DOSSIÊ PARTÍCULAS
Partículas em Sikuani
Particles in Sikuani
Partículas em Sikuani
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, vol. 14, núm. 3, pp. 721-738, 2019
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi
Recepção: 25 Abril 2019
Aprovação: 23 Setembro 2019
Resumo: Este artigo analisa um grupo particular de morfemas da língua Sikuani (Guahibo), no intuito de demonstrar que: 1) no nível da forma, o grupo tem propriedades de classe; 2) no nível funcional, ele possui correlatos semânticos e pragmáticos tipicamente gramaticais; e 3) ele é certamente passível de uma caracterização em termos de protótipo. A análise é levada a cabo almejando níveis apreciáveis de explicitação e exaustividade, incluindo uma primeira identificação das classes de morfemas da língua, o inventário ilustrado dos morfemas que são objeto deste estudo, uma segunda identificação das classes de morfemas da língua e a síntese dos resultados. O conjunto de considerações feitas ao longo do artigo pretende contribuir para a validação da – reiteradamente questionada – noção tipológica de ‘partícula’.
Palavras-chave: Sikuani (Guahibo), Tipologia, Morfossintaxe, Partículas.
Abstract: This work analyzes a specific group of morphemes in the Sikuani language (Guahibo) to show that (1) at the form level, the group displays class properties; (2) at the function level, it has semantic and pragmatic correlates that are typically grammatical; and (3) it clearly can be characterized in terms of prototypicity. In this analysis we pursue explicitness and exhaustivity, conducting a first-pass identification of the morpheme classes, inventorying the morphemes in question and providing corresponding examples, conducting a second and more detailed identification of the morpheme classes, and finally summarizing the results. Together, the findings can contribute to the frequently questioned typological notion of a ‘particle.’
Keywords: Sikuani (Guahibo), Typology, Morphosyntax, Particles.
INTRODUÇÃO
In the physical sciences, a particle […] is a small localized object to which can be ascribed several physical or chemical properties [...]
(Wikipedia Contributors, 2019).Sabemos o quão heterogêneo chega a ser o conjunto de propriedades atribuídas à noção de ‘partícula’ pelos autores seja na hora de descrever uma língua particular seja no momento de produzir definições válidas translinguisticamente. Uma consequência dessa situação é o duplo impasse a que podem conduzir 1) a generalização de uma categoria originalmente elaborada para uma única língua; e 2) a implementação em uma língua particular de uma definição gerada com pretensões universais.
Com dados do Sikuani – profuso inventário de ‘partículas’, profusas funções envolvidas pela categoria, profusos correlatos semânticos e/ou pragmáticos de uma determinada ‘partícula’ –, esta contribuição tenciona submeter uma proposta que leva em conta a noção de prototipicidade e que, concomitantemente, avoca uma terceira via entre as pretensões universalistas das definições categoriais a priori e o enfraquecimento dos instrumentos da tipologia como resultado da sobrevaloração das definições aduzidas nas descrições das línguas particulares.
A língua Sikuani é falada na área de savana, ao oeste do médio Orenoco e em algumas regiões circundantes (floresta a leste e sul). A população é estimada em 25.000 pessoas, com domínio desigual da língua. Esta língua pertence à pequena família Guahibo.
PERFIL TIPOLÓGICO
Trata-se de uma língua aglutinante, com caraterísticas de polissíntese, principalmente: afixos pronominais nos verbos, incorporação nominal, constituência relativamente fraca e moderada hierarquização sintática dos argumentos.
As classes de palavras com conteúdo léxico são verbos, nomes, adjetivos e advérbios. Os nomes são sensíveis às categorias de número, gênero, classe e pessoa. Sintagmas verbais, nominais e adposicionais apresentam seu núcleo à direita. O sintagma nominal hospeda determinantes, modificadores e, no caso dos núcleos nominais divalentes (‘inalienáveis’), um argumento interno1. A valência dos verbos é de um a três argumentos, que se realizam como sintagmas nominais desprovidos de marcas de caso, assim como na morfologia verbal, com a limitação de o verbo não poder expressar mais de dois argumentos. A terceira pessoa é zero na morfologia verbal, mas tem substância fonológica nos nomes. Estes ocupam a posição de predicado de modo natural, sem precisar de cópula.
As categorias de tempo, aspecto, modalidade e fonte da informação codificam-se através da morfologia verbal, dos auxiliares e dos morfemas estudados neste artigo.
As orações verbais básicas alinham o argumento único de verbos monovalentes com o argumento que expressa o agente em verbos divalentes; já com verbos trivalentes, é o argumento que remete ao destinatário com o argumento não agente dos verbos divalentes. Isso se faz visível na codificação dos argumentos via afixos verbais e – parcialmente – na ordem de constituintes. Não é raro que o sintagma nominal acusativo, primariamente pré-verbal, se desloque para a posição pós-verbal. Em condições pragmáticas favoráveis, os sintagmas nominais se elidem com relativa facilidade.
As mudanças de valência geram passiva, reflexivo-recíproco, incorporação, "antidativo", causativa e aplicativa.
Há bases, embora tênues, para identificar a existência de hierarquias de índole sintática entre os argumentos, gerando as relações gramaticais sujeito, objeto direto e objeto indireto.
A hierarquização de orações advém mediante subordinação de orações finitas (relativas, adverbiais) ou nominalização (completivas, algumas adverbiais)2.
CLASSES DE MORFEMAS
Em uma primeira aproximação, as classes de morfemas do Sikuani são lexemas de verbo, nome, adjetivo, advérbio, mais pronomes, posposições, clíticos e afixos. Igualmente em primeira aproximação, os traços formais básicos que distinguem essas classes podem ser representados na forma do Quadro 1.
Acento: o morfema vem do léxico provido de um acento4.
Autonomia: o morfema por si só pode conformar um constituinte suboracional5, o que lhe outorga um grau apreciável de liberdade de posicionamento na oração.
A combinação de acento e autonomia fundamentam a unidade ‘palavra’.
Nomes – unu ‘floresta’ –, advérbios – tahü ‘longe’ –, pronomes – xamü, 2singular – e posposições – nehewa, privativo – são palavras, assim como a subclasse de lexemas que geram verbos defectivos – barüya ‘estar alegre’.
Adjetivos – peruhu- ‘velho’ –, clíticos – =he, mirativo – e afixos – -to, singulativo – não são palavras. Tampouco a subclasse de lexemas geradores de verbos próprios – pitsa- ‘sair’.
Classe fechada: o morfema pertence a um inventário de elementos associado a uma estrutura de grupo, ou seja: acrescentar/subtrair um membro à/da classe – por exemplo na diacronia – mudaria a estrutura do todo.
Pronomes, posposições, clíticos e afixos são de classe fechada. Morfemas adjetivais – embora seu inventário não ultrapasse uma quinzena de itens –, verbais, nominais e adverbiais são de classe aberta.
Invariável: o morfema institui uma palavra que não se flexiona em nenhum entorno gramatical.
Palavras instituídas por morfemas adverbiais – com algumas idiossincrasias –, assim como clíticos e afixos, são invariáveis.
Palavras instituídas por morfemas verbais, nominais, adjetivais, assim como pronomes e posposições, recebem flexão em alguns ou todos seus entornos gramaticais.
Núcleo: o morfema institui uma palavra que domina sintagmas complexos – isto é, com mais de uma palavra.
Palavras verbais, nominais e posposicionais são núcleos nesse sentido.
Traços adicionais que permitem discriminar, no Quadro 1, entre classes de matriz idêntica ou quase idêntica são:
- As palavras nominais podem ocupar a posição de argumento sem morfologia adicional; as verbais precisam de morfologia para ocupar esta posição (nominalização);
Os afixos apresentam alta seletividade quanto a seu hóspede fonológico; os clíticos têm baixa seletividade.
Outrossim, a língua possui uma classe de morfemas que chamarei temporariamente de Ivan Ivanovitch6 (doravante I.I.), omitida no Quadro 1, com quase os mesmos traços que os pronomes: acento, autonomia, classe fechada e não núcleo. Mas, à diferença dos pronomes, essa classe responde positivamente ao traço de invariabilidade. Expressa funções claramente gramaticais, ora pragmáticas ora semânticas, tais como: aspecto, modalidade, fonte da informação, estrutura informacional, força assertiva, dependência oracional, coerência discursiva. Eis, no Quadro 2, a lista de morfemas I.I., organizada por tipos de funções:
INVENTÁRIO
Ilustro cada um dos itens do Quadro 2 com exemplo(s)7, mostrando sua forma fonológica e sua função única ou básica.
ASPECTO
Baha: significado inegavelmente aspectual – denota a ‘estrutura’ temporal da maneira de existir descrita pelo predicado8 –, embora mais abstrato do que a maioria dos exponentes do aspecto habitualmente observados; expressa que houve traspasso de um marco, como ocorre no exemplo (2)a.
Nos esquemas (1b) e (2b):
A seta horizontal representa o eixo temporal;
O colchete orientado – à esquerda para ‘trabalha’/à direita para ‘está pendurado’ – representa o marco temporal9;
A seta vertical representa o ponto em que o falante situa a maneira de existir predicada (que não precisa ser ‘imediatamente’ posterior ao marco temporal).
MODALIDADE
Tsipae: a maneira de existir faz parte das possibilidades. Forma supletiva do auxiliar hitsipa, literalmente ‘querer’, para qualquer predicado que não seja um verbo próprio em contexto afirmativo ou interrogativo.
Penetha: dado um estado de coisas, a maneira de existir é óbvia, natural, sem obstáculo.
Tsaha: a presunção do falante a respeito da maneira de existir é confirmada.
Metha: grau moderado de incerteza.
Saya: a maneira de existir tem pouco sentido, fundamento, tal como demonstrado no exemplo (7).
Hema: a maneira de existir é desprovida de importância, tal como em (7).
Hane: o falante é moderadamente afetado.
Pikani: as expectativas do falante não se realizaram.
Bihi: a maneira de existir advém apesar das expectativas contrárias. O contexto em que se insere o dado abaixo é o da raposa tentando introduzir seu pênis em todos os orifícios do corpo da menina, sem resultado; quando vai desistir (ela não deve ser mulher), acha...
FONTE DA INFORMAÇÃO
Pina: a fonte da informação é o discurso de outrem.
Raetha: o falante faz uma conjectura.
Humia: o falante dispõe de indícios auditivos. A partir de hume, nome para ‘estímulo auditivo’, sufixado por -ya, ZonaInterna. O fragmento em (13) é motivado por um rumor cósmico.
Kowü: o falante dispõe de indícios sensoriais não auditivos. Lexicalmente, kowü é um nome e significa ‘rastro’. O exemplo (14) ilustra uma fala proferida quando as pessoas perceberam o cheiro bom saindo da boca de Jupará.
Kowü como partícula tem, obviamente, uma distribuição diferente do nome kowü ‘rastro’. Já a distribuição de humia não é discernível do seu étimo hume-ya ‘no som, na palavra, na língua’, expressão adverbial também pronunciada como humia.
ESTRUTURA INFORMACIONAL
Tsaena: um dos participantes, ou uma circunstância, ou a própria maneira de existir, é selecionado entre uma série de concorrentes potenciais no universo discursivo criado (foco constrastivo), como no exemplo (14).
Baitsi: um dos constituintes presentes na oração é promovido a – ou reforçado como – bloco de máxima informação (rematização ou sobrerrematização). Em se tratando de um sintagma nominal, serve também para introduzir de maneira enfática um novo participante (sobretematização).
FORÇA ASSERTIVA
Raha: reforça a asserção em grau moderado.
Mahe: reforça a asserção retrospectivamente.
Piha: a asserção é reforçada em grau de expressividade (exclamação) e associada à irritação. O fragmento em (18) se insere no contexto em que, após muita resistência, Jupará confessa que esteve comendo abacaxi na árvore das plantas cultivadas.
DEPENDÊNCIA ORACIONAL
Pakuhinae: introduz uma subordinada adverbial de concomitância, ‘quando’; ou de condição, ‘em caso de que’; ou de sucessividade, ‘depois que’. Construído a partir de pa-, demonstrativo, e kuhinae, posposição ‘depois’.
COERÊNCIA DISCURSIVA
Nexatha: lançando mão da concatenação de dois casos, -nexa, finalidade, e -tha, locativo, nexatha introduz a oração independente que descreve uma maneira de existir subsequente no tempo àquela descrita na oração anterior.
Nua: coordenação.
Visto o nível de abstração em que se situa o significado de alguns desses itens, sua análise semântica torna-se difícil devido ao fato de o estudioso não fluente na língua – é o caso do autor – só dispor das ocorrências particulares de cada item11. Assim, a copresença em uma mesma oração de mais de um I.I. (veremos mais adiante o uso prolixo desses morfemas no discurso real) pode suscitar dúvidas sobre a não interseção dos significados ou sua compatibilidade em uma mesma oração. Destarte, enquanto metha, dubitativo, não pode ser associado a raha, assertivo1, no exemplo seguinte, metha confere uma tonalidade de dúvida a uma asserção encerrada com um reforço retrospectivo mediante mahe, assertivo2, tal como se pode verificar no exemplo (13), renumerado aqui:
DISTRIBUIÇÃO
Alguns I.I. gozam de uma notável liberdade de posicionamento sintagmático. Outros são mais restritos: de maneira absoluta ou preferencial, uns aparecem antes e outros depois do constituinte sob o seu domínio12. Podemos classificá-los, conforme o Quadro 3, em:
Complemento com três comentários as informações sobre a distribuição destas formas:
1. Além do traço de classe aberta/fechada, a distribuição também distingue os I.I. dos advérbios.
Os advérbios não têm posição fixa na oração. Os I.I. ante e pospostos têm. Em outras palavras, o grau do que foi chamado de ‘autonomia’ no Quadro 1 distingue os advérbios de duas das três subclasses de I.I.
Os advérbios são impossibilitados de penetrar sintagmas verbais e nominais. Os I.I. livres podem. Isto é, o traço que é chamado de ‘imiscuinte’ no Quadro 4 separa os advérbios e a terceira subclasse de I.I. Veja no exemplo (23) o verbo e seu auxiliar, e em (24) o nome e seu dependente genitival15 (advérbio sublinhado).
Em síntese, os traços de autonomia e imiscuição, combinados à noção de ‘distribuição’, constituem um critério a mais na distinção entre advérbios e I.I.
2. Os I.I. antepostos introduzem orações. Alguns operam no nível do discurso: introduzem orações formalmente independentes, porém, conectadas semanticamente/pragmaticamente à oração precedente. Outros se situam no nível da sintaxe: introduzem orações subordinadas. O domínio dos pospostos são orações (coordenação) ou constituintes suboracionais: predicado (futuro, potencial), predicado e sintagma nominal (coordenação), predicado, sintagma nominal e sintagma posposicional (foco). Os livres incidem no significado da oração como um todo (aspecto, modalidade, fonte da informação, força assertiva).
3. Junto aos I.I. antepostos, mencionados anteriormente, as orações subordinadas podem hospedar I.I. livres, sem que a sua presença se deva a um caso de imiscuição. Em outras palavras, seu domínio é mesmo a oração subordinada. Note-se que essa faculdade abrange tanto as subordinadas finitas – o exemplo (25) – quanto as não finitas – exemplo (26) (subordinador sublinhado) –, o que poderia revelar certo grau de finitude nas subordinadas não finitas do tipo de (26), compartilhado pelas orações independentes com predicado nominal, tal como em (27).
FUNÇÕES SECUNDÁRIAS
Alguns I.I., devido à alta frequência na fala espontânea, tendem a ampliar o leque de suas funções semânticas ou pragmáticas. Os morfemas envolvidos são sempre aqueles com distribuição livre. O aspectual baha é o mais representativo dessa deriva. Veja uma amostra de sua frequência em (28). Com verbos dinâmicos, e sem sair das noções aspectuais, baha pode indicar iminência – tal como no exemplo (29). Para além, e independentemente do tipo de predicado, ele também entra na modalidade, denotando certeza, como em (30).
O seguinte passo na perda de sua função básica consiste em baha adquirir funções discursivas que não deixam de lembrar o que seria uma vírgula oral, como demarcar constituintes – como no exemplo (31)17 –, ou realçar o ritmo em uma enumeração – como em (32) –, extraída do mito de criação do mundo em que o narrador faz o inventário dos seres – ainda indeterminados no que diz respeito à dicotomia humano/animal – que com o tempo se tornariam as espécies atuais.
O reportativo pina, visto em (5), (11) e (28), tem a mesma função discursiva, embora em contextos mais restritos devido à retenção de seu semantismo original.
Ofereço, a seguir, um breve trecho de texto, segmentado, glosado, pontuado e parcialmente comentado, que exibe várias propriedades dos I.I. já mencionadas, e algumas outras de caráter mais periférico, principalmente discursivas. Assistimos a um debate sobre reconhecimento de paternidade entre um filho prodigioso e um pai pouco disposto a aceitá-lo18.
1. O reportativo pina acompanhando quase invariavelmente o verbo hai, ‘dizer’, logo após uma citação em estilo direto. Isso ocorre também na segunda linha de (41).
2. Uma sequência de I.I. instituindo uma oração independente.
Seguem as palavras do pai, ao se deparar com que o menino se reconstitui miraculosamente.
3. Uma sequência de I.I. abrindo uma oração independente, em (37) e (38).
4. I.I. livre aspectual baha em oração subordinada – renumerado de (26).
5. Rematizador baitsi em posição inicial de oração.
6. O reportativo pina acompanhando o verbo hai ‘dizer’, após uma citação em estilo direto (pina1). E também como marca – socialmente – obrigatória em todo e qualquer relato de eventos não diretamente presenciados pelo falante (pina2).
7. Sequências de I.I. ...e desenlace feliz.
DISCUSSÃO
Vou agora retomar o Quadro 1, incorporando os morfemas I.I.
Existe uma matriz de traços (Quadro 4) cujas especificações identificam com nitidez uma classe de morfemas I.I. Eles geram acento como as palavras, seu inventário é fechado como os dos morfemas gramaticais, não hospedam nem afixos nem clíticos, não instituem palavras que, em qualidade de núcleo, dominam sintagmas contendo mais de uma palavra e sua distribuição é quase sempre original. Outrossim, eles codificam funções tipicamente gramaticais, semânticas ou pragmáticas, sendo que algumas delas incluem a articulação da coerência discursiva.
Pela própria natureza daquilo que chamamos de matriz de traços distintivos, os I.I. ‘são’ o que qualquer outra das oito classes restantes ‘não é’. Evidentemente, trata-se de algo muito diferente de uma definição extensional. Isso faz com que a classe dos I.I. não possa ser vista como um saco de lixo onde colocamos tudo que não entra nas outras classes, precisamente porque exibe a propriedade fundamental associada aos elementos de uma estrutura: identificar-se contrastivamente. Em sistemas fechados, como o é em uma língua dada a subclasse de fonemas consonânticos ou o conjunto das classes de morfemas, esse mesmo raciocínio se aplica, por exemplo, às oclusivas e aos adjetivos.
A argumentação desdobrada neste artigo outorga suficiente legitimidade ‘intralinguística’ aos Ivan Ivanovitch do Sikuani para poder reconhecê-los como uma classe genuína de morfemas, merecedora de uma designação propriamente gramatical. A mais aproximada disponível na terminologia comum é ‘partículas’. Eis, pois, uma língua em que a partícula é um pequeno objeto localizado na oração, ao qual podem ser adscritas propriedades gramaticais. Se admitirmos com Zwicky (1985) que uma partícula é uma palavra21, a pertinência, para a identificação de um protótipo válido translinguisticamente, da matriz de traços proposta aqui é algo que merece ser considerado com mais atenção do que a permitida pelos limites deste artigo.
Precisamente, no que diz respeito à legitimidade ‘translinguística’ da noção de partícula, ela parece, no mínimo, se situar em um nível de adequação comparável ao de tantas outras noções de uso corriqueiro entre descritores, tipólogos e até teóricos. Um belo exemplo é a noção de ‘sujeito’ aplicada a línguas pouco estudadas. No melhor dos casos, lança-se mão da prototipicidade, por exemplo baseada em Keenan (1976), ou no papel semântico de agente. No pior, chama-se de sujeito todo constituinte que remete àquele participante realizado como sujeito na língua (frequentemente europeia) da tradução. Se os linguistas fazem uso do vocábulo ‘sujeito’ de maneira altamente díspar – para não dizer leviana – diz mais a respeito à prática profissional dos mesmos do que à possível validez da noção em si. Outro caso que vem à tona é a noção de ‘cópula’. Para uns, é um elemento com características de verbo que permite a itens lexicais não predicativos ocuparem a posição de predicado. Para outros, a natureza verbal não constitui um quesito definitório. Quanto à noção de ‘finitude’, tão badalada nas últimas décadas, alcançar uma definição universal seria um alvo difícil de se considerar seriamente.
A lista das noções tipológicas com um nível consensual de operacionalidade translinguística é, na prática, ‘quase’ coextensiva à lista das noções tipológicas. Tal limitação faz intimamente parte da natureza dos ‘universais substantivos’. Em suma, a ideia de uma noção tipológica carente de definição válida e ‘idêntica’ para todas as línguas ser uma noção prescindível é, por si mesma, prescindível.
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Notas
Autor notes
*Autor para correspondência: Francesc Queixalós. Centre National de la Recherche Scientifique. 7 rue Guy Môquet. Villejuif, Paris, França.CEP 94800 (qxls@tinet.cat; qxls@vjf.cnrs.fr).