Resumo: A noção de alter ego tem sido utilizada desde o começo do século passado para descrever um motivo caracterizado por uma figura sendo sobreposta por outra nas iconografias pré-coloniais do norte da América do Sul. Esse termo se refere também à sua interpretação baseada em analogias etnográficas de conceitos ameríndios. Este artigo rediscute os supostos alter egos a partir da análise iconográfica do estilo cerâmico Konduri (c. 1250-1650 AD). O estudo sistemático de um corpus com milhares de fragmentos e algumas vasilhas inteiras permitiu identificar três conjuntos com aves, cabeças de aves ou quadrúpedes sobre a cabeça de um antropomorfo ou zooantropomorfo. Sugere-se, a partir dos relatos etno-históricos e de informações etnográficas, que essas figuras podem ter agenciado observadores, conteúdos e contextos em rituais coletivos ou práticas xamânicas. Comparativamente, essas figuras exibem posturas e adornos similares aos relacionados ao tema visual dos antropomorfos sentados encontrados em vários outros estilos cerâmicos amazônicos, aludindo provavelmente a personagens-xamãs.
Palavras-chave:Estilo KonduriEstilo Konduri,Alter egoAlter ego,IconografiaIconografia,XamanismoXamanismo,Figuras de aveFiguras de ave.
Abstract: The notion of alter ego has been used since the early twentieth century to describe a motif characterized by the superposition of one figure by another in pre-colonial iconographies of northern South America. This term also refers to its interpretation based on ethnographic analogy of Amerindian concepts. This paper presents a discussion of the supposed alter egos found in Konduri ceramic style (c. AD 1250-1650). Systematic analysis of thousands of fragments and some whole vessels allowed to identify three motifs with birds, heads of birds, or quadrupeds above the heads of anthropomorphic or zooanthropomorphic figures. Beyond the direct representation of certain relationships with souls or spirits, superposition are part of visual techniques and themes indexing body metamorphosis. From the colonial chronicles and hypotheses about vessels functions, its possible do suppose that these figures acted over observers, users and their contents in feasts and shamanic practices. These depictions display postures and adornments that can be correlated with a visual theme of seated anthropomorphs dispersed throughout the Amazon basin, probably a conventional representation of shamans.
Keywords: Konduri style, Alter ego, Iconography, Shamanism, Bird imagery.
DOSSIÊ
Revisitando os alter egos: figuras sobrepostas na iconografia Konduri e sua relação com o xamanismo
Revisiting alter egos: superimposed figures in Konduri iconography and its relationship with shamanism
Recepção: 16 Setembro 2019
Aprovação: 04 Fevereiro 2020
No começo do século passado, a arqueologia e a etnologia na América do Sul foram profundamente marcadas pela influência germânica. Como parte de uma tradição antropológica voltada à explicação de processos históricos, pesquisadores com experiência etnográfica e em escavações arqueológicas aplicaram analogias históricas diretas à função e à iconografia de artefatos pré-coloniais. Entre os legados desses estudos pioneiros, encontra-se a expressão alter ego, tomada como empréstimo da psicanálise freudiana. Essa denominação foi usada para traduzir o que as etnografias mais recentes costumam chamar de ‘duplo’, ‘alma’ ou ‘imagem’ nas metafísicas ameríndias1 (Fausto, 2007; Cesarino, 2012). Os ‘duplos’ são partes constitutivas da pessoa em diferentes ontologias indígenas, podendo se apresentar como antropomorfos ou zoomorfos.
Preuss (1974 [1929]) foi o primeiro a se valer da expressão alter ego para designar um tema visual das estátuas líticas pré-coloniais de San Agustín, na Colômbia. Em termos formais, essa denominação agrupou imagens de um antropomorfo com um zoomorfo acima de sua cabeça. Esse tema foi interpretado como equivalente iconográfico para a concepção de uma “doble naturaleza de un ser”, expressa pelos indígenas Uitoto (Colômbia) (Preuss, 1974 [1929], p. 202). Essa mesma interpretação foi generalizada a um ‘horizonte estilístico’ de esculturas, disperso desde o baixo rio Trombetas até a Nicarágua (Fonseca, 2010; Porro, 2010). Reichel-Dolmatoff (1972) ampliou esse modelo interpretativo, associando os alter egos às práticas de cura realizadas por xamãs indígenas, nos quais estes se valem de ‘espíritos auxiliares’ para negociar com agentes patogênicos. Dessa maneira, a figura sobreposta foi interpretada como a materialização do espírito acima da cabeça do xamã. Com o tempo, essa explicação foi sendo extrapolada a figuras encontradas em outros tipos de artefatos na América do Sul e no Caribe (Reichel-Dolmatoff, 1988; Boomert, 2001; Waldron, 2011; Zerries, 1981), sem que seus pressupostos fossem rediscutidos.
Este artigo retoma a interpretação desenvolvida em torno dos alter egos e sua extensão ao estilo cerâmico Konduri. A maioria das referências à iconografia2 Konduri resume-se à enumeração de espécies animais que estariam sendo representadas (Hilbert, 1955; Guimarães, 1985; Prous, 1992; Gomes, 2002). Contudo, temas visuais desse estilo foram identificados, desde a metade do século passado, compartilhando o mesmo motivo de uma figura sobrepondo outra nas estatuetas líticas do rio Trombetas (Figura 14A) (Hilbert, 1955). Posteriormente, essas figuras também foram interpretadas como um índice de duplos ou espíritos auxiliares, à maneira das esculturas de San Agustín (Boomert, 2001; Gomes, 2012, 2016). O objetivo deste artigo não é ‘desconstruir’ essas interpretações, mas mostrar como elas desconsideram outras possibilidades interpretativas. Se, por um lado, a noção de alter ego como aplicada em arqueologia ressalta a presença do xamanismo pré-colonial e a ampla dispersão de motivos gráficos, por outro, a reprodução mecânica de uma mesma intepretação tende a ser muito redutora no caso do estilo Konduri e, provavelmente, em outros contextos.
O estilo cerâmico Konduri é encontrado em sítios arqueológicos com terra preta antropogênica em uma região de cerca de 20 mil km2, entre as margens do rio Amazonas e de dois de seus afluentes da margem esquerda, os rios Trombetas e Nhamundá (Figura 1) (Hilbert, 1955; Guapindaia, 2008; Panachuk, 2016; Alves, 2018, 2019). As datações disponíveis estão situadas entre c. 1250 a 1650 AD. Os produtores do estilo entraram em contato com as primeiras incursões europeias no rio Amazonas e foram alvo da catequização promovida por missões religiosas e das expedições de descimento (Harris, 2018). A cerâmica feita de um ‘finíssimo barro’ é, inclusive, mencionada em uma das principais crônicas do século XVII sobre a região (Heriarte, 1874 [1662]). O etnônimo ‘Conduri’ é o mais citado por cronistas do século XVII no baixo curso do rio Trombetas e foi, por esse motivo, utilizado para denominar o estilo (Nimuendajú, 2004).
Há ainda um número pequeno de pesquisas na área de dispersão do estilo Konduri, mas estas sugerem aldeias com ocupações densas em margens de rios e lagos e em terra firme, além de pequenos acampamentos (Guapindaia, 2008; Panachuk, 2016). Em alguns sítios, são encontrados caminhos de entrada e de saída de aldeias elípticas e várias espécies de plantas úteis (Castro, 2018; Schmidt et al., 2014). Essa ocupação indígena é parte de um processo histórico iniciado por volta do ano 1000 AD, em diversas partes da Amazônia, e caracterizado pelo adensamento populacional, pela diversificação de estilos cerâmicos e, em alguns casos, por construções monumentais (Moraes & Neves, 2012). A dispersão Konduri reflete um momento de reocupação de uma região marcada por um hiato de pelo menos cinco séculos depois dos produtores da cerâmica Pocó (Alves, 2019).
A cerâmica Konduri é classificada dentro da tradição Inciso Ponteada, caracterizada pelo uso de apêndices modelados, incisões finas e espículas de esponja de água doce (cauixi) como antiplástico, sendo encontrada desde a foz do rio Orinoco até o alto Xingu. Essa tradição foi associada à expansão dos povos falantes de línguas da família Karib, devido à sobreposição de localização dos grupos atuais, a relatos etno-históricos e a modelos glotocronológicos, especialmente na Orinoquia (Lathrap, 1970; Tarble, 1985). As cabeceiras dos rios Trombetas e Nhamundá, no caso do estilo Konduri, são áreas de ocupação predominantemente Karib até o presente. A história oral de alguns desses povos, inclusive, menciona o baixo curso do rio Trombetas como parte do território dos ‘antigos’ (Frikel, 1970; Jácome, 2017; Wai Wai, 2017). Alguns etnômios, como ‘Uaboí’, mantêm-se na região desde os séculos XVII e XVIII, apesar da profusão de outras denominações (Frikel, 1958). A cerâmica produzida pelos grupos Karib atuais não apresenta muitas semelhanças com a Konduri ou com outras incluídas na tradição Incisa Ponteada (Frikel, 1973; Gaspar, 2019). A toponímia do baixo Amazonas, por outro lado, mostra uma série de termos que são provavelmente de origem Karib (Nimuendajú, 1949, 2004).
O material analisado faz parte de uma proposta mais ampla de estudo de coleções de museu, arquivos e revisão bibliográfica sobre o estilo cerâmico Konduri. Entre os objetos, foram analisados 2.226 fragmentos e cinco vasilhas inteiras do estilo, em cinco instituições (Tabela 1). As coleções analisadas foram reunidas a partir de coletas assistemáticas realizadas por moradores locais, por colecionadores e por pesquisadores pioneiros desde o final do século XIX (Alves, 2019). As informações sobre a proveniência e o contexto de coleta podem se referir a um sítio específico ou a uma área, além de conjuntos totalmente descontextualizados. Muito desse material foi coletado em superfície e, de modo geral, apresenta-se com algum grau de erosão. Como resultado de coletas seletivas, as amostras são compostas majoritariamente por apliques e bordas e paredes decoradas. Além do material analisado diretamente, foram incluídas, na amostra, informações do banco de imagens do Projeto Norte Amazônico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que conta com um levantamento do acervo da Casa de Cultura de Oriximiná (Jácome, 2017). Como parte do mesmo projeto, foram descritas coleções de pequena escala reunidas por ribeirinhos no lago Sapucuá, Oriximiná, Pará, em 2014.
A análise iconográfica voltou-se para a identificação e para a descrição das convenções visuais presentes em apêndices modelados da cerâmica Konduri, seguindo a proposta de ‘análise configuracional’ apresentada por Knight Jr. (2013). Conceitualmente, adotou-se a diferença entre ‘motivo’ e ‘tema visual’. O primeiro conceito se refere a uma unidade gráfica mínima independente (por exemplo, olho, postura corporal, adorno, forma geométrica), sendo o ‘tema visual’, por sua vez, entendido como uma classe de figuras cujos atributos formais indicam os mesmos seres figurados4 (por exemplo, serpente-bicéfala da Tradição Polícroma, sauro-humano da cerâmica Marajoara etc.). A partir das proposições de Gell (1998), postula-se também o encadeamento e a articulação entre variantes formais distintas dentro de uma série ou princípio de transformação. A análise foi dividida em três etapas: (1) descrição do estilo visual; (2) identificação dos possíveis seres/objetos figurados ou ‘referentes’; (3) formulação de hipóteses e sugestões baseadas em analogia histórica direta, em fontes etno-históricas e em informações arqueológicas. O recurso a analogias etnográficas justifica-se em relação ao estilo Konduri devido à sua proximidade espacial e temporal com povos indígenas guianenses, majoritariamente falantes de línguas Karib, e também pela existência de narrativas sobre uma ancestralidade comum (Knight Jr., 2013; Lyman & O’Brien, 2001). Os processos históricos que separam as tradições culturais pré-coloniais tardias e as etnograficamente descritas ainda são quase desconhecidos5. Desse modo, não se trata de uma ‘projeção’, mas da tentativa de construir modelos interpretativos a partir de similaridades entre a indumentária e a continuidade em termos de cosmologia (Wylie, 1985).
O estilo Konduri é conhecido apenas a partir da cerâmica6. A pasta é composta principalmente pela mistura de argila com espículas de cauixi em alta ou média concentração, minerais, caco moído e caraipé. O cauixi tem um importante papel na construção das figurações, facilitando a aplicação de técnicas plásticas e criando uma estrutura de sustentação para paredes finas com apêndices espessos nas bordas (Alves, 2019). Entre as morfologias das vasilhas, há grande variabilidade entre aberturas irrestritas e restritas, contornos simples e compostos e diâmetros que chegam a 100 cm. Não há muitas informações sobre uso das vasilhas Konduri, mas o material conhecido deve ter sido utilizado para a preparação, o armazenamento e o consumo de alimentos e de bebidas. Apesar de Lima e Silva (2005) identificarem uma vasilha cerâmica como ‘urna funerária’, nenhum contexto funerário Konduri é conhecido (Hilbert, 1955; Guapindaia, 2008). Isso pode estar relacionado a práticas de cremação e endocanibalismo na região do rio Trombetas, como são mencionadas em fontes etno-históricas e etnográficas de áreas adjacentes (Nimuendajú, 1949; Frikel, 1958).
A modelagem, a incisão, o ponteado e o entalhe são frequentemente combinados na decoração da cerâmica Konduri (Figura 2). Apesar de não se tratar de procedimentos complexos, a combinação dessas técnicas plásticas cria um efeito de ‘superfície sobrecarregada’, ‘pomposa’ ou ‘barroca’ bastante particular (Barata, 1950; Prous, 1992; Hilbert, 1955). Sua aplicação se dá em pasta úmida, sem a elisão das rebarbas ou marcas de dedos, o que levou Schaan (2012) a caracterizar a decoração Konduri como ‘grosseira’. A modelagem é realizada a partir de filetes, de pequenas semiesferas e de troncos de cone modelados. Incisões, entalhes e ponteados são produzidos sobre a decoração modelada, na borda e, menos frequentemente, no bojo. O ponteado pode ser realizado a partir de instrumentos de ponta circular maciça (tipo A) ou instrumentos ocos (tipo B). Os pontos feitos com instrumentos ocos tendem a ser usados isoladamente na composição de olhos e de articulações do corpo de apêndices, enquanto os do tipo A aparecem formando uma diversidade de linhas retas contornando volumes. Os entalhes também são executados linearmente como em ‘bordas de moeda’ ou mais espaçados, lembrando babados de crochê. O uso de pintura é raro, sendo restrito a pigmentos minerais vermelhos e amarelos, aplicados a apêndices figurativos, pigmentos pretos, na forma de algumas linhas, e losangos, aplicados ao bojo das vasilhas (Castro, 2018; Alves, 2019). Também são conhecidas peças com engobe vermelho e brunidura.
Os apliques são uma parte destacada na estrutura das vasilhas, aparecendo na forma de apêndices, de alças e de pés ou suportes. Os apêndices figurativos e não figurativos são os mais numerosos, sendo encontrados nos lábios e na face externa da borda e do bojo. As alças, que são modelagens em formas de arco, formam dois conjuntos distintos: algumas pequenas aplicadas ao bojo e outras maiores anexadas sobre o orifício das vasilhas. Esse último tipo é o mesmo ‘cesto com alças’ encontrado das cerâmicas Paredão, Axinim e Saracá (Moraes, 2013; Bassi, 2016).
Os pés ou suportes, por sua vez, são, em sua maioria, cônicos e troncocônicos formando bases trípodes e, em alguns casos, tetrápodes. Com grande variabilidade de tamanhos, esses apliques podem ter servido não só para manter a estabilidade e acima do nível do chão, mas também como ‘trempes’ fixas – o que é reforçado pela presença de fuligem em alguns exemplares. Os apêndices são os principais locus da figuração da cerâmica Konduri, como acontece em outras cerâmicas do baixo Amazonas (Pocó, Santarém), do alto Xingu (atual e proto-histórica), das Guianas e do Caribe (Barrancoide, Saladoide etc.) (Gomes, 2002; Guapindaia, 2008; Toney, 2016; Boomert, 2000). A face externa das bordas e os lábios são as áreas de maior recorrência dessas modelagens. A julgar pelas coleções analisadas, a maioria dos apêndices foi inserida em vasilhas com abertura irrestrita ou levemente restrita (pratos, tigelas e alguidares). Essa disposição dos apêndices se assemelha a de muitos estilos pré-coloniais, porém contrasta com a cerâmica Santarém, encontrada em uma área adjacente, mas com alta recorrência de modelagens aplicadas ao bojo de vasilhas de abertura restrita ou com gargalo (ver Gomes, 2002).
A escassez de vasilhas Konduri inteiras7 não permite compreender ainda a articulação de apêndices e motivos gráficos. Em três peças inteiras estudadas, foi possível observar modos de organização distintos das modelagens:
Espelhamento em um único eixo de simetria (Figura 3A);
Espelhamento em mais de um eixo de simetria (Figura 3B);
Composição da cabeça e dos membros seguindo a simetria bilateral de um corpo zoomorfo (Figura 3C).
Na iconografia Konduri, predominam os seres zoomorfos em simetria bilateral. Os apêndices são construídos em pleno relevo, formando a cabeça ou o corpo inteiro do personagem. No caso das cabeças, estas poderiam estar articuladas a membros indicados ao longo da vasilha, como no caso de bases com pés zoomorfos. Entre os apêndices afixados aos lábios, há modelagens total ou parcialmente achatadas, formando placas. Todas as figuras conhecidas na iconografia Konduri são estáticas, sem sugestão de cenas. As partes anatômicas dos rostos das figuras são as mais detalhadas. Os olhos, em geral, parecem estar abertos ou arregalados, sugerindo pupila e/ou íris. As bocas quase sempre são fechadas, com orientações variadas, sem indicações de dentes ou língua. Estas podem ser retas, circulares ou curvas, com orientação para cima (em ‘U’) ou para baixo (em ‘U’ invertido). As narinas, como os olhos, mostram morfologias muito variadas, desde dois pontos paralelos a complexas combinações de filetes, semiesferas, pontos, incisões e entalhes.
Os personagens na iconografia Konduri, como destacou Hilbert (1955), são construídos de uma maneira ‘grotesca’, ‘quase caricatural’, com a ‘dissolução’ dos volumes a partir da profusão das técnicas plásticas empregadas, o que impede uma identificação mais segura de referentes. Contrário a essa tendência geral, entretanto, um grupo relativamente frequente nas coleções analisadas pode ser classificado como ornitomorfo, dada a presença de bicos (Figura 4). Além dos bicos em si, há também aves com caudas e asas.
O estilo cerâmico Konduri foi descrito em detalhe, pela primeira vez, em “A cerâmica arqueológica da região de Oriximiná” (Hilbert, 1955). Nessa monografia, Hilbert (1955, p. 57) enfatizou a presença de um tema visual aplicado às paredes das vasilhas denominado ‘cara dupla’, composto por “um rosto aparentemente humano, representado apenas pelos olhos e pela boca tendo a cavalheiro [i.e. acima de] um segundo rosto, de aspecto zoomorfo, do qual saem dois braços ou asas que emolduram a cara antropomorfa até a altura da boca”. Tal composição, segundo o autor, seguiria ‘o mesmo motivo inspirador’ das estatuetas líticas coletadas no rio Trombetas (ver Porro, 2010; Fonseca, 2010). Hilbert (1955) não propôs nenhuma interpretação para essas figuras. Essa ‘inspiração’, no entanto, é a mesma que Preuss (1974 [1929]) e Reichel-Dolmatoff (1972) denominaram de alter ego e associaram, a partir de analogias etnográficas, à duplicidade da pessoa e à existência de espíritos auxiliares. A partir da figura de um apêndice Konduri publicado por Nordenskiöld (1930, prancha LXXXVIII), Boomert (2001) relacionou a interpretação em torno dos alter egos e um apêndice com uma ave sobre a cabeça:
This adorno can be interpreted to represent a Kondurí shaman who under the influence of hallucinogenic drugs undertakes an ecstatic-visionary flight to the celestial realm under the care of his prime tutelary spirit, the king vulture, in order to contact a series of beneficent spirits for curing purposes (Boomert, 2001, p. 134).
Mais recentemente, Gomes (2012, p. 147) retomou essa ideia, ao afirmar que se encontra na iconografia Konduri “a figura de alter egos ou duplos – animais que se sobrepõem a estes seres, sendo situados acima de suas cabeças”. As observações apresentadas por esses autores, apesar de assistemáticas, mostram que existe um motivo que não se resume a um único tema visual na iconografia Konduri – cada um apresentou a ilustração de uma figura distinta.
A análise sistemática de coleções com cerâmica Konduri permitiu isolar esse motivo gráfico (Tabela 2). Buscando evitar uma confusão entre o motivo e sua interpretação, optou-se pelo termo ‘sobreposição’ para a relação formal. No estilo Konduri, esse motivo é restrito a duas classes apêndices-personagens (temas A e B) e a um tema construído a partir de filetes modelados.
O tema A reúne alguns dos apêndices com maior elaboração técnica da cerâmica Konduri. Essas modelagens sugerem um corpo bípede com braços e, às vezes, pernas. São encontrados aplicados aos lábios de pratos, com diâmetros entre 23 e 40 cm. Os personagens aparecem sempre com o rosto voltado para o interior da vasilha e podem vir individualmente ou em pares de figuras idênticas (Figuras 5 e 6). O volume das modelagens varia entre pleno relevo a completamente achatado. O torso é pouco detalhado e tende a parecer uma continuação das bordas das vasilhas. As cabeças são a área que mais recebe atenção e detalhes anatômicos, com olhos, boca, orelhas e narinas.
A postura do corpo e a composição das faces do tema A são coerentes com membros de um ser humano, mas a forma de algumas partes anatômicas pode aludir a espécies animais. O principal desses elementos é um bico curvo no lugar da boca, um claro diagnóstico a um ser ornitomorfo (8 peças/7,5%) (Figura 6). As narinas são indicadas a partir de semiesferas ou cilindros com pontos laterais e uma incisão central (Figura 7). Em um exemplar, elas se assemelham às narinas alongadas e triangulares de morcegos. Uma das posições mais recorrentes de braços parece indicar que estes se encontram ‘dependurados’, paralelos à cabeça, como se fossem ganchos presos a um corpo e com antebraços ou ombros projetados para trás (Figura 5). Essa posição parece de difícil reprodução por um humano, mas assemelha-se a de asas contraídas de morcegos. Os braços exibem, ainda, detalhes incisos e ponteados relacionáveis às membranas dos mesmos animais. Os braços também podem ser indicados em ‘V’, com as mãos próximas ao queixo (7/6,6%) segurando ou não um elemento cilíndrico. Essa posição lembra tanto humanos quanto morcegos e macacos se alimentando. Os raros exemplares com pernas exibem uma posição sentada ou agachada (Figuras 6B a 6D). Em um caso, os braços se encontram sobre os joelhos ou as pernas, possivelmente fletidas. A mesma posição sentada é encontrada em um apêndice único relacionável ao tema A, mas que provavelmente foi aplicado ao bojo, e não ao lábio da vasilha (Figura 8).
O motivo da sobreposição aparece em 9,3% (10 peças) da amostra (Figura 5). Sempre como um corpo ou cabeça de ave no cocuruto do personagem, à semelhança da peça reproduzida por Nordenskiöld (1930). Esses pequenos ornitomorfos se associam a outras modelagens sobre a cabeça e sobre as costas do personagem. Na testa, há um arco; e aparece um filete entre a nuca e as costas, que possivelmente é uma trança ou um adorno (Figura 5) – algo já mencionado por Protásio Frikel (Hilbert, 1955). Os corpos de ave aparecem na mesma posição de uma protuberância em forma de semiesfera ou tronco de cone anexado à ‘trança’ (Figuras 6B e 6C). Isso sugere que os ornitomorofos também podem ser parte de toucados.
O tema visual B aparece na forma de meia calota (pleno relevo) em apêndices ocos. O personagem é composto por um rosto, que não é especificamente humano, mas exibe olhos, boca, orelhas e, às vezes, narinas. Essas modelagens, a julgar pelo tamanho de alguns exemplares, podem ter sido aplicadas em grandes potes, como as ‘cabecinhas’ das urnas do estilo Paredão (Moraes, 2013) ou os apêndices de vasos globulares do estilo Santarém (Gomes, 2002). A diferença entre algumas figuras com orelhas semicirculares e outras triangulares pode sugerir identidades distintas. Essas últimas aludem a canídeos, com focinho protuberante (Figura 9D). Não é possível uma localização precisa na estrutura da vasilha, mas há peças com porções da parede sugerindo ter sido fixado ao bojo (ver Castro, 2018). Nas extremidades do rosto costuma aparecer um filete com linha ponteada, que poderia indicar um colar ou outro tipo de adorno. Sobre esse ‘colar’ há pequenos braços retos com as mãos em direção ao queixo (24/42, 8%) (Figuras 9C e 9D).
Acima do rosto do tema B aparece a figura de um quadrúpede de orelhas semicirculares, como a de um felino (Figura 9A), e com cauda formando uma pequena alça, como a de um esquilo – às vezes, completamente obstruída (20/37,5%). Em algumas peças há apenas a indicação da cauda/alça (6/10,7%) sem o pequeno animal. O corpo do quadrúpede cobre parte significativa do rosto, alcançando até as imediações da boca. Entre os apêndices do tema B com figura sobreposta, apenas um único exemplar apresenta narina (Figura 9B). A cabeça do quadrúpede pode estar se sobrepondo às narinas ou substituindo uma parte anatômica. Além do quadrúpede-alça, há uma peça única com nariz triangular com dois pontos, sugerindo mais claramente um antropomorfo, que exibe um diadema com duas pequenas cabeças (Figura 9E).
O rosto criado a partir de filetes aplicados e outras técnicas plásticas é o único tema visual do estilo Konduri que aparece em outras partes das vasilhas, além dos apêndices (Figura 10). Hilbert (1955) o denominou como ‘cara dupla’ em referência à sobreposição, mas não são todos os rostos a apresentarem algum tipo de sobreposição. Essa figura é encontrada em diferentes áreas das vasilhas: (1) reforço externo da borda; (2) base da alça sobre o orifício; (3) apêndices achatados aplicados aos lábios; (4) porção superior dos pés/suportes; (5) bojo. Esse tema, certamente, era figurado em diferentes morfologias, mas há uma predominância em ‘cesto com alças’. Na cerâmica Paredão, rostos também são encontrados na mesma área (Moraes, 2013). Em sua versão mais elaborada, essas caras possuem olhos, boca, orelha e, em alguns casos, narizes e sobrancelhas, sugerindo, como no caso dos temas A e B, uma figura (zoo)antropomorfa. Isso é reforçado pela presença de braços sobre a barriga em um caso. Na ‘urna’ identificada por Lima e Silva (2005), no sítio Santa Rita (Parintins/AM), única vasilha inteira conhecida com o tema rosto, é visível a indicação de braços em ‘V’ como os do tema A (Figura 11). A orientação da boca, como nos outros dois motivos, ocorre em forma de ‘U’, forma linear ou, ainda, em ‘U’ invertido.
Uma característica recorrente no tema é a presença de dois filetes curvos, indicando sobrancelhas e delimitando a porção superior do rosto, como também acontece em algumas figurações do estilo Santarém e em cerâmicas do Estuário (Marajoara, Aristé, Estearias do Maranhão etc.). Ao centro desses filetes e acima dos olhos, há o mesmo tipo de nariz, com dois pontos e incisão (Figura 7) encontrados nos outros dois temais visuais (Figuras 10D e 10E). Este pode ser substituído em outras figuras por uma cabeça ornitomorfa ou de ser indeterminado (27/39,1%) (Figuras 10B, 10C, 10F e 10G). Além de sugerir sobrancelhas, os mesmos filetes remetem às asas dos pássaros. Outro modo de figuração é a extensão das sobrancelhas na forma de um retângulo, emoldurando todo rosto, e, acima dos olhos, uma cabeça de ave. A configuração do TR é bastante variada e, em alguns casos, pode haver apenas a indicação dos olhos com cabeças de aves muito pronunciadas (Figura 10G). Outras faces são compostas apenas de olhos e boca, com uma delimitação retangular (Figura 10G). Há também caras delimitadas (dois exemplares) por um único filete arqueado com o possível adorno do tema A (Figura 21).
Um exemplar de pé modelado do estilo Konduri foi identificado por Barata (1950, p. 13) com um locus da técnica visual denominada ‘dualismo’. Essa técnica, segundo o autor, é caracterizada por “ornamentos escultóricos [apliques] que mudados de posição continuam a representar a mesma figuração” (Barata, 1950, p. 23). Observando o exemplo apresentado e outras duas peças, não parece haver, de fato, duas perspectivas para a mesma figura, mas sim uma cara de cabeça para baixo, marcada pela orientação do nariz (Figura 12A). Em apêndices achatados aplicados ao lábio, no corpo dos personagens do tema visual A (Figura 6A), e em reforços de bordas, aparecem sugestões de olhos a partir do ponteado. Em um desses apêndices, inclusive, há dois pares de olhos e no meio, uma boca curva, o que possibilita o desenvolvimento de um ‘dualismo’, tal qual sugerido por Barata (1950).
Na coleção Walter Marinho (Oriximiná, Pará), há um apêndice achatado (em placa) que exibe o tema rosto mais complexo conhecido até o momento (Figura 21). A face interna da peça é composta por um grande ser zoomorfo, com braços e pernas sobrepondo-se a duas faces encaixadas no mesmo plano. Na face externa, figuram também dois rostos justapostos. Além disso, a cabeça do grande ser sobreposto aos vários rostos, quando vista de perfil, indica outro zoomorfo com patas. Outro apêndice achatado, também muito elaborado, exibe rostos na face interna com corpo de ave acima e sugestão de braços na face externa (Figura 13).
A interpretação de figuras zoomorfas ou antropomorfas sobrepostas como representações da relação entre humanos e seus ‘duplos’ ou entre xamãs e seus espíritos auxiliares não pode ser aplicada uniformemente a temas figurativos de diferentes regiões. É necessário contextualizar essas figuras e relacioná-las dentro de corpus artefatuais amplos de um mesmo estilo. A analogia proposta por Preuss (1974 [1929]) para os alter egos foi replicada para diferentes iconografias do norte da América do Sul e das ilhas do Caribe (Boomert, 2001; Waldron, 2011). Diferentes noções de pessoa nas ontologias amazônicas são marcadas por composições de ‘almas’ zoomorfas, mas não há nenhuma indicação de que, em termos figurativos, a sobreposição poderia ser sua única materialização (ver Cesarino, 2012). A sobreposição entre figuras foi considerada, além disso, diagnóstica da região do rio Trombetas, dada a existência de um tipo de bastão cerimonial produzido pelos Kaxuyana (Figura 14C) e das esculturas líticas arqueológicas (Figura 14A) com figuras sobrepostas (Zerries, 1981; Wassén, 1965). Os bastões Kaxuyana (Karib) apresentam as figuras entalhadas de um urubu-rei acima de uma cobra (Frikel, 1961, 1970). Os xamãs os usavam ao longo do ritual de consumo de rapé, sendo parte de sua parafernália para combater a ação de espíritos patogênicos. As figuras sobrepostas, nesse sentido, são, de fato, ‘auxiliares’ dos xamãs, mas isso não está vinculado à relação formal entre figuras. As estatuetas líticas, provavelmente contemporâneas à cerâmica Konduri, por sua vez, apresentam em baixa frequência a sobreposição de figuras, sendo determinados elementos morfológicos mais recorrentes (Porro, 2010). No caso de objetos etnográficos em coleções de museu, a noção de alter ego serviu como base para atribuição de proveniência e interpretação de um conjunto de esculturas de madeira, mesmo sem informações seguras a esse respeito (Figura 14B) (Zerries, 1981). Desse modo, interpretações foram utilizadas como argumento para sustentar outras, sem que suas premissas fossem reavaliadas. As discussões em torno dos ditos alter egos no século passado, por outro lado, contribuíram positivamente para o estudo das iconografias pré-coloniais amazônicas, mostrando compartilhamentos de motivos pan-amazônicos, o caráter compósito de certas figuras e a importância do xamanismo. A ênfase na sobreposição de figuras desvia a atenção desses outros elementos, que ‘ressoam’ com os temas visuais Konduri analisados e suas transformações formais (Gell, 1998), permitindo o desenvolvimento de outras interpretações.
Os temas A, B e rosto são relativamente padronizados e reúnem quase a totalidade dos elementos de antropomorfia no estilo Konduri. Considerando as diferenças nas configurações dos três, pode-se propor a manipulação de um mesmo modelo prototípico de figura humana. O TR, em alguns exemplares, exibe a sugestão de um toucado semelhante ao do tema A. No caso do B, a configuração geral é de uma cara também como o TR. Os braços do tema B (Figuras 9C e 9D), sempre em direção ao queixo, por sua vez, evocam a disposição desses membros em relação às figuras encontradas no A (Figura 5) e em ao menos dois exemplares com TR (Figuras 10D e 11). Outra correlação notável é de um apêndice aplicado ao lábio como os do tema A com uma alça característica do tema B sobre a cabeça (Figura 12B). Além disso, o TR pode ser indicado no torso dos personagens do tema A (Figura 6A). A antropomorfia, em alguns casos, pode ser reduzida à indicação de olhos (Figura 3A). A sobreposição não é um denominador comum a todas essas figuras (zoo)antropomorfas, mas esse motivo é restrito apenas a esses três temas na iconografia Konduri.
Os elementos antropomorfos aparecem combinados a características zoomorfas, especialmente no tema A. Em diferentes cosmologias amazônicas, são frequentes seres compósitos, como os dos três temas analisados, que podem indicar: (1) seres míticos ou demiurgos; (2) espíritos, seres ‘hiperlativos’ ou ‘sobrenaturais’; (3) parte do processo de transformação corpórea etc. Nenhuma dessas categorias é mutuamente exclusiva. Entre os Wauja, de língua Arawak do alto Xingu, por exemplo, os espíritos primordiais yerupoho, narrados nos mitos e vistos pelos xamãs, são, em sua maioria, zooantropomorfos (Barcelos Neto, 2001). “Um dado yerupoho”, explica Barcelos Neto (2008, p. 79), “é um correspondente zooantropomorfo de uma dada espécie animal, e seu corpo é uma unidade formal singular e prototípica para aquela espécie”. Corpos compósitos, de modo geral, aludem aos tempos primordiais onde prevaleciam as metamorfoses corporais e os seres poderiam ser criados a partir de partes de animais e artefatos, ou ainda, ‘trocar de roupa’ (corpo) com facilidade. Santos-Granero (2009) denomina esse aspecto das cosmologias amazônicas como ‘construtivista’ (ver Barreto, 2014; Nobre, 2017). Fora do tempo mítico, as transformações corpóreas estão particularmente associadas às práticas xamânicas e a eventos de tomar a perspectiva do outro (Viveiros de Castro, 2002).
Os personagens (zoo)antropomorfos8 do estilo Konduri apresentam atributos comuns a outras figuras que foram associados à figura de xamãs nas iconografias do norte da América do Sul. Boomert (2000, 2001) foi o primeiro a destacar que há recorrência nas posições corporais de alguns apêndices Saladoide/Barrancoide com aves sobre a cabeça. Para esse autor, as mãos sobre o queixo em figuras sobrepostas, como no caso dos temas A e B, seriam indicadoras de uma posição sentada do xamã com os cotovelos sobre os joelhos durante rituais de cura. Provavelmente, Boomert (2000) se baseou na descrição de Pané (2004 [1571]) sobre o consumo de psicoativos pelos chefes/xamãs Taíno (Arawak), nas Antilhas do século XVI. Nos rituais chamados cohoba, os ‘senhores’ se sentavam em bancos para inalar alucinógenos e ficavam com braços sobre os joelhos. Posição parecida é descrita para uma figura por Harcourt (1926 [1613]), entre os ‘Caribe’ do alto Oiapoque. Na casa cerimonial, esses indígenas mantinham um ‘ídolo de pedra’ com a figura de um homem agachado “holding open his knees, and resting his elbowes upon them” (Harcourt, 1926 [1613], p. 451).
A postura sentada é explicitamente indicada no tema visual A. Nessas figuras, os cotovelos são apoiados sobre os joelhos e as mãos aparecem em direção ao queixo. Outros exemplares, com o torso menos desenvolvido, apresentam apenas a mão no queixo ou os braços em ‘V’, mas é possível supor que se trata de um cânone visual para um corpo inteiro. A posição sentada tem sido associada a xamãs em diversas iconografias da Amazônia, da Orinoquia e do Caribe (McEwan, 2001; Barreto, 2014; Arroyo et al., 1999; Gomes, 2002; Pagán-Jiménez & Calson, 2014). Em urnas, estatuetas ou vasos efígie, aparece um personagem, muitas vezes com genitália masculina, sentado em um banco, portando chocalho, toucado, bolsa ou outros artefatos (Figuras 18 e 20) (Imbelloni, 1950). Algumas urnas da Tradição Polícroma da Amazônia, inclusive, exibem ornitomorfos sobre a cabeça do personagem humanoide (Moraes, 2013; E. Oliveira, 2016). Os artefatos portados pelos antropomorfos sentados têm sido tratados como diagnósticos para a atribuição de identidade a tais figuras. Em muitos contextos indígenas, os bancos estão fortemente associados a xamãs ou ao consumo de alucinógenos (Stahl, 1985; Barreto, 2013), mas podem também ser usados no cotidiano. Os chocalhos, por sua vez, estão mais diretamente vinculados às curas xamânicas nas terras baixas da América do Sul (Zerries, 1981). Em alguns apêndices do tema A, é possível notar a indicação de pequenos objetos segurados nas mãos, que poderiam ser flautas ou bastões, sobre as pernas dos personagens, mas nenhum atributo facilmente relacionável a uma categoria artefatual particular. Observando, por exemplo, fotografias de um ritual de cura retiradas por Harald Schultz entre os Wauja (Figura 19) ou o desenho da xamã primordial Tukano (Hugh-Jones, 2009), fica clara a possibilidade de que esse tema visual faça referência aos especialistas espirituais.
As crônicas do século XVII mencionam a prática de xamanismo na área onde são encontrados os estilos cerâmicos Konduri e Santarém. Os Tapajó, que viviam onde hoje é a cidade de Santarém/Pará, são os indígenas mais mencionados nas crônicas coloniais da região e foram tomados como uma referência comparativa pelos europeus em relação a outros grupos que habitavam áreas vizinhas. Provavelmente, isso está relacionado à rápida instalação de uma missão religiosa no baixo curso do rio Tapajós, sua posição geográfica de fácil acesso, além de uma grande população nativa. Os textos coloniais informam sobre diferentes aspectos da organização social, rituais e cosmologia dessa ‘nação’ (Nimuendajú, 1949). Sobre cosmologia e práticas religiosas na região do rio Trombetas, existe apenas a menção de que ‘índios do Trombetas’ tinham “os proprios idolos, cerimonias, e governo que tem os Tapajós” (Heriarte, 1874 [1662], p. 38). Em continuidade com essa comparação, os indígenas do rio Madeira também teriam “as proprias cerimonias dos Tapajós” (Heriarte, 1874 [1662], p. 42).
Os relatos sobre os rituais e as práticas xamânicas dos Tapajó ressoam beberagens descritas em diversas narrativas de viagens e etnografias em toda a Amazônia indígena. Os Tapajó tinham uma praça (‘terreiro’) fora da aldeia, onde cantavam, tocavam flautas e tambores, embriagavam-se com seu ‘vinho’ e se comunicavam com espíritos (‘o Diabo’). Nesses rituais, os xamãs exerciam um papel fundamental porque “falando alguns dos seus feiticeiros com voz rouca e grossa lhes [aos Tapajó] persuadiam que esta fala era do Diabo, que lhes punha na cabeça tudo o que queriam” (Bettendorff, 1910, p. 170). Heriarte (1874 [1662], p. 39) afirma que os portugueses teriam dado o nome ‘Trombetas’ ao rio devido ao uso de muitas máscaras ou aerofones em “festas e borracheiras a que sam mui inclinados”. Em relação ao baixo rio Madeira, o mesmo cronista acrescenta que os feiticeiros “annuncián seus agouros, e superstições” (Heriarte, 1874 [1662], p. 42). No então aldeamento jesuíta dos Tapajó, destacou-se também a figura de uma mulher xamã (‘oráculo’), Maria Moaçara, que mediava a relação entre indígenas e portugueses (Bettendorff, 1910), assumindo uma posição encontrada em outras regiões da Amazônia em períodos mais recentes (Carneiro da Cunha, 1998). Além de ‘feiticeiros’, também são mencionadas ‘casas de ídolos’, que seriam lugares destinados à manutenção de objetos rituais, como a tukuxipan Wayana (Karib) usada ainda hoje (Velthem, 2003).
As aves frequentemente são consideradas espíritos auxiliares dos xamãs em contextos de uso de tabaco devido às suas habilidades de voar sobre os céus (Reichel-Dolmatoff, 1988; Velthem, 2003; Wilbert, 1987; Furst, 1976; VanPool, 2009; Wai Wai, 2017). Aves de rapina, como harpias, gaviões ou o urubu-rei, ocupam uma posição especial nas práticas xamânicas devido à sua potência predatória, à sua visão acurada e à sua capacidade de cruzar camadas cósmicas. Essas capacidades também são encontradas nas ações deletérias de morcegos hematófagos e sua visão noturna. Para realizar curas, os xamãs precisam enfrentar a intrusão de um espírito sobre o corpo humano (Wilbert, 1987). Como as partes dos corpos de animais (Fausto, 2007), as imagens em contextos ameríndios atuais, mais do que simples representações, carregam o pouco dos atributos e da potência dos seus referentes (Cesarino, 2012). No ritual de consumo de rapé, os Kaxuyana, por exemplo, usam um bastão com a figura de um urubu-rei, que é o grande predador dos mortos, para auxiliá-lo no combate aos espíritos malignos (Frikel, 1961). Entre os Wayana, urubus-rei e harpias fazem parte do arsenal bélico. No passado, os guerreiros desse grupo recebiam escarificações em forma de urubu ou harpia para incutir nos guerreiros “impulsos predatórios que são próprios a esses animais e aos inimigos” (Velthem, 2003, p. 354). Os mesmos temas eram aplicados às bordunas para agenciar seus usuários, potencializando o ataque dos guerreiros. Como nesses casos etnográficos, as imagens de (zoo)antropomorfos e aves aplicadas em diferentes vasilhas Konduri podem ter agenciado usuários e os conteúdos durante rituais ou mesmo em determinadas atividades consideradas cotidianas.
Aves e humanos estão fortemente vinculados em diferentes iconografias do norte da América do Sul (Reichel-Dolmatoff, 1988). Os personagens (zoo)antropomorfos Konduri apresentam certa imbricação e paralelismo com as figuras ornitomorfas. As figuras de ave, junto com os três temas analisados, são relativamente as mais padronizadas em relação a outras figuras identificadas. Os aviformes também são situados nos lábios de vasilhas abertas (Figuras 4B e 4C). Além disso, as aves e os apêndices do tema A são os únicos a figurarem pares idênticos (‘gêmeos’) no estilo Konduri. Outras correlações são a presença aviforme no centro da curvatura em alças sobre orifício, provavelmente entre dois TR inseridos nas extremidades, e apêndices ornitomorfos com ‘braços/pés dependurados’ (Figura 4A). O tema A apresenta, em alguns casos, um bico, indicando um humano-pássaro. Ademais, alguns ornitomorfos exibem um elemento sobre a cabeça (Figura 13) idêntico aos elementos sobre a cabeça do tema A, que podem aludir à crista de penas das harpias (Harpia harpyja) (Figura 15).
Os elementos sobre a cabeça, incluindo as próprias figuras de aves e quadrúpedes, podem fazer parte de toucados9. A baixa frequência de aves e quadrúpedes sobre as cabeças nos temas (zoo)antropomorfos Konduri e sua intercambialidade por protuberância reforçam a ideia de que os pequenos ornitomorfos são parte da indumentária. Não existe nenhum adorno de cabeça conhecido no presente etnográfico que apresente corpo ou cabeça de animais entre os povos indígenas em regiões adjacentes a dispersão do estilo Konduri. Contudo, há uma ampla variedade de diademas, coroas, tiaras, testeiras, além de máscaras, chapéus e ‘capacetes’, alguns dos quais conservam peles de aves taxidermizadas. Nos afluentes do rio Trombetas, os homens Waiwai (Karib) e Tiriyó (Karib) tradicionalmente usam um tubo na cabeça com um penacho ou mesmo as peles de ave em sua extremidade (Goeje, 1906; Mentore, 1993) (Figura 16A). Os Tiriyó e Wayana usam coroas radiais que podem ter atado com um cordão uma pele de ave que alcança até a meia altura do dorso (Frikel, 1973; Velthem, 2003) (Figura 17). Entre os Wayana, também é conhecido outro adorno usado nas costas que também pode incluir a pele de ave (Goeje, 1906) (Figura 16B). Entre os Akawaio, outro grupo de língua Karib guianense, um tipo de adorno plumário (malik) preso nos braços e cobrindo os ombros era usado pelo xamã, materializando suas asas durante voo xamânico auxiliado pelo gavião-tesoura. Butt Colson (1977) menciona, ainda, que, no passado (i.e. antes de 1950), a indumentária do xamã Akawaio incluía um adorno de cabeça que poderia ser um análogo exato das figuras sobrepostas da iconografia Konduri. Esse adorno, presente na memória dos xamãs, seria composto por “white feathers and bird down stuck with gum acorss his [do xamã] forehead” (Butt Colson, 1977, p. 56). No estilo Santarém, mais icônico que o Konduri, não é encontrado motivo gráfico da sobreposição, mas há vasos efígie e estatuetas antropomorfas com diadema acompanhado de um penteado pendente, tubos e cordas pendentes nas costas (Gomes, 2002; Palmatary, 1960) (Figura 18). No Estuário, por sua vez, as urnas antropomorfas Caviana exibem coroas e filetes entalhados nas costas que foram interpretados como parte de adornos10 (Gambim Jr. et al., 2018).
As modificações corporais, incluindo a indumentária, são modos de produzir a condição humana e marcar seus momentos dentro da vida social para diferentes tradições culturais amazônicas (Viveiros de Castro, 2002; Fausto, 2007). Os seres míticos ou espíritos zoomorfos ou zooantropomorfos podem apresentar adornos que caracterizam seus atributos interiores humanos e suas capacidades. Esse é caso de Arakuni, o demiurgo criador dos padrões gráficos para os Wauja, que ‘veste’ a ‘roupa’ de serpente, mas cujas representações mantêm o cocar e o chocalho, aludindo à sua ação como xamã (Barcelos Neto, 2011). Em relação aos povos guianenses, especialmente os falantes de línguas Karib, os adornos de penas são ‘modificadores’ do corpo que aproximam ou potencializam nos humanos atributos das aves. Entre os Waiwai, por exemplo, adornos de penas nas partes superiores do corpo são indicadores da similaridade entre homens e pássaros (Mentore, 1993). Esses adornos catalisam o fluxo de conhecimento para o seu receptáculo, a cabeça, produzindo um homem sábio. Os Wayana, por sua vez, narram o mito de Jenunu, um homem que assou sua esposa depois de ela o enganar (Duin, 2009). Na narrativa, ele se escondeu no céu e, segundo os Wayana, pode ser visto em dias de lua cheia – astro que é sua morada. Jenunu aparece sentado em um banco na lua e sua indumentária inclui uma coroa radial (pumali) e um adorno nos braços feito de penas de cauda de arara-vermelha (pasik) (Figura 16C). Esses adornos aludem à capacidade das aves de voar e de se orientar pelo céu.
A relação com o xamanismo não se resume ao repertório figurativo, podendo também ser ressaltada a partir de diferentes modos de construção das imagens. As técnicas visuais sugerem, como em outros contextos pré-coloniais (Barreto, 2009; E. Oliveira, 2016; Nobre, 2017), formas de agenciamento das pessoas que interagem com as vasilhas. As reduções do TR, por exemplo, mostram relações metonímicas em que os olhos podem ser um índice para um rosto ou corpo inteiro, a ser projetado mentalmente. Na sobreposição de rosto/corpo por ave, as sobrancelhas sugerem asas de ave que se projeta em direção ao observador. Em alguns casos, há uma maior elaboração com ‘encaixes recursivos’ de rostos (Figura 21), ressaltando a multiplicidade em uma mesma figura, como destacado para outros estilos cerâmicos (Nobre, 2017; ver Fausto, 2013). Somam-se a essas técnicas aquelas relacionadas à dinâmica de observação, como o ‘dualismo’ e efígies de cabeça para baixo (Figura 12A), que exigem do observador um deslocamento da perspectiva (Figura 6A). Os apêndices com o TR aplicados ao lábio, em especial, sugerem uma dinâmica entre efígies no interior e exterior da vasilha, alternando entre a presença do nariz e do zoomorfo sobreposto (Figuras 13 e 21). Lagrou (2013) considera essas estratégias visuais voltadas para a produção de imagens ambíguas e cambiantes como uma extensão visual de um modelo paradigmático da transformação corporal xamânica.
Ainda há poucas evidências arqueológicas sobre a funcionalidade das vasilhas cerâmicas Konduri, mas, tendo em vista as características do orifício (restrito ou irrestrito), as dimensões e a presença ou não de fuligem, é possível supor uma diversidade de usos (Tabela 3). Grandes festas com a atuação de xamãs, como as descritas pelos cronistas, incluem preparação e consumo de bebidas e de alimentos com recipientes cerâmicos (ver Bettendorff, 1910). As vasilhas com os três temas analisados e a ampla gama de figurações do estilo Konduri podem ter sido mobilizadas nesses eventos, associadas, inclusive, às estatuetas líticas, prováveis suportes de inaladores de rapé. A substituição do nariz por uma cabeça de ave, como ocorre no TR e outras figuras Konduri (Castro, 2018), pode sugerir as transações entre o corpo humano e o ambiente, como o consumo de psicoativos por vias aéreas, a proteção do corpo e do voo xamânico (ver Urton, 2008).
A noção de alter ego perpetuou-se na arqueologia do norte da América do Sul e Caribe como um sinônimo de sobreposição entre figuras e uma equivalência direta com duplos animais ou espíritos auxiliares de xamãs. A partir da iconografia Konduri, foi possível mostrar que, mais do que uma sobreposição entre personagens, o que foi chamado de alter ego faz parte de um conjunto de figuras quiméricas, marcadas pela substituição de partes anatômicas humanoides, membros de animais e adornos e outros tipos de artefatos. Elementos das ontologias amazônicas baseadas no xamanismo podem ser relacionados à imbricação estrutural de antropomorfos e ornitomorfos, a substituição de narinas por cabeças de ave e, possivelmente, as mãos no queixo e a posição sentada, que remetem a um horizonte iconográfico pan-amazônico (Barreto, 2014).
Os resultados dos estudos iconográficos são tidos, muitas vezes, como frágeis, subjetivos ou excessivamente especulativos (Knight Jr., 2013). Apesar dessa ‘má fama’, pesquisas iconográficas podem ser tão rigorosas quanto qualquer outra abordagem. Os estudos iconográficos na Amazônia ainda são pouco numerosos, mesmo com a centralidade da cerâmica para a arqueologia regional. Isso resulta de uma ênfase exacerbada no isolamento das técnicas decorativas para fins classificatórios; ao invés de sua articulação em estilos e suas performances visuais. A iconografia não deve ser tratada como um aspecto isolado do estudo do material cerâmico e das pesquisas arqueológicas em geral, mas como parte das discussões mais amplas e na construção de modelos explicativos para o passado amazônico. O conhecimento arqueológico sobre áreas de atividade e funcionalidade de artefatos em ocupações Konduri ainda é escasso. O material estudado neste artigo provém em sua totalidade de coleções de museus com informações contextuais muito limitadas. Por esse motivo, não foi possível contrapor a iconografia às informações contextuais. A ampliação do conhecimento sobre os artefatos cerâmicos e outras categorias de vestígios é fundamental para reforçar ou refutar as hipóteses desenvolvidas nas páginas precedentes. A recente emergência de uma arqueologia feita por e com indígenas Waiwai pode também trazer reviravoltas analíticas importantes para o estudo do que alguns dos mais velhos chamam de nokwa (‘objetos do pajé’) (ver Wai Wai, 2017; Jácome, 2017).
Este artigo retoma parte da minha pesquisa de mestrado, com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processo 134140/2016-8). Sua discussão reverbera os estudos iniciados dentro do Projeto Norte Amazônico (UFMG), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais e da Missão Franco-Brasileira de Minas Gerais. O estudo de coleções domésticas no lago Sapucuá foi realizado como parte desse projeto. Sou grato às instituições, pesquisadores/as, alunos/as eprofessores/as que me receberam durante o mestrado. Agradeço ao convite e incentivo de Cristiana Barreto,Erêndira Oliveira e Emerson Nobre para participar deste dossiê. Sem o estímulo e paciência de Barreto, esteartigo nunca teria sido finalizado. As leituras atentas e pacientes de Caroline Teixeira, Gustavo Coelho, André Prous, Mateus Mota, Meliam Gaspar, Emerson Nobre e Cristiana Barreto permitiram formular melhor minhasinterpretações e argumentos. Versões preliminares deste texto foram apresentadas em disciplinas inistradas por Márcia Arcuri, em 2016, e Eduardo Neves, em 2019,cujos comentários também enriqueceram a versão final. Este texto está emaranhado com os estímulos intelectuais de Fabíola Silva, minha orientadora, e os desafios para o uso de analogia etnográfica. Renzo Duin ofereceu comentários e informações fundamentais sobre indumentária e cosmologia Wayana. Camila Jácome me cedeu fotos e informações sobre a coleção da Casa de Cultura de Oriximiná, para que pudesse utilizar neste artigo. Agradeço aos/às pareceristas anônimos/as por suas contribuições.
I Autor para correspondência: Marcony Lopes Alves. Universidade de São Paulo. Museu de Arquelogia e Etnologia. Av. Prof. Almeida Prado, 1466 – Butantã. São Paulo, SP, Brasil. CEP 05508-070 (marconyalves@usp.br).