Resumo: A Ordem dos Frades Menores e a Companhia de Jesus foram duas das quatro principais ordens religiosas que se instalaram em terras brasílicas ao longo do século XVI. Reconhecidos por suas missões evangelizadoras e pelas contribuições com a expansão da fé católica nos trópicos, franciscanos e jesuítas também foram responsáveis pela redação de crônicas, tratados e cartas em que relataram suas principais impressões sobre a América portuguesa. Nessas páginas que eram enviadas aos seus confrades residentes na Europa, os clérigos letrados não escreveram apenas questões relativas à atuação das ordens, mas contemplaram todo o mundo natural com o qual se depararam, como as espécies vegetais pouco ou totalmente desconhecidas aos olhares europeus. Ao reunirmos escritos produzidos por franciscanos e jesuítas a partir de 1549, buscamos apreender as principais impressões, usos e virtudes medicinais que esses homens atribuíram aos pomos brasílicos. Dos cajus, araçás e demais frutas tropicais que compuseram estes escritos, contemplaremos especialmente as narrativas sobre o ananás, fruta nativa do Brasil e muito admirada pelos colonos que por aqui viveram. Assim, desejamos compreender quais narrativas e conhecimentos sobre o ananás foram produzidos pelos padres e freis que visitaram o Novo Mundo brasílico entre os séculos XVI e XVII.
Palavras-chave: Ananás, Jesuítas, Franciscanos, Brasil colonial.
Abstract: The Order of Friars Minor and the Society of Jesus were two of the four main religious orders that settled in Brazilian lands throughout the 16th century. Recognized for their evangelizing missions and contributions to the expansion of the Catholic faith in the tropics, Franciscans and Jesuits, they were also responsible for writing chronicles, treaties, and letters. They reported their main impressions about Portuguese America. In these pages sent to their confreres who resided in Europe, educated clerics did not write only questions concerning the work of the Orders but contemplated the entire natural world they encountered, such as plant species that were little or totally unknown to European eyes. By bringing together writings produced by Franciscans and Jesuits from 1549 onwards, we seek to understand the main impressions, uses, and medicinal virtues these men attributed to Brazilian puffs. Of the cashews, araçás, and other tropical fruits that composed these writings, we will especially contemplate the narratives about pineapple, a fruit native to Brazil and very admired by the colonists who lived here. Thus, we wish to understand what narratives and knowledge about pineapple were produced by the priests and friars who visited the Brazilian New World between the 16th and 17th centuries.
Keywords: Pineapples, Jesuits, Franciscans, Colonial Brazil.
DOSSIÊ
As virtudes terapêuticas do ananás em escritos franciscanos e jesuíticos entre os séculos XVI e XVII
The therapeutic virtues of pineapple in Franciscan and Jesuit writings between the 16th and 17th centuries
Recepção: 08 Setembro 2020
Aprovação: 05 Abril 2021
Em meados de setembro do ano de 1560, o Pe. Rui Pereira (1533-1589) escreveu uma longa carta aos seus confrades portugueses para informar-lhes as ‘boas novas’1 sobre o lado de cá do Atlântico, especialmente a capitania da Bahia, onde fazia morada desde 1559. Afirmando já “. . . ter mais um pouco de conhecimento da terra. . . ” (Pereira, 1560, p. 287) em que vivia, o religioso apresentou, logo em suas primeiras páginas, um pedido aos irmãos que lessem seu comunicado, a fim de “. . . que percam a má opinião que até aqui do Brasil tinham, porque lhes falo verdade que, se houvesse paraíso na terra, eu diria que agora o havia no Brasil” (Pereira, 1560, p. 296).
Para que os inacianos pudessem “. . . apagar de seus corações. . .” (Pereira, 1560, p. 287) as imagens negativas que eram partilhadas sobre os trópicos, Pereira (1560) dissertou sobre os elementos que compunham a paisagem natural dessa parte da América:
Se tem em Portugal galinhas, aqui as há muitas e muito baratas. Se tem carneiros, aqui há tantos animais que caçam nos matos, e de tão boa carne que me rio muito de Portugal nessa parte. Se tem vinho, há tantas águas que a olhos vistos me acho melhor com elas que com os vinhos de lá. Se tem pão, aqui o tive eu por vezes e fresco, e comia antes do mantimento da terra que dele; e está claro ser mais sã a farinha da terra que o pão de lá. Pois as frutas, coma quem quiser as de lá, das quais aqui temos muitas, que eu com as daqui me quero. E, além disto, há aqui estas coisas em tanta abundância que além de se darem em todo o ano, dão-se tão facilmente e sem as plantarem que não há pobre que não seja farto com muito pouco trabalho
(Pereira, 1560, p. 297).Nessa correspondência, Pereira (1560) dedicou diversos parágrafos para narrar os deslocamentos dos irmãos jesuítas, a fortificação de novas igrejas e a catequização dos gentios. Juntamente com essas informações, as páginas da carta também contemplaram suas reflexões sobre a natureza brasílica e o porquê de essa terra ser considerada o ‘paraíso terreal’. Segundo Pereira (1560), essa América portuguesa era muito salutífera e que seus bons ares e o clima ameno, além de contribuírem para a boa saúde de seus moradores, também seriam demonstrações da providência divina e, por isso, discordava de todos aqueles que faziam um mau juízo das virtudes dessa colônia de Portugal (Pereira, 1560, p. 297). Do mesmo modo, o religioso evidenciava que os elementos mais comuns da alimentação à época – carne, pão e vinho – não eram naturais das terras brasílicas, mas aqui eram encontrados em abundância e variedade. Os missionários e colonos instalados nos trópicos poderiam consumir carnes de caça ainda pouco conhecidas, pães feitos com outras farinhas que não a de trigo, vinhos preparados com frutas nativas, e degustar os tantos pomos encontrados pelos jesuítas desde meados do século XVI, ou seja, não enfrentariam a fome ou sentiriam falta dos mantimentos comumente consumidos no Velho Mundo2.
Os frutos da terra foram mencionados pelo Pe. Manuel da Nóbrega (1517-1570), primeiro superior da missão jesuítica no Brasil, em uma correspondência direcionada aos irmãos que viviam em Coimbra e redigida em agosto de 1549, pouco tempo após se estabelecer nessa terra. Escrevendo sobre a capitania da Bahia, o religioso relatava que “. . . há nela diversas frutas, que comem os da terra. . .” (Nóbrega, 1956, p. 148) e ainda que não fossem tão boas quanto às de Portugal, Nóbrega (1956) considerava a possibilidade de introduzir as frutas europeias neste solo, pois afirmava ter encontrado “. . . parreiras, uvas, algumas duas vezes no ano. . . ”, assim como as “. . . cidras, laranjas, limões [que] dão-se em muita abundância; e figos tão bons como os de lá. . .” (Nóbrega, 1956, p. 148).
Apenas onze anos separam as impressões do Pe. Rui Pereira e do Pe. Manuel da Nóbrega sobre o Brasil. Ambas as correspondências destacavam a atuação dos jesuítas nesse território, evidenciavam o clima ameno e temperado que encontraram na região e exaltavam a fertilidade do solo, em que árvores e frutos cresciam frequentemente e sem a intervenção de mãos humanas. Se, para Pereira (1560), as frutas eram mais um dos indícios de que essa terra seria o paraíso terreal, Nóbrega (1956) demonstrava sua surpresa ao se deparar com espécies conhecidas – laranjas, cidras e uvas – que, ao longo dos anos, foram introduzidas nas práticas alimentares e médicas dos jesuítas e seus assistidos.
Os irmãos da Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola (1491-1556) em 1539, fizeram-se presentes no Brasil na década seguinte à criação da ordem. Em março de 1549, os primeiros seis religiosos chegaram às terras brasílicas3, tendo o Pe. Manuel da Nóbrega como o responsável pela fundação da Província do Brasil4. Logo após se estabelecerem nessa parte do Novo Mundo, os padres designados para a missão evangelizadora buscaram conhecer um pouco mais dos recursos naturais dessa terra, a fim de sanar as primeiras questões relativas às suas necessidades essenciais: a alimentação e os cuidados médicos de seus irmãos e assistidos. Para a construção dos colégios fundados em diferentes capitanias entre os séculos XVI e XVIII5, os inacianos contaram com o apoio das elites locais, homens e mulheres que desejaram contribuir com o empreendimento missionário e, para isso, ofereceram sesmarias em que os padres puderam criar hortas e pomares, assim como doar escravos, para auxiliar no trabalho doméstico e rural, e até animais, como vacas ofertadas para a produção do leite que seria servido aos meninos cuidados nas casas jesuíticas (Assunção, 2009, p. 152).
Apesar de numerosos6, cabe ressaltar que os irmãos da Companhia de Jesus não foram os únicos religiosos que viveram nos trópicos e escreveram suas impressões sobre o amplo mundo natural brasílico. Outras três ordens religiosas deslocaram-se até o Brasil na segunda metade do século XVI: franciscanos, carmelitas e beneditinos, que se dedicaram a disseminar a palavra de Deus e a oferecer conforto espiritual aos moradores das capitanias recém-criadas. Desse amplo conjunto de padres, freis e monges, os membros da Ordem dos Frades Menores, que contemplava os seguidores de São Francisco de Assis, foram os primeiros a pisarem nessa parte da América7 e responsáveis por produzir, a partir do século XVII, um grande número de escritos sobre as terras do Brasil8. De início, franciscanos de diferentes localidades – Portugal, Espanha e Itália – conduziram missões avulsas pelo Brasil, mas já ao final do Quinhentos, em 1585, os frades se estabeleceram na cidade de Olinda, onde fundaram a Custódia de Santo Antônio e se tornaram responsáveis pela evangelização dos indígenas que viviam nas capitanias situadas entre Paraíba e Alagoas, estendendo-se também à região do Espírito Santo (Willeke, 1974, p. 16).
Vicente Rodrigues Palha (1564-1637), mais conhecido como Fr. Vicente do Salvador, foi um dos franciscanos que se dedicou a escrever uma história da América portuguesa, reunindo os principais acontecimentos desde a chegada da frota de Pedro Álvares Cabral até o ano de 1627, quando concluiu sua obra. Formado em colégio jesuíta, Vicente do Salvador graduou-se na Universidade de Coimbra e retornou ao Brasil em 1591, tornando-se membro da Ordem de São Francisco de Assis em 1599. Logo no primeiro livro (Salvador, 1889, p. 1) que compõe sua “Historia do Brazil 1500-1627”, o religioso apresentou indícios de sua admiração pela natureza colonial, descrevendo-a como um espaço salutífero, sem pestes ou doenças contagiosas, como as que encontrava na Europa. A partir de sua própria experiência, o franciscano afirmava que:
. . . a zona tórrida é habitável, e que em algumas partes dela vivem os homens com mais saúde, que em toda a zona temperada, principalmente no Brasil, onde nunca há peste, nem outras enfermidades comuns, senão bexigas de tempos em tempos, de que adoecem os negros, e os naturais da terra, e isto só uma vez, sem a segundar os que já as tiveram, e se alguns adoecem de enfermidades particulares, [que] é mais por suas desordens, que por malícia da terra
(Salvador, 1889, p. 10).Ao escrever sobre o clima dos trópicos, o religioso questionava os apontamentos feitos pelos ‘filósofos antigos’, como Aristóteles (384 a.C-322 a.C.), que afirmavam existir uma zona tórrida situada na região da linha do Equador, muito quente e inabitável, terra em que o “. . . sol passa por ela cada ano duas vezes. . .” e, por isso, “. . . parecia-lhes, que com tanto não poderia alguém viver. . .” (Salvador, 1889, p. 10). Se, para os antigos e alguns homens do período moderno9, os trópicos eram um espaço de calor intenso e de temperaturas elevadas até nos meses de inverno, Vicente do Salvador distanciava-se dessa narrativa e pontuava que as terras do Brasil não só eram boas para viver, como eram benignas à saúde dos enfermos, já que aqui ainda não havia as pestilências frequentes na Europa. Não era um ambiente estéril, mas o letrado afirmava que as bexigas10 e outras enfermidades observadas nos moradores locais não eram decorrentes do contato com o clima ou com os ares, mas resultante da vida desregrada daqueles que por aqui viviam11.
Escritos como os desses três religiosos – o Pe. Rui Pereira, o Pe. Manuel da Nóbrega e o Fr. Vicente do Salvador – que descreveram a colônia brasílica como um espaço sadio, de plantas e frutas diversas, multiplicaram-se entre os séculos XVI e XVII, período de estabelecimento das casas jesuítas e franciscanas por todo o território colonial. A partir da literatura produzida pelos membros dessas duas importantes ordens religiosas, buscamos compreender as principais impressões desses homens sobre a natureza brasílica, especialmente as frutas, consumidas in natura, preparadas como compotas e incorporadas às mezinhas. Ao nos remetermos às cartas, às crônicas e aos tratados redigidos nestes dois séculos, voltar-nos-emos especialmente às narrativas sobre o ananás, espécie nativa do Brasil (Hue, 2008, p. 23) e dotada de propriedades terapêuticas capazes de solucionar as enfermidades renais e outros males que afligiam os moradores dos trópicos. Assim, nosso principal intuito é analisar os conhecimentos que foram produzidos por franciscanos e jesuítas acerca do consumo e do uso terapêutico do ananás e que circularam em cartas manuscritas e escritos impressos entre meados do Quinhentos e finais do Seiscentos.
Para os tantos homens leigos e religiosos que se deslocaram até o Brasil entre os séculos XVI e XVII, o contato com a natureza era quase sempre acompanhado pela admiração com a diversidade de espécies animais e vegetais, pelo clima ameno e pelos ares salutíferos com os quais se depararam. Em suas primeiras andanças pelas terras ainda desconhecidas, a observação e a identificação de plantas, animais e minérios eram fundamentais para saber quais vegetais serviriam como alimento, distinguir os hábitos dos animais e os cuidados que deveriam ter com as feras locais, demarcar os pontos em que havia fontes de água potável e reconhecer os recursos minerais úteis para futuras trocas comerciais (Assunção, 2000, p. 18).
Ao tratarmos especificamente dos escritos produzidos por freis franciscanos e padres jesuítas, podemos observar que os recursos naturais do Brasil não serviram apenas para garantir o sustento de seus corpos e de seus assistidos, mas, aos poucos, as árvores, as raízes e os frutos tornaram-se elementos importantes para a manutenção da saúde daqueles que por aqui residiam. Em suas cartas, o Pe. José de Anchieta (1534-1597) destacou a diversidade de plantas e frutos encontrados na ‘Índia Brasílica’ (Anchieta, 1933c, p. 35). Na correspondência referente aos meses de maio a setembro de 1554, o inaciano apresentou brevemente a localização dos demais irmãos da Companhia de Jesus – situados na Baía de Todos os Santos, em Porto Seguro, no Espírito Santo e em São Vicente – e dissertou sobre as condições em que vivia na região de Piratininga. Além da farinha de pau, considerada “. . . o principal alimento desta terra. . .” (Anchieta, 1933c, p. 43), o religioso dizia que a parte mais importante de seu sustento provinha dos “. . . legumes e favas, em abóboras e outras que a terra produz, em folhas de mostarda e outras ervas cozidas. . .” (Anchieta, 1933c, p. 44). Para suprimir a ausência do vinho, os irmãos saciavam sua sede com “. . . milho cozido em água, a que se ajunta mel, de que há abundância. . .”; essa mesma solução era utilizada para beber e, possivelmente, para preparar suas “. . . tisanas e remédios. . .” (Anchieta, 1933c, p. 44). Apesar de levar sua vida com escassos recursos, residindo em uma “. . . pobre casinha feita de barro e paus, coberta de palhas. . .” (Anchieta, 1933c, p. 43), um espaço pequeno que concentrava a escola, a enfermaria, o dormitório, o refeitório, a cozinha e a dispensa jesuítica, Anchieta (1933c, p. 44) afirmava que os vegetais eram encontrados em fartura e, por isso, nas suas palavras, faziam com que “. . . quase que não nos parecermos a nós mesmos pobres. . .”.
Anchieta chegou ao Brasil em 1553, quando aportou em Salvador, ao lado do governador-geral, D. Duarte da Costa (15??-1560), e do Pe. Luís da Grã (1523-1609). Pelo curto intervalo de tempo entre sua vinda e o deslocamento até Piratininga, visto que a carta contemplava o segundo quadrimestre do ano de 1554, podemos deduzir que o padre teve uma rápida adaptação às condições naturais de sua nova morada, pois, na correspondência, Anchieta (1933b) relatava alguns conhecimentos sobre as plantas locais que eram empregadas tanto na alimentação, quanto nos cuidados com a saúde. Ao escrever outra carta, também em 1554, o religioso dirigiu-se especialmente aos irmãos que estavam enfermos em Coimbra e retomou algumas das espécies vegetais referenciadas na epístola anterior, destacando seus usos medicinais. Piratininga estava localizada a dez léguas do mar, considerada por Anchieta (1933b, p. 63) como uma “. . . terra muito boa. . .”, mas não contava com “. . . purgas nem regalos de enfermaria. . . ” e, por isso, em “. . . muitas vezes era necessário comer folhas de mostarda cozidas com outros legumes da terra e manjares que de lá podeis imaginar. . .” (Anchieta, 1933b, p. 63). Durante o tempo em que permaneceu nesse local, o religioso recomendava o consumo dos frutos da terra, plantas como a mostarda e leguminosas que eram encontradas com facilidade nos quintais, pomares e arredores das instalações inacianas12. As cartas de Anchieta demonstravam suas preocupações em identificar as plantas que serviriam para alimentação e/ou para fins terapêuticos. O interesse em conhecer a utilidade das distintas espécies foi comum entre os missionários, especialmente aqueles que atuaram como irmãos boticários e irmãos enfermeiros, como foi o caso de José de Anchieta13.
Os padres e irmãos da Companhia de Jesus, assim como religiosos professos de outras ordens, não eram autorizados a frequentar as universidades para aprender medicina ou quaisquer ofícios manuais que envolvessem cirurgias14. A restrição proposta pelos superiores da ordem foi a principal forma encontrada para evitar que os religiosos realizassem práticas que envolvessem um contato direto com o sangue humano e que poderiam resultar na morte do sujeito enfermo, como era o caso da flebotomia ou sangria15 (B. Leite, 2011, pp. 12-13). Ao chegarem a uma América portuguesa de poucos médicos e boticários licenciados, especialmente em meados do século XVI16, os jesuítas ampliaram sua atuação, dedicando-se não apenas ao cuidado da alma, mas também do corpo de colonos, escravos e índios que viviam nesse amplo território. Para que os serviços de saúde fossem executados de acordo com as normas da ordem, as práticas que envolviam o cuidado com os doentes eram conduzidas apenas pelas mãos de irmãos coadjutores, isto é, religiosos que ainda não haviam professado o quarto voto do sacerdócio17, que compreendia a obediência ao Papa (“Constituições da Companhia...”, 1997, p. 42). Quando chegou ao Brasil, Anchieta era um jovem irmão coadjutor, condição que lhe permitiu atuar como irmão enfermeiro, sendo um dos responsáveis pela realização de sangrias e pelas mezinhas que contaram com espécies vegetais ainda pouco conhecidas, mas que foram de grande serventia na cura de sujeitos debilitados (Calainho, 2005, p. 66).
No caso de Piratininga, principal espaço da atuação de Anchieta, também é pertinente lembrar que a capitania de São Vicente contou com uma ocupação mais tardia no século XVI, sobretudo se comparada às cidades e às vilas já fundadas nas partes situadas ao norte da colônia. Para receberem os poucos recursos advindos de Portugal, os jesuítas que viviam nas capitanias situadas mais ao sul da linha do Equador enfrentavam longos períodos de carestia e, possivelmente, esse teria sido um dos motivos pelos quais esses homens se tornaram grandes conhecedores das plantas paulistas (Holanda, 2017a, p. 93). Outro fator que contribuiu para o maior domínio da flora local foi o contato estabelecido com os indígenas que, além de participarem de missas e atividades catequéticas, auxiliavam nas práticas domésticas, ensinando aos colonos e religiosos algumas formas de combater as moléstias e evitar os ataques de animais que viviam nessas paragens (Holanda, 2017a, p. 14).
A aproximação com os índios pode ser observada em outra carta de José de Anchieta, redigida em 1560, na qual o padre afirmava ter conhecido os simples métodos utilizados pelos gentios locais para curar o cancro, tumores que aumentavam gradualmente e “. . . que é aí [em Portugal] de tão difícil cura. . .” (Anchieta, 1933a, p. 113).De acordo com a narrativa do jesuíta, os indígenas utilizavam apenas um pouco de barro amassado e aquecido ao fogo e, “. . . tão quente [que] possa suportar[,] o aplicam aos braços do cancro, os quais morrem pouco a pouco, o cancro se solta e cai por si. . .” (Anchieta, 1933a, p. 113). Anchieta dizia que o procedimento havia sido “provado com experiência” realizado em uma escrava de portugueses que tinha sido afetada pela doença. Não é possível afirmar que o religioso tenha adotado tal método em suas práticas médicas, pois, na carta endereçada ao Padre Geral, o jesuíta não teceu outros comentários em relação à cura promovida com a pedra quente. Mas, pela sua escolha em narrar o acontecido, podemos apreender que o procedimento lhe teria gerado certa curiosidade, sobretudo por ser um processo tão rápido e que, como demonstrado pela experiência relatada, parecia eficaz18.
Além de Anchieta, outros irmãos da ordem jesuítica também se relacionaram com o mundo natural da colônia, deixando consideráveis contribuições para os estudos de zoologia, de farmácia, de botânica e de história natural (B. Leite, 2013, pp. 52-92). Para aqueles que não atuaram diretamente nos serviços de saúde oferecidos pela Companhia de Jesus, a escrita de crônicas e tratados foi um importante recurso para dar a conhecer as propriedades medicinais das plantas brasílicas, tornando conhecidas as virtudes terapêuticas de suas raízes, folhas e frutos. Um destes homens foi o Pe. Fernão Cardim (1540-1625) que, mesmo não lidando diretamente com a saúde dos irmãos, dedicou oito capítulos de sua obra “Do clima e terra do Brasil e de algumas cousas notáveis que se acham assim na terra como no mar” (Cardim, 1925) para descrever árvores e ervas de diferentes usos: empregadas na construção civil e naval, possíveis de serem consumidas e capazes de curar os distintos males que afetavam os colonos.
Nascido em Portugal, o jesuíta chegou ao Brasil em meados de 1583, ao lado do governador Manuel Telles Barreto (1520-1588), do visitador geral, Pe. Christovão de Gouvea (1542-1622), e de outros irmãos da ordem (Garcia, 1925, p. 14). Acompanhando o visitador geral pelos colégios situados em diferentes localidades – Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro –, Cardim (1925) teve a oportunidade de desbravar e conhecer um pouco mais das particularidades de cada uma dessas regiões, bem como dos seus frutos e animais de caça. Ao se debruçar sobre as espécies vegetais, o letrado descreveu todos os elementos que compunham uma determinada planta, identificando os seus usos e, no caso das árvores frutíferas, demonstrando o aproveitamento de todas as partes do pomo, como cascas e sementes.
Para tratar das ‘árvores de fruto’, o religioso iniciou sua narrativa com o caju, “. . . fruta muito formosa [dos quais alguns são] amarelos, e outros vermelhos, e tudo é sumo: são bons para a calma, refrescam muito. . .” (Cardim, 1925, p. 57). Logo em suas primeiras linhas, Cardim apresentou algumas das qualidades do caju: uma fruta com capacidade refrescante, possivelmente pela sua natureza fria (Hue, 2008, p. 28). Quem desejasse experimentar a fruta, deveria se voltar às suas árvores, “muito grandes e formosas”, de flores cheirosas e frutos de tamanho médio, como se fossem um “. . . repinaldo, ou maçã camoesa. . .” (Cardim, 1925, p. 57), pomos conhecidos entre os portugueses. Sobre as castanhas de caju, Cardim (1925) afirmava serem tão saborosas, “. . . melhor[es] que as de Portugal. . .” e consumidas de diferentes maneiras: “. . . assadas, e cruas deitadas em águas como amêndoas piladas. . .” ou preparadas sob a forma de “. . . maçapães, e bocados doces. . .” (Cardim, 1925, p. 57). Por meio dessas e de outras receitas de confeitaria, as castanhas brasílicas tornaram-se conhecidas na Europa e nos territórios africano e asiático, locais por onde essas sementes circularam desde finais do século XVI (Russell-Wood, 1998, p. 264).
As benesses do caju não se restringiam ao fruto e à sua castanha. Cardim (1925) alertava que a casca do tronco da árvore era mais terapêutica do que o próprio pomo, sendo considerada como o “. . . único remédio para chagas velhas. . .” (Cardim, 1925, p. 57), feridas materializadas sob a pele, decorrentes de ferimentos antigos. Para o procedimento médico, o religioso narrava que seria necessário tirar um pedaço da casca, triturá-lo e colocá-lo para cozer juntamente com alguma quantidade de cobre que estivesse disponível, deixando evaporar até que houvesse apenas um terço de água do cozimento. Em sua breve descrição, o inaciano não apontou como o enfermo deveria fazer uso do preparo, banhando-se ou consumindo a água, apenas afirmava que, com o uso do tronco de caju, as chagas “saram depressa” (Cardim, 1925, p. 57).
Diferente de Anchieta, o Padre Cardim não atuou como enfermeiro ou boticário, contudo, a partir das descrições apresentadas em seu tratado, o letrado parecia conhecer a relação existente entre a saúde do corpo, a alimentação e o ambiente19. Das tantas plantas apresentadas e cujos usos terapêuticos eram conhecidos naquele século XVI, o religioso ressaltou algumas espécies que possuíam virtudes frias e, por isso, seriam recomendadas aos sujeitos acometidos por febres (Miranda, 2017, p. 24). O umbu, por exemplo, era uma fruta oferecida “. . . aos doentes de febre. . .”, devido à sua virtude fria, capaz de reequilibrar a temperatura corporal dos enfermos (Cardim, 1925, p. 59). O cambuci ou ‘igbacamuci’, como escrito por Cardim (1925), era uma fruta com características semelhantes ao marmelo, parecendo uma “panela ou pote”, considerada pelo religioso como “. . . único remédio para as câmaras de sangue. . .” (Cardim, 1925, p. 63). Ao lado dos referidos pomos, estava a pacoba, mais conhecida como banana, e que reunia em uma única fruta as duas virtudes encontradas no umbu e no cambuci. A banana era extraída de uma figueira “. . . que dizem de Adão. . .” (Cardim, 1925, p. 71),uma planta que, até o momento em que escreveu seu tratado, Cardim (1925) não conseguiu classificar como árvore ou erva, semelhante ao que havia feito com outras espécies vegetais. De acordo com o religioso, a banana era encontrada em cachos que se multiplicavam in infinitum e quem se deparasse com a fruta madura, já na cor amarela, deveria oferecê-la aos “. . . enfermos de febres, e peitos que deitaram sangue. . .” (Cardim, 1925, p. 72). Existentes em ‘fartura’ no Brasil, as bananas eram encontradas ao longo de todo o ano, sendo consideradas de grande valor para combater as febres, esfriando os corpos e curando as câmaras, nome dado às disenterias que, quando fossem ‘de sangue’, envolviam a excreção do sangue negro, que remetia ao humor melancólico (Bluteau, 1712-1728, p. 318).
As quatro espécies aqui mencionadas – caju, umbu, cambuci e banana – foram algumas das árvores frutíferas anunciadas por Cardim (1925) e que contribuíram para a riqueza de detalhes que compreende a narrativa de “Do clima e terra do Brasil e de algumas cousas notaveis que se achão assi na terra como no mar”. Porém, devemos ressaltar que Cardim (1925) não foi o único a realizar um trabalho primoroso com os elementos da flora colonial. Em finais do século XVI e especialmente no século XVII, os frades franciscanos tornaram-se grandes narradores das riquezas desta terra, relatando impressões que, em muitos aspectos, se assemelharam aos escritos produzidos pelos jesuítas. Ao nos depararmos com as novas informações introduzidas pelos franciscanos, podemos observar a construção de uma narrativa cada vez mais ampla e detalhada sobre as frutas do período colonial.
O capuchinho francês Claude d’Abbeville (15??-1632) foi um dos frades menores de São Francisco que, ao adentrar no Maranhão, se surpreendeu com a diversidade de árvores frutíferas que ali existiam e que, de acordo com o religioso:
. . . nascem espontaneamente, e só pela Providência de tão soberano Jardineiro, e embora não recebam cultivo algum produzem com abundância frutos tão saborosos como bonitos, e que de forma alguma se podem comparar com os melhores que temos visto em outras partes do Mundo
(D’Abbeville, 1874, pp. 248-249).Quando desembarcou no Brasil, em 1612, o frade d’Abbeville se deparou com árvores e frutos que se desenvolviam seguindo os rumos da própria natureza, não dependendo da habilidade humana para semear ou fertilizar o solo. Para o francês, não haveria outra explicação para tantas virtudes que não fosse a interferência divina, da ação de Deus enquanto ‘jardineiro’ capaz de “. . . enxertar, podar e cuidar das árvores. . .” (D’Abbeville, 1874, p. 248). Assim como o Padre Rui Pereira, d’Abbeville também associou a exuberante flora brasílica ao paraíso descrito nas sagradas escrituras e, por isso, questionava: “. . . não está escrito no Gênesis, que ele fez a terra produzir todas as árvores agradáveis à vista e ao paladar?” (D’Abbeville, 1874, p. 258). Para o capuchinho, as árvores do Brasil não alegravam apenas os olhos de seus admiradores, mas também “. . . o olfato, e o paladar. . .”, para que todos pudessem “. . . conhecer e louvar a providência e a bondade de Deus. . .” (D’Abbeville, 1874, p. 259). D’Abbeville e seus confrades capuchos – o Pe. Yves d’Evreux (1577-1632)20, o Pe. Arsênio de Paris (15??-16??) e o Pe. Ambrósio de Amiens (15??-1612) – não possuíam formação científica, mas eram grandes conhecedores da Bíblia e da literatura clássica, de escritores gregos e latinos, que se tornaram suas principais referências para entender os elementos naturais do Novo Mundo (Chinard, 1934, pp. 7-9).
O Fr. Claude d’Abbeville viveu apenas por quatro meses no norte do território colonial, mas este teria sido período suficiente para coletar informações sobre as diferentes plantas que compunham o ‘jardim’ ali existente. Em sua narrativa, o capucho relatou frutas cujos usos medicinais eram conhecidos no século XVI, como o caju, a banana e o umbu. Além destas, o francês mencionou plantas ainda pouco referenciadas pelos religiosos do período, especialmente, aquelas encontradas apenas nos domínios amazônicos, como era o caso do cumaru-uaçu, uma árvore grande, de folhas semelhantes à da amoreira e cujo fruto era como uma grande noz, ‘do tamanho de um punho’. Quem abrisse este fruto, se depararia com “. . . duas, três ou quatro amêndoas grandes, odoríferas e medicinais” (D’Abbeville, 1874, p. 261). Pelas mãos dos indígenas, as sementes do cumaru eram moídas e reduzidas ao pó, dissolvidas em água e bebidas ‘como remédio antifebril’. Nas breves linhas em que mencionou essa espécie nativa da Amazônia, D’Abbeville destacou as principais características da planta: a grandeza da árvore, o atrativo odor que exalava de suas amêndoas e o seu consumo para amenizar as febres.
D’Abbeville (1874) não conheceu todas as qualidades medicinais da flora maranhense, mas seu esforço pode ser observado pelas sessenta e quatro espécies vegetais apresentadas em sua obra, acompanhadas por descrições e diferentes analogias que foram utilizadas pelo religioso para caracterizar as plantas desconhecidas até aquele momento. Das árvores compostas por frutas medicinais, o capuchinho também mencionou o jacarandá, uma árvore semelhante à ameixeira e cujos frutos mediam o tamanho de ‘dois punhos cerrados’, sendo um pouco maior do que o cumaru. Segundo D’Abbeville (1874), os frutos seriam consumidos após cozidos e os indígenas utilizavam-no na preparação de uma sopa denominada ‘moniponi’, descrita pelo frade como sendo “. . . muito estomacal e nutritiva. . .” (D’Abbeville, 1874, p. 258). O relato sobre o jacarandá era pequeno, se comparado aos de outras espécies, como o maracujá, a palmeira e o ananás, sobre os quais nos debruçaremos nas próximas páginas. No entanto, nas breves linhas produzidas pelo capuchinho, podemos apreender que, antes da madeira do jacarandá ser adotada na construção de móveis e em ornamentos domésticos (Silva, 1813, p. 185), a planta era empregada por algumas tribos indígenas em seus cuidados com o estômago, pois se mostrava útil para facilitar a digestão e reparar os desconfortos estomacais21.
As frutas estiveram presentes na alimentação, acompanhando os principais pratos, ou após as refeições; eram valorizadas pelos seus odores atrativos e recomendadas para febres, corrupções da pele, câmaras de sangue e outros males que afetavam os moradores dessa colônia de Portugal. Cajus, bananas, cambucis, jacarandás, umbus e cumarus foram apenas algumas das tantas árvores frutíferas que ocuparam as linhas dos escritos redigidos por religiosos entre os séculos XVI e XVII. Franciscanos e jesuítas dedicaram-se a narrar os pomos que encontravam em suas andanças pelo Brasil, algo que pode ser visto pela recorrência dos cajus, das bananas e dos maracujás em seus escritos. Em meio a tantos frutos tropicais, é possível afirmar que uma das frutas mais mencionadas nas crônicas e tratados foi o ananás ou ‘naná’. Antes mesmo de ser elevado à categoria de rei da “. . . nova e ascética monarquia. . .” (Rosário, 1702, p. 4) das frutas brasílicas, idealizada pelo franciscano Antônio do Rosário (1674-1704), em “Frutas do Brasil numa nova, e ascetica Monarchia, consagrada à santíssima Senhora do Rosario” (1702), o ananás já havia recebido, ao longo do Quinhentos e do Seiscentos, o título de fruta mais cheirosa, virtuosa e doce de todas as que eram encontradas nos trópicos.
A principal de todas as plantas, com folhas compridas, estreitas e estriadas de ambos os lados. Sai do centro uma haste grossa, como acontece à alcachofra, tendo na sua extremidade um fruto muito semelhante à pinha, porém mais comprido e grosso. Exteriormente tem a cor amarela de ouro fino, e é muito cheiroso, e interiormente o seu âmago é muito claro, branco, sem uma só pevide ou noz. É fruta muito boa e saborosa, e nada há [na] França, que se assemelhe em bondade e beleza
(D’Abbeville, 1874, pp. 262-263).Foram essas as palavras utilizadas pelo Pe. Claude D’Abbeville para descrever os ananases encontrados na região do Maranhão. Ainda que o pomo tenha sido um dos últimos mencionados pelo capuchinho em sua obra, o religioso nomeou a fruta como a ‘principal’ de todas, cuja casca grossa e folhas compridas cobriam um pomo saboroso, suculento e desprovido de sementes, diferente dos outros tantos frutos encontrados. De acordo com o religioso, o ananás reunia muitas virtudes em uma só fruta e, por isso, D’Abbeville (1874) afirmava que em sua terra natal, a França, ainda não havia alguma espécie que se comparasse ao fruto tropical.
Se, na visão do frade francês, o ananás surgiu como uma novidade dos trópicos22, devido às características que o distinguiam de todas as outras frutas, cabe lembrar que a planta já era conhecida dos comerciantes portugueses no século XVI. O ananás foi uma das frutas brasílicas rapidamente levada à Europa, ainda no Quinhentos, e aclimatada em outros domínios de Portugal, como nas ilhas atlânticas e na África Ocidental (Russell-Wood, 1998, p. 250). O sabor e o aroma adocicados contribuíram para que a fruta recebesse elogios, como os que foram redigidos pelo capuchinho francês. Para além dos conhecidos usos culinários do ananás, preparado com açúcar sob a forma das tradicionais compotas e conservas que agradavam os paladares mais avessos à sua acidez (Freyre, 1969, pp. 13-15), a fruta também era valorizada pelas suas propriedades terapêuticas, sendo comumente recomendada para combater alguns males que afetavam os moradores do Novo e do Velho Mundo.
O franciscano Fr. Cristóvão de Lisboa (1583-1652) foi mais um dos capuchinhos que residiu no Maranhão. O português chegou ao norte da colônia alguns anos depois da passagem de D’Abbeville, já em 1622, e foi nomeado como primeiro custódio do Maranhão, tendo como principal objetivo auxiliar os irmãos franciscanos com as dificuldades enfrentadas na catequização dos indígenas e na realização de suas atividades cotidianas23. Em uma carta escrita por Fr. Lisboa, em 1627, o custódio reclamava que as terras maranhenses não recebiam os mesmos cuidados que as demais capitanias, como era visível pela ausência do “. . . pasto do Sacramento. . .”, isto é, do vinho que deveria ser oferecido nas missas, mas que não era suficiente nem para os próprios ministros (Lisboa, 1967, p. 22). Ao lado de suas responsabilidades eclesiásticas, o frei dedicou parte de sua vivência no Maranhão à observação das distintas espécies vegetais e animais que havia naquele espaço. Ao escrever para seu irmão residente em Portugal, Manuel Severim (1584-1655), o religioso afirmava ser uma “. . . obrigação. . . . lhe mostrar as coisas da terra, o tratado das aves[,] plantas, peixes e animais. . .” (Lisboa, 1967, p. 23) e, por isso, estaria remetendo com a correspondência algumas “. . . amostras de todos os paus. . .”, especialmente “. . . de um pau que cheira. . .”, possivelmente uma das árvores de tronco aromático que eram encontradas na região (Lisboa, 1967, p. 23).
Em sua passagem pelo Maranhão e pelo Grão-Pará, Cristóvão de Lisboa descreveu cinquenta e duas plantas, algumas nativas daquela região, como o timbó do Pará, também chamado de ‘necu’, uma espécie vegetal muito venenosa para os animais e, por isso, seu tronco era lançado nos rios para matar os peixes que ali viviam (Lisboa, 1967, p. 128). Ao tratar do ananás, denominava-o como “. . . a melhor fruta desta terra. . .”, cujo aroma era reconhecido de ‘muito longe’ e o seu sabor adocicado era como ‘comer açúcar’ (Lisboa, 1967, p. 105). Nessas primeiras linhas sobre o ananás, pudemos observar algumas semelhanças nos relatos redigidos pelos freis D’Abbeville (1874) e Lisboa (1967), pois ambos o consideravam como a melhor fruta que havia no Maranhão, devido à presença de um odor agradável e de paladar adocicado. A diferença das narrativas consiste na atenção do franciscano português em evidenciar as propriedades curativas da fruta, algo que D’Abbeville (1874) não observou durante seu curto período de permanência na América portuguesa.
Segundo Lisboa (1967), os homens que encontrassem a fruta deveriam descascá-la e do seu interior extrair um sumo, que proporcionaria “um jarro cheio” de água, que seria “. . . soberana para a dor de pedra e corta muito e limpa o corpo, e também serve para matar lombrigas. . .” (Lisboa, 1967, p. 105). De acordo com o religioso, o ananás não precisava ser preparado com algum outro ingrediente ou manipulado até ser reduzido a pó, bastava apenas que se espremesse o pomo para obter um poderoso sumo, capaz de eliminar os vermes que debilitavam a saúde dos homens e os cálculos que se formavam em diferentes partes dos corpos, sobretudo nos rins e no fígado. Ao lado das recomendações sobre o sumo do ananás, o Fr. Cristóvão de Lisboa também mencionou um cuidado que se deveria ter com a fruta que não estivesse totalmente madura, sem a conhecida coloração amarela, pois o sumo do ananás verde teria tanta “. . . força que se uma mulher prenhe o comer verde[,] logo há de morrer. . .” (Lisboa, 1967, p. 105). O frade não explicou a razão desta restrição, se era pela perceptível acidez que havia no sabor da fruta que ainda não tivesse completado o seu processo de maturação ou se as grávidas teriam maior dificuldade em expurgar os cálculos.
O que se sabe pela “História dos animais e árvores do Maranhão” (1967), redigida pelo religioso, é que, além do ananás em fase verde e da fruta comumente amarelada, Lisboa (1967) também havia se deparado com uma outra variação da espécie, um ‘ananás branco’. Pela descrição do frei, a fruta era ainda mais doce do que o ananás amarelo, já que o aspecto da doçura foi duplamente reafirmado, ao dizer que o “. . . ananás branco é muito doce, bota a mesma flor que os demais; são muito doces, botam de si muita água; o ananás é cercado de muitos olhos e tem a mesma qualidade dos demais. . .” (Lisboa, 1967, p. 130). As qualidades dessa variação de abacaxi possivelmente contemplavam o seu emprego para os fins medicinais mencionados anteriormente pelo frei, cujo principal uso terapêutico concentrava-se no consumo de sua ‘água’, o seu sumo.
Em “História dos animais e árvores do Maranhão”, Lisboa (1967) demonstrava conhecer um pouco da literatura sobre a natureza brasílica, especialmente a narrativa produzida pelo Fr. Vicente do Salvador que, de acordo com ele, teria lhe solicitado informações sobre as atividades realizadas pelos franciscanos no Maranhão e acerca destas o custódio teria enviado “. . . 4 milagres autênticos pelo que devo à Ordem. . . ., [pois estimava]. . . . que se faça menção de nós, e que assim lh[e] escrevais e eu lhe escrevo que vos estimo. . .” (Lisboa, 1967, p. 23). Salvador (1889) terminou a “Historia do Brazil 1500-1627” em 1627, último ano da permanência de Lisboa no Maranhão, e é possível que as informações oferecidas pelo confrade português tenham contribuído com a construção de sua narrativa.
Conforme mencionado anteriormente, Fr. Vicente do Salvador foi um dos responsáveis por escrever sobre o mundo natural da América portuguesa e estabeleceu algumas classificações para as tantas plantas que havia nesta terra. Dentre os vegetais que compunham as “. . . árvores agrestes do Brasil. . .”, estavam os cedros e carvalhos, utilizados para a construção de barcos (Salvador, 1889, p. 12); a sapucaia, empregada na feitura de moendas e engenhos (Salvador, 1889, p. 14); e os frutos mais conhecidos como o ananás, cuja descrição se assemelhou às impressões dos demais franciscanos, pois Salvador também analisou a fruta como sendo aquela que “. . . em formosura, cheiro, e sabor excede todas as do Mundo. . .” (Salvador, 1889, p. 14). Nas oito linhas em que se dedicou a descrever o ananás, o religioso evidenciou os seus usos terapêuticos e as precauções que alguns homens deveriam ter com o seu consumo.
Na visão do frei, a ‘bondade’ do ananás residia na sua capacidade de eliminar “. . . todos os ruins humores. . .” que prejudicavam o corpo enfermo. Aquele que se alimentasse do fruto purgaria seus humores “. . . pelas vias, que acha[sse] abertas. . .”, sendo a forma de evacuação dos humores a mesma que acontecia com “. . . os enfermos de pedra. . .”, pedras que o ananás era capaz de desfazer “. . . em areias, e expel[ir] com a urina. . .”(Salvador, 1889, p. 14). A referência aos ‘ruins humores’ que seriam expulsos com o auxílio do ananás indicava que Fr. Vicente do Salvador conhecia algumas questões centrais da medicina moderna, que contemplava grande parte das reflexões hipocráticas. De acordo com Hipócrates, principal responsável pela execução dessa prática médica que se afastava dos aspectos mágicos e ritualísticos, o corpo humano era composto por sangue, também denominado de ‘fleuma’ e mais três líquidos: o humor viscoso, a bílis amarela e a bílis negra. O corpo saudável seria resultante do equilíbrio destas quatro substâncias e, do mesmo modo, as doenças ou males que infligiam a saúde seriam decorrentes da ausência ou excesso de algum desses fluidos, resultando no desequilíbrio da composição corporal (Mossé, 1997, p. 45). No caso dos doentes renais, expurgar os humores malignos seria a principal forma de extrair as corrupções que afetavam o corpo enfermo, como eram as pedras e, gradualmente, recuperar o equilíbrio dos fluidos corporais.
O frade abordou a capacidade do ananás em expurgar os humores que prejudicavam o corpo sadio e explicou como o pomo era capaz de agir sobre os cálculos renais, quebrando-os em pequenas partículas, como se fossem grãos de areia que, nesse tamanho reduzido, seriam eliminados juntamente com a urina. Os cuidados com o uso do ananás estavam associados a tal prática purgativa, benéfica para os doentes de pedra, mas muito prejudicial para os indivíduos que estivessem com chagas abertas, pois a fruta poderia “. . . lhes assanha[r] muito se a comem, trazendo ali todos os ruins humores, que se acha no corpo. . .” (Salvador, 1889, p. 14). A acidez da fruta era responsável por ‘assanhar’ as feridas, provocando dores nos enfermos que teriam seus humores evacuados pelas aberturas presentes em sua pele. Para demonstrar a potencial acidez da fruta, o frei afirmava que o ananás era utilizado para limpar facas, pois era capaz de retirar a sua ferrugem e aparar a lâmina para melhores cortes (Salvador, 1889, p. 14).
Ao nos depararmos com a leitura franciscana sobre o ananás, observamos que, ao lado das descrições que exaltavam a beleza e o odor agradável da planta, suas virtudes terapêuticas centravam-se no uso do pomo para a eliminação de pedras e cálculos renais, juntamente com os maus e excessivos humores que assolavam os corpos. Em seus relatos, os freis Cristóvão de Lisboa e Vicente do Salvador não comentaram sobre como souberam dos usos medicinais da planta brasílica, mas, como ambos os religiosos viveram ou passaram parte de sua vida nas terras do Brasil, é provável que tivessem encontrado a fruta em suas andanças e identificado pessoalmente suas características externas e internas. Além disso, por escreverem suas narrativas na primeira metade do Seiscentos, eles possivelmente já teriam ouvido outros comentários sobre a fruta, decorrentes do primeiro contato que outros homens tiveram com a espécie. Afinal, os franciscanos não foram os únicos a escreverem sobre os diferentes usos do ananás. Já na segunda metade do século XVI, os padres da Companhia de Jesus recomendavam o consumo do ananás pelos doentes de pedra, introduzindo, porém, o açúcar como um elemento capaz de conservar a fruta e auxiliar os enfermos, como relatou o Pe. Manuel da Nóbrega ao Pe. Francisco Henriques (1540-1590), Procurador do Brasil que residia em Lisboa.
Escrevendo durante sua estada em São Vicente, em junho de 1561, Nóbrega (1958) recomendava que o irmão português levasse “. . . estas conservas para os enfermos, scilicet24, os ananases para dor de pedra, os quais posto que não tenham tanta virtude como verdes, todavia fazem proveito. . .” (Nóbrega, 1958, pp. 350-351), e recomendava que se, entre os padres europeus existissem aqueles que sofressem com os cálculos renais, que “. . . deviam vir para cá, porque se achariam cá bem, como se tem por experiência. . .” (Nóbrega, 1958, p. 351). As amostras do ananás em conserva eram uma demonstração empírica das riquezas coloniais e uma oportunidade para que os inacianos residentes no Velho Mundo pudessem experimentar e conhecer os benefícios proporcionados pelos frutos brasílicos. Na visão de Nóbrega (1958), o ananás maduro, utilizado no preparo da conserva, não teria as mesmas qualidades que a fruta verde, mais ácida e, por isso, com maior potência para quebrar as pedras. No caso das frutas não maduras, ainda ‘verdes’, o seu elevado índice de acidez poderia causar algumas irritações nas mucosas corporais – como mencionaram os freis Cristóvão de Lisboa e Vicente do Salvador no século XVII –, contudo, para muitos homens, essa acidez também era compreendida como parte das propriedades medicinais da planta (Carvalho, 2020, p. 11). Aqueles que aceitassem o convite de Manuel da Nóbrega para se deslocarem aos trópicos poderiam degustar os diferentes ananases brasílicos: amarelos, verdes e brancos. Para os irmãos que sofriam com outras enfermidades, o padre também oferecia as marmeladas preparadas com “. . . ibás, camucis, e [c]arasazes para as câmaras; uma pouca de abóbora. . .” e afirmava que tais conservas poderiam ser enviadas para os portugueses a cada ano, “. . . se for coisa que lá queiram. . .” (Nóbrega, 1958, p. 351).
Dois anos após a redação da carta, em 1563, o padre espanhol Juan Alfonso de Polanco (1517-1576), Secretário da Companhia de Jesus, respondeu esta e outras comunicações do Pe. Manuel da Nóbrega. Ao tratar das compotas brasílicas, o religioso afirmava que de “. . . certas conservas para os que tem dor de pedra, e as chama[m] de ananases, e certas outras para câmaras. . .” que se pudessem as enviar para Portugal, “. . . para ver se [d]ela tira vantagem, faríamos o teste de boa vontade. . .” (Polanco, 1958, p. 543). É bem provável que Polanco (1958) e os outros irmãos não conhecessem pessoalmente o ananás e as demais frutas mencionadas na epístola. Porém, ao saber que a compota feita com a fruta poderia curar os males causados pelos cálculos renais, o religioso demonstrou interesse em experimentar a solução da fruta em calda de açúcar. As compotas e marmeladas produzidas com frutas europeias eram receitas conhecidas entre os religiosos modernos, sobretudo por duas finalidades: pela capacidade de conservarem os pomos durante longas viagens, como o deslocamento do Brasil a Portugal e pelos usos medicinais da cana-de-açúcar e seus derivados – como o melaço e o açúcar –, consumidos para complementar as refeições, confortar o estômago e melhorar a disposição dos indivíduos25.
No caso das conservas preparadas com o ananás, essas envolviam as práticas conhecidas da confeitaria portuguesa e os saberes apreendidos pelo contato dos religiosos com os indígenas locais (Carvalho, 2020, p. 11). Ainda que Nóbrega (1958) não tenha mencionado isso em sua epístola, ele possivelmente conheceu os usos terapêuticos do ananás ao observar o comportamento dos índios, especialmente como esses homens se relacionavam com os diferentes elementos que compunham a natureza do Novo Mundo. Em missões e andanças pelo território colonial, religiosos como o Pe. Nóbrega e o Pe. Anchieta atentaram-se ao modo com que os indígenas manuseavam raízes, folhas e frutos e aproveitaram o momento de escrita de suas cartas e tratados para reunir informações sobre o que haviam visto ou experimentado. Cabe ressaltar que os índios do Brasil desempenharam um importante papel ao indicar aos colonos e religiosos as plantas que serviriam como alimento ou medicamento, bem como aquelas que deveriam ser evitadas (Edler, 2013, p. 104). Os jesuítas foram os primeiros homens a apreenderem esse conhecimento indígena sobre a flora local e, assim como os colonos, gradualmente introduziram essas plantas em seu regime alimentar, como se nota pelas conservas, marmeladas e outras receitas portuguesas que incorporaram as frutas tropicais (Cascudo, 1967, p. 270). Ao longo dos séculos XVI e XVII, as plantas brasílicas foram incorporadas às mezinhas e aos cuidados com a saúde e, a partir do Setecentos, passaram a ilustrar as farmacopeias portuguesas26 (Edler, 2013, pp. 132-134; Marques, 1999, pp. 71-73).
Das recomendações sobre os usos terapêuticos do ananás, a mais recorrente nos escritos deixados por jesuítas e franciscanos entre os séculos XVI e XVII foi do uso da fruta, in natura ou em conserva, para tratar os doentes de pedra. Não houve, entre esses religiosos, preocupação em identificar e descrever as origens da ‘dor de pedra’, mas em apresentar espécies vegetais que, como o ananás, serviriam para amenizar as dores provocadas pelos cálculos renais. Ao indagarmos sobre as possíveis causas para a formação das pedras nos rins e na bexiga, voltamo-nos principalmente aos hábitos alimentares dos portugueses. Em seu deslocamento para os trópicos, os colonizadores lusos buscaram meios de preservar o seu regime alimentar, composto por carnes diversas, peixes e hortaliças27. No caso dos pescados, amplamente consumidos devido ao fácil acesso e ao sabor agradável, os portugueses adotaram a prática de salgar os peixes para garantir sua maior conservação (Cascudo, 1967, p. 272). Esse uso de grandes volumes de sal para preparar a carne branca atravessou o Atlântico e o pequeno minério se popularizou nos trópicos, inclusive entre os indígenas28. Adotado como um importante tempero, os letrados coloniais conheciam os prejuízos que a alimentação pautada no constante consumo de carnes salgadas poderia proporcionar à saúde, sobretudo ao funcionamento dos rins. A recomendação no período moderno era de que as mulheres em tempos de resguardo e os ‘doentes das urinas’, possivelmente aqueles que fossem afetados por cálculos e infecções urinárias, evitassem o consumo dos alimentos salgados, a fim de não sobrecarregarem as funções renais (Cascudo, 1967, p. 272). Para os conhecedores e consumidores da carne salgada, como possivelmente eram os padres e freis aqui apresentados, o ananás tornou-se uma fruta de grande excelência, por ser facilmente obtida em grande parte da colônia e, por meio de seu sumo, ser capaz de livrar esses homens do desconforto que poderia ser provocado pelo excedente de sal em seus corpos.
A influência da alimentação para o surgimento das doenças de pedra também foi comentada pelo médico português Zacuto Lusitano (1575-1642), na primeira metade do século XVII. Entre as décadas de 1620 e 1630, o letrado redigiu o pequeno manuscrito “Tratado sobre medicina que fez o doutor Zacuto para seu filho levar consigo quando se foi para o Brasil” (Viotti & Gurian, 2018, p. 20). No escrito, o médico reuniu instruções sobre as origens e os tratamentos para cerca de cinquenta e oito enfermidades conhecidas daquele tempo e que, possivelmente, afetariam os moradores dos trópicos. Dessas doenças, quatro envolviam males renais: a retenção de urina, o ardor da urina, a pedra dos rins e a urina com sangue (Viotti & Gurian, 2018, pp. 93-94). Sobre a formação de pedras, Zacuto Lusitano relatava que ocorria devido ao “. . . fogo dos rins e humores grossos. . .”, isto é, ao aquecimento dos órgãos e ao maior volume desses humores no corpo (Viotti & Gurian, 2018, p. 94). Para evitar a formação dos cálculos, o letrado recomendava que os homens se guardassem ‘de maus mantimentos’, pois alguns alimentos e bebidas, como o excesso de vinho, seriam responsáveis pela formação dos pequenos cálculos. Como nunca pisou nas terras do Brasil, Zacuto Lusitano não recomendou o uso do ananás para eliminar esse mal que afetava os rins. Suas orientações para a expulsão das pedras envolviam a sangria do pé e o oferecimento de purgas e clisteis29 ao doente.
Antes de partirmos para as considerações finais deste artigo, apresentaremos um diferente uso medicinal atribuído ao ananás e que também foi relatado por um irmão da Companhia de Jesus, o português Pe. Francisco Soares (1560-1597), no tratado “Coisas notáveis do Brasil”, redigido entre os anos de 1591 e 1596. Na narrativa, o religioso trouxe informações sobre o descobrimento do Brasil, da presença dos missionários jesuítas, dos costumes indígenas, bem como numerosas descrições sobre a fauna e a flora, especialmente das espécies encontradas entre as capitanias de São Vicente e Bahia, locais por onde o padre residiu durante sua permanência nos trópicos. As plantas foram reunidas em diferentes capítulos da obra, dos quais destacamos o capítulo “Das ervas que Dioscórides não teve conhecimento nem fez menção nem outros autores” (Soares, 1966b, pp. 143-154), que reuniu plantas como o ananás, a erva viva e o maracujá, desconhecidas dos letrados antigos e, especialmente, do grego Dioscórides (40-90), referenciado no título do capítulo e que reuniu mais de seiscentas espécies vegetais em sua obra “De materia medica” (Dioscorides, 2000). Ao comentar sobre o ‘naná’, o inaciano ressaltou a sua semelhança com a ‘erva babosa’ devido às folhas compridas que cercavam essa ‘boa fruta’ e destacou a sua capacidade de ser ‘boa para pedra’ e cuja “. . . água destilada faz urinar. . .” (Soares, 1966b, p. 151).
Após sugerir que os enfermos bebessem o sumo do pomo para remediar os males causados pelos cálculos renais, o Pe. Soares deu sequência às suas afirmações e destacou que essa mesma ‘água’ extraída do ananás era capaz de retirar o veneno introduzido pelas picadas de cobras. De acordo com o inaciano, o ananás “. . . é bom para as cobras e faz botar fora a peçonha pelo mesmo lugar. . .” (Soares, 1966b, pp. 151-153) e completou relatando que dois índios haviam sido picados por jararacas, que “. . . lhe fez logo um vergão. . .” e, ao comerem um pouco do ananás, “. . . desfez logo e botou a peçonha amarela. . .” (Soares, 1966b, p. 153).Em “Coisas notáveis do Brasil”, o Pe. Francisco Soares apresentou onze ‘cobras da terra’, de grande tamanho e, em sua maioria, peçonhentas. Das espécies mencionadas, algumas o religioso dizia ter encontrado pessoalmente, como era o caso da jararaca, cuja peçonha “. . . vem das gengivas e corre por um rego que o dente tem[,] como eu vi. . .” (Soares, 1966a, p. 123). De outras cobras, como a surucucu, o padre relatou o comportamento dos índios que, devido ao ‘medo grande’, assim que encontravam o animal “. . . enterra[va]m a cabeça fundo tem até 16 palmos. . .” (Soares, 1966a, p. 125).
Nas descrições das cobras, Soares (1966a) não indicou os possíveis contravenenos para as espécies mencionadas, sendo o ‘naná’ um dos poucos alimentos que parecia servir para tal finalidade. Cabe ressaltar que, pelo longo tempo em que permaneceram no Brasil, os padres da Companhia de Jesus, especialmente os irmãos boticários, dedicaram-se a produzir as mais diferentes triagas30 que fossem úteis para expurgar os venenos inoculados pelas distintas cobras dos trópicos. Dos contravenenos preparados, provavelmente o mais conhecido tenha sido a ‘triaga brasílica’, preparada no Colégio da Bahia e que reunia em sua composição dezenas de ingredientes, espécies animais e vegetais31. O ananás, no entanto, não foi mencionado em meio aos elementos dessa triaga ou de outros contravenenos preparados pelos jesuítas em diferentes partes do mundo, e cujas receitas foram compiladas na segunda metade do século XVIII32. Assim, é possível apreender que o Pe. Francisco Soares, ao observar os hábitos indígenas, tenha sido um dos primeiros religiosos a se atentar que o ananás, além de promover a evacuação dos humores, também seria capaz de expurgar os venenos de cobras que provocavam a morte dos mais diferentes homens.
De acordo com os escritos franciscanos e jesuíticos, os pomos brasílicos não despertaram a atenção desses homens apenas por seus formatos, aromas e sabores distintos daqueles que eram conhecidos na Europa (Cascudo, 1968, p. 284). As árvores frutíferas tornaram-se fundamentais pelos seus diferentes usos. Seus frutos integraram parte da alimentação cotidiana, servindo não apenas para sustentar os corpos, mas também para recuperar a saúde daqueles que eram acometidos por febres, problemas estomacais, chagas, cálculos renais, picadas de cobra e outros males.
A recorrência do ananás, ou ‘naná’, nas narrativas redigidas pelos religiosos que passaram ou permaneceram no Brasil durante os séculos XVI e XVII pode ser explicada por dois aspectos principais. O primeiro é a facilidade com que a fruta era encontrada nesse amplo território, extraída nas matas e florestas existentes nos domínios de São Vicente até os distantes Maranhão e Grão-Pará. O segundo é que, além do sabor agradável, comumente referenciado pelos religiosos, o ananás concentrava um sumo capaz de eliminar os cálculos renais, quebrando-os em pequenas partículas e promovendo a sua evacuação, juntamente com os excessivos humores que prejudicavam os corpos, inclusive os venenos que adentravam por meio das picadas de cobra e que poderiam levar o indivíduo a óbito. Como muitas frutas, o ananás também era contraindicado para algumas situações, especialmente para as mulheres grávidas e os sujeitos que estivessem com alguma chaga aberta, pois a acidez da fruta poderia lhes causar dores profundas. Mesmo com os cuidados que se deveria ter ao consumi-lo, o que podemos evidenciar é que diferentes religiosos – franciscanos e jesuítas; portugueses, franceses e brasílicos – partilhavam de um mesmo padrão narrativo sobre a fruta, apresentando-a como um pomo belo, de sabor admirável e muito salutífero, capaz de reunir algumas das muitas virtudes encontradas em diferentes partes da América portuguesa.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela Bolsa de Doutorado (Código de Financiamento 001), que foi concedida para a realização da pesquisa de doutoramento da qual deriva este artigo.
Autora para correspondência: Janaina Salvador Cardoso. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900. Franca, SP, Brasil. CEP 14409-160 (cardosojanaina@live.com).