ARTIGOS CIENTÍFICOS
Relações de objeto em Canela
Object relations in Canela
Relações de objeto em Canela
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, vol. 16, núm. 1, e20200011, 2021
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi
Recepção: 27 Janeiro 2020
Aprovação: 07 Julho 2020
Resumo: O Canela é a língua falada pelos povos Canela Apa?niekrá e Canela Ramkokamekrá (cerca de três mil indivíduos) que habitam duas terras indígenas (Área Indígena Porquinhos e Área Indígena Kanela, respectivamente), localizadas no estado do Maranhão. Neste artigo, distingo inicialmente os sintagmas posposicionais que são (semanticamente) argumentos e os que são adjuntos em Canela (família Jê, tronco Macro-Jê). A seguir, identifico os argumentos definidos como o paciente (P), o tema (T) e o recipiente (R), e apresento suas respectivas propriedades gramaticais (codificação, comportamento e controle). A conclusão é de que P e T são o objeto direto, enquanto R (de verbos como ‘dar’, ‘contar’ e ‘mostrar’), lexicalmente especificado, é o objeto indireto.
Palavras-chave: Relações gramaticais, Objeto direto, Objeto indireto.
Abstract: Canela is spoken by about 3,000 individuals belonging to the Canela Apãniekrá and Canela Ramkokamekrá peoples, who live in two indigenous lands (Área Indígena Porquinhos e Área Indígena Kanela, respectively) located in the state of Maranhão (Brazil). In this paper, I first distinguish the postpositional phrases that are (semantically) arguments and those that are adjuncts in Canela (Jê family, Macro-Jê stock). Next, I identify the arguments defined as the Patient (P), the Theme (T) and the Recipient (R) and display their respective grammatical properties (coding, behavior and control). The conclusion is that P and T are the direct object, while R (of verbs like ‘give’, ‘tell’ and ‘show’), when lexically specified, is the only indirect object.
Keywords: Grammatical relations, Direct object, Indirect object.
INTRODUÇÃO
O termo ‘relações gramaticais’ tem sido usado para se referir às relações entre uma oração ou um predicado e seus argumentos – como ‘sujeito’, ‘objeto direto’ e ‘objeto indireto’. Essas categorias parecem estar entre os conceitos mais básicos de muitos modelos de gramática e são consideradas, de forma explícita ou implícita, como universais. Além disso, pertencem aos conceitos fundamentais nas descrições da maioria das línguas (Witzlack-Makarevich & Bickel, 2013, p. 124).
Tradicionalmente, os critérios morfossintáticos de codificação, como a marcação de caso, a concordância verbal e a ordem dos constituintes, desempenharam um papel fundamental na identificação das relações gramaticais individuais. No entanto, na década de 1970 – uma vez que ficou claro que, em muitas línguas, tais critérios não identificam as relações gramaticais da mesma forma que nas línguas europeias conhecidas –, o inventário de testes de relação gramatical foi estendido para além dos critérios morfossintáticos de codificação. Nesse sentido, o inventário começou a incluir uma variedade de critérios sintáticos baseados em fenômenos como apagamento de mesmo sintagma nominal, alçamento, passivização, comportamento dos reflexivos etc. (ver Li, 1976; Plank, 1979).
Este artigo apresenta a seguinte organização: a seção “Abordagem para as relações de objeto” inclui as subseções (i) “Argumentos versus adjuntos”, (ii) “Conceitos comparativos s, A, p, T, R” e (iii) “Padrões de alinhamento associados a objetos”. A seção seguinte, “Propriedades do objeto em Canela”, inclui as subseções (i) “Propriedades de codificação associadas aos argumentos p, t e R”, em que são descritas a marcação do caso, a indexação verbal e a ordem de constituintes, e (ii) “Propriedades de comportamento e controle associadas aos argumentos p, t e R”, que descreve as estratégias de relativização e o controle e apagamento na oração subordinada. E, por fim, as “Considerações finais”.
ABORDAGEM PARA AS RELAÇÕES DE OBJETO
ARGUMENTOS VERSUS ADJUNTOS
Witzlack-Makarevich e Bickel (2013) consideram que uma expressão dependente é um argumento de um predicado se seu papel na situação é atribuído por esse predicado; esse não seria o caso dos adjuntos. Desde essa perspectiva, a distinção argumento/adjunto é exclusivamente semântica e independente da forma como são expressos. Embora a intuição básica por trás da distinção argumento/adjunto seja relativamente clara, dificuldades vão surgir assim que se tente distinguir os dois em casos individuais. Em resposta a isso, uma série de testes foi sugerida na literatura para facilitar a decisão.
Um teste comum são as construções com proverbos1, como “fez assim, fez isso ou fez a mesma coisa” (Witzlack-Makarevich & Bickel, 2013, p. 126). Uma oração com um adjunto pode ser parafraseada de tal forma que um adjunto é expresso em uma oração diferente com um proverbo, substituindo o verbo junto com seus argumentos, mas excluindo qualquer adjunto:
Maria trabalhou e fez isso em casa. [em casa = adjunto]
*Maria apontou e fez isso para o lago. [para o lago = argumento]
Na mesma linha, ‘fez o mesmo’ pode ser usado anaforicamente para pelo menos um verbo e seus argumentos, como nos exemplos a seguir (Culicover & Jackendoff, 2005):
Maria leu o livro no trem, enquanto João fez o mesmo no ônibus.
[fez o mesmo = leu o livro; no trem = adjunto]
*Maria pôs o livro no sofá, enquanto João fez o mesmo na mesa.
[fez o mesmo = pôs o livro; no sofá = argumento]
Em Canela, a expressão to=hajỹr2 (fazer=ser.assim) é usada anaforicamente para um verbo e seu(s) argumento(s). Seguindo a abordagem de Witzlack-Makarevich e Bickel (2013), alguns testes com esse proverbo foram usados para descobrir se os sintagmas posposicionais, encontrados em construções com verbos intransitivos, transitivos e ditransitivos, funcionam como argumentos ou adjuntos.
O exemplo (1a) mostra o verbo transitivo curan ‘matar’. Em (1b) a expressão to=hajỹr substitui rop curan (isto é, o verbo e seu argumento), excluindo os adjuntos. O que mostra que os sintagmas pur kãm e kôtà to configuram-se como adjuntos, ao invés de argumentos, é o fato de outros sintagmas (locativo e instrumental, respectivamente) serem expressos na oração com o proverbo (1b):
O mesmo teste foi aplicado a verbos ditransitivos como gõ / õr ‘dar’ (2a-2d), cujo destinatário é semanticamente referenciado.
A expressão to=hajỹr substitui cahãj mã tep jõr (isto é, o verbo e seus argumentos) em (2b) e (2c). Em (2c), o proverbo exclui ainda os adjuntos.
Em (2d), a impossibilidade de substituir cahãj mã na oração com o proverbo reforça a análise de que este sintagma se trata de um argumento do verbo:
Adicionalmente, os mesmos testes foram aplicados a verbos intransitivos como mõ ‘ir/vir’ (3a-3c) e tẽ ( ‘ir/vir’) com um sintagma posposicional. Tal sintagma ocorre abaixo marcado pelas posposições pĩn (3a), wỳr (3b) e kãm (3c), respectivamente INESSIVO, DIRECIONAL e LOCATIVO.
Em (3a-3b), a expressão to=hajỹr é usada anaforicamente para mõ (isto é, apenas o verbo). A agramaticalidade desses exemplos mostra que pur pĩn e pur wỳr são semanticamente argumentos, não adjuntos. Finalmente, a gramaticalidade do exemplo (3c) mostra que pur kãm é um adjunto, não um argumento4.
Pelo padrão simétrico da agramaticalidade em (2c) e (3a-3b), consideramos que cahãj mã (2b e 2d), pur pĩn (3a) e pur wỳr (3b) são argumentos, semanticamente requerido pelo verbo em (2b) e semanticamente requeridos pelas construções – no sentido de Goldberg (1995, 2006) – em (3a-3b), mesmo que sejam formalmente marcados como oblíquos. Em contraste, pelo padrão simétrico de gramaticalidade em (1b) e (3c), consideramos que kôtà to (1a-1b) e pur kãm (3c) são adjuntos.
As próximas seções identificam de maneira sucinta os “Conceitos comparativos s, A, p, T, R” e os “Padrões de alinhamento associados a objetos”.
CONCEITOS COMPARATIVOS S, A, P, T, R
Para identificar os conceitos comparativos associados aos argumentos das orações monotransitivas e ditransitivas em Canela, usarei a proposta apresentada em Dryer (2007)5. Segundo essa abordagem, os rótulos S, A, P, T e R são identificados primeiro pela valência numérica: o único argumento de um verbo intransitivo (S)6; os dois argumentos de predicados de dois argumentos (A e P); e os três argumentos de predicados de três argumentos (A, T, R).
Em relação aos predicados de dois e três argumentos, as propriedades de vinculação semântica definem a atribuição dos papéis. Por exemplo, A é o argumento mais parecido com o agente e P é o argumento mais parecido com o paciente em uma oração transitiva. O rótulo R é usado para o argumento recipiente e T para o argumento tema (algo que sofre uma mudança no local ou ao qual um local é atribuído) em uma oração ditransitiva.
Este sistema se encaixa com o propósito deste artigo (que analisa as propriedades do objeto em Canela), uma vez que permite distinguir entre o argumento P de um predicado de dois argumentos e os argumentos T e R de um predicado de três argumentos:
PADRÕES DE ALINHAMENTO ASSOCIADOS A OBJETOS
Dryer (2007), Malchukov (2013) e Haspelmath (2015) identificam três tipos principais de alinhamento associados a objetos:
o alinhamento indireto (onde R é tratado diferentemente de P e de T: T = P ≠ R);
o alinhamento secundário (onde T é tratado diferentemente de P e de R: T ≠ P = R); e
alinhamento neutro (frequentemente chamado de construção de duplo objeto, em que P, R e T são codificados da mesma forma).
Esses três tratamentos possíveis relacionados a objetos estão representados no Quadro 1 (onde Su significa ‘sujeito’, Ob significa ‘objeto’, OD significa ‘objeto direto’, OI significa ‘objeto indireto’, OP significa ‘objeto primário’ e OS significa ‘objeto secundário’):
As propriedades de codificação, controle e comportamento dos argumentos P, T e R em Canela são apresentadas na seção a seguir. O objetivo é mostrar, a partir da tipologia de alinhamento do objeto ora mencionada, qual o padrão de alinhamento associado ao objeto em Canela.
PROPRIEDADES DO OBJETO EM CANELA
PROPRIEDADES DE CODIFICAÇÃO ASSOCIADAS AOS ARGUMENTOS P, T E R
As construções oracionais principais em Canela diferenciam três tipos de alinhamento em relação ao tratamento dado aos argumentos centrais A, S e P (Castro Alves, 2004): a intransitividade cindida (A=SA; P=SP), que se configura como o padrão geral; o ergativo(-absolutivo) (S=P≠A), condicionado pela expressão do passado recente; e o nominativo-absolutivo (P≠A; S=A & S=P), condicionado pela presença de auxiliares.
A intransitividade cindida tem A=SA como argumentos externos, não marcados, expressos por nomes livres ou pronomes independentes (cf. Quadro 2 e a seção “Indexação verbal”). P=SP são expressos ou por clíticos no verbo ou por nomes livres dentro do sintagma verbal. Nessas construções, o verbo ocorre em sua forma finita.
O sistema ergativo tem A (expresso por nominais livres ou clíticos pronominais) marcado explicitamente pela posposição ergativa te. S=P são codificados ou por clíticos no verbo ou por nomes livres dentro do sintagma verbal. Nesse tipo de alinhamento, o verbo está na sua forma não finita.
No nominativo-absolutivo, S é alinhado tanto com A como com P. Isto é, S é expresso paralelamente a A (externo, não marcado; o nominativo) e, simultaneamente, paralelo a P (interno, como um clítico no verbo; o absolutivo). Em construções que apresentam esse tipo de alinhamento, o verbo ocorre em sua forma não finita.
Os três tipos de alinhamento descritos brevemente estão representados no Quadro 2.
No entanto, é preciso dizer que, muito embora as propriedades de codificação dos argumentos A e S variem dependendo do sistema de alinhamento (Ergativo-Absolutivo condicionado pelo passado recente; Nominativo-Absolutivo condicionado pela presença de auxiliares), este não é o caso para P, T e R, que apresentam sempre o mesmo padrão de alinhamento.
Os exemplos (4a-4b) empregam a intransitividade cindida (padrão geral). Já (4c-4d), por expressarem tempo passado recente, empregam o sistema Ergativo(-Absolutivo). Por último, (4e-4f), pela ocorrência de auxiliares pós-verbais, empregam o Nominativo-Absolutivo:
O nominal cahãj, que codifica o argumento T, é expresso da mesma forma em (4a), (4c) e (4e), independente do padrão de tratamento dado ao argumento central A. Já o pronominal de 3ª pessoa h=, que também codifica o argumento T, é expresso exatamente da mesma forma em (4b), (4d) e (4f). O mesmo pode ser observado para a expressão do argumento R cu=mã em (4a), (4c) e (4e), assim como a expressão do argumento R cahãj mã em (4b), (4d) e (4f).
Por esse motivo, a relação sistema de alinhamento (Intransitividade Cindida, Ergativo-(Absolutivo), Nominativo-Absolutivo) e o padrão de comportamento dos objetos não precisarão ser estabelecidos para P, T e R, uma vez que não há variação.
INDEXAÇÃO VERBAL
O Quadro 3 apresenta:
. . . o conjunto das formas pronominais em Canela: uma série de pronomes independentes e uma de clíticos pronominais. A série de pronomes independentes codifica o argumento nominativo de uma oração, enquanto a série de clíticos pronominais codifica o absolutivo, o objeto da posposição e o possuidor (diretamente em nomes inalienáveis ou por meio da posposição genitiva em nomes alienáveis)
(Castro Alves, 2018, p. 382).Com base nos índices argumentais7 expressos no verbo, o Canela tem P paralelo a T: um clítico pessoal (absolutivo) identifica P (5a) ou T (5b).
De maneira oposta, R nunca é expresso por clíticos pessoais no verbo (6a-6b):
Uma vez que P e T podem ser indexados no verbo por meio do clítico absolutivo (enquanto R não), conclui-se que R é isolado em contraste com P + T.
O Quadro 4 sistematiza as propriedades de indexação verbal dos argumentos P, T e R no Canela.
MARCAÇÃO DE CASO
P e T podem ser expressos por nominais livres não marcados dentro do sintagma verbal (7a-7b), enquanto R é marcado pela posposição dativa mã – (6b) e (7b):
Assim, em termos da marcação de caso, R é isolado (marcação dativa) em contraste com P + T (não marcados).
O Quadro 5 sistematiza as propriedades da marcação de caso dos argumentos P, T e R no Canela.
ORDEM DE CONSTITUINTES
P e T ocorrem sempre imediatamente antes do verbo (ordem rígida):
Quando topicalizados ou apagados por correferência, P e T exibem indexação verbal (9a-9b):
R ocorre entre A e T, e parece formar um constituinte com certos verbos (mas essa propriedade requer investigação adicional9) – cf. (8b), (9b) e (10):
Quando ocorre topicalizado no início da oração (sob motivações pragmáticas), R é retomado pela posposição mã em sua forma flexionada (terceira pessoa correferencial), que funciona como um pronome resumptivo (11a).
Em (11b), uma resposta a ‘para quem o homem deu carne?’, o contorno entoacional é simples (a ausência da vírgula depois de ‘mulher’ na tradução livre indica isso). Diferentemente, em (11a), o sintagma dativo topicalizado apresenta um contorno entoacional separado (a vírgula depois de ‘mulher’ e ‘velha’ na tradução livre indica uma pausa entre [pyjê mã] e [humre te], e entre [mehvej mã] e [humre te]).
Em relação à ordem de constituintes, P, T e R apresentam comportamento assimétrico: R é isolado (ocorre entre A e T) em contraste com P + T (ocorrem imediatamente antes do verbo).
O Quadro 6 sistematiza as propriedades da ordem dos argumentos P, T e R no Canela.
O Quadro 7 sumariza as propriedades de codificação exibidas pelos argumentos P, T e R.
Em todas as três propriedades de codificação, R é isolado (objeto indireto) em contraste com P + T (objeto direto).
As propriedades de comportamento e controle de P, T e R são apresentadas na seção a seguir.
PROPRIEDADES DE COMPORTAMENTO E CONTROLE ASSOCIADAS AOS ARGUMENTOS P, T E R
Diferentemente das propriedades de comportamento e controle do sujeito em Canela (Castro Alves, 2018), as propriedades de comportamento e controle do objeto são menos robustas na língua. No entanto, examinando as relações de objeto a partir dos processos de mudança de relação sintática (por exemplo, oração ativa/passiva, alçamento de objeto, mudança aplicativa/dativa etc.), é possível definir tais relações conforme (i) as estratégias de relativização e (ii) o controle e o apagamento em orações subordinadas. As seções a seguir descrevem esses dois processos de mudança de relação sintática em Canela.
ESTRATÉGIAS DE RELATIVIZAÇÃO
Esta seção foca na relativização de P, T e R em Canela como propriedade de comportamento e controle. Para fins de contraste, também farei referência à relativização de S, A e oblíquo.
O Canela tem orações relativas encaixadas e justapostas à esquerda e à direita (essas duas últimas definidas nos termos da tipologia de orações relativas de Andrews, 2007). Segundo este autor, orações relativas justapostas (adjoined relative clauses) ocorrem fora da oração matriz. Se são justapostas à direita, significa que a oração relativa está restrita a aparecer no final da oração (depois da matriz). Se são justapostas à esquerda, significa que a oração relativa está restrita a aparecer no início da oração (antes da matriz).
É possível que as relativas justapostas (ambas, à esquerda e à direita) sejam mais produtivas em Canela do que as encaixadas10. Além disso, são dois os subtipos de relativas justapostas à esquerda, ambas capazes de relativizar todas as posições (S, A, P, T, R e oblíquo). Uma vez que as relativas justapostas à direita também são capazes de relativizar todas as posições, essa é a estratégia escolhida para ser apresentada a seguir.
Nas orações relativas justapostas à direita do Canela, o sintagma nominal na oração matriz (SNMAT) pode vir seguido, mas não de forma categórica, do pronome demonstrativo ita no caso de possuir o traço [+humano]. No caso do sintagma nominal na oração relativa (SNREL), sua codificação vai depender da função relativizada (S, A, P, T, R ou oblíquo): por meio de indexação verbal em (12a) e (12c-12d), por meio de pronome resumptivo em (12b):
A relativização de R e de oblíquo apresentam uma variação: podem codificar o sintagma nominal na oração relativa (SNREL) ora através das posposições mã (12e) e ri (12g) na forma flexionada (terceira pessoa correferencial), que funcionam como pronomes resumptivos, ora através das posposições mã (12f) e ri (12h), que, embora também na forma flexionada (terceira pessoa correferencial), agora são seguidas pelo marcador de ênfase (12f) ou pelo complementizador (12h), que funcionam como pronomes relativos.
O Quadro 8 sistematiza as propriedades das orações relativas a partir das diferentes posições relativizadas. Em negrito, as propriedades de comportamento de P, T e R. O símbolo ~ indica variação na estratégia utilizada.
De um lado, P e T são expressos na oração matriz por meio de um sintagma nominal e retomados na oração relativa por meio do clítico absolutivo; nunca através de um pronome resumptivo ou de um pronome relativo. De maneira assimétrica, a relativização de R inclui a codificação do sintagma nominal na oração relativa (SNREL) através da posposição mã em sua forma flexionada (terceira pessoa correferencial), que funciona como pronome resumptivo. Alternativamente, a oração relativa de R pode ser também introduzida pelo sintagma dativo seguido do morfema mã enf, que funciona como um pronome relativo. Nesse sentido, e novamente, conclui-se que R é isolado (objeto indireto) em contraste com P + T (objeto direto).
CONTROLE E APAGAMENTO NA ORAÇÃO SUBORDINADA
Os exemplos em (13a-13b) ilustram atos de percepção e cognição codificados por meio do verbo principal (Castro Alves, 2011), enquanto (13c) exibe um verbo ditransitivo. O argumento A é apagado na oração subordinada porque é correferencial ao argumento P (13a-13b) e ao argumento T (13c) da oração matriz:
A posposição locativa nã em (13a-13c) é usada como um morfema subordinador. Quando a oração subordinada é marcada por essa posposição, P da oração principal controla o apagamento de A na oração subordinada12.
Quando o verbo da oração principal é um verbo ditransitivo (14a-14b), o argumento R controla o apagamento do argumento A na oração subordinada. Neste caso, a posposição utilizada é kãm:
Esses dados mostram que P, T e R podem controlar o apagamento de A na subordinada. No entanto, quando P e T controlam o apagamento de A, a oração subordinada é encabeçada pela posposição nã (13); diferentemente, quando R controla o apagamento de A, a oração subordinada é encabeçada pela posposição kãm (14). Além disso, P e T, mas não para R, controlam o argumento P na oração de propósito (15):
De maneira inversa, R, mas não P e T, controla o argumento A não expresso na oração de propósito:
O Quadro 9 sistematiza as posições (P, T, R) que controlam, na subordinada, o apagamento sob correferência.
Essa propriedade de comportamento e controle (o apagamento na subordinada) corrobora, mais uma vez, o alinhamento associado aos objetos identificado a partir das propriedades de codificação de P, T e R: R é isolado (objeto indireto) em contraste com P + T (objeto direto).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A seção “Propriedades de codificação associadas aos argumentos P, T e R” mostrou que, em relação à indexação verbal, P e T podem ser indexados no verbo por meio do clítico absolutivo, enquanto R não. Em termos da marcação de caso, também foi mostrado que R recebe marcação dativa, em contraste com P e T (não marcados). Sobre a ordem de constituintes, R ocorre entre A e T, diferentemente de P e T, que ocorrem imediatamente antes do verbo.
A seção “Propriedades de comportamento e controle associadas aos argumentos P, T e R” também mostrou que R é isolado em contraste com P e T. Assim, na relativização, P e T são expressos na oração matriz por meio de um sintagma nominal e retomados na oração relativa por meio do clítico absolutivo. Diferentemente, a relativização de R inclui a codificação do sintagma nominal na oração relativa através da posposição mã em sua forma flexionada, que funciona como pronome resumptivo. Já em relação ao controle e apagamento na oração subordinada, os dados mostram que P, T e R podem controlar o apagamento de A na subordinada. No entanto, quando P e T controlam o apagamento de A, a oração subordinada é encabeçada pela posposição nã. De outro modo, quando R controla o apagamento de A, a oração subordinada é encabeçada pela posposição kãm. Além disso, P e T controlam o argumento P na oração de propósito. De maneira inversa, R controla o argumento A não expresso na oração de propósito.
Conclui-se, portanto, que, no que se refere às propriedades de codificação e de comportamento e controle, P, T e R apresentam comportamento assimétrico: R é isolado, o objeto indireto, em contraste com P + T, o objeto direto.
ABREVIATURAS
AGRADECIMENTOS
Este artigo foi desenvolvido em grande parte durante meu ano sabático (2017/2018) no Departamento de Linguística da Universidade do Oregon. Sou grata a Luciana Dourado e a Spike Gildea que empreenderam o desafio de explorar inicialmente as relações de objeto em uma língua Jê, o Panará. O resultado dessa investigação (Dourado & Gildea, 2011) foi fundamental para me inspirar (me mostrando os caminhos) para o estudo do tema em Canela.
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
Autor notes
Autora para correspondência: Flávia de Castro Alves. Universidade de Brasília. Sobreloja do ICC Sul- ICC Sul, B1-71/64. Brasília, DF, Brasil. CEP 70910-900 (flaviacastro@unb.br).