Resumo: O artigo examina as propriedades morfossintáticas da partícula ‘tá(~matá)’ na estrutura oracional da língua guajá, considerando seu desenvolvimento em termos de uma abordagem formal da gramaticalização. Partindo do estudo de Magalhães (2007), em que tal categoria é analisada como partícula aspectual projetiva (PROJ), discutimos seu estatuto sintático, tomando por base a ocorrência de correlatos em outras línguas da família Tupí-Guaraní (TG), particularmente na língua kamaiurá. Adotando o quadro teórico gerativista (Chomsky, 1995), propomos que a partícula projetiva ‘tá(~matá)’ (PROJ) do guajá realiza o núcleo funcional [T(ense)], definido por um modelo cartográfico da estrutura oracional. Essa análise é avaliada em relação às propriedades estruturais da negação, por um lado, e à distribuição dos traços de concordância de sujeito, por outro lado.
Palavras-chave: GramaticalizaçãoGramaticalização,Categoria funcionalCategoria funcional,TransitividadeTransitividade,Estrutura argumentalEstrutura argumental.
Abstract: This study examines the morphosyntactic properties of the particle ‘tá(~matá)’ in the clause structure of the Guajá language, considering its development in terms of a formal grammaticalization approach. I start from work by Magalhães (2007), which analyzes this category as an aspectual projective particle (PROJ) and subsequently examine its syntactic status, considering correlates in other Tupí-Guaraní languages (particularly Kamaiurá). I adopt the generative framework (Chomsky, 1995) and propose that the projective particle ‘tá(~matá)’ in Guajá lexicalizes the [T(ense)] functional head, which is defined within a cartographic model of clause structure. This analysis is evaluated with respect to the structural properties of negation as well as the distribution of subject agreement properties in these predicates.
Keywords: Grammaticalization, Functional category, Transitivity, Argument structure.
DOSSIÊ PARTÍCULAS
A partícula ‘tá(~matá)’ na estrutura oracional da língua guajá
The particle ‘tá(~matá)’ in the clause structure of Guajá
Recepção: 01 Abril 2019
Aprovação: 29 Outubro 2019
O estudo examina as propriedades morfossintáticas da partícula ‘tá(~matá)’ na estrutura oracional da língua guajá, definindo seu estatuto categorial em termos da abordagem formal da gramaticalização proposta em Roberts e Roussou (2003)1. Assumindo perspectiva translinguística, investigamos a hipótese de que a manifestação dessa categoria está associada à ocorrência de uma categoria lexical (homônima) no inventário lexical dessa língua, em fase prévia da língua. Essa hipótese toma por referência os dados como (1) e (2), em que a partícula ‘tá(~matá)’ é analisada como um operador temporal/projetivo (Magalhães, 2007)2. Argumenta-se que o operador funcional de tempo (futuro) se fixou na estrutura oracional por um processo de gramaticalização, em que sua manifestação como categoria lexical (verbal) transitiva sofre reanálise (estrutural), passando a ocorrer como categoria funcional na estrutura oracional3.
A análise parte da observação de que a partícula ‘tá(~matá)’ da língua guajá encontra correlato em outras línguas da família Tupí-Guaraní (TG), o que permite abordar a questão também pelo ponto de vista translinguístico. Em relação ao processo de gramaticalização, é possível demonstrar a ocorrência de fenômeno idêntico em famílias e troncos linguísticos distintos. É o caso do desenvolvimento de auxiliares modais do inglês, particularmente no caso de ‘will’, que deixa de ser um verbo nocional/lexical com denotação volitiva, capaz de selecionar argumentos, e passa a ocorrer como marcador temporal de futuro, mediante um processo que favorece estruturas menos complexas (Lightfoot, 1991, 1999; Roberts; Roussou, 2003).
Na presente análise, essa categoria passa a ocorrer como uma partícula dedicada no léxico, que realiza, por meio da operação ‘fundir’ (merge), um núcleo funcional na estrutura oracional, o que resulta em uma estrutura menos complexa, se comparada à situação de sincretismo morfossintático, em que uma dada categoria acumula propriedades gramaticais de duas (ou mais) posições na estrutura oracional, por movimento (move). Essa questão será retomada.
Adotando a hipótese da gramática universal (GU), no âmbito do programa minimalista (Chomsky, 1986, 1995), e (parcialmente) a análise de Maia et al. (1999) em relação à estrutura oracional de línguas indígenas brasileiras, propomos que a partícula aspectual projetiva (PROJ), conforme postulada em Magalhães (2007), lexicaliza o núcleo funcional Tempo (T) na estrutura oracional. Essa análise é avaliada em relação à hipótese de que a partícula ‘tá(~matá)’, na projeção de tempo (TP) da oração matriz, codifica dependência temporal em relação à projeção de Tempo do predicado encaixado, o que resulta em um processo de reestruturação de predicados (Wurmbrand, 2001), por um lado, e pela presença de marcas flexionais de concordância de sujeito na estrutura do predicado, por outro lado.
A discussão será desenvolvida como a seguir: na seção “Propriedades gramaticais da partícula ‘tá(~matá)’ na língua guajá, família Tupí-Guaraní”, apresentamos a distribuição do item lexical ‘tá(~matá)’, na estrutura oracional, considerando, como ponto de partida, a análise de Magalhães (2007), segundo a qual esse item é uma partícula aspectual projetiva (PROJ); em seguida, apresentamos correlatos da partícula ‘tá(~matá)’, em outras línguas da família TG, considerando particularmente a língua kamaiurá e as propriedades gramaticais postuladas em Seki (2000); na seção “A partícula ‘tá(~matá)’ como categoria funcional”, apresentamos a abordagem formal da gramaticalização conforme proposta em Roberts e Roussou (2003), seguida de sua aplicação na análise do item ‘tá(~matá)’ da língua guajá; por fim, apresentamos as considerações finais.
A língua guajá pertence ao grupo VIII da família Tupí-Guaraní, conforme Rodrigues (1984-1985). Os falantes estão estimados em cerca de 500 indivíduos, distribuídos nas terras indígenas (TI) Caru, Alto Turiaçu e Arariboia, localizadas no noroeste do estado do Maranhão, Brasil. Embora tenha havido trabalhos esparsos, a documentação dessa língua obteve um tratamento consistente, particularmente a partir do trabalho da linguista Marina Magalhães, que produziu uma alentada tese de doutorado, defendida em 2007, intitulada “Sobre a morfologia e a sintaxe da língua Guajá (família Tupí-Guaraní)”, dedicando-se desde então, com seus colaboradores, a aprofundar a investigação sobre a língua, no aspecto gramatical, e também do ponto de vista das questões socioculturais, uma exigência do quadro teórico funcionalista em que desenvolve a análise teórica, e também em relação às demandas educacionais da nação indígena Awa-Guajá, diante da situação de vulnerabilidade a que está exposta.
Como será demonstrado, o estudo de Magalhães (2007) constitui uma referência para o presente artigo, não só em relação à base empírica, como também em relação à análise teórica. Adicionalmente, considera-se a obra de Seki (2000) intitulada “Gramática do Kamaiurá”, além dos estudos de Rodrigues (1953, 1996), entre outros tupinistas, a serem referidos oportunamente.
De acordo com Magalhães (2007), o item ‘tá(~matá)’ inclui-se entre as chamadas partículas intrapredicado, tendo em vista sua posição fixa após o núcleo do predicado, antes dos afixos flexionais4. Conforme observa a autora, essas categorias distinguem-se dos outros afixos por terem acento próprio, a que se acrescenta a distribuição complementar em relação a outras categorias que codificam as seguintes propriedades gramaticais: aspecto, modalidade, quantificação, tempo, modo e negação. Na análise de Magalhães (2007, p. 128), a partícula ‘tá(~matá)’ codifica o aspecto projetivo (PROJ), denotando “[...] a projeção de um evento ou [um] estado [...]”, conforme ilustrado em (3), (4) e (5), respectivamente.
Segundo a autora, do ponto de vista sintático, a partícula ‘tá(~matá)’ forma uma unidade com o predicado, admitindo ser separada do núcleo apenas por outros morfemas de mesma natureza, ou forma uma unidade morfológica com outros elementos. É o que está ilustrado, respectivamente em (6) e (7), a seguir:
Além dos contextos em que o núcleo do predicado descreve um evento ou um estado, a partícula ‘tá(~matá)’ também ocorre em estrutura em que o núcleo da predicação é um sintagma nominal, conforme ilustrado a seguir:
Em (8), o sintagma nominal possessivo ocorre como núcleo de um predicado equativo, por seu caráter proposicional, sendo a categoria projetiva, por hipótese, realizada na estrutura do sintagma nominal, o que se confirma pela presença do morfema (nulo) marcador do caso argumentativo (glosado como N)5. Em (9), o verbo ‘temer’ tem como argumento o sintagma nominal, marcado pelo sufixo nominalizador (NZR). Nesse caso, a partícula PROJ também ocorre na estrutura do sintagma nominal, o que se confirma pelo fato de que o sufixo nominalizador ‘-há’ ocorre anexado à partícula PROJ6.
A análise proposta por Magalhães (2007) para a partícula ‘tá’ do guajá está formulada em termos semelhantes para o kamaiurá, língua do grupo VII, na classificação de Rodrigues (2011), como se depreende da análise de Seki (2000), na obra “Gramática do Kamaiurá”. Nessa língua, a raiz ‘potat’ é analisada como ‘desiderativa’ (DES), o que permite considerá-la um correlato da partícula projetiva (PROJ) ‘tá(~matá)’ do guajá. Diferentemente do que ocorre nessa língua, na língua kamaiurá, a categoria correspondente forma uma unidade morfológica com o verbo.
De acordo com Seki (2000, p. 134), a ocorrência dessa categoria está vinculada à expressão do aspecto, na denotação de uma situação iminente, o que explica sua análise como ‘iminentivo’ (INST)7:
Seki (2000, p. 132) observa, ainda, que “[a] raiz ‘-potat’ funciona também como verbo transitivo independente [...]” – conforme o exemplo (11) –, correspondendo à descrição ‘querer/gostar’8.
Seki (2000) acrescenta que o item ‘potat’ do kamaiurá é também encontrado como núcleo lexical transitivo de um predicado volitivo, que toma como argumento interno um evento, realizado por uma nominalização, conforme ilustrado a seguir9:
Nos dados em (12) e (13), ‘potat’ (querer) seleciona dois argumentos, distinguindo-se apenas em relação ao estatuto semântico do argumento interno – respectivamente sintagma nominal e uma oração (proposição). Em ambos os casos, ‘potat’ (querer) é um núcleo lexical10.
Na seção a seguir, discutimos as propriedades da partícula projetiva ‘tá(~matá)’, na estrutura oracional do guajá, em termos da abordagem formal da gramaticalização de Roberts e Roussou (2003). Como será demonstrado, nessa língua, essa partícula tem estatuto funcional.
Nesta seção, investigamos o estatuto da partícula ‘tá(~matá)’ no guajá, assumindo a hipótese da gramaticalização, tomando como referência a análise translinguística. Para tanto, adotamos a abordagem formal da gramaticalização de Roberts e Roussou (2003), a ser sistematizada na próxima seção; apresentamos, em seguida, a estrutura oracional do guajá, tomando como referência pressupostos gerativistas (Chomsky, 1995).
A análise da partícula ‘tá(~matá)’ como categoria funcional parte da ideia original de Meillet (1912 [1958] apud Roberts; Roussou, 2003), segundo a qual a gramaticalização consiste do desenvolvimento de material gramatical novo a partir de palavras nocionais. Considerando que a mudança linguística afeta as propriedades formais dos núcleos funcionais (Chomsky, 1995), adotamos ainda os seguintes pressupostos, conforme Roberts e Roussou (2003, p. 2, tradução nossa): “[...] (i) a gramaticalização é um caso de mudança paramétrica [...]; (ii) a gramaticalização é um epifenômeno [...]”11.
No domínio sincrônico, cabe então estabelecer uma caracterização das categorias funcionais, identificando-se o inventário e as propriedades que as distinguem e restringem. Roberts e Roussou (2003, p. 6, tradução nossa) observam que essa distinção permite explicar duas diferenças facilmente observáveis nas línguas. São elas: “[...] (i) as línguas diferem em sua morfologia flexional; (ii) as línguas diferem em relação a quais ordens de palavras são gramaticais”12. Diante disso, a variação descrita em (i) pode ser explicada em termos da hipótese de que uma dada categoria funcional F pode ter uma expressão fonética ou não, enquanto a diferença em relação à ordem das palavras, referida em (ii), pode ser explicada em termos da variação na capacidade de as categorias funcionais desencadearem movimento.
De acordo com a tradição gerativista, o problema lógico da mudança linguística se resolve no processo de aquisição da língua, assumindo-se a possibilidade de que a evidência no input linguístico – o chamado gatilho (em inglês, trigger) – para a fixação paramétrica seja insuficiente. A noção de gatilho encontra-se originalmente formulada em Lightfoot (1991, 1999), como um conjunto de enunciados produzidos em uma dada situação – a que a criança tem grande probabilidade de ser exposta – e que ‘desencadeia’ algum aspecto da gramática que está sendo adquirida. Assumindo que os parâmetros são propriedades do léxico e considerando que o léxico é específico de cada língua, devendo, portanto, ser aprendido, Roberts e Roussou (2003, p. 14, tradução nossa) propõem que a noção de trigger seja definida como “[q]ualquer parte do input que pode fornecer aos aprendizes informação sobre o léxico [...]”13. Existe, portanto, um dispositivo de aprendizagem que habilita a criança a adquirir ‘palavras’ (suas propriedades sintáticas, morfológicas, fonológicas e semânticas), as quais são responsáveis pela fixação dos parâmetros, dado o pressuposto de que a mudança paramétrica está associada a um subconjunto do léxico, isto é, às categorias funcionais.
Assim, a expressão de um parâmetro consiste em uma sequência do input cuja formação é garantida pela gramática que detém um valor paramétrico fixado, sendo a experiência desencadeadora (trigger experience) a sequência que expressa esse parâmetro. Por sua vez, essa expressão não pode ser menor do que um morfema nem maior do que um enunciado. Nesse sistema, prevê-se ainda “[...] uma preferência construída internamente por representações relativamente simples”14 (Roberts; Roussou, 2003, p. 15, tradução nossa) sempre que mudanças morfológicas e fonológicas ‘conspirarem’ no sentido de obscurecer a expressão do parâmetro. A métrica de simplicidade estabelece razão direta entre sincretismo na realização de traços (morfológicos) de categorias funcionais e a complexidade estrutural. Nesse sentido, move pressupõe mais complexidade estrutural e, portanto, mais sincretismo; inversamente, ausência de movimento pressupõe a concatenação de uma categoria dotada das especificações morfológicas relevantes, o que pressupõe ausência de sincretismo e uma estrutura mais simples.
Adotaremos a hipótese da gramaticalização conforme descrita nesta seção na análise da partícula ‘tá(~matá)’ do guajá, e da partícula correlata do kamaiurá. Do ponto de vista morfofonológico, verificamos que suas propriedades são consistentes com a tendência de que categorias funcionais sejam fonologicamente ‘leves’, uma vez que apresentam uma forma reduzida. Consideramos, porém, relevante a análise de Magalhães (2007), segundo a qual a partícula distingue-se da categoria afixal por admitir ser separada do núcleo do predicado por outras categorias, desde que tenham propriedades gramaticais semelhantes – ver exemplo (5), em oposição a (6). Do ponto de vista morfossintático e considerando-se os pressupostos teóricos da presente análise, trata-se de uma categoria funcional dotada de especificações formais que a identificam com um operador temporal/aspectual, situado no domínio medial da estrutura oracional. De acordo com Roberts e Roussou (2003), categorias funcionais são núcleos sintáticos desprovidos de estrutura argumental, que se concatenam por um requisito de seleção de constituinte (seleção-c) e por seu conteúdo lógico, que se mantém estável. Uma forma de caracterizar a distribuição dessas propriedades está formulada na abordagem cartográfica dos núcleos funcionais de Cinque (1999, 2004), em que a posição relativa dos advérbios interage com as propriedades formais dos núcleos funcionais, dando origem a uma estrutura universal. É o que tomamos como referência a seguir, na análise da estrutura oracional do guajá e do kamaiurá, em perspectiva comparada.
Partimos da hipótese de que a categoria ‘tá(~matá)’ no guajá é uma partícula aspectual projetiva (PROJ), conforme proposto na análise de Magalhães (2007). Adotando perspectiva translinguística, demonstramos, com base em Seki (2000), que tal item tem um correlato na língua kamaiurá, da família Tupí-Guaraní (TG), do ponto vista tanto semântico quanto sintático das construções em que ocorre. Argumentamos que a realização da categoria ‘tá(~matá)’ no guajá como núcleo funcional resulta de um processo de gramaticalização, que pressupõe a existência, em período diacrônico prévio, de um verbo nocional com denotação volitiva/desiderativa e estrutura argumental. Na ausência de dados diacrônicos da língua guajá, argumentamos em favor dessa hipótese mediante a comparação com o kamaiurá, que, conforme mencionado15, apresenta, no nível sincrônico, uma categoria funcional correspondente à categoria funcional do guajá16.
Passamos então à análise das estruturas relevantes, iniciando a discussão com as construções do guajá. Conforme mencionado, na análise de Magalhães (2007), a partícula ‘tá(~matá)’ codifica o aspecto projetivo (PROJ). Na presente análise, propomos que a partícula ‘tá(~matá)’ realiza a categoria funcional Tempo (T), tendo em vista a hipótese de que as propriedades definidas por Magalhães (2007) como aspectuais podem ser analisadas em termos da codificação do tempo. Ao vincular a categoria ‘tá(~matá)’ ao núcleo funcional T, seguimos a tradição que postula o contraste entre línguas que marcam tempo pela oposição ‘futuro versus não futuro’ e ‘passado versus não passado’ (Müller; Bertucci, 2018). Nesse aspecto, não só o guajá, mas outras línguas da família Tupí-Guaraní estão vinculadas ao primeiro grupo.
A questão que se coloca, então, é o que determina que a categoria ‘tá(~matá)’ seja associada ao núcleo funcional T. A resposta a essa questão parte da observação de Magalhães (2007) de que a categoria ‘tá(~matá)’ é realizada no domínio do sintagma verbal, admitindo-se que seja separada do verbo apenas por categorias da mesma natureza. Conforme ilustrado em (6), repetido a seguir como (14), ‘tá(~matá)’ é uma categoria periférica em relação a ‘ramõ’ e ‘té’. Seguindo análise de Magalhães (2007), assumimos que ‘ramõ’ e ‘té’ codificam propriedades aspectuais relacionadas ao desenvolvimento do evento: enquanto a categoria ‘ramõ’ descreve o caráter iminente/imediato (IMED) em relação ao desenvolvimento do evento, a categoria ‘té’ marca um tipo de aspecto experiencial, em que a certeza em relação à verdade da proposição – leitura evidencial (REAL) – é baseada em um critério inferencial, deduzido da experiência em relação ao evento descrito (no caso, a iminência e a previsibilidade do nascimento).
Seguindo tradição segundo a qual tempo e aspecto são projetados como categorias sintáticas na estrutura oracional, e adotando uma versão da abordagem cartográfica de Cinque (1999, 2004), em que modificadores aspectuais do evento são realizados na projeção de categorias funcionais, podemos supor que tais categorias licenciam os núcleos AspP17 e TP, acima de VP. Por hipótese, as partículas ‘ramõ’ e ‘té’ se deslocam com o núcleo verbal para o domínio de TP, através de AspP, ficando sob o escopo da categoria ‘tá’ em T18.
Seguindo Chomsky (1995), assumimos que o núcleo funcional T é a categoria básica no campo medial da estrutura oracional, enquanto a categoria C, acima de T, situa-se na periferia da sentença, em que são codificadas propriedades associadas à finitude e à força ilocucionária (Rizzi, 1997). Diante disso, propomos que a categoria ‘tá(~matá)’ seja projetada no campo medial da estrutura oracional. Em relação a tais categorias, seguimos (parcialmente) a análise de Maia et al. (1999), que postula, além do núcleo T, os núcleos sintáticos AgrS e AgrO, estes últimos associados à computação dos traços formais de concordância de sujeito e de objeto (operação Agree), bem como ao movimento (na sintaxe aberta ou fechada) do sujeito e do objeto, a depender da natureza dos traços formais envolvidos (fortes ou fracos).
Na presente análise, seguimos Chomsky (1995), em que os núcleos AgrS e AgrO são excluídos, sob o argumento de que essas categorias são constituídas exclusivamente de traços formais não interpretáveis, o que as torna virtualmente desnecessárias19. Com essa eliminação, é postulada uma estrutura em camada para o sintagma verbal, nomeadamente [v-V], sendo specvP a posição disponível para o movimento do objeto, gerando OV, na presença de um traço EPP em ‘v’.
Retomamos então o dado em (1), repetido como (15a), com a respectiva estrutura sintática (cf.15b). Por hipótese, em (15b), o núcleo do predicado verbal ‘jahó’ se desloca para o núcleo funcional T. Nessa posição, o prefixo de pessoa (da série nominativa) realiza o argumento selecionado pelo predicado na posição de sujeito da oração, no caso a 1ª pessoa20:
Evidência adicional provém da sintaxe de negação. Conforme Magalhães (2007), a negação em guajá é uma categoria descontínua, que se manifesta por uma categoria clítica e por um sufixo21. Na presença do item ‘tá(~matá)’, é esse elemento que hospeda o elemento sufixal, como se depreende do dado em (7), repetido a seguir como (16a). Assumindo-se que a negação é realizada pela categoria funcional NEG, propomos que esse núcleo, no guajá, seja lexicalizado pela categoria ‘-i’, sendo a categoria clítica ‘n=’ realizada no especificador desse núcleo (uma hipótese que tem sido adotada para a negação dupla em línguas como o francês)22. A linearização é obtida por deslocamento do material em T para o núcleo Neg, por seu caráter afixal. Conclui-se que o fato de ‘-i’ estar anexado ao item ‘tá(~matá)’ indica que essa operação sintática situa-se no domínio funcional e no campo medial da oração (cf.16b)23.
Por hipótese, a estrutura em (15b) pode ser generalizada para os dados em (3), (4) e (5), repetidas em (17a), (18a) e (19a), em que ocorre a partícula ‘tá(~matá)’, conforme demonstrado, respectivamente, nas estruturas em (17b), (18b) e (19b), a seguir24:
Uma consequência de postular que a partícula ‘tá(~matá)’ tem estatuto funcional é assumir que tais construções são mono-oracionais, conforme se depreende das derivações em (15)-(18). Nesse sentido, a partícula ‘tá(~matá)’, além de realizar o núcleo funcional T, tem o papel de definir a posição sintática do licenciamento do sujeito. A hipótese da gramaticalização pressupõe uma fase na diacronia em que a referida partícula é uma categoria lexical, como será demonstrado com a análise do kamaiurá.
Nesta seção, analisamos a gramaticalização como um processo em que tal categoria passa a ocorrer como um verbo de reestruturação. Conforme mencionado, a hipótese é que a partícula ‘tá(~matá)’ do guajá ocorre no núcleo T, na estrutura oracional, como resultado de um processo em que esse item deixa de ser um verbo lexical, passando a ocorrer como categoria funcional. Trata-se, portanto, de distinguir verbos funcionais e verbos nocionais: enquanto os primeiros formam uma classe fechada e denotam propriedades lógicas, os últimos são uma classe aberta e manifestam estrutura argumental.
Nossa hipótese de trabalho é que a presença das duas categorias no léxico do kamaiurá evidencia, na sincronia, o caminho do desenvolvimento diacrônico já concluído no guajá. Na ocorrência como categoria funcional, é um auxiliar pré-modal, com propriedades de um verbo de reestruturação, enquanto como categoria lexical, é um verbo transitivo – uma abordagem antecipada em Salles (2002). Esta análise encontra paralelo no estudo de Roberts e Roussou (2003, p. 36-48) para o desenvolvimento diacrônico de verbos modais no inglês moderno, a partir de verbos nocionais. De acordo com os autores, a gramaticalização dos modais em inglês resulta nas seguintes propriedades: (i) a ausência de marca de infinitivo (‘to’); (ii) impossibilidade de iteração; (iii) ausência de argumentos internos (exceto o predicado encaixado); (iv) distribuição complementar com ‘do-support’ (suporte do auxiliar ‘do’) e posição anteposta à negação; (v) movimento para C em contexto de inversão obrigatória em perguntas; (vi) licenciamento de fronteamento de VP (e elipse de VP); (vii) possibilidade de contração, diferentemente de verbos nocionais.
Tais características são encontradas (parcialmente) no guajá. É o caso de (iii), (iv) e (vii). Conforme demonstrado em (15b), o núcleo ‘tá(~matá)’, no guajá, ocorre com o predicado encaixado ‘jahó’, mas não seleciona argumento interno. Além disso, o guajá manifesta um tipo de dupla negação, sendo uma delas afixal, ocorrendo em posição anteposta à categoria ‘tá(~matá)’, como se depreende da análise em (16b). Finalmente, a possibilidade de contração tem como correlato a forma reduzida ‘tá’, em oposição a ‘matá’, um fenômeno amplamente reportado nos processos de gramaticalização.
Na teoria sintática, a reestruturação é observada em sentenças com auxiliares modais, aspectuais e causativos, que selecionam verbos no infinitivo. Sua principal característica é que operações sintáticas exclusivas são observadas nesses contextos, o que se confirma por diagnósticos como o movimento do verbo encaixado ou de categorias vinculadas, entre outras25. Wurmbrand (2001) desenvolve uma análise elaborada da reestruturação, considerando primordialmente auxiliares modais, de movimento, aspectuais e causativos no alemão (e outras línguas germânicas). Segundo a autora, tais verbos selecionam uma configuração oracional com estrutura funcional reduzida, em que a projeção funcional CP está ausente, e o infinitivo não manifesta tempo (tenseless). Na presente análise, a gramaticalização está associada ao processo de reestruturação, em que o predicado encaixado perde material funcional.
Embora o paralelo com as línguas da família Tupí-Guaraní não seja completo, pelo fato de não haver uma categoria verbal no infinitivo, gostaríamos de avançar a hipótese de que as estruturas com a partícula ‘tá(~matá)’ do guajá e equivalentes em outras línguas dessa família linguística podem ser analisadas como predicados de reestruturação. Assumindo-se a hipótese de reestruturação, propomos que a partícula ‘potat’ ocorre nas seguintes estruturas no kamaiurá: (i) uma em que ‘potat’ é uma categoria lexical, que seleciona um argumento interno (que pode ser um nome ou uma nominalização) – cf. (20a) –; e (ii) outra em que ‘potat’ é um auxiliar modal, que forma uma perífrase com o sintagma verbal – cf. (21a). Na configuração perifrástica, que interessa à presente discussão, ocorre o processo de reestruturação de predicado, conforme formalizado por Wurmbrand (2001), o que se evidencia pelo movimento do verbo na sintaxe aberta.
A conclusão é que o léxico do kamaiurá contém dois itens homônimos, com estatuto categorial distinto: em (20b), é o núcleo lexical V, na estrutura do predicado verbal; em (21b), é uma partícula dedicada, que lexicaliza o núcleo funcional T28.
Retomando o contraste entre o guajá e o kamaiurá, concluímos que a reanálise consiste na redução estrutural, motivada pela perda de material funcional na estrutura do predicado encaixado. Na análise da gramaticalização do modal ‘will’ como auxiliar marcador de futuro a partir do verbo lexical, observada no inglês antigo, Roberts e Roussou (2003, p. 40-41) distinguem o estatuto da categoria em termos da oposição entre a estrutura de controle (bi-oracional), em que o predicado encaixado é um CP, com o sujeito PRO (pronominal volitivo), e a de alçamento do sujeito (mono-oracional), em que o predicado encaixado ocorre em uma projeção reduzida, sendo seu argumento alçado para a posição de sujeito do predicado mais alto (modal). Os autores argumentam que a presença do modal ‘will’ em predicados meteorológicos, em que ocorre o sujeito pronominal expletivo (it), é evidência para a manifestação da estrutura mono-oracional, pela impossibilidade de ligação do pronome PRO (sujeito volitivo) pelo pronome expletivo.
Exemplificamos a seguir, com o dado (4), repetido em (22a), um predicado que denota evento climático, no guajá, em que a categoria ‘tá(~matá)’ ocorre com o verbo lexical inacusativo ‘Ø-ky’ (cair), que seleciona o argumento (interno) ‘amy͂n-a’ (chuva). Sugerimos que, nesse caso, a ausência do traço de agentividade, uma propriedade definidora do argumento interno dos predicados inacusativos, é evidência para a realização do sujeito por alçamento, conforme ilustrado na estrutura (22b), em oposição à estrutura de controle. Dessa forma, exclui-se a hipótese de uma estrutura de controle, em que esse argumento estaria ocorrendo como sujeito volitivo, a ligar um argumento pronominal encaixado do tipo PRO:
Essa análise se sustenta ainda em termos da presença do prefixo de pessoa na marcação da concordância de sujeito no verbo nessas línguas. Como se observa no dado em (20), do kamaiurá, o prefixo de pessoa é anexado à categoria verbal, ‘a-potar=ete’ (1sg-querer). Por hipótese, a ocorrência do prefixo na estrutura do predicado confirma sua realização como núcleo lexical, o que não acontece nos contextos em que ocorre como categoria funcional. No guajá, a partícula ‘ta(~matá)’ não recebe marca gramatical de pessoa em nenhum dos dados examinados. Nesse aspecto, o guajá alinha-se com o kamaiurá em relação à exigência de que somente o verbo lexical recebe o prefixo de concordância de sujeito. Diante disso, diferentemente do guajá, o kamaiurá manifesta duas entradas para o item ‘potat’, a saber a categoria lexical, capaz de nuclear o predicado e de receber marcas de pessoa, e a categoria funcional, que assume o papel de operador temporal, marcador da oposição futuro versus não futuro.
O estudo investigou as propriedades gramaticais da partícula ‘ta(~matá)’ e ‘potat’, do guajá e do kamaiurá, respectivamente. Concluímos que, no guajá, o item ‘ta(~matá)’ lexicaliza o núcleo T como uma partícula dedicada, por concatenação (merge). Diferentemente, no kamaiurá, o item ‘potat’ ocorre como categoria lexical transitiva e como um pré-modal, que corresponde a uma categoria que seleciona uma estrutura oracional reduzida.
Com esse contraste, captamos a hipótese da reanálise estrutural, por um lado, e dos passos da mudança, por outro, conforme prevê a teoria da gramaticalização proposta por Roberts e Roussou (2003). Evidência para essa análise está na distribuição das marcas formais de concordância, observada na categoria ‘potat’, do kamaiurá, em sua ocorrência como predicado lexical, mas não na categoria ‘ta(~matá)’, do guajá.
Concluímos que a hipótese da redução/reanálise estrutural é uma opção plausível na análise da mudança linguística, manifestando-se sempre que os dados do input linguístico não estejam suficientemente robustos para determinar as propriedades formais relevantes das categorias funcionais da língua-alvo, dando origem a arranjos morfossintáticos inovadores, como se observa em relação à partícula ‘ta(~matá)’, do guajá, na comparação com seu correlato no kamaiurá.
*Autora para correspondência: Heloisa Lima Salles. Universidade de Brasília. Instituto de Letras. Instituto Central de Ciências. Ala Sul. Mezzanino. Brasília, DF, Brasil. CEP 70910-900 (heloisasalles@gmail.com; hsalles@unb.br).