Resumo: A presente proposta tem por objetivo refletir sobre o modo de vida pescador no extremo sul do Brasil. Durante décadas, a socioantropologia da pesca cimentou o caiçara do litoral sudeste e o ribeirinho amazônico como as identidades do pescador brasileiro. Os diferentes ambientes, territórios e materialidades apontam para um modo de vida pescador distinto para a costa sul-brasileira – entre o Cabo de Santa Marta, Santa Catarina, e o Chuí, Rio Grande do Sul. Para tanto, será apresentada uma caracterização ambiental acompanhada de uma revisão da produção da socioantropologia pesqueira e, por fim, os trabalhos etnográficos fornecerão os dados para a interpretação do modo de vida pescador no extremo sul do Brasil.
Palavras-chave:PescaPesca,PescadoresPescadores,AmbienteAmbiente,TerritórioTerritório.
Abstract: This proposal aims to reflect on the fisherman’s way of life in the extreme southeastern Brazil. For decades the socio-anthropology of fishing has cemented the ‘caiçara’ of the southeastern coast and the Amazonian riverine as the identities of the Brazilian fisherman. The different environments, territories and materialities point to a distinct fisherman’s way of life for the South Brazilian coast - between Cabo de Santa Marta, Santa Catarina, and Chuí, Rio Grande do Sul. To this end, an environmental characterization will be presented accompanied by a review of the production of fishery socioanthropology and, finally, the ethnographic works will provide the data for the interpretation of the fisherman’s way of life in the extreme south of Brazil.
Keywords: Fishing, Fishermen, Envoronment, Territory.
ARTIGOS CIENTÍFICOS
“Outros pesqueiros”: apontamentos sobre a pesca, os pescadores e os ambientes do Sul do Brasil
Outros pesqueiros”: notes on fishing, fishermen and the environments of southern Brazil
Recepção: 29 Fevereiro 2020
Aprovação: 25 Setembro 2020
Os setores sudeste e sul do litoral brasileiro possuem características geomorfológicas claramente distintas, ora suportando estuários, vales fluviais em delta tectonicamente controlados, ora planícies costeiras sedimentares extremamente amplas.
O setor sudeste estende-se do Cabo Frio, no Rio de Janeiro, até o Cabo de Santa Marta, no estado de Santa Catarina. Trata-se de um compartimento geomorfológico cuja principal característica é a presença da Serra do Mar, composta pelo embasamento cristalino granito-gnáissico que atinge altitudes superiores a 1.000 m. Suas escarpas estendem-se até o mar, constituindo promontórios rochosos alternados entre costões erosivos e reentrâncias tectonicamente controladas. Neste setor, inicia-se a ocorrência de planícies costeiras independentes do aporte fluvial, embora aquelas também se façam presentes. Os sistemas laguna-barreira múltiplos e/ou simples e as planícies de cordões litorâneos regressivos são ocupados por manguezais. A região de Laguna, no estado de Santa Catarina, marca o limite sul da área de ocorrência de manguezais na costa brasileira (Villwock, 1994; Ab’Sáber, 2001; Dominguez, 2009).
O setor sul da costa brasileira estende-se do Cabo de Santa Marta, em Santa Catarina, até o arroio Chuí, no estado do Rio Grande do Sul, limite extremo sul do território nacional. O setor caracteriza-se por uma ampla planície costeira, com cerca de 700 km de comprimento e até 120 km de largura, onde um sistema múltiplo e complexo de barreiras arenosas aprisiona um gigantesco sistema lagunar (lagunas dos Patos e Mirim) e uma série de outros corpos de água isolados ou interligados com o mar por intermédio de canais estreitos e rasos. Neste setor, marismas1 (em substituição aos mangues) ocorrem nas margens das porções estuarinas dos corpos lagunares e grandes campos de dunas ocorrem sobre a planície arenosa. Do Cabo de Santa Marta até Tramandaí, no Rio Grande do Sul, a planície arenosa é mais estreita e tem seu limite marcado pela Serra Geral, que chega a atingir o oceano na região de Torres, limite entre os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (Villwock, 1994; Ab’Sáber, 2001; Dominguez, 2009). O litoral norte do Rio Grande do Sul é ‘ornado’ por um conjunto de lagoas que se estendem por 100 km desde Torres até Tramandaí, espremidas entre os contrafortes basálticos e o mar. São interligadas por estreitos canais que drenam os sistemas fluviais formadores em direção ao mar, justificando o nome atribuído pelos pescadores da região: ‘rosário de lagoas’ do litoral norte. A partir de Tramandaí até o arroio Chuí, os contrafortes rochosos se afastam do litoral e a planície se alarga significativamente, tendo seu limite interno no escudo sul-rio-grandense e uruguaio até 120 km do mar.
A proposta deste trabalho parte da ideia de que claras diferenças nas paisagens geomorfológicas se traduzem em paisagens e territorialidades marcadamente distintas. Wagner e Silva (2014) exploraram a pesca como elemento de coesão social entre as populações pescadoras indígenas que ocuparam o litoral brasileiro na longa duração do tempo histórico, desde o Holoceno médio aos dias atuais. A base bibliográfica trabalhada partia teoricamente da socioantropologia da pesca construída em Mourão (2003 [1971]), Diegues (1973, 1997, 1998, 1999, 2000, 2004), Lima (1978), Duarte (1978), Maldonado (1994, 2000) e Begossi (2004), escopo segundo o qual a pesca era dicotomizada entre a pequena pesca artesanal, ou caiçara, e a pesca industrial motorizada. Parece-nos, agora, que a pesca caiçara como definida na socioantropologia da pesca dos anos 1980, 1990 e 2000 restringe-se aos litorais dos estados situados entre Espírito Santo e Santa Catarina, onde a transição entre o mundo das águas salobras e salgadas é controlada pela ‘boca da barra’, transposta estacionalmente por aqueles pescadores.
Na arqueologia, a primeira tentativa de relacionar os dados arqueológicos à socioantropologia da pesca deve-se a Figuti (1998), para quem os sambaquis do litoral de São Paulo compuseram a base de dados analisada. Trabalhos de fôlego reapareceram apenas duas décadas mais tarde, para os sítios da mesma região, onde as sociedades sambaquieiras foram já propostas enquanto sociedades marítimas e as fronteiras culturais na costa sudeste marcaram a tônica da proposta (Calippo, 2010, 2011).
Há quase meio século que Beck (1979) sinaliza a necessidade de uma definição localizada do que se entende por pesca artesanal ou pescador artesanal. Na realidade, parece já evidente que as estratégias, os hábitos, as escolhas, as práticas e os saberes variam localmente em uma costa de proporções continentais, como a brasileira. Em verdade, desde os anos finais do século XIX que a pesca artesanal se tornou foco de estudos específicos, embora esporádicos. Veríssimo (1970 [1895]), Lopes ((1938)), Willems (2003 [1952]) e Câmara-Cascudo (2002 [1954]) retrataram, de forma apaixonada, um pescador idílico, senhor do mar e patrono de uma sabedoria carregada de empirismo e eficiência.
Ainda na primeira metade do século XX, Mussolini (1953) sintetiza ‘as pescas’ do litoral brasileiro, empreendendo um resgate histórico dos elementos sociais que compõem as práticas, as técnicas e os saberes disseminados nas diferentes regiões marítimas do país. A partir de meados dos anos 1960 e especialmente na década de 1970, as pesquisas pulverizaram-se, compreendendo quase todo o litoral brasileiro (Kottak, 1966, 1983; Forman, 1970; Mourão, 2003 [1971]; Diegues, 1973; Lima, 1978; Duarte, 1978; Beck, 1979).A partir de então, o pescador passa a ser retratado como um camponês do mar, um sobrevivente cujo modo de vida estava pressionado entre o calendário agrícola de pequeno produtor familiar e a crescente mecanização da pesca industrial mercantil. As décadas que se seguiram marcam o surgimento da socioantropologia da pesca e consolidam um campo de pesquisa onde as abordagens e os temas de pesquisa multiplicam-se ao longo de todo o país (Diegues, 1973, 1997, 1998, 1999, 2000, 2004; Furtado, 1897; Maldonado, 1994, 2000; Begossi, 2004).
Silvano (2004, p. 190) é quem destaca que, “apesar dessa base de dados, a pesca artesanal ainda é pouco conhecida no Brasil”. É notória, ainda, a concentração de trabalhos que descrevem em detalhes os modos de vida, os saberes, as lutas, as disputas, as técnicas e as identidades daquilo que amplamente se tem descrito como pescador tradicional/artesanal caiçara e pescador tradicional/artesanal amazônico (ou ribeirinho).
No extremo sul do Brasil, entre o Cabo de Santa Marta e o Chuí, as realidades encontradas possuem contornos bastante localizados. Parece-nos que, desde Santa Catarina, há um paulatino distanciamento conceitual do pescador artesanal caiçara, para além do caráter geográfico. Já na porção norte da ilha de Santa Catarina (município de Florianópolis), Beck (1979) identifica uma relação intrínseca entre o pescador marítimo costeiro e o sistema produtivo agrícola. Lá, a temporada de pesca da tainha reúne tripulações temporárias e as relações sociais possuem a tônica da efemeridade. Historicamente, a pesca na ilha de Santa Catarina possui esta característica, seja ela advinda das levas de povoadores vicentistas, no século XVII, seja advinda da posterior chegada dos açorianos, no XVIII. A partir da década final do século XIX, alemães e italianos iniciaram seus assentamentos na ilha e os calendários de pesca e de agricultura seguiram ditando o ritmo da subsistência familiar através da ‘pequena produção mercantil’ (cf. Diegues, 2004). Foi apenas com a crescente pressão imobiliária dos anos 1950 e a disputa pelos mares costeiros, em razão do turismo de lazer, que o pescador se viu alijado de suas terras de plantio e territórios tradicionais de pesca, impulsionando-se inevitavelmente para a pesca industrializada no ‘mar de fora’. Trata-se de um processo histórico local e sui generis.
No Sul do Brasil, Seixas e Troutt (2004) e Berkes e Seixas (2005) realizaram estudos sobre a pesca na lagoa de Ibiraquera, no município de Ibiraquera, no estado de Santa Catarina. Em ambas as pesquisas, foram descritos os aspectos socioculturais e ecológicos das comunidades de pescadores lagunares da região. Através das ideias de gestão compartilhada do território, e da resiliência dos sistemas pesqueiros (Berkes, 2003), centradas na leitura ecológica e holística dos pescadores, os trabalhos evidenciaram a importância do conhecimento ecológico local para a gestão das atividades pesqueiras na lagoa e em suas adjacências.
Ainda no estado de Santa Catarina, mais especificamente na divisa com o Rio Grande do Sul, Cardoso e Haimovici (2014) desenvolveram um estudo sobre a pesca marítima no município de Passo de Torres. Seguindo uma abordagem da etnobiologia, os autores descrevem os aspectos sociais e ecológicos de algumas comunidades da região. Com a aplicação de entrevistas e uma breve etnografia embarcada, os pesquisadores apontam para a heterogeneidade das práticas locais, especialmente quando observados os lugares de pesca (por exemplo, se é uma atividade no rio ou no mar). Também fica evidenciada a preocupação com a gestão do recurso pesqueiro, já que os autores apontam que os pescadores sempre relatam a diminuição do pescado na região.
No litoral norte do Rio Grande do Sul, a pesca se desenvolve no âmbito de uma lógica econômica local, onde a produção do pescado é realizada dentro dos núcleos familiares, bem como a comercialização é feita nas próprias residências e em estruturas anexas (Silva, 2012). Nos ambientes límnicos dos espelhos d’água e rios que compõem o ‘rosário de lagoas’ do litoral norte, as pequenas embarcações, não maiores do que seis metros, sejam com motorização ou varejões2, marcam a paisagem local.
Nestes ambientes de sociabilidade, os pescadores se apropriam dos espaços, constroem seu território e concretizam seus conhecimentos nas vivências com objetos, seres e lugares. O calendário da pesca no litoral norte do Rio Grande do Sul é ditado pelo quadrante de origem do vento, que muda de estação para estação, condicionando uma periódica salinidade (estacional), modificando completamente o hábito das espécies pescadas e, com elas, os pesqueiros (Wagner et al., 2020). A orientação do vento muda também a condição de navegação na superfície das lagoas, obrigando os pescadores a modificarem os tipos de embarcações, entre o ‘canoão’ de madeira empurrado de varejão nos rasos e banhados, cujo fundo em ‘v’ atua como uma quilha longitudinal, dando estabilidade e mantendo direção em períodos (ou mesmo dias) de vento. Essa realidade fica muito bem expressa na frase “Com vento a lagoa vira mar . . .” (Silva, 2015, p. 537). Nos períodos (ou dias) de calmaria, quando a lagoa fica espelhada, os barcos de alumínio com fundo chato, mais leves, são utilizados para deslocamentos mais longos e pesca em áreas mais profundas. A motorização destas embarcações auxilia o arrasto das redes mais longas que, naturalmente, são mais pesadas (Silva, 2018; Wagner & Silva, 2020).
Na desebocadura da laguna de Tramandaí, uma pesca muito particular tem antecedentes históricos e indica a continuidade temporal destas práticas culturais. Roquette-Pinto (1962 [1906]) descreve a ‘indústria da pesca do bagre’ na vila litorânea de Tramandaí da primeira década do século XX. Tratava-se basicamente de uma pesca intensiva destinada à salga e à ‘exportação’ via Porto Alegre com destino ao Rio de Janeiro, sendo, por vezes, vendido como bacalhau importado. A pesca era realizada através da ‘emenda’, uma companhia de quinze pescadores, distribuídos em quatro canoões de madeira que abrem as redes de cerco para as quais o cardume é enxotado pelo ruído do bater dos remos na superfície da água. Toda a pesca se dá no interior da laguna e do estuário, não se constituindo como uma pesca marítima.
Na porção central do litoral gaúcho, há uma compleição muito local de um modo de vida pescador. Na lagoa do Peixe, hoje um parque nacional protegido, o calendário marítimo é quem rege as atividades pesqueiras sazonais. Com ligação constante com o oceano, a lagoa do Peixe (uma pequena laguna, na verdade), situada entre a península da Laguna dos Patos e o mar, é ambiente propício para a reprodução do camarão que adentra a laguna salobra no verão, aproveitando a estreita lâmina d’água que garante a temperatura adequada para reprodução. Neste período, os pescadores concentram as atividades pesqueiras na faina de captura dos crustáceos, cuja rentabilidade é vantajosa. Entretanto, trata-se de uma oportunidade episódica. A pesca, na realidade, caracteriza-se pela pesca de praia, com longas redes de espera dispersas perpendicularmente à linha de praia onde a tainha, o papaterra e, principalmente, a corvina são os alvos. Raramente, a miraguaia cai nestas quase quilométricas redes de arrasto e faz lembrar o período de apogeu desta pesca, que vem enfraquecendo há décadas. As redes são puxadas com esforços coletivos, ou por tração motorizada, mas a sociabilidade e o compadrio são ainda elementos presentes na lagoa do Peixe. Há, ainda, uma pesca de espinhel ou de linha de espera no interior da lagoa do Peixe, espaço este que é alvo de grande disputa e que é explorado o ano todo (Adomilli, 2002).
Mais ao sul, no interior do canal da barra da Laguna dos Patos, localiza-se o município de São José do Norte. A pesca constitui historicamente a base econômica da região. As embarcações são basicamente de madeira, sendo adaptadas à pesca interior nas águas salobras do canal e do estuário, ou mesmo nas águas doces da laguna mais interna. Aqui, a pesca de contornos industriais iniciou-se apenas na década de 1980 e mesmo os pescadores que praticam a pesca no ‘mar de fora’ possuem um calendário atrelado à velha e tradicional pesca interior, a qual se dá nos meses de verão para aproveitar a safra do camarão. A artepesca3 utilizada no estuário é a rede de espera, esticada com varas de taquara, a exemplo desta pesca na região de Laguna, em Santa Catarina (Adomilli, 2002). A chamada ‘costa doce’ dos municípios de Pelotas, São José do Norte e Rio Grande é intensamente explorada para esta finalidade, com as varas funcionando como marcadores fixos de uma paisagem cultural de grande dinamicidade, conhecida localmente como paliteiro.
O grande sistema lagunar Patos-Mirim abriga uma quantidade significativa e diferenciada de ambientes e, consequentemente, de pesqueiros. A exemplo do ‘rosário de lagoas’ do litoral norte, a pesca no interior da lagoa Mirim é marcada por um pescador sem referências com o mar. A pesca na Mirim (cf. Pieve et al., 2012) é marcada por uma navegação de tecnologia simples, na qual os botes motorizados ou caícos a remo são equipados com redes de espera e espinhéis para a pesca da traíra, do jundiá pintado e do peixe-rei. Ainda nos anos 1960 e 1970, a salga fazia parte da cadeia produtiva. O compadrio não é a regra, mas sim a pesca nos grupos de parentesco e, principalmente, nucleada na família. Outra similaridade entre a pesca na Mirim e no litoral norte do estado é a reminiscência, até poucas décadas atrás, das tradicionais canoas à vela de algodão e artepescas de linha urso, substituídas apenas nos anos 1960 pelo náilon e por motores de popa. Roquette-Pinto (1962 [1906]) menciona a mesma navegação em Tramandaí já nos anos iniciais do século XX.
Durante décadas, a produção socioantropológica entendeu a existência de um modo de vida pescador regido pelos aspectos produtivos, observando questões sobre a divisão do trabalho, a sazonalidade, centrada na dualidade da pesca e da agricultura, e a dualidade entre pesca tradicional e mecanizada e suas características e impactos na organização das comunidades (Diegues, 1973, 1997, 1998, 1999, 2000, 2004; Furtado, 1897; Maldonado, 1994, 2000; Begossi, 2004). Posteriormente, os aspectos simbólicos passaram a ser um tema recorrente na caracterização do modo de vida pescador. Temas como a apropriação do espaço marinho, a marcação e a utilização dos pesqueiros, a importância do conhecimento e a figura dos mestres (Maldonado, 1994; Da Silva, 2007) foram abordados no sentido de estruturar, conjuntamente com os aspectos produtivos, uma ideia generalizada do pescador e de seu modo de vida.
Entretanto, como já referido, ao desconsiderar a composição do ambiente no qual os pescadores habitam, essa figura generalizada constituiu-se, em sua maioria, sobre a particularidade dos caiçaras do Sudeste brasileiro, desconsiderando o caráter local de cada comunidade e a relação dialógica entre pessoas e lugares. Ingold (2000) afirma que o ambiente é sempre um termo relativo, pois não há seres (humanos e não humanos) e materiais sem ambiente e, portanto, também não há ambiente sem seres e materiais. Para ele, o lugar é o mundo que existe e assume um significado em relação a cada ser e, sendo assim, ele se desenvolve com e ao longo de cada ser. O ambiente é um mundo que se desdobra de modo contínuo para seus habitantes; descrever ele é contar histórias que fluem, se misturam e se articulam a todo momento (Ingold, 2013, 2015). A partir disso, pode-se afirmar que, para compreender cada comunidade pescadora e seu respectivo modo de vida, é preciso observar atentamente o ambiente no qual habitam as comunidades, que, neste caso, é conhecido como território.
Como sugere Adomilli (2002), apoiado em Duarte (1978), a pesca se caracteriza como um elemento que ‘preside’ a identidade social do grupo, pois exprime mais do que uma condição de existência/subsistência, mas um modo de vida que engloba as demais esferas da vida social. A pesca é elemento de coesão social e é pertença.
É importante destacar que a prática da pesca artesanal envolve uma ação singular para com o meio ambiente em termos ecológicos e simbólicos. Neste sentido, observa-se que a apropriação e representação do espaço realizada pelo grupo constitui-se em um aspecto central em sua organização social, visto, aqui, como um referencial valorativo que implica a noção de pertencimento ao lugar onde vivem e trabalham, baseado na relação com o meio natural e as condições de exploração do mesmo
(Adomilli, 2002, p. 6).A socioantropologia da pesca brasileira apresenta definições que contemplam parcialmente essa noção de território, tratando-o como um lugar de reprodução social e de constituição de identidades (Duarte, 1978; Maldonado, 1994; Begossi, 2004; Diegues, 2004; Mourão, 2003 [1971]). Seguindo Ingold (2000), cabe agregar a esta definição a constituição relacional que se estabelece entre o território, os seres e os materiais. O território se constitui no lugar onde seres (pescadores e animais) habitam e conduzem suas vidas através dos materiais e, ao mesmo tempo, as pessoas e os seres constituem os lugares (territórios), por meio das relações com os materiais. Resumindo, essa relação dialógica conduz à seguinte afirmação: território e pescadores se constituem mutuamente e, portanto, para compreender a pesca, é preciso observar ambientes e pescadores em escalas regionais e locais, de modo a estabelecer uma proximidade maior entre o lugar e as pessoas.
A constituição costeira distinta, descrita no início do texto, e as implicações sobre a pesca tornam-se mais evidentes quando se observa a sazonalidade e suas implicações para os pescadores da costa sul-brasileira. Adomilli (2002, 2007) e Silva (2012, 2018) demonstram que o tema da sazonalidade possui uma especificidade bem demarcada em relação aos estudos sobre pesca no Sudeste brasileiro. Diferentemente da mudança sazonal de atividades entre pesca e agricultura, característica dos caiçaras, os pescadores do extremo sul do Brasil mantêm-se na atividade pesqueira4, mas mudam seus locais de pesca (pesqueiros). A vasta planície do litoral sul-brasileiro, muito suscetível aos ventos, conduz os pescadores a estabelecerem uma relação distinta com seus territórios. Por exemplo, é comum durante o outono e o inverno a restrição da mobilidade e a consequente utilização dos pesqueiros menos expostos aos ventos (Silva, 2015). Nessas estações, a maior instabilidade atmosférica, aliada às pequenas embarcações5, conduz a busca por pesqueiros em banhados, rios ou beiras de praias. Da mesma forma, também podem ocorrer mudanças de pesqueiros em virtude de determinadas espécies, tal como o ciclo do camarão na lagoa do Peixe (Adomilli, 2002), já que os pescadores buscam as águas salobras para a pesca do crustáceo e, após este período, buscam novos locais para pescar.
De modo geral, o que muda inicialmente são as relações com o próprio território. A partir disso, alteram-se as práticas comuns aos pescadores que nele habitam, seja a navegação, a busca por outros pesqueiros ou pelas mudanças nos hábitos das espécies de peixes pescadas. Essas modificações se constituem a partir da percepção do pescador sobre seu próprio território. Ao perceber todos os fenômenos, o pescador se rearticula com o lugar e, por meio de seus materiais, reorganiza suas atividades, seus calendários e suas dinâmicas cotidianas (Silva, 2018).
Outro aspecto que se destaca é a dimensão prática da vida dos pescadores ao longo desses lugares. Tal como referido, ao perceber o lugar e conhecê-lo, o pescador engaja-se materialmente na pesca. A afirmação de Maldonado (1994, p. 34) explicita ainda que:
A noção de lugar não é só importante na constituição da experiência pesqueira no que se poderia chamar a sua dimensão êmica, como do ponto de vista analítico, porque falar de espaço é falar de algo amplo, imenso, indiviso como o mar ou como o céu quando se o chama de infinito. O lugar, a existência local dos fenômenos tanto no espaço físico como no espaço social é que lhes confere essência, significado e transcendência. É localmente que nos situamos e é localmente que as coisas acontecem.
A afirmação da autora corrobora a ideia de constituição local da pesca, mas também assume que esses ‘acontecimentos’ locais possuem sua materialidade. A de ‘que as coisas acontecem’ é mediada pelos materiais que permeiam o modo de vida pescador. Adomilli (2002), por exemplo, apresenta as diferentes embarcações empregadas para lugares da pesca distintos. Para a pesca oceânica/costeira, é comum a utilização de embarcações maiores e mais estáveis, adequadas para o mar revolto da região. Já para a pesca nas lagoas, os pescadores utilizam embarcações menores e, por vezes, sem motorização, pois as condições mais calmas da água das lagoas e a menor incidência do vento possibilitam o emprego desse tipo de material para o deslocamento. Em artigo recente, Adomilli et al. (2019) aprofundam ainda mais esse caráter relacional e local da pesca através de um amplo detalhamento da arte de construir embarcações na região do estuário da Laguna dos Patos. Na correlação entre as práticas construtivas, as narrativas dos pescadores e o lugar, os autores apontam exatamente para como a distinção entre os ambientes constitui uma preocupação central na arte de construir embarcações.
No aspecto dos materiais de pesca, Silva (2018) aponta o mesmo fenômeno, acrescentando também a relacionalidade das artepescas (materiais) com os pesqueiros (lugares), por exemplo, no uso preferencial do espinhel6 no verão, pois, conforme os pescadores, com a água mais clara nos meses entre janeiro e março, a isca é melhor visualizada pelos peixes, facilitando a captura de determinadas espécies. Em contraponto, as redes se constituem como artepescas de malhas, nas quais os peixes devem se ‘enredar’ e, portanto, sua utilização é mais adequada em águas turvas ou remexidas pela ação dos ventos (Silva, 2017, 2018).
Estes exemplos, aliados à proposta relacional de Ingold (2000, 2013, 2015) entre ambiente, pessoas e materiais, reafirmam a necessidade de compreender os modos de vida pescador em seus contextos regionais. Estes contextos podem ser compreendidos pela caracterização dos territórios em seus aspectos ecológicos, materiais, históricos, produtivos e simbólicos. Tal caracterização do território torna-se fundamental para entender o pescador e sua materialidade e, a partir da ideia de relacionalidade já referida, pode-se escapar da essencialização da figura do pescador genérico, também já criticada nas publicações de Diegues (1997, 1998, 1999, 2000, 2004).
Entende-se que, a partir de um ambiente, os pescadores da costa sul-brasileira diferenciam-se em suas práticas, suas articulações com os lugares e constituem suas identidades de forma interligada com seus territórios. A proposta aqui apresentada parte da ideia relacional entre o pescador e seu lugar, compreendendo a constituição mútua de ambas as partes. Agregam-se a isso os processos históricos registrados no período mais recente por Roquette-Pinto (1962 [1906]), nos quais o antropólogo descreve as particularidades da pesca na região de Tramandaí. Combinados, o ambiente, o pescador e os processos históricos conduzem a uma pesca distinta, muito relacionada com a fisionomia do território, com o tempo climático, com a sazonalidade e com os saberes locais e as práticas materiais em articulação com os lugares. Refazendo a compreensão de Beck (1979): a pesca artesanal precisa ser entendida localmente.
A pesca nas lagoas costeiras do Rio Grande do Sul se dá sobre estreitas lâminas d’água, onde a temperatura e a sazonalidade são decisivas para a localização dos cardumes. A proximidade com o fundo produz arrebentações forçadas pelas condições de vento, fazendo com que rápidas mudanças vetoriais dos quadrantes de origem (quando o vento ‘ronda’) ‘encrespem’ os espelhos d’água em um revolto ‘mar de dentro’. A especificidade dos saberes construídos localmente chega a desenvolver a desvinculação destas pescas costeiras com o mar.
Ao compreender o pescador em seu lugar, desdobram-se todas as articulações e particularidades da pesca em seus contextos mais específicos, por exemplo, os diferentes calendários, as espécies pescadas, os materiais de pesca, outros impactos na sazonalidade e, principalmente, no modo como os pescadores se constituem mutuamente com seu território e materiais. Tal como afirmam Silva e Gaspar (2019), ao compreender a pesca a partir das relações entre território, pescadores e materiais, pode-se inverter a proposição clássica proposta por Diegues (2004) – ‘a pesca constrói sociedades’ – para ‘pescadores e materiais construindo a pesca’. O objetivo dessa proposição é revisitar o trabalho de base nas comunidades por meio das etnografias; investir na pesquisa junto aos pescadores e seus territórios; compreender o papel dos materiais para a constituição do modo de vida pescador; e, com isso, estabelecer boas comparações e caracterizações regionais sobre as comunidades de pesca no Brasil.
Com isso, como palavras finais, permanecem muitos desafios para o entendimento da pesca e das comunidades pesqueiras no Sul do Brasil e, entre eles, destacam-se os seguintes: realização de estudos que historicizem as práticas e os saberes pesqueiros no sentido de compreender as contribuições das diferentes populações e etnias; efetivação de mais estudos etnográficos com o objetivo de ampliar o conhecimento sobre o tema na região e criar propostas interpretativas mais próximas da realidade material da pesca e das comunidades; a busca por aprofundar o entendimento prático da pesca junto às comunidades estudadas, no sentido de entender o emaranhado de relações entre territórios, pescadores, peixes, águas, ventos e tempo; e, finalmente, a realização de estudos estritamente locais que se debruçem sobre as técnicas, gestual e artepescas envolvidos em cada pesca.
Autor para correspondência: Gustavo Peretti Wagner. Universidade Federal de Pelotas. Cel Alberto Rosa, 154. Pelotas, RS, Brasil. CEP96010-770 (gustavo.wagner@ufpel.edu.br)