Resumo: Neste artigo, realizei uma análise espacial gerada em ambiente de Sistema de Informação Geográfico (SIG) sobre o cenário de ocupação dos grupos construtores de cerritos no estuário da laguna dos Patos, extremo Sul do Brasil. Busquei analisar a intervisibilidade entre os distintos complexos de sítios arqueológicos da região, assim como a visibilidade a partir dos sítios em relação a uma rota de mobilidade aquática publicada em trabalho anterior. Com base nos dados analíticos, nas informações etnohistóricas sobre comunicação com uso de tecnologia de fogo e fumaça de grupos indígenas do Pampa e nas evidências arqueológicas que denotam a agência do mundo aquático no contexto dos cerritos, sugeri que o estuário da laguna dos Patos seria o foco de controle visual dos cerriteiros. O mundo aquático, em suas implicações econômicas e ideológicas, condicionaria a comunicação, o movimento de pessoas e o fluxo de coisas e ideias na paisagem lagunar.
Palavras-chave:VisibilidadeVisibilidade,ComunicaçãoComunicação,PaisagemPaisagem,CerritosCerritos,ArqueologiaArqueologia,Sistema de Informação GeográficoSistema de Informação Geográfico.
Abstract: In this article, I performed a spatial analysis generated in a Geographic Information System (GIS) environment on the scenario of occupation of Moundbuilders (cerritos de Indios) in the estuary of Patos Lagoon, southernmost Brazil. I sought to analyse the intervisibility between the different complexes of archaeological sites in the region, as well as the visibility from the sites to an aquatic mobility route published in previous work. Based on analytical data, ethnohistorical information about communication based on the usage of fire and smoke technology from indigenous groups in the Pampa and archaeological evidence that denotes the agency of the aquatic world in the context of the cerritos, I suggest that the estuary of Patos lagoon would be the focus of visual control of Moundbuilders. The aquatic world in its economic and ideological implications would condition communication, the movement of people and the flow of things and ideas in the Lagoon Landscape.
Keywords: Visibility, Communication, Landscape, Earthen-Mounds (Cerritos), Archaeology, Geographic Information System.
ARTIGOS CIENTÍFICOS
Visibilidade, comunicação e movimento entre os cerriteiros na paisagem aquática da laguna dos Patos, Sul do Brasil
Visibility, communication, and movement among mound-builders on the aquatic landscape of Patos lagoon, southern Brazil
Recepção: 29 Abril 2020
Aprovação: 24 Julho 2020
A percepção visual, a comunicação e o movimento foram certamente comportamentos importantes para a localização dos assentamentos e a manutenção dos territórios entre as populações humanas deste tempos pré-coloniais (Wheatley & Gilling, 2002; Llobera, 2007). A experiência de estar no mundo, as relações de poder entre humanos e os seres não humanos e a própria ordenação física, ideológica e mitológica do mundo se traduzem na experiência do olhar, do estar e do mover-se (Ingold, 2000). Ver, comunicar e lembrar são sentidos imbricados no processo de composição da paisagem – a matriz de lugares histórica e culturalmente significativos que compõem um sistema de referência, na qual a consciência de mundo e as identidades estão ancoradas (Tilley, 1994).
As interpretações arqueológicas normalmente consideram que ‘ver e ser visto’ é uma operação cultural fundamental para a composição da noção de lugar, constituindo uma chave de entendimento das paisagens indígenas do período pré-colonial nas terras baixas sul-americanas (Dillehay, 2000; López Mazz, 2001; Gianotti & Leoz, 2001; Gianotti, 2015; Pintos Blanco, 2000; Balée, 2006). Neste contexto, monumentos como aterros, valas, estruturas subterrênas e canais, vilas anelares, campos elevados, acúmulos e círculos de pedra, pinturas e gravuras rupestres são elementos materiais milenares de ordenação de paisagens apropriadas e transformadas que perduram no tempo e no espaço e permitem sua permanente contestação, inclusive para os marcos demarcatórios das populações indígenas atuais (Erickson, 2009; Balée, 2006; Iriarte et al., 2017; Walker, 2008; Rostain & Saulieu, 2013; Gassón, 2002; Sotelo, 2018).
Entre os grupos construtores de cerritos do bioma Pampa, a visibilidade certamente foi um fator fundamental para a localização das estruturas monticulares em terra como áreas de moradia, monumentos, demarcadores territoriais, referências de mobilidade e circulação, áreas de plantio e exploração de recursos. A visibilidade da paisagem, além de denotar relações de poder, potencializar e condicionar comunicação e movimento, seria um elemento importante ao padrão de assentamento (Pintos Blanco, 2000; López Mazz, 2001; Gianotti & Leoz, 2001; Gianotti, 2015; Sotelo, 2018). Além das interpretações arqueológicas, neste mesmo ambiente, há relatos de cronistas e viajantes sobre as populações indígenas, como os Charrua e Minuano, relativos ao controle visual da paisagem, observação de caça, comunicação entre lideranças com uso de fogo e fumaça e ocupação de pontos estratégicos nos territórios (Palermo et al., 2004; Sotelo, 2018; López Mazz & Bracco, 2010; Jarque, 1687; Seijo, 1931).
A fim de contribuir para a discussão sobre controle visual, comunicação e movimento entre os grupos construtores de cerritos, foi desenvolvida uma análise espacial de visibilidade em ambiente de Sistema de Informação Geográfico (SIG), de forma a projetar hipoteticamente a operação cultural de ‘ver e ser visto’ em diferentes escalas entre os cerritos localizados na laguna dos Patos, extremo Sul do Brasil. Além da intervisibilidade entre os sítios, a modelagem considera a visibilidade entre os sítios e as rotas de mobilidade por navegação no estuário da laguna dos Patos1. É importante comentar que o modelo proposto foi elaborado por projeções hipotéticas, compostas por análises de dados computacionais, cotejados com dados arqueológicos e etnohistóricos. Portanto, levando em conta os dados etnohistóricos, a modelagem SIG e as diferentes escalas de visibilidade, assumimos que a estratégia de assentamento dos cerriteiros no estuário não teria a intervisibilidade entre os sítios como fator de prioridade, mas sim o controle visual sobre o estuário da laguna e sobre a rota de mobilidade aquática, como uma forma de domínio sobre a comunicação e o movimento de pessoas, ideias e coisas, assim como a manutenção do manejo econômico e ideológico.
Os ‘cerritos de indios’, como são chamados em língua espanhola, são aterros pré-coloniais indígenas geralmente alocados em ambientes alagadiços, tanto em planícies como em ambientes de serras. Sua volumetria oscila entre montículos de 30 cm (microrrelevos) até grandes plataformas de 7 m de altura, com formatos circulares ou elípticos em torno de 30 m. Ocorrem, geralmente, em conjuntos com até aproximadamente uma centena, embora sejam conhecidos sítios isolados na paisagem. Mais de 3.000 cerritos foram registrados no bioma Pampa e na costa atlântica, entre o extremo Sul do Brasil, o Uruguai e o nordeste da Argentina, de maneira que se pode considerar um fenômeno cultural de ampla escala geográfica (López Mazz, 2001; López Mazz & Bracco, 2010; Bracco et al., 2008; Bonomo et al., 2011; Gianotti, 2015; Milheira et al., 2019a). Os sítios mais antigos situam-se na região nordeste do Uruguai (cerrito de La Viúda e Los Ajos), cujas datas chegam à profundidade temporal de aproximadamente 5 mil anos AP e ocorrem até o período colonial (López Mazz, 2001; López Mazz & Bracco, 2010; Iriarte, 2006; Bracco et al., 2008), o que permite relacionar os montículos aos grupos indígenas historicamente conhecidos como os Charrua e Minuanos2 (López Mazz, 2001; López Mazz & Bracco, 2010; Basile-Becker, 2002).
A visibilidade tornou-se um elemento importante no estudo das sociedades construtoras de cerritos, quando os sítios passaram a ser entendidos como projetos monumentais que compõem uma paisagem construída culturalmente. A partir do conceito de monumentalidade, López Mazz e Bracco (2010, p. 265) interpretam que, num processo de longa duração, os construtores de cerritos teriam composto uma “paisagem funerária”. ‘Ver e ser visto’ nas terras baixas e alagadiças do Pampa, além de expressar relações de poder, seria uma premissa do projeto de edificação dos aterros, os quais seriam construídos com o objetivo de comunicar significados duradouros ao longo de um largo tempo (Dillehay, 2000).
Outro entendimento fundamental, além da monumentalidade, foi a perspectiva processual de que os sítios conformam complexos sistêmicos e interligados, com distintas funções e significados. A interação entre áreas de ocupação, áreas de moradia, de plantio, produção e caminhos incorporados em uma paisagem construída na longa duração seria chave para ‘formar e manter um sentido de lugar’ (Gianotti & Leoz, 2001, p. 136). Sob uma perspectiva sistêmica, os cerritos deixaram de ser compreendidos como unidades funcionais de habitação ou acampamentos temporários ocupados sazonalmente (Schmitz, 1976) e passaram a ser entendidos como lugares de ocupação, uso e significado mais ou menos duradouros, que compõem conjuntos de estruturas de formas e funções variadas, distribuídos ao longo de aproximadamente 5 mil anos no ambiente pampeano e litorâneo.
Na região do Arroio Yaguarí, em Tacuarembó, norte do Uruguai, Gianotti e Leoz (2001) realizaram uma análise espacial demonstrando que a visibilidade dos cerritos é absolutamente dependente dos compartimentos topográficos. A visibilidade entre os complexos de cerritos seria mais acurada a partir de pontos mais altos em uma planície média, alcançando um raio de 3 km. A percepção visual dependeria também da forma dos montículos, da sua localização na topografia, do entorno e da experiência individual ao andar no terreno. Partindo da percepção visual e da localização dos montículos, os autores interpretaram os sítios sob uma lógica hierárquica, em que alguns cerritos seriam relativamente mais importantes do que outros como elementos marcadores de direção e movimento na paisagem (linhas e nós de trânsito).
Essa mesma percepção também foi interpretada por López Mazz (2001), ao comentar que os montículos mais antigos teriam sido construídos como marcadores territoriais visíveis no entorno das áreas de banhados, utilizados como elementos materiais de reclamação dos recursos econômicos. Além disso, seriam também construídos com o intuito de “. . . facilitar la orientación y el tránsito de los cazadores, en un territorio periódicamente inundado. . .” (López Mazz, 2001, p. 237).Os cerritos seguiriam uma lógica do padrão de assentamento vinculada à visibilidade da paisagem e à circunscrição dos recursos econômicos, especialmente nas serras ao nordeste do Uruguai, San Miguel, Potrero Grande, Los Ajos e laguna Negra, cujos conjuntos de estruturas se associam a lugares de grande visibilidade.
A percepção visual dos monumentos foi fundamental para Pintos Blanco (2000) interpretar o padrão de localização dos montículos. Segundo o autor, a análise locacional permite compreender que os grupos construtores de cerritos da bacia de laguna de Castillos, também no nordeste uruguaio, construíram os monumentos levando em conta uma geografia topograficamente destacada, ainda que ocorram cerritos em planícies. No entanto, é notório que as estruturas foram preferencialmente alocadas em topos, desde onde se consegue um domínio visual de zonas de topografia mais deprimida. A partir destes pontos, seria possível contato visual com outros lugares com a mesma conotação monumental. Neste sentido, o autor chama atenção para três recorrências distribucionais:
1) Zona destacada topográficamente = lugar de emplazamiento de los monumentos; 2) Desde el lugar de emplazamiento es posible el contacto visual con otros lugares connotados monumentalmente; 3) Como resultante de las dos recurrencias anteriores, se generan cuencas de intervisibilidad, con dominio visual sobre amplias zonas que por lo general se corresponden con las mayores concentraciones de recursos (pasturas, palmares, rebaños de herbívoros)
(Pintos Blanco, 2000, p. 80).Mais recentemente, Gianotti (2015) retomou uma abordagem espacial, avançando em discussões a partir de análises realizadas em ambiente SIG. Com base em análise de visibilidade acumulada na serra de Potrero Grande, a autora discutiu aspectos de distribuição e orientação das superfícies visíveis a partir dos cerritos, visibilidade dos recursos e intervisibilidade entre os sítios. Os resultados apontaram um predomínio de controle visual a partir das áreas de serranias pouco elevadas, onde se situam os cerritos, sobre as áreas de banhados e planícies lagunares que comportam os principais recursos econômicos. Além disso, a intervisibilidade entre os cerritos seria plena, embora, a partir de algumas estruturas, a visibilidade fosse mais consistente do que a partir de outras, o que sugere níveis distintos de hierarquia e manutenção de relações de poder, corroborando a hipótese anterior de Pintos Blanco (2000) e de Gianotti e Leoz (2001).
Os relatos etnohistóricos sobre fogo e fumaça para comunicação e mobilidade entre diferentes sociedades indígenas americanas demonstram o uso histórico desta tecnologia. Beers (2014) apresenta um compilado de registros coloniais entre indígenas. Nestes relatos, em sua maioria feitos por conquistadores espanhóis, entre os séculos XVI e XVIII, sobre grupos como os Apaches, Comanches, Chippewa, Yokuts, Cheyenne, Mojave, Yavapai e Navajo, o uso de fogo e fumaça seria normalmente feito como forma de comunicação em tempos de guerra, ainda que atividades de caça e rituais religiosos também se valessem dessa tecnologia. Segundo o autor, o fogo para comunicação a largas distâncias seria feito com plantas (gramíneas, raízes) e rezinas específicas para promover a fumaça adequada, de modo que até mesmo formas de fumaça (como pontos, traços e círculos) poderiam ser produzidas, alcançando até 0,3 km de altura, para informar sobre localização, quantidade de guerreiros, coordenação para caça e chamado para reunião entre líderes. Os fogos seriam produzidos, geralmente, em lugares topograficamente elevados, em acúmulos de pedra e mesmo em áreas de rotas de circulação entre diferentes assentamentos (Beers, 2014).
No Pampa sul-americano, da mesma forma, são interessantes as informações provenientes da documentação etnohistórica sobre o uso de fogo como forma de comunicação entre os grupos indígenas. Seijo (1931, pp. 167-168), reproduzido em Palermo et al. (2004), comenta sobre comunicação por fogo e fumaça entre distintos pontos dos territórios indígenas:
. . . y sí como uno de los sitios determinados y fijos en donde debían encender sus fogatas como una señal de alarma. José Ma. Cabrer tuvo ocasión de observar a los minuanes a fines del siglo pasado (1784) en los momentos de guerra para reunirse se valían de hogueras y de humos como los guenoas (12).
. . . Nuestros indígenas como es sabido (14), utilizaban el humo durante el día y tal vez con el mismo arte que los que habitaban el Oeste de Estados Unidos, emplearían también cierta clase de combustible que al arder lentamente producía una densa columna de humo (15) a la que imprimiéndole variadas formas servíanle como de una clave.
De esta manera repitiéndola desde otros puntos similares en breve espacio de tiempo se comunicaban a enormes distancias.
14-El Padre Lozano precisando más la noticia se refiere a los guenoas y expresa: “Para comunicarse unos a otros (unas tribus con otras) en tiempos de guerra se valían de humos o del resplandor de grandes hogueras que encendiendo cada cacique en su territorio, cosa que si distan mucho unos de otros, avisan con estos correos en cuya inteligencia están muy diestros”.
En estos días se han visto tres fuegos que según dicen los Prácticos corresponden a los puestos de Santa Ana y San Antonio (Viejo) y otros en el centro de estos dos. . . . y habiéndose despachado varias Partidas a observar estas. . . . en el día inmediato. . . . se retiraron diciendo que havian hallado distintos Rastros (de indios) aunque de corto número; y que por el medio día se encendieron dos fuegos a corta distancia uno de otro, en el intermedio de este campo y Santa Tecla. . . . Esta como la que se acaban de nombrar, en esa época eran sencillamente “estancias y puestos avanzados de las Misiones Orientales del uruguay” (Diario de la Segunda Expedición de Misiones, por el Coronel. Dn. Joseph Joaquin de Viana, 1755). (Misión Falcao). (Arch. Gral. Administrativo)
(Palermo et al., 2004, s/p.).Estes relatos apontam o uso de locais de controle de movimento de pessoas na paisagem pampeana e uso de fogo e fumaça para comunicação, especialmente em épocas de conflito, quando as lideranças se utilizavam dessa estratégia para assembleias. Considerando os diferentes lugares mencionados na documentação, pode-se perfeitamente concluir que essa forma de comunicação fosse amplamente utilizada, inclusive pelas populações indígenas que habitaram a região costeira que envolve a laguna dos Patos.
A pesquisa é desenvolvida na porção leste do bioma Pampa, o qual compreende uma área de 1.200.000 km2 entre o leste da Argentina, o Uruguai e o sul do estado do Rio Grande do Sul, no Brasil. É um bioma composto por terrenos planos e de baixa topografia, banhados em charcos e com campos abertos com vegetação rasteira e matas ciliares. Neste contexto, a pesquisa ocorre na porção meridional da laguna dos Patos, a qual se liga à lagoa Mirim através do canal São Gonçalo. Esta laguna é um dos maiores criadouros de espécies da planície costeira do Rio Grande do Sul, sendo que um grande aporte de procriação ocorre no estuário lagunar, numa região que compreende aproximadamente 963,8 km2 (10% da área lagunar total), entre os molhes da barra de Rio Grande e uma linha imaginária entre a ilha da Feitoria e a Ponta dos Lençóis (Oliveira & Bemvenuti, 2006) (Figura 1).
O estuário é uma grande área de reprodução, desova e criadouro de diferentes organismos, como peixes e crustáceos, sendo que alguns deles o utilizam durante todo o seu ciclo de vida e outros, por apenas algum período, como a época de desova e de procriação. Entre as áreas de maior disponibilidade de espécies aquáticas, os ‘sacos’ e as pequenas lagoas (como Saco do Arraial e lagoa Pequena), com profundidade menor do que 2 m e áreas mais protegidas, se destacam pela quantidade de peixes de menor porte. Enquanto isso, nas águas abertas com profundidade maior do que 2 m, ocorrem peixes de maior porte, servindo como corredores de movimentação das espécies (Oliveira & Bemvenuti, 2006).
A laguna configura-se por uma ampla dinâmica de transformações sazonais. O processo de salinização, verificado predominantemente entre os meses mais quentes do ano, é um fator de câmbios consideráveis, quando o estuário se torna um ambiente de grande disponibilidade de estoque animal (Oliveira & Bemvenuti, 2006). Certamente, a laguna foi um grande atrativo para o desenvolvimento de populações pesqueiras em tempos pré-coloniais, já que foram registrados sambaquis (Ribeiro & Calippo, 2000), mais de 400 cerritos (Schmitz, 1976; Milheira et al., 2019b) e sítios Guarani (Naue et al., 1968, Milheira, 2014).
Os grupos construtores de cerritos tiveram seu processo de ocupação nas margens da laguna dos Patos iniciado em torno de 2.500 a 200 anos antes do presente (AP) (Schmitz, 1976; Milheira et al., 2019a). Ao longo de mais de 2.000 anos de ocupação das áreas alagadiças (banhados e charcos), os cerriteiros desenvolveram comportamentos de consumo voltados para a exploração dos animais aquáticos, em que as análises zooarqueológicas, com base em número mínimo de indivíduos (NMI), demonstraram que mais de 90% da fauna consumida pelos cerriteiros eram de peixes estuarino-dependentes, como bagres (Genidens genidens, Genidens barbus, Bagre marinus, Bagre bagre, Aspistor luniscutis), corvina (Micropogonias furnieri) e miraguaia (Pogonias cromis). Outras espécies de animais identificadas têm frequência extremamente reduzida, como aves de banhado (Anhimidae, Anatidae, Ciconiiformes, Aramidae), quelônios de água-doce (Trachemys dorbigni, Hydromedusa tectifera) e mamíferos terrrestres, principalmente pequenos carnívoros (Conepatus chinga, Lycalopex sp.) e cervídeos (Mazama sp., Ozotoceros bezoarticus) (P. Ulguim, 2010; V. Ulguim, 2018; Chim, 2016; Milheira et al., 2019a).
Além disso, é evidente a apropriação simbólica do mundo aquático. No cerrito PSG-02, localizado no Pontal da Barra, município de Pelotas, foi verificado um pingente feito em dente de golfinho, um animal de alta cadeia trófica, de origem marinha, associado ao resto de um sepultamento humano secundário. O comportamento pesqueiro é também evidenciado pelas patologias físicas identificadas em um contexto arqueológico descoberto no cerrito RS-LS-85: Oscar Erocildo Abreu, localizado no município de Rio Grande. Trata-se de um enterramento humano com partes anatômicas de três indivíduos: dois homens e um indivíduo de sexo indeterminado. Neste contexto, a análise osteoarqueológica demonstrou patologias esqueléticas oriundas de atividades intensivas e repetitivas, como traumas da cabeça da ulna (afetando o cotovelo), achatamento da tíbia (indicativo de agachamento por longos períodos) e ossos da clavícula com entesopatia e artrose (Ferreira, 2012). A exploração de recursos aquáticos é também evidenciada pelos restos humanos dos cerritos do Pontal da Barra, os quais apresentam desgastes dentários bastante acentuados, provavelmente resultados de atividades diárias de manejo de fibras e redes para produção e uso de implementos de pesca (Ulguim & Milheira, 2017) (Figura 2). Trata-se de desgastes dentários semelhantes àqueles identificados em contextos sambaquieiros, cujo padrão alimentar baseado predominantemente em peixes e moluscos – provavelmente com inserção natural de abrasivos, como areia fina, conchas, minerais e fitólitos – e uso da dentição como instrumento de trabalho para processamento de matéria-prima seriam as suas causas (Machado & Kneip, 1994; Souza et al., 2009).
A grande quantidade de fauna lacustre, a apropriação simbólica do mundo aquático e as patologias ósseas dos indivíduos exumados em contextos de cerritos são elementos que apontam para o fato de que os cerriteiros teriam o comportamento pesqueiro como um fator central na economia e, certamente, a pesca seria um agente fundamental na forma de organização social. Pensando isto em larga escala, em um primeiro momento, realizamos uma modelagem da mobilidade dos grupos construtores de cerritos no ambiente da laguna dos Patos e da lagoa Mirim, a fim de traçar as rotas de circulação.
Em Milheira et al. (2019b), realizamos um comparativo entre um modelo de caminhamento e um modelo de navegação no ambiente da bacia Patos-Mirim, demonstrando a maior eficácia da mobilidade aquática. Além disso, o mesmo trabalho trouxe uma hierarquização das rotas de mobilidade, o que permitiu demonstrar que: 1) as áreas de assentamento teriam maior quantidade de rotas internas nos assentamentos; 2) as principais rotas de mobilidade aproveitariam a navegação de cabotagem, dado o baixo calado das canoas, à facilidade e à segurança na navegação costeira, bem como à possibilidade de exploração de recursos; 3) a possibilidade de conexões leste-oeste, ligando as diferentes áreas de assentamento; 4) uma conexão geral norte-sul, dado o formato natural do sistema lagunar; e 5) uma grande importância do canal São Gonçalo como um eixo de ligação do sistema Patos-Mirim. Além de pensar a mobilidade, foi realizada uma análise de redes que envolve a relação entre os sítios arqueológicos na paisagem (e entre si) e a posição deles em relação às rotas, demonstrando que os sítios localizados no estuário da laguna dos Patos seriam centrais no sistema regional de assentamento.
Controlar a mobilidade e a circulação de pessoas e de coisas é controlar o fluxo de informações e de ideias entre as pessoas do sistema. Controlar as ideias é controlar o sistema ideológico como um todo, o que envolve investimentos (considerando a escala geográfica) em posicionamento na paisagem e na manutenção do território. O controle visual é elemento essencial para o domínio da mobilidade de pessoas, coisas e ideias. O controle da visibilidade é essencial não apenas para saber quem entra e quem sai das lagoas, mas também para saber o que circula, quem se move e por quais razões. Neste sentido, ver é controlar! Por essa razão, criamos uma modelagem de visibilidade, através de uma abordagem SIG, entre os sítios e dos sítios para as rotas de mobilidade anteriormente elaboradas, a fim de compreender o nível de controle visual possível sobre o ambiente lagunar e, com isso, discutir aspectos de controle ideológico sobre o sistema de fluxo e a circulação de pessoas, coisas e ideias.
O primeiro passo técnico foi plotar as coordenadas geográficas relativas aos cerritos localizados no estuário da laguna dos Patos3. São conjuntos que somam 87 cerritos, localizados nos municípios de Pelotas (n = 32 cerritos), Capão do Leão (n = 11 cerritos) e Rio Grande (n = 44 cerritos). As publicações mais antigas, que remontam aos anos 1960 e 1970, raramente trazem as coordenadas dos sítios arqueológicos, ao contrário das publicações mais recentes. Nos casos lacunares, foi feita a sobreposição dos mapas publicados sobre o Google Earth Pro, o que permitiu adquirir um par de coordenadas aproximado. A tabela de sítios foi publicada em Milheira et al. (2019b) e foi usada para gerar um arquivo de pontos do tipo shapefile, que, por sua vez, foi adicionado ao banco de dados no programa ArcGIS-ESRI, versão 10.5.
Para criar mapas de visibilidade, foi gerado um modelo digital de elevação (Digital Elevation Model - DEM) do estuário da laguna dos Patos, onde se situam os 87 sítios arqueológicos considerados centrais (ou próximo dos centrais) na rede de mobilidade, conforme apontado em Milheira et al. (2019b). O DEM é um arquivo do tipo Raster, composto por um mosaico de imagens Shuttle Radar Topography Mission (SRTM) com 12,5 m de resolução, adquiridas através do projeto EarthData-NASA4.
Com base no arquivo de pontos dos sítios e no DEM, foram usadas duas ferramentas principais: 1) a ferramenta viewshed 2 e a ferramenta line of sight, ambas disponíveis no Arc Tool Box. A ferramente viewshed 2 permite determinar as superfícies observáveis e não observáveis a partir de um ou mais pontos de observação sobre o DEM e calcular de forma gradiente a ‘visibilidade acumulada’, ou seja, os pontos da superfície mais visíveis considerando todos os observadores no processo de análise. Com essa ferramenta, a visibilidade da superfície é determinada pela comparação do ângulo de altitude do centro de cada célula do arquivo Raster com o ângulo de altitude do ponto de observação. As variações de altimetria que compõem o DEM são os obstáculos à visibilidade entre o ponto do observador e o horizonte, dentro de um raio determinado. Se o ponto estiver acima do horizonte, deve ser considerado como potencialmente visível. Não foram aplicados parâmetros especiais de angulação horizontal ou vertical, o que significa que a visibilidade foi calculada em 360º horizontal e 45º vertical. A ferramenta line of sight, por sua vez, determina a visibilidade entre dois pontos em linha reta, considerando os mesmos parâmetros da ferramenta anterior, conforme se observa na Figura 3.
O raio de visibilidade humano é um tema bastante discutido e controverso. As limitações impostas por elementos reais e físicos, como a topografia, a vegetação e as condições atmosféricas, condicionam a visão. Do ponto de vista metodológico, é possível criar linhas de visibilidade entre dois ou mais pontos na paisagem, mas é preciso ponderar os resultados, pelo fato de que as condições paleoambientais são normalmente incógnitas para rodar as modelagens (Brughmans & Brandes, 2017). No entanto, há certo consenso de que o raio de 5 km respeita o limite máximo de acuidade do olho humano. A partir de 5 km, dependendo da intensidade de luz, do nível de poluição e da curvatura da terra, o olho humano tende a perder o foco. No entanto, é preciso considerar que a visão é um sentido que pode ser potencializado e treinado a partir da experiência e da vivência. Os estudos etnográficos de Ellis (1991) entre comunidades Pueblos do sudoeste dos Estados Unidos demonstram o uso de mecanismos de comunicação com fogo, fumaça e brilho. Cada mecanismo potencializa a comunicação de forma distinta. O fogo é mais visível a noite e permite uma visibilidade de até entre 42 km e 72 km; já a fumaça, mais visível ao longo do dia, pode alcançar, dependendo das condições climáticas, uma visibilidade de até 8 km, compatível com o alcance com uso de brilhos de cristais.
Considerando isso, a ferramenta viewshed 2 foi utilizada com valor de raio de 5 km e 20 km (Radius 2), a partir dos pontos de observação (sítios arqueológicos), como parâmetro. Foram considerados 2 m de altura (OffsetA) de cada um dos pontos de observação, a fim de simular a altura de um observador sobre algum tipo de estrutura artificial ou elemento natural, como um aterro ou uma vegetação de pequeno e médio porte, e 1 m de altura (OffsetB) para observadores que poderiam estar em canoas, navegando nas lagoas e nos rios. A ferramenta line of sight foi utilizada com OffsetA e OffsetB de 2 m de altura, pois a intenção foi calcular a intervisibilidade entre os sítios do estuário da laguna dos Patos. O raio de 5 km atende a acuidade plena do olho humano, já a modelagem com raio de 20 km foi constituída a partir da experiência pessoal do autor e busca analisar a visibilidade geral do estuário. O raio de 20 km permitiria também identificar sinais de fogo, fumaça e brilho.
Além da observação direta entre os sítios arqueológicos, foram geradas análises de visibilidade entre os sítios e a rota de mobilidade via navegação (Least Coast Path), geradas com a ferramenta Spatial Analyst, no Arc Tool Box do ArcGIS 10.5, baseadas no método desenvolvido por White e Barber (2012). As linhas das rotas, no presente trabalho, foram transformadas em alinhamentos de pontos (1.073 pontos), distanciados em até 1 km, que foram usados, por sua vez, como origem de observação com 1 m de altura a partir do DEM.
A fim de analisar os layouts de visibilidade, foi realizada estatística descritiva (com base em ‘seleção por localização’), que relaciona os pontos de observação de origem com a superfície de visibilidade acumulada. Dessa forma, é possível, por exemplo, quantificar os trechos das rotas visíveis e não visíveis a partir dos sítios arqueológicos e identificar quais sítios arqueológicos seriam visíveis e não visíveis a partir das rotas de mobilidade. No que se refere aos modelos de intervisibilidade, por sua vez, não foi realizada estatística descritiva e nossas interpretações baseiam-se nos layouts, que descrevem os segmentos de reta com visibilidade e sem visibilidade entre os pontos dos sítios.
A visibilidade acumulada em raio de 5 km demonstra que a rota de mobilidade no estuário e canal São Gonçalo, vista a partir dos sítios, teria uma visibilidade de apenas 15,09%. No raio de 20 km, a visibilidade da rota de mobilidade a partir dos sítios arqueológicos seria consideravelmente superior, alcançando a faixa de 50,51%. Os valores devem ser ponderados, porque a linha da rota somente seria visível no entorno de cada sítio, ou seja, a análise espacial de um sítio mais ao norte do sistema, por exemplo, nunca poderia sobrepor a porção sul da rota de mobilidade pela sua distância muito superior a 5 ou 20 km (Figura 4).
No que se refere à visibilidade dos sítios a partir da rota de mobilidade, a capacidade de visualização num raio de 5 km é de 74,71%. Já a visibilidade dos sítios a partir do total da rota de mobilidade em um raio de 20 kmseria de 71,26%. A superfície da água seria altamente controlada visualmente no entorno da linha de rota. É preciso ponderar os altos valores percentuais, visto que a análise apontou que o cruzamento entre o raio de visibilidade e os sítios se daria na periferia do viewshed, cuja visibilidade real seria, de fato, muito improvável (Figura 5).
A intervisibilidade entre os sítios arqueológicos das diferentes áreas de assentamentos demonstrou ser nula, com menos de 5% dos segmentos das retas com alguma visibilidade e nenhuma intervisibilidade entre os sítios a partir do ponto mais central do sistema, o complexo de sítios do Pontal da Barra. A intervisibilidade demonstra ser mais acentuada apenas no interior das áreas de assentamento, em que, a partir de dois exemplos, o complexo de sítios do Pontal da Barra e o complexo da Barra Falsa, quase todos os sítios seriam vistos a partir dos sítios centrais de cada assentamento (Figura 6).
A inserção paisagística de alguns complexos de cerritos, como na região do Arroio Yaguarí, San Miguel, Potrero Grande, Los Ajos, laguna Negra e laguna de Castillos, no Uruguai, ocorre em serras e planícies. Trata-se de mosaicos de terras elevadas e áreas alagadas que permitem a visibilidade plena do entorno, agenciando a localização dos assentamentos e monumentos (Pintos Blanco, 2000; López Mazz, 2001; Gianotti & Leoz, 2001; Gianotti, 2015; Sotelo, 2018). No estuário da laguna dos Patos, no entanto, a grande distância entre os complexos de sítios, a topografia plana da região costeira composta por terrenos que oscilam entre 0-20 m.a.n.m. e a cobertura vegetal da planície lagunar impedem a intervisibilidade entre as áreas de assentamento. A partir do Pontal da Barra, que seria o centro da rede de conectividade entre os diferentes complexos de sítios do estuário e um importante local de controle do sistema de mobilidade, a intervisibilidade com as demais áreas de assentamento seria nula. A negativa intervisibilidade sugere, neste caso, que a escolha dos locais de ocupação dos grupos construtores de cerritos não se daria em virtude da possibilidade de controle visual entre as áreas de assentamento.
Por outro lado, a intervisibilidade seria um fator importante no interior do assentamento. Nos dois exemplos do Complexo do Pontal da Barra e da Barra Falsa, a visibilidade entre os cerritos é plena, e a comunicação seria possível tanto visualmente como, até mesmo, sonoramente. Essa proximidade reforça o sentimento de controle entre as pessoas que compõem uma mesma comunidade. A proximidade permitiria a socialização diária entre as pessoas de uma mesma aldeia, reforçando o sentimento de comunidade. ‘Ver e ser visto’, neste caso, é um elemento fundamental à noção de comunidade aldeã. Cuidado, socialização e solidariedade seriam aguçados pela visibilidade entre pessoas no sistema aldeão.
Considerando a visibilidade acumulada, nota-se que o controle visual dos terrenos a oeste dos sítios seria bastante limitado. Nitidamente, a orientação visual seria dos sítios arqueológicos para o quadrante sudeste: das áreas de assentamento para as águas do estuário. O controle visual da superfície de água da laguna, de onde provêm mais de 90% dos recursos econômicos para os cerriteiros, seria mais importante como elemento estratégico para determinação das áreas de ocupação do que a intervisibilidade entre os sítios. Observar os cardumes e controlar os pesqueiros seriam fundamentais na estratégia de assentamento. Gianotti (2015), por exemplo, demonstra que o controle sobre os banhados, onde habitam alguns dos principais recursos animais na economia dos grupos construtores de cerritos, é um fator também de agenciamento das áreas de assentamento.
Ambos os modelos de visibilidade acumulada a partir dos sítios demonstram um controle pleno sobre o Saco do Arraial e as ilhas estuarinas, localidades de alta piscosidade e onde procriam e desovam espécies como aquelas consumidas em grandes proporções pelos construtores de cerritos. A ilha da Feitoria e a lagoa Pequena, embora o modelo tenha apresentado baixa visibilidade, certamente foram espaços de interesse, visto que há um cerrito na margem leste e um conjunto de sítios no entorno da pequena lagoa, um criadouro altamente valorizado ainda hoje pelas comunidades de pescadores.
Da mesma forma, além do controle sobre as áreas de captação de recursos, outro fator que sugere ser preponderante na localização dos assentamentos é o controle visual sobre rotas de mobilidade. Conforme os layouts apresentados na Figura 5, a visibilidade da rota de mobilidade a partir dos sítios arqueológicos seria bastante consistente, o que sugere que as pessoas embarcadas no estuário estariam sempre sendo potencialmente observadas. Controlar a movimentação de pessoas nas embarcações no interior da laguna dos Patos, canais e arroios parece ser mais importante do que a visibilidade direta entre as áreas de assentamento. Trata-se, neste caso, de um controle do fluxo de pessoas, coisas e ideias no estuário, um controle ideológico propriamente dito.
O mesmo ocorre sobre a visibilidade dos sítios a partir das canoas. Porém, além de visualizar os assentamentos, é interessante notar a ampla visão dos acidentes geográficos mais importantes do estuário, como as Areias Gordas e as ilhas estuarinas, as quais são referências importantes de navegação até hoje. A experiência da navegação na laguna dos Patos é fator essencial, segundo os pescadores das comunidades pesqueiras a quem tivemos acesso. Segundo os pescadores da comunidade do Pontal da Barra, “há dias que a lagoa vira mar” (comunicação pessoal, 15 dez. 2019), visto que os aspectos climáticos podem ser muito severos e condicionam a navegação. Nestes dias, a navegação precisa ser feita mais próxima à costa, em águas rasas, concordando com a rota de mobilidade proposta. Pela costa, além de o perigo de navegaçãoser menor, a visibilidade dos acidentes ajuda o direcionamento da navegação e, no passado pré-colonial, devemos imaginar as fogueiras como indicadoras de navegação.
Em não sendo a intervisibilidade um elemento significativo na escolha das áreas de assentamento no estuário da laguna dos Patos, surge a possibilidade da comunicação com uso de tecnologia de fogo e fumaça, conforme informado nos dados etnohistóricos da região. Além do cheiro da fumaça que alcança largas distâncias, a sua visualização aponta o caminho e a orientação de sua origem. Neste sentido, a fumaça parece ser um elemento tangível muito importante de comunicação nas terras planas do estuário da laguna dos Patos. O fogo e a fumaça conectam, agenciam e orientam as pessoas na paisagem lagunar. Informam sobre perigos, permitem o controle e aguçam a solidariedade entre os assentamentos distantes, cuja observação direta é impossível. Desta forma, fogo e fumaça compõem uma tecnologia de controle de fluxo, comunicação, socialização entre os grupos construtores de cerritos da laguna dos Patos – uma tecnologia tão importante quanto as próprias embarcações, os arpões, os anzóis, as pontas de projéteis, e que remete à paisagem como um cenário de fluxo.
Este trabalho resulta de uma análise espacial gerada em ambiente SIG, levando-se em consideração os pontos de localização de cerritos registrados no estuário da laguna dos Patos e a rota de mobilidade. A análise espacial foi feita com base na ferramenta viewshed 2, que gera um cálculo de visibilidade acumulada a partir dos pontos de observação e line of sight, que permite calcular a intervisibildade entre os mesmos pontos. A visibilidade acumulada permitiu a geração de análises em um raio de 5 e 20 km, a fim de calcular o controle visual sobre o ambiente estuarino, tanto a partir dos cerritos, quanto a partir de possíveis canoas, permitindo assumir que as águas da laguna seriam o elemento fundamental no agenciamento da vida dos grupos construtores de cerritos da região em estudo.
As populações construtoras de cerritos que habitaram a laguna dos Patos nitidamente construíram seu mundo no ambiente aquático. O mosaico de terras planas composto por banhados, rios e arroios, conectados ao estuário, foi o palco onde, ao longo de aproximadamente 2.000 anos, os cerriteiros pescaram e se locomoveram sistematicamente ao longo de sua história. As margens da laguna, no entanto, devido à sua cobertura vegetal e à topografia plana, apresentam uma visibilidade horizontal bastante limitada. As condições naturais, portanto, se, por um lado, impediriam a intervisibilidade entre as áreas de assentamento, por outro, permitiriam a visibilidade do espelho de água do estuário lagunar. As águas rasas e piscosas dos ‘sacos’ seriam potencialmente visíveis e controláveis, desde a costa. Da mesma forma, assim como os cardumes e demais recursos aquáticos, a mobilidade de pessoas em embarcações no estuário também seria controlável, desde os assentamentos. Se, por um lado, a intervisibilidade entre os sítios é baixa e sugere não ter sido um fator preponderante na estratégia de assentamento dos grupos construtores de cerritos, por outro, a tecnologia de fogo e fumaça poderia ser um elemento de potencialização da visibilidade, permitindo a socialização e a comunicação entre os assentamentos, especialmente em épocas de guerra e caça, como sugerem os dados etnohistóricos de populações indígenas do Pampa.
Esta pesquisa recebeu financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTIC), via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (303266/2018-0). Agradeço aos colegas Gustavo Peretti Wagner e Lucas Antonio da Silva, assim como aos pareceristas anônimos que, com sua leitura crítica, auxiliaram na qualificação deste trabalho.
Autor para correspondência: Rafael Milheira. Universidade Federal de Pelotas. Cel. Alberto Rosa, 154 – Porto Pelotas. Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. CEP 96010-770 (milheirarafael@gmail.com).