizada pelos produtores primários, com destaque para a comunidade fitoplanctônica (Huber et al., 2011). Dessa maneira, existem, pelo menos, duas forçantes ambientais que agem ao longo do período de ocupação do sítio e, consequentemente, nas oscilações do nível do mar.
Em ambientes aquáticos costeiros, o aumento da produtividade primária está diretamente relacionado com a salinidade e, consequentemente, com o acréscimo dos consumidores secundários (Watson et al., 2009), cujos vestígios são importantes elementos da composição e do conteúdo de sambaquis.
As diatomáceas com ecologia marcadamente marinha foram registradas a partir do nível estratigráfico 130-140 cm até o topo da coluna bioantracológica, influenciando diretamente a biodiversidade. A presença dessas espécies pode ser reflexo da transgressão máxima holocênica ocorrida em 5.100 AP para a região costeira do Pará.
Para esta região, diferentes momentos de oscilação entre regressão e transgressão do mar, principalmente nos últimos 2.000 anos AP, são registrados com maior tendência de progressão das áreas de mangue para o estuário, até provável restabelecimento destas áreas para o atual nível do mar (Cohen et al., 2005; Souza-Filho et al., 2009). Tal afirmação é corroborada pelas amostras de diatomáceas recuperadas da coluna bioantracológica, indicando possíveis mudanças ambientais que produziram efeito na estrutura da comunidade biológica.
Os grupos sambaquieiros se fixaram no território e estabeleceram relações socioculturais gradativamente construídas, superando as diversidades do ecossistema. Desta forma, a análise do território ocupado por estes grupos demonstra o potencial deles para a exploração dos ambientes que, como estratégia, realizavam construções em locais altos, como falésias, paleodunas e/ou ilhas-barreira (Lopes, 2016).
Ainda que os grupos sambaquieiros não estejam mais presentes nos locais onde construíram os sambaquis, permanecem as suas evidências, por meio das formas do uso que faziam do território, com base nos testemunhos arqueológicos, na análise do macroambiente, além da cultura material.
Quanto ao processo construtivo e a formação do Sambaqui Porto da Mina, observou-se que os impactos acentuados pelas ações humanas e naturais dificultaram a sua interpretação, sendo imprescindível testar e adaptar a estratégia de pesquisa. Por exemplo, a vegetação predominante na área de estudo é o manguezal, porém há possibilidade de que, na época da construção dos sambaquis, esse ecossistema estivesse em processo de colonização e sucessão ecológica. Dessa forma, assume-se que o mar era uma das principais fontes de subsistência, além da floresta tropical, onde a coleta e a caça eram abundantes.
A pesquisa com grupos sambaquieiros definiu que os sambaquis eram frutos de trabalho social, implicando a existência de prováveis regras ou normas para as construções, onde cada sítio apresenta especificidades para a escolha do local de construção, dos materiais usados e do território a ser utilizado.
A cronologia para o início da ocupação dos grupos pescadores-coletores e das atividades de construções de alguns sambaquis espalhados pela Amazônia aponta para datações que correspondem a 5.570 ± 125 anos AP para o Sambaqui Uruá, a 5.280 ± 30 anos AP para o Porto da Mina e a 4.500 ± 90 anos AP para o Ponta de Pedras, todos localizados na costa norte paraense (M. Simões, 1981; Roosevelt, 1995; Lopes, 2016); de 7.090 ± 80 anos AP para o Sambaqui Taperinha, construído no baixo Amazonas; e de 6.600 ± 1.400 anos AP para o Sambaqui Bacanga, estabelecido no litoral do Maranhão (Bandeira, 2008).
No que se refere a artefatos cerâmicos, o Sambaqui Porto da Mina está inserido na Tradição Mina (5.570 ± 125 anos AP), com ampla distribuição geográfica e temporal (M. Simões, 1981; Meggers & Evans, 1961, 1985). A presença da cerâmica Mina se sobressai nos sambaquis da região amazônica, sendo considerada um dos mais antigos registros dos grupos pescadores-coletores presentes na América (Lopes et al., 2018).
Este modelo estabelecido por M. Simões (1981) constituiu as sequências cronológicas para o desenvolvimento cultural e temporal relacionado à ocupação humana pré-colombiana na Amazônia e, em especial, para a costa norte paraense. Com base na fabricação da cerâmica pelos grupos sambaquieiros, observa-se padrões semelhantes na região Nordeste do Brasil (M. Simões, 1981, 1973), no litoral norte da Guiana (Meggers & Evans, 1960), no Equador, na Colômbia e na Venezuela, onde foram localizadas datações antigas para a América do Sul naquele momento (M. Simões, 1981).
Ainda de acordo com M. Simões (1981), as semelhanças nos padrões de assentamentos, de subsistência e da tipologia da cerâmica embasavam a proposição de uma só tradição, a Tradição Mina, caracterizada pela exploração dos recursos aquáticos para sua manutenção. Para o Sambaqui Porto da Mina, os padrões cerâmicos seriam cerâmica utilitária, com manufatura acordelada, antiplástico de conchas trituradas (M. Simões, 1981; E. Oliveira & Silveira, 2016; Lopes, 2016) e, em menor proporção, areia, vasilhas pequenas, forma arredondada, base plana, borda direta, inclinada interna ou externamente ou, ainda, extrovertida; a decoração é o banho vermelho e inciso incipiente (Lopes, 2016).
As pesquisas envolvendo a cerâmica manufaturada por grupos sambaquieiros contribuíram também para a interpretação a respeito do indicativo de sedentarismo e da continuidade da ocupação destes sítios, pois os avanços das pesquisas estabelecidas no Sul e Sudeste apontam para esse tipo de ocupação (Gaspar, 1998, 1999, 2000; C. Simões, 2007). Em contrapartida, para as análises dos sambaquis da Amazônia, persistia a classificação de sambaquis baseada em movimentações constantes (Hilbert, 1959; M. Simões, 1981). E esse conceito modificou-se com as pesquisas no Sambaqui de Taperinha (Roosevelt, 1995, 1998), aprofundando-se por meio de novas metodologias, como análise de perfil, da estratigrafia complexa, das coletas de materiais arqueológicos e das datações (Gaspar et al., 2013; M. Oliveira et al., 2013).
A construção de sambaqui requer transporte de materiais provenientes das margens de rios, dos manguezais e das florestas. Assim, associar o estudo de diatomáceas aos vestígios arqueológicos pode contribuir para a explicação das estratégias utilizadas pelos grupos sociais frente às mudanças que ocorriam no meio ambiente, uma vez que esses organismos são comumente encontrados em rios, igarapés, lagos e estuários. Por terem preferências ecológicas bem definidas, possibilitam inferir as condições ambientais existentes durante o processo de formação dos sambaquis (Figura 6).
No caso do Sambaqui Porto da Mina, a presença das diatomáceas foi frequente em todas as camadas da coluna bioantracológica. Associando os dados de frequência de ocorrência e as datações obtidas das camadas, a análise dos componentes principais (ACP) definiu três grupos distintos: grupo A = formado pelas camadas estratigráficas I e II; grupo B = formado pela camada III; e grupo C = formado pela camada IV. A maior parte da variação (59%) foi explicada pelo primeiro componente, enquanto o segundo foi responsável por 30,30% da variação.
A formação do grupo A inicia em 5.280 ± 30 anos AP e termina em 5.070 ± 30 anos AP, sendo possível inferir que durante 210 anos as diatomáceas foram transportadas a partir da mesma fonte. Assim, o indicativo de ocupação continuada a partir dos estudos de diatomáceas é mais consistente para o Sambaqui Porto da Mina, bem como a percepção acerca dos hábitos culturais é feita a partir dos vestígios faunísticos, de carvão, sementes, inclusive fragmentos de cerâmica e laterita, entre outros.
A análise de diatomáceas em pesquisas arqueológicas, ainda que incipiente, possui aplicações que permitem inferir variações ocorridas em escalas espaciais e temporais. A confiabilidade dos resultados obtidos com esses biomarcadores depende diretamente das técnicas utilizadas durante as etapas de coleta e de preparação do material em laboratório.
Considerando a variação populacional existente no ciclo de vida desses organismos, a análise de material não fracionado e/ou peneirado possibilitou o registro de organismos de diferentes tamanhos, abrangendo aqueles menores de 100 µm. A inclusão desses organismos na análise afeta os dados sobre a riqueza e a diversidade encontradas nos sítios arqueológicos. Em nossas análises, além da comunidade de diatomáceas, foram encontradas espículas de esponjas, bactérias não fotossintetizantes e fungos filamentosos, reforçando a necessidade de ampliar os estudos de arqueobotânica em sambaquis.
A uniformidade de espécies de diatomáceas encontradas nas camadas I e II reforça a ideia da permanência dos grupos sambaquieiros no local de construção por pelo menos 210 anos. As inferências ecológicas obtidas indicam que o local de assentamento estava em um ambiente geograficamente diverso, com influência de águas doce, salobra e marinha.
O registro de espécies marinhas ocorre a partir do nível 130 cm, indicando um sinal de transgressão marinha. Assim, em 5.070 ± 30 AP, os grupos sambaquieiros da área de estudo passaram a acessar ambientes aquáticos com teores de salinidade mais elevados. A diversidade de ambientes possibilitou ampliar a obtenção de recursos e interferiu diretamente na dieta desse grupo. O aumento de recursos permitiria que os grupos aumentassem sua resiliência e permanecessem no mesmo local por longos períodos.
A inclusão da análise da comunidade de diatomáceas em sambaquis representa uma ferramenta potencial para a compreensão da dinâmica existente no entorno dos assentamentos e permite enriquecer os dados através das informações autoecológicas e da origem desses biomarcadores.
Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e ao Programa de Capacitação Institucional (MPEG/MCTI) (processos 444338/2018-7 e 300678/2019-3). À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de doutorado concedida a SMM (processo 1557766). Agradecem, ainda, ao Dr. Peter Mann de Toledo, pelo apoio inestimável e orientação. Agradecem, finalmente, aos dois revisores anônimos, pelas valiosas contribuições para a qualidade deste trabalho.
* Autora para correspondência: Pryscilla Denise Almeida. Museu Paraense Emílio Goeldi. Av. Perimetral, 1901. Belém, PA, Brasil. CEP 66040-170 (pryalmeida@gmail.com)