Resumo: O objetivo deste trabalho é estudar os processos de racionalização das práticas farmacêuticas nos colégios jesuíticos situados numa fração da América portuguesa. Estes processos têm início com a fundação das boticas jesuíticas, a partir de 1670, e seu desenvolvimento, até 1759, assim como com a designação de agentes especializados no estudo dos simples e na confecção de medicamentos que seriam vendidos ou doados para as comunidades que constituíam a sociedade portuguesa nos trópicos. Ocupamo-nos desse processo precisamente no interior do âmbito jurisdicional do ‘Estado do Brasil’. Buscamos compreender, pelo estudo dos ‘Catálogos breves e trienais da Companhia de Jesus’ – documentação administrativa da ordem que tinha por finalidade informar os gerais dos diferentes núcleos de atividades dispostos na América e dos diferentes indivíduos residentes em cada um desses espaços –, quantas boticas jesuíticas existiam nos colégios da Companhia de Jesus do Brasil, quem foram os boticários que ali trabalharam produzindo medicamentos, como esses profissionais obtiveram a sua formação manual pelo estudo de suas trajetórias, que tipo de medicamento foi ali produzido e, sobretudo, inventado e, por fim, qual a importância dessa produção para o sustento econômico dos padres na Província do Brasil.
Palavras-chave: História da Companhia de Jesus no Brasil, Ciência jesuítica, História da farmácia.
Abstract: This work aims to study the process of systematization of pharmaceutical practices within the Jesuitical colleges of Portuguese America. This process began with the foundation of the Jesuitical apothecary workshops from 1670 until 1759 and the designation of specialized agents in the study and production of remedies that would be sold or given to the communities that constituted Portuguese society in the tropics. We will consider this process only within the jurisdictional sphere of the ‘Estado do Brasil’, striving to understand, by studying the ‘Catalogi breves et triennalis Provinciae Brasiliae’ – administrative documents of the Society of Jesus that aimed to inform the superiors about the many spaces of activity in Portuguese America and the many individual residents in each of those loci – how many apothecary workshops existed in the colleges of the Society of Jesus of Brazil, who were those apothecaries, how those men obtained their formation by studying their trajectories, what kind of medicine they produced and invented in those places and, finally, what is the importance of this production for the economic sustenance of the Jesuits in the Province of Brazil.
Keywords: History of the Society of Jesus, Jesuitical Science, History of Pharmacy.
DOSSIÊ
Boticas, boticários e cultura farmacêutica nos estabelecimentos da Companhia de Jesus no ‘Estado do Brasil’, 1670-1759
Apothecary workshops, apothecaries, and pharmaceutical culture in the establishments of the Society of Jesus in the ‘State of Brazil’, 1670-1759
Recepção: 07 Novembro 2020
Aprovação: 19 Outubro 2021
A Companhia de Jesus foi fundada em 1540 e, desde então, operou de modo a afirmar a ideologia católica na Europa e no mundo, através de diversas estratégias que iam desde a ‘pregação’, da 'missionação', passando pela prática da ‘confissão’ até chegar à construção e gestão de escolas. Deixaram tudo isso registrado em suas cartas e obras que também fizeram parte destas estratégias. Uma ordem religiosa que se apresentou, portanto, no contexto do Concílio de Trento – da Reforma Católica e da Contrarreforma1 – como um importante instrumento não somente da Igreja de Roma, mas também, e, talvez, sobretudo, dos Estados territoriais nascentes. Isso de modo a produzir, afirmar e difundir uma tradição religiosa condizente com uma Weltanschauung, uma visão de mundo, abraçada por estas novas estruturas políticas. Era através dos mecanismos de difusão de cultura por parte das instituições clericais, como aqueles dispositivos postos em marcha pelos jesuítas, que se afirmava, nos Estados dinásticos, um certo imaginário ou sentimento de unidade que dava sentido e legitimidade à organização daquela sociedade.
A vinda da Companhia de Jesus à América portuguesa não se fez de modo fortuito: depois da afirmação do modelo administrativo das ‘Capitanias hereditárias’ (1532/1534-1549), o rei D. João III formulou as novas bases políticas do que seria a futura sociedade portuguesa nos trópicos americanos. Em 1549, enviou, além do futuro governador Tomé de Sousa para formar a estrutura do Governo Geral, o primeiro destacamento de jesuítas a serem incumbidos da ‘conversão e redução’ dos povos nativos à cultura e à tradição dos católicos portugueses. Esses jesuítas foram recrutados pela Coroa portuguesa de forma racional2. O envio dos jesuítas vinha em consonância com o projeto de estruturação de um dispositivo político situado na Bahia, e, portanto, entre as capitanias de Pernambuco e São Vicente: as duas capitanias hereditárias que mais sucesso obtiveram no processo administrativo dos primeiros tempos. Esse dispositivo – o ‘Governo Geral’ – funcionou de modo a tonificar o processo de povoamento, com a presença mais marcante dos interesses do Estado português3. Governador Geral e jesuítas, além de outros muitos agentes, portanto, representavam aquele poder soberano emanado de Lisboa, sendo parte da coroa nos trópicos4.
Assim sendo, nos primeiros anos da presença da Companhia de Jesus na América lusa, sua principal incumbência foi aquela missionária: conhecer os índios, seus costumes e religião, de forma a convertê-los àcultura portuguesa5. Desde sua chegada, os jesuítas serviram-se de diferentes estratégias para a conversão dessas comunidades – em especial, da ‘pregação e de práticas de cura’ –, sem grande sucesso até que, por volta de 1556, Manuel da Nóbrega formulava e aplicava um amplo projeto de ‘Reforma das Missões’, com a elaboração, de maneira mais rigorosa e detalhada, da estratégia dos aldeamentos artificiais de nativos organizados pelos padres6.
A partir de então, os jesuítas estruturaram um plano de ação que contava com instituições constituídas oficialmente e fundamentadas por um olhar que tornava a ação dos padres junto aos nativos bastante orgânica vis-à-vis da política do Estado português. Contudo, apesar desses desdobramentos estratégicos e da afinação das práticas de redução e conversão dos indígenas, ainda ficava patente a dificuldade vivenciada pelos jesuítas pelo mau comportamento dos moradores ou colonos frente ao projeto disciplinador da monarquia católica lusitana. Na distância do centro político, religioso e cultural do Império português, muitos europeus afrouxavam seus costumes, apropriavam-se de tradições heterodoxas e viviam de forma conflitante com os princípios que se queriam afirmados na formação da nova sociedade portuguesa na América. Com esta limitação, a partir da década de 1560, veio a necessidade de educar não somente o sujeito indígena, mas também os moradores luso-americanos que se deixavam conduzir por outras ‘formas de vida’ não adequadas aos moldes ortodoxos da fé portuguesa e, sobretudo, à moral que se queria difusa pelo poder central.
A partir de então, desde a década de 60 do século XVI, a política da Companhia de Jesus orientou-se, portanto, numa outra direção, não mais no sentido de converter essencialmente as populações indígenas, mas, sobretudo, no de disciplinar os sujeitos portugueses e os filhos de portugueses, residentes nestes espaços, direção essa que, a despeito de muitos historiadores, marcaria a presença e a atuação dos jesuítas na sociedade americana do período moderno da segunda metade do século XVI em diante.
Entretanto, para reforçar a estrutura da Companhia de Jesus em solo americano, era fundamental buscar estratégias práticas de formação de noviços e de serviços para prover o dispositivo montado pela ordem e que, pouco a pouco, ganhava mais corpo e complexidade. Dentre essas diferentes estratégias, a hierarquia da ordem lançou mão do uso dos ‘ofícios manuais’ na formação do noviciado jesuítico: entre esses ofícios, achavam-se também presentes os ofícios manuais de cura, aqueles dos boticários e sangradores.
Sendo assim, os colégios da Companhia de Jesus da América portuguesa comportavam-se como centros organizativos de uma ampla gama de atividades abraçadas pelos inacianos, a saber, o preparo dos noviços, com o empreendimento e o desenvolvimento de práticas manuais úteis nessa formação, a constituição do clero (regular e secular) e do laicato, a imposição dos sacramentos em suas igrejas, entre outras atividades. Por conta disso, os colégios da ordem dispunham-se antes como ‘núcleos organizacionais do que como centros de formação ou escolas’: isso porque nem todos os colégios empreendiam determinadas atividades. Nem todos os colégios possuíam escolas, oficinas e boticas7.
Diante do que dissemos, o lugar e a importância das ‘Boticas’ da Companhia de Jesus ganhavam forma diante de três aspectos da atuação da ordem. Primeiramente, na sua relação com as atividades de conversão junto aos nativos. Desde a chegada dos padres, estes serviram-se de práticas médicas, adquiridas na Europa e apreendidas nos trópicos, pelo contato com os autóctones, com o intuito de converter estas mesmas populações. Em segundo lugar, na sua relação com as atividades formativas dos noviços da ordem. E, finalmente, na sua relação com as atividades socioeconômicas voltadas à aquisição de recursos para o desenvolvimento da estrutura administrativa da ordem, o que tinha por corolário a provisão de serviços bastante escassos na sociedade portuguesa ali em construção. Desde a chegada dos jesuítas nas Américas, observou-se a falta de oficiais mecânicos para confecção e produção dos mais diversos bens necessários à vida comunitária, como eram os medicamentos produzidos pelos boticários. Diante disso, da necessidade de recursos pecuniários para manter a ordem no espaço americano e da necessidade de estruturar meios de formação dos noviços, para que estes se adequassem à estrutura fortemente hierárquica da ordem, os trabalhos manuais foram fartamente empregados.
Primeiramente, já no início das práticas de conversão dos padres, no estudo cuidadoso da língua e dos costumes indígenas e no uso extensivo da conversão pela ‘pregação’ da palavra cristã, observou-se a importância do poder curativo dos missionários durante a conquista espiritual dos indígenas. Foi desde a chegada, em 13 de julho de 1553, na armada do segundo Governador Geral, D. Duarte da Costa, do irmão coadjutor José de Anchieta, o qual fora incumbido de ofícios manuais de cura, que se observou, entre os indígenas, a importância de ofícios dessa natureza na estratégia da conversão. Sobre isso, diz Eisenberg (2000, pp. 79-80):
Nas sociedades Tupi, o poder de comunicação com os espíritos estava restrito àqueles que tinham o dom da cura. Os índios acreditavam que o pajé falava a verdade sobre questões religiosas devido ao poder de persuasão dos rituais de cura que ele executava. Essa persuasão, contudo, era teatral e não somente linguística. Se os jesuítas desejavam algo mais do que o direito de pregar a palavra – eles queriam persuadir seus ouvintes –, eles teriam que convencer os nativos a acreditarem que não eram meros impostores. Os missionários queriam ser vistos pelos índios como oradores “autorizados”, e isso implicava convencê-los de que, como os pajés, eles também tinham o privilégio de conversar com os espíritos. Portanto, antes que os jesuítas pudessem persuadir os índios com sua mensagem religiosa, eles tinham que demonstrar suas habilidades médicas. Isso colocava os irmãos em direta competição com os pajés.
E Anchieta, ao se entregar a práticas curativas no tempo de sua formação como irmão coadjutor, deixava ver aos demais padres da ordem, e especialmente a Nóbrega, a importância daquelas atividades nas estratégias de convencimento e conversão das populações ameríndias8.
Derivava desse uso das práticas curativas pelos padres, e especialmente por Anchieta, um certo poder carismático dos jesuítas em relação aos indígenas, o qual era importante cultivar para continuar a empregá-lo na conversão dos nativos ainda não convertidos e dos africanos escravizados e residentes nos engenhos senhoriais9. Diante disso, e com essa finalidade, os inacianos investiram também no estudo e no desenvolvimento das práticas curativas. Para além dos ofícios de sangrar, os jesuítas pesquisaram profundamente a flora e a fauna local, seja pelo contato direto com as matérias-primas seja pela mediação que tiveram com a cultura dos indígenas10. Exemplo desse interesse dos padres pelos saberes locais constata-se do estudo do manuscrito “Materia medica misionera”, de Montenegro (1710), missionário da Província jesuítica do Paraguai, por “Fleck e Polleto (2012). O conteúdo do tratado em questão sugere, eventualmente, duas interpretações objetivas: a de que os jesuítas possuíam amplo interesse pelos saberes indígenas e a de que esses saberes poderiam ter sido muitíssimo úteis aos padres na conversão desses sujeitos.
Na Província do Brasil11, por sua vez, constata-se o interesse dos jesuítas pelo saber médico, botânico e zoológico dos nativos, de modo a empregar esse mesmo saber na sua conversão. Muitos foram os padres que compilaram informações sobre os ‘simples’ da natureza luso-americana. As cartas jesuíticas estão impregnadas de informações dessa natureza.
Esse interesse pode também ser reconhecido no esforço do irmão enfermeiro Manuel Tristão, um dos primeiros indivíduos a ser reconhecido como boticário da ordem. O padre Tristão era natural dos Açores e havia chegado à América lusa por volta de 1568, ano em que entrara para a Companhia. Sua presença no Colégio da Bahia como enfermeiro é concomitante à visita do padre Cristóvão de Gouveia e seu secretário Fernão Cardim, nos idos de 1583. A história do irmão boticário liga-se àquela do secretário do visitador, na medida em que este último, tendo sido designado procurador em Roma, e dirigindo-se à Europa em 1601, teve seu navio interceptado por piratas ingleses. Na posse de Cardim, iam, além de cartas escritas por ele aos superiores da ordem, algumas receitas de botica do padre Manuel Tristão. Esses documentos foram adquiridos pelo sacerdote inglês Samuel Purchas e publicados, com exceção das receitas, na coletânea de textos de viagem “Purchas his Pilgrimage”, na edição de 1625 (Purchas, 1625-1626). O editor dessas narrativas, por desconhecer a origem e a procedência das cartas e por ter achado no meio delas as tais receitas do ‘ir. Manuel Tristaon Emfermeiro do Colégio da Bahia’, assumiu como autor das cartas o irmão boticário. Coisa que anos depois foi resolvida pelo historiador Capistrano de Abreu12. Essas receitas em questão, até hoje, não foram encontradas.
O padre Tristão, apesar de ser uma figura importante do Colégio da Bahia, perambulou pelos espaços luso-americanos da Companhia: indo posteriormente para Pernambuco, onde residiu tanto no Colégio de Olinda como nas aldeias de Santo André de Goiana e na de Nossa Senhora da Escada, na primeira metade do XVII. O ‘primeiro boticário da Companhia de Jesus no Brasil’, como Serafim Leite o designou, faleceu, já velhinho, no Colégio de Olinda, antes de 1631.
Contudo, esse debate, apesar de muito interessante e importante, não é o cerne deste estudo, que se volta, antes, para o segundo aspecto dessas práticas, para a atuação boticária dos padres eminentemente junto às populações urbanas luso-americanas.
Posteriormente, ao despontar na realidade americana, os portugueses não elaboraram estratégias de modo a prover aqueles poucos moradores iniciais, aquela sociedade em construção, de serviços essenciais, tão caros aos europeus. Diante desse lapso, os jesuítas lançaram mão de uma importante estratégia: empregaram a formação dos noviços nos ofícios mecânicos, nas ‘artes mecânicas’ ou manuais, não só como forma de ‘humilhação’ dos aspirantes ao hábito regular, mas como modo de gerar serviços e riquezas que pudessem arcar com as despesas da Província do Brasil, tornando-os mais autônomos face ao elo do padroado com a coroa13.
Os ofícios manuais naquele tempo eram tidos pela cultura vigente na Europa como ofícios ‘menores’, que maculavam a reputação de sujeitos que viviam sob o sinal do Ethos nobiliárquico. Esses trabalhos ‘manchavam o sangue’. Diante disso, empreender ofícios manuais era uma boa estratégia para a formação da humildade e obediência dos noviços numa ordem tão marcadamente hierarquizada, como o era a Companhia de Jesus. Os noviços da ordem, então, puseram-se a apreender e a praticar ofícios manuais, como a cirurgia, a farmácia, a pintura, a escultura, a carpintaria, entre outros14. E a presença de irmãos coadjutores15 que atuavam como boticários fazia-se sentir desde o início da atividade missionária e comunitária da ordem16.
Essas atividades dos padres ganharam maior delineamento no momento em que a estrutura administrativa do Estado português na América vinha subdividida em dois ‘Estados’ ou centros governativos: o ‘Estado do Brasil’ e o ‘Estado do Maranhão’. Desde 1621, com a criação do ‘Estado do Maranhão’, desligado do ‘Estado do Brasil’, estabeleceu-se dois polos políticos de controle da Coroa pela via de governadores recrutados nos cepos mais altos da sociedade portuguesa e mais fiéis aos interesses da monarquia. E, frente a isso, os padres dividiram seus esforços entre os colégios nos dois Estados, catequizando, pregando, confessando e educando nativos e moradores portugueses no projeto de construção da nascente sociedade portuguesa na América. A própria estrutura administrativa da ordem na América lusa cindiu-se desde então: organizando-se a região norte como uma ‘Vice-Província’ no interior da Província do Brasil.
No interior desses núcleos, os padres organizaram também essas atividades em espaços próprios para a sua confecção, como as ‘Boticas’, lugar de produção e venda de medicamentos. Esses espaços não existiram ali nos primórdios da atividade da Companhia de Jesus, foram sendo construídos mais precisamente ao longo do século XVII e apresentaram-se como espaços de produção e venda de medicamentos, de onde tiravam maior sustento para a ordem e provinham os moradores das cidades. Por esse motivo, podemos dizer que a produção farmacêutica da Companhia de Jesus na América lusa pode ser avaliada a partir de dois pontos de observação precisos, a saber, a partir da compreensão desses processos no interior da prática missionária da ordem e, por outro lado, no interior de sua prática comunitária, junto aos moradores da sociedade luso-americana em formação. Este artigo é desenvolvido a partir deste segundo plano de observação.
De nossa parte, na sequência dos estudos sobre a medicina da Companhia de Jesus, que se notabilizaram pelas compilações descritivas de Serafim Leite, propomos aqui compreender a medicina jesuítica sem levar em consideração a sua atividade missionária, ainda que esses processos pudessem ter tido impacto não pequeno nos saberes desenvolvidos por esses padres nos espaços e processos em questão. Nossa proposta é a de compreender as tradições farmacêuticas por eles desenvolvidas, tendo em mente, primeiramente, o impacto e a importância dessas atividades tanto para a manutenção da ordem jesuítica na América portuguesa quanto para o provimento dos moradores locais com produtos farmacêuticos.
O objetivo deste artigo, portanto, é estudar a construção do espaço das boticas e seus atores, analisando certos processos de especialização do saber entre os boticários jesuíticos pelas suas trajetórias e sua produção medicamentosa, precisamente no âmbito jurisdicional do ‘Estado do Brasil’. Levando em consideração que, ainda que depois da vinda dos primeiros missionários, os jesuítas continuaram atuando nos aldeamentos, nos preocupamos essencialmente com o impacto dessas boticas para os próprios padres e para os moradores das cidades portuguesas da América. Deixamos a futuros pesquisadores que entabulem a relação destas boticas com as atividades missionárias destes eclesiásticos.
Assim sendo, pelo estudo dos “Catálogos trienais da Companhia”, documentação administrativa da ordem que tinha por finalidade informar os gerais dos diferentes núcleos de atividades dispostos na América e dos diferentes indivíduos residentes em cada um desses espaços17, buscamos compreender quantas boticas existiam nos colégios da Companhia de Jesus, quem foram os boticários que ali trabalharam produzindo medicamentos, que tipo de medicamento foi ali confeccionado e, sobretudo, inventado e quais saberes foram apropriados nesse processo.
O que eram, precisamente, as ‘Boticas’ da Companhia de Jesus da América portuguesa? Como dissemos alhures, em outro trabalho18, muitos colégios jesuíticos destas geografias eram providos de espaços de produção e venda de remédios. Esses espaços situavam-se ao lado dos edifícios dos colégios e S. Leite (1953, p. 87) os descrevia da seguinte forma:
A Botica era constituída por uma sala e uma oficina; a loja ou farmácia propriamente dita, onde estavam os remédios à disposição do público, presidida por uma imagem, que habitualmente era a de Nossa Senhora da Saúde; e a oficina ou laboratório, onde se fabricavam os medicamentos.
Nesses espaços, portanto, os padres boticários incumbiam-se de ‘produzir’ e de ‘vender ou distribuir’ os medicamentos ali produzidos aos moradores daquelas localidades urbanas. Os padres boticários tinham, assim, esse duplo encargo: o de produtores e o de vendedores ou distribuidores de remédios. Isso para não falar de sua condição de conhecedores e inventores de produtos boticários. Mas, apesar das diversas afirmações generalizantes lançadas pela historiografia que se ocupou do tema, algumas perguntas, se já foram lançadas, ainda carecem de resposta. Entre estas, a questão de saber: ‘Quando surgiram as boticas jesuíticas nas cidades da América portuguesa?’; ‘Quais colégios jesuíticos possuíam dessas boticas?’. E ainda: ‘Qual a importância financeira desses espaços de saber?’; ‘Que tipo de saber de botica era ali empregado?’; ‘Quais remédios eram ali produzidos e para que tipo de doença?’; ‘Aqueles boticários jesuítas geraram alguma inovação farmacêutica, produziram algum remédio novo?’, entre outras questões.
Tentaremos responder a algumas dessas perguntas. Antes de qualquer coisa, é importante averiguar a questão de saber quais colégios possuíram espaços reservados às boticas, desde quando e até quando essas farmácias funcionaram. Isso porque não é evidente que todos os núcleos colegiais da Companhia de Jesus possuíssem boticas, como demonstraremos ao longo deste estudo.
Pelas informações contidas nos catálogos trienais, podemos afirmar que a primeira menção ao ofício de boticário exercido por um irmão coadjutor temporal da ordem faz-se presente somente a partir de 167019. Em nenhum catálogo anterior referente ao ‘Estado do Brasil’ pudemos encontrar, listada, a menção a algum irmão boticário. A presença dessa função no catálogo aponta, muitíssimo provavelmente, tendo em vista a natureza das informações destes documentos, para a existência de um espaço preciso, já naqueles anos, no Colégio do Rio de Janeiro, destinado à produção/confecção e à venda de remédios.
Antes disso, como dissemos, fez-se menção, especialmente na obra de S. Leite (1953), à existência de irmãos boticários bem antes dessa data, já pelos idos do início do século XVII, como é o caso do já mencionado Manuel Tristão. A história das práticas desses irmãos é dispersa e pouco sistemática. Por exemplo, na primeira vez que o padre Tristão é mencionado nos catálogos, em 1621, ele não é descrito como boticário; sobre ele, diz-se somente que “. . . não faz nada de menos”20. Aquelas práticas, então, não constituíam um investimento institucional sistemático da ordem na América portuguesa. Isso porque, acreditamos, se eram úteis na conversão dos indígenas, ainda não serviam para gerar renda importante para o sustento e a ampliação das atividades dos jesuítas da Província do Brasil, o que provavelmente fala da inexistência de um lugar apropriado para essas práticas, da falta de uma racionalização daquele ofício no interior da Companhia de Jesus e da incumbência explícita de irmãos coadjutores voltados precisamente para aquele tipo específico de atividades naqueles tempos anteriores a 1670. Racionalização e sistematização essas, reiteramos, que ganham sentido essencialmente interno: no objetivo de obtenção de recursos financeiros, mas não só, para a empresa jesuítica na América portuguesa.
Assim, de fato, o primeiro irmão boticário da Companhia de Jesus foi João de Oliveira, o qual atuava na botica do Colégio do Rio de Janeiro. Acreditamos que, com o explicitar, pela primeira vez nos catálogos, do encargo de ‘boticário’ (em latim Pharmacopola), faz-se alusão a uma função mais consolidada no interior das práticas institucionais da ordem e, além disso, de um espaço apropriado para exercê-la. Acreditamos que essa consolidação estivesse voltada para a sociedade portuguesa nos trópicos e tenha sido pensada em função do ganho financeiro ali adquirido. É possível supor, portanto, desde já, a existência, ali no Colégio do Rio de Janeiro, de um lugar de produção e venda de remédios, de uma botica.
Sobre o irmão João de Oliveira, S. Leite (1953, p. 228) nos informou que teria nascido na Ilha da Madeira em 1611, entrando na Companhia, em Pernambuco, em 1630. O irmão teria chegado ao Rio de Janeiro em 1641, com 30 anos, sendo enfermeiro de grande reputação, ‘optimus’. Chegou a estar destinado para Pernambuco, mas ao fazer a viagem, não pôde passar da Bahia por causa da invasão dos batavos e, por isso, voltou-se, então, para o Rio de Janeiro, onde ficou até a sua morte. Quando da visita do padre José de Seixas em 1677, este classificara o irmão como um insigne boticário, insignis pharmacopola. Simão de Vasconcelos referiu-se a ele como ‘Enfermeiro e boticário único’ do Colégio do Rio de Janeiro. Faleceu ali no dia 13 (ou 14) de abril de 1680. Não possuímos, infelizmente, nenhuma informação adicional a respeito de sua atuação como boticário, nem nenhum escrito de seu punho21.
Depois dele, trabalharam ainda como boticários do Colégio do Rio de Janeiro os irmãos André Henriques (1638-1699), de 1683 a 1694, Inácio de Passos (1686-1732), de 1716 a 1732, Antônio Soares (1711-1739), em 1735, Benedito Gomes (1699-1760), de 1737 até 1745, e o irmão João Baptista (1719-1767), de 1746 a 1757. Nos anos de 1737, 1739 e 1743, o irmão Benedito Gomes contou com a ajuda de três assistentes, respectivamente, os irmãos Francisco Silva, José Freire e João Baptista22.
Essa continuidade da prática remete para, além disso, sua fixação no espaço e para o estabelecimento, naquele colégio, de uma produção medicamentosa alicerçada por uma certa tradição farmacêutica, o que também pode ser visto em outros estabelecimentos da ordem na América portuguesa. A indicação aos assistentes de boticários remete, por outro lado, à organização de práticas formativas, educacionais, no espaço das boticas desses colégios, à presença do que podemos chamar de ‘escolas de cultura boticária’, das quais falaremos mais adiante em pormenor.
A botica do Colégio do Rio de Janeiro, em 1706, provia de medicamentos as demais boticas da cidade e, segundo o testemunho do passageiro da fragata real de França, ‘L’Aigle’, o capitão Le Roux, não havia melhor na França23.
Nove anos depois, no Colégio da Bahia, podemos observar, ali também, a estruturação de um espaço de botica sob a direção de uma curiosa figura ainda pouco estudada: o irmão boticário André da Costa24.
André da Costa (1648-1712) era proveniente de Lyon, como o irmão Antônio da Costa (1647-1722), o qual trabalhava como encadernador e bibliotecário naquele colégio. Os dois eram, muito provavelmente, parentes, possivelmente irmãos, pois, além de serem provenientes da mesma localidade na França, tinham o mesmo sobrenome e quase a mesma idade e entraram para a ordem na Bahia, um em 1676 e o outro em 1677.
O irmão André é descrito como um notável boticário e químico, Optimus pharmacopola, Chimicus insignis. Trabalhando sempre na Bahia, sabia latim, tendo sido cirurgião antes de entrar na Companhia. No manuscrito “Collecção de várias receitas e segredos particulares” (1766), onde acham-se compiladas muitas receitas de mezinhas inventadas nas boticas dos colégios jesuíticos da Assistência de Portugal, menciona-se dois remédios inventados pelo irmão francês. O primeiro deles é o ‘Emplastro de tabaco do irmão André da Costa da botica do Colégio da Bahia’, usado para ‘desfazer tumores duros e internos’, e o outro é a ‘Triaga brasílica reformada’, uma variação ainda mais potente do importante e famosíssimo remédio jesuítico, a ‘Triaga brasílica’, feito com muitos ingredientes nativos e com pedaços de jararacas25. Tal mezinha era muito usada na época como um ‘contraveneno ou antídoto’26. Diz-se dele que reunia plantas medicinais das quintas e fazendas da Companhia, além de minerais que lhe pareciam úteis: mandando que se lhes buscassem às vezes bem longe, como no Estado do Maranhão. Como se refere o padre João Bettendorff, em sua “Chronica”:
Não se deve passar aqui sob silêncio uma casta de pedra branca, que lasca a modo de talco e parece vidro, cuja mina se achou no tanque grande para banda do mato, uns seis ou sete passos afastados da vala, e do canto dela uns 20, pouco mais ou menos. Soube desse mineral o irmão André, boticário da baía, e mandou pedir algum para suas meizinhas
(Bettendorff, 2010, p. 346).No final do século XVII, o irmão da Costa caiu paralítico e viveu assim os seus anos restantes até falecer na Bahia, no dia 6 de maio de 171227.
Depois dele, trabalharam como boticários do Colégio da Bahia os irmãos Manuel da Luz (1678-1735), em 1716, Antônio da Fonseca (1663-1734), em 1719, Francisco da Silva (1695-1763), de 1720 até 1722, Domingos Lemos (1694-1753), de 1732 até 1748, e, por fim, o irmão Antônio dos Santos (1733-1760), em 175728. Como no Colégio do Rio de Janeiro, a botica do Colégio da Bahia também se fez escola, gerando os seus discípulos: no ano de 1719, o irmão Francisco da Silva deu seus primeiros passos no estudo do saber de botica, sob a supervisão do irmão Antônio da Fonseca. Nos anos de 1746 e 1748, o irmão Sebastião Teixeira apareceu como assistente do irmão Domingos Lemos.
A botica do Colégio da Bahia mostrou-se como a botica a mais bem estruturada de todos os colégios da América portuguesa, e em especial do ‘Estado do Brasil’, por sempre contar com irmãos boticários e com uma importante produção medicamentosa, que rendia fundos consideráveis para o colégio. No catálogo de 1694, a botica do Colégio da Bahia era descrita de maneira assaz destacada. No documento, é dito que “A botica é elegantemente elaborada e todos os tipos de medicamentos organizados por gênero, são acessíveis aos compradores, pagando-se inteiramente seu valor, e aos pobres, de forma gratuita, entre outras coisas” (“Catalogi breves et triennales Provinciae Brasiliae”, 1661-1698, Brasiliae, 5. II, f. 137)29.
No mesmo ano, a botica do Colégio do Rio de Janeiro era descrita de forma menos pomposa, mas como um espaço munido para a sua função. Dizia o relato: “Edifício amplo e cômodo, somente circundado por uma horta, com dois altares, botica, enfermaria e biblioteca suficientemente guarnecida” (“Catalogi breves et triennales Provinciae Brasiliae”, 1661-1698, Brasiliae, 5. II, f. 139v)30. Pela descrição, podemos pensar numa maior munificência da botica do Colégio da Bahia em relação àquela do Rio de Janeiro naquele período.
Além dessas duas boticas, a do Colégio de Olinda, por sua vez, passou a existir a partir de 1719. Seu primeiro boticário foi o irmão Manuel Gomes (1645-1720), natural de Landim, Portugal. Excelente sapateiro antes de entrar na ordem, no dia 2 de dezembro de 1682, Gomes ainda exerceu esse ofício no tempo em que começou a residir no Colégio da Bahia. Contudo, seus talentos o levaram a atuar como enfermeiro e boticário do Colégio de Olinda. Homem de poucas palavras e, como se dizia, muito amigo dos escravos, cujas feridas tratava com sentimento de ardente caridade, possuía em seu cubículo, além do estritamente necessário, um exemplar da “Imitação de Cristo” (Kempis, 1979)31, um crucifixo de pau e uma cabaça com sementes medicinais. Faleceu no Colégio de Olinda no dia 14 de janeiro de 172032. Desse dia até a data da expulsão, esse Colégio contou com cinco boticários, funcionando regularmente e sem interrupções a partir de 1722.
Foram boticários da botica do Colégio de Olinda, o irmão – e futuro mestre – Domingos Lemos (1694-1753), em 1722, um outro irmão Manuel Gomes (1707-1736), esse natural de Guimarães, de 1732 a 1735, assim como os irmãos José de Passos (1715-1749), em 1737, Francisco da Silva (1695-1763), de 1738 até 1741, Manuel Diniz (1708-1780), de 1743 até 1748, e, por fim, João da Silva (1691-1768), em 175733.
Na sequência, o Colégio de São Paulo passou a ter uma botica a partir de 1720. Nesse ano, o seu primeiro boticário foi o irmão Pedro (ou Pietro) Natalini (1652-1728), originário de Roma34. Natalini entrou na Companhia de Jesus no dia 20 de novembro de 1675, com 23 anos, e embarcou de Lisboa para o Brasil em 1681. Havia sido enfermeiro da Casa do Noviciado e da Casa Professa de Roma (Gesù) e, na Bahia, continuou o mesmo ofício, sendo, ao mesmo tempo, ajudante do procurador e soto-ministro, antes de 1694. Em 1716, residia no Espírito Santo e, quatro anos depois, em 1720, aparecia no Colégio de São Paulo como boticário e ‘roupeiro’. Faleceu no mesmo colégio no dia 16 de outubro de 1728. Não há grandes informações sobre a sua atuação profissional, nem como enfermeiro nem como boticário. Contudo, uma coisa é certa, a prática de curar e tratar dos enfermos adotada pelo padre desde a sua residência em Roma o muniu de saberes empíricos e teóricos importantes para a pesquisa dos remédios e sua confecção. É possível que tenha aprendido a fazer e a usar muitas mezinhas tradicionais nesse seu longo percurso profissional35.
Depois dele, foram boticários do Colégio de São Paulo os irmãos José de Passos (1715-1749), em 1732, Lourenço de Sousa (1697-1769), de 1735 a 1739, Domingos de Britto (1703-1764), em 1740, José Freire (1711-1760...), de 1741 a 1748, e Sebastião Teixeira (1709-1760...), no ano de 175736. A botica de São Paulo funcionou ininterruptamente de 1720 até o ano de 1757.
Depois disso, o Colégio de Recife passou a ter um espaço de produção de medicamentos a partir de 1732, sob a gestão do irmão boticário Manuel Diniz (1708-1780...), originário de Seara (Braga), Portugal37. Segundo S. Leite (1953, pp. 162-163), Diniz teria entrado para a Companhia no dia 24 de abril de 1729 e trabalhava como boticário já em 1732, sendo descrito, em 1736, como bonus pharmacopola. Tendo obtida a sua formação no Colégio da Bahia, trabalhava como boticário do Colégio de Recife, de 1732 até 1739, e depois, de novo, em 1757, fazendo da botica deste colégio, como nos diz S. Leite (1953, p. 163), “a mais famosa do Nordeste”. De sua atividade profissional, temos a confecção de um ‘Bálsamo para impigens’, composto de bálsamo fino do Brasil, flor de enxofre e vinagre, usado para doenças de pele. Depois da expulsão, em 1760, saiu exilado para Lisboa e para os Estados Pontifícios. Entre 1774 e 1780, viveu em Pesaro, Itália, falecendo ali, provavelmente pelos idos de 178338.
Além do irmão Manuel Diniz, foram também boticários do Colégio de Recife os irmãos Manuel Coelho (1718-1777), boticário de 1740 a 1745, e depois, em 1748, e Antônio Gomes, em 174639. A botica desse colégio funcionou ininterruptamente de 1732 a 1757.
Por fim, o Colégio de Santos e o Colégio e Seminário da Paraíba inauguraram suas boticas, respectivamente, em 1741 e 1757, assaz tardiamente na história da Companhia de Jesus. A botica do Colégio de Santos contou com o irmão Domingos de Brito (1703-1764) como seu primeiro boticário40, ficando na função somente neste ano. Brito era natural do Porto e entrou para a Companhia com 21 anos, na Bahia, no dia 9 de julho de 1724. Já tinha sido boticário no Colégio de São Paulo e mestre de meninos. Aparece na Bahia como ‘enfermeiro de escravos’, em 1743, na Aldeia de Guaraíras (Rio Grande do Norte) e na fazenda de Monjope (Pernambuco), em 1757. Estava no Colégio de Olinda quando da expulsão da ordem, sendo exilado em 1760 do Recife para Lisboa e Roma. Faleceu no Palácio de Sora no dia 7 de setembro de 1764, sendo sepultado na Igreja do Gesù41.
Nos anos seguintes, de 1743 até 1757, não consta a presença de nenhum irmão nesta botica. Depois, então, em 1757, consta no catálogo a presença do irmão Benedito Gomes, que provavelmente teria ficado ali até 1760. Há um lapso importante no funcionamento desta botica, que ficara por volta de 14 anos sem boticários, o que pode sugerir um certo desarranjo ou desorganização dessas práticas naquele espaço do colégio em questão.
A botica do Colégio da Paraíba teve como primeiro e único boticário o irmão José Lopes (1731-1760...)42. Dele, diz-se somente que era natural de Leiria, Portugal, tendo entrado para a Companhia no dia 21 de agosto de 1754, e que, com a expulsão dos padres, teria sido levado para o Recife e ali permaneceu, provavelmente despindo-se do hábito de jesuíta43.
Seria necessário verter muita tinta para analisar, caso a caso, o papel e a importância desses irmãos na prática farmacêutica dos jesuítas na América lusa. Estes são os irmãos boticários descritos, em sua quase totalidade, pelos catálogos trienais da Companhia de Jesus do Estado do Brasil e muitas de suas biografias acham-se narradas nas obras de S. Leite. Além das informações tiradas dos catálogos, S. Leite nos apresenta alguns outros boticários que compõem essa história da farmácia jesuítica e que não aparecem nos catálogos aqui analisados44. O Quadro 1 mostra todos os boticários que trabalharam nas boticas jesuíticas existentes na América portuguesa do Antigo Regime, a partir de 1670.
Dito isso, de acordo com as informações dos catálogos trienais, o primeiro colégio jesuítico da América portuguesa a ter uma botica com um boticário encarregado da produção medicamentosa foi o Colégio do Rio de Janeiro, em 1670, seguido pelo Colégio da Bahia, nove anos depois; pelo de Olinda, em 1719; o de São Paulo, um ano depois; o de Recife, em 1732; o de Santos, em 1741; e, finalmente, o da Paraíba, em 175748. Só havia espaços de produção e distribuição de medicamentos nesses sete colégios da Companhia de Jesus no ‘Estado do Brasil’49. O Quadro 2 traz uma pequena descrição dos anos em que as boticas jesuíticas começaram a funcionar e de seus primeiros boticários.
Inicialmente, essas boticas tiveram grande importância no provimento da comunidade local, com os serviços farmacêuticos. Entretanto, com a sofisticação desses pequenos espaços de estudo e produção de remédios, as boticas tiveram notável expressão econômica para o provimento das despesas da própria ordem em suas atividades. Essa importância econômica das boticas jesuíticas foi o aspecto mais central, acreditamos, para a sistematização de tais práticas no interior dos colégios, isso porque, por mais que o rei proviesse alguns poucos colégios, como o da Bahia, o do Rio de Janeiro e o de Olinda, com recursos oriundos da obrigação do padroado, fazia-se necessário para as atividades que a ordem vinha implementando no espaço americano uma quantidade ainda maior de rendas, coisa que as boticas puderam, em parte, suprir.
A partir do século XVIII, há dados mais sólidos sobre o retorno financeiro gerado pelas boticas dos padres. Diante dessas informações, podemos estabelecer uma compreensão mais concreta da importância fazendária dessas farmácias no interior da economia jesuítica.
A primeira menção ao lucro gerado pela produção farmacêutica dos padres aparece no catálogo trienal de 169450. Nele, fala-se unicamente do lucro da botica do Colégio da Bahia, o que sugere que aquela do Rio de Janeiro, apesar de mais antiga, não tinha uma produção relevante a ponto de ser descrita como produtora de rendas para aquele convento, o que, de certa forma, acrescenta argumentos para afirmarmos que a botica do Colégio da Bahia, apesar de mais recente, era mais bem consolidada do que aquela do Rio de Janeiro.
Naquele ano, a botica do Colégio da Bahia produziu muitos medicamentos e vendeu o equivalente a 400 escudos romanos51. Na relação da produção de medicamentos com a produção total do colégio (que envolvia, além do dote recebido pelo rei de Portugal pela obrigação de padroado, aluguéis de casas e prédios, venda de bois e de artigos de couro, venda de farinha de mandioca, de açúcar e de madeira extraída, além da renda da botica), esta representava precisamente 3,7% do lucro total ali obtido.
Em 172252, época em que funcionavam, além das boticas jesuíticas carioca e baiana, aquela do Colégio de Olinda e a do de São Paulo; há maiores informações sobre a produção de algumas destas farmácias. Sobre a botica do Colégio da Bahia, as rendas produzidas pela venda dos medicamentos totalizavam 1.200 escudos romanos, o mesmo valor do dote recebido do rei por aquele colégio. Se hipoteticamente esse dote fosse revogado, os jesuítas poderiam, ainda assim, cobrir as despesas arcadas por aquela renda somente com o dinheiro de suas boticas. Essa renda da botica do Colégio da Bahia se apresentava como 9,2% de toda a renda produzida pelo colégio baiano naquele ano (13.000 escudos romanos).
Na botica do Colégio do Rio de Janeiro daquele ano, tirava-se da produção farmacêutica 600 escudos romanos. Este colégio recebia de dote do rei menos do que aquele da Bahia: somente 1.000 escudos. A renda dessa botica era de 3,9% do valor da produção total deste colégio (15.231 escudos romanos) e representava 60% do dote real.
Na botica do Colégio de Olinda, a produção era de 12,4% do total produzido neste colégio (2.424 escudos romanos). O valor adquirido com a venda de medicamentos pela botica de Olinda era de 300 escudos romanos e este recebia, como o Colégio do Rio de Janeiro, 1.000 escudos romanos de dote régio. Sendo assim, somente 30% do valor do dote. Apesar de a botica do Colégio de São Paulo já estar funcionando neste ano, não há nenhuma menção das rendas ali geradas pelas vendas de seus produtos: provavelmente aquela botica ainda não produzia medicamentos para serem comercializados. A produção total das três boticas dos padres naquele ano foi de 3.900 escudos romanos, valor bem maior do que o total pago pelo rei em dotes a esses colégios: 3.200 escudos romanos.
No ano de 173653, há informação sobre as cinco boticas em funcionamento naquele período, mas os dados só são detalhados para a botica da Bahia, do Rio de Janeiro e de Olinda. Na botica da Bahia, da venda dos remédios produzidos, tirava-se ainda 1.200 escudos, 9,2% do total de 11.400 escudos romanos. Na do Rio de Janeiro, tirava-se sempre 600 escudos, 0,9% do total da produção do colégio (130.800 escudos romanos)54. Na de Olinda, tirava-se 300 escudos, 1,45% da produção total do colégio, de 20.704 escudos romanos55. O valor total adquirido neste ano pelas boticas do Rio de Janeiro, da Bahia e de Olinda foi de 2.100 escudos romanos.
No ano de 173956, só é possível, mais uma vez, avaliar em detalhe a produção boticária dos colégios do Rio de Janeiro, da Bahia e de Recife: para a renda dos demais colégios, não há um detalhamento preciso da produção boticária. Naquele ano, a botica da Bahia produziu, mais uma vez, uma renda de 1.200 escudos baseada na venda das mezinhas, 9,7% do valor da produção total daquele colégio, 12.300 escudos romanos. E a botica do Rio de Janeiro tirou, como sempre, 600 escudos da produção de seus remédios, 3% do valor total da produção do colégio, 19.800 escudos romanos. Já a botica de Recife tirou 400 escudos. Não temos o valor total da renda produzida por este colégio neste ano para uma porcentagem da produção da botica. O valor total adquirido pelas boticas do Rio de Janeiro, da Bahia e de Recife naquele ano foi de 2.200 escudos romanos.
Em 174357, época em que, além das cinco boticas referidas, funcionava também a botica do Colégio de Santos, há dados detalhados somente para as boticas do Rio de Janeiro, da Bahia, de Olinda e de Recife. A botica da Bahia, como de costume, tirou 1.200 escudos de sua produção, 9,7% do valor total das rendas daquele colégio. A do Rio de Janeiro tirou 600 escudos, 4,2% de sua produção total. A do de Olinda obteve 100 escudos, 6,7% de sua renda total. E, por fim, a botica do Colégio de Recife obteve 400 escudos, 20,3% do valor total de sua renda. Neste ano, apesar da produção farmacêutica do Colégio de Recife ser bastante inferior, em absoluto, daquela da Bahia, do ponto de vista relativo, foi a maior produção. Isso mostra que, nos anos 40 do século XVIII, a botica do Colégio de Recife tinha uma grande importância na economia daquele colégio. O valor total adquirido pelas quatro boticas jesuíticas do Rio de Janeiro, da Bahia, de Olinda e de Recife pela venda de suas mezinhas foi o de 2.300 escudos romanos.
Finalmente, o ano de 175758 é aquele em que a economia dos colégios da Companhia é descrita de forma muito mais detalhada. Neste ano, funcionavam, no total, sete boticas inacianas, todas as já referidas mais aquela do Colégio e Seminário da Paraíba. E há informação detalhada para todas as boticas daquele ano, exceto para aquela, recentíssima, da Paraíba.
A farmácia do Colégio da Bahia produziu, então, sem variações, 1.200 escudos romanos, 5,3% do total produzido pelo colégio, 22.600 escudos romanos. A botica do Colégio do Rio de Janeiro obteve com as vendas de seus remédios 600 escudos, 2,5% do total ali produzido, 23.603 escudos romanos. A botica do Colégio de Olinda tirou 150 escudos, 7,3% de sua produção total, 2.050 escudos romanos. A botica do Colégio de Recife obteve 600 escudos, 19,4% de sua produção total, 3.094 escudos romanos, equiparando-se à botica do Rio de Janeiro quanto ao lucro absoluto. A botica do Colégio de São Paulo obteve 400 escudos, 36,6% de sua produção total, 1.092 escudos romanos. E, por fim, a botica do Colégio de Santos obteve 150 escudos, 14,3% de sua produção total, 1.050 escudos romanos.
Neste ano, o valor relativo da produção da botica do Colégio de São Paulo, como o daquela do Colégio de Recife, também mostrou ser de grande importância para aquele colégio, compondo-se como 36,6% de toda a sua produção. O valor total adquirido pelas sete boticas jesuíticas da América portuguesa naquele ano foi de 3.100 escudos romanos, quase o valor total adquirido pelo dote do padroado.
Diante desses dados, pode-se notar que havia certa constância na produção de mezinhas nas boticas dos colégios jesuíticos do ‘Estado do Brasil’59 e que essa produção gerava lucros importantes para aquela Província jesuítica: a botica do Colégio da Bahia era a que mais gerava lucros em absoluto, obtendo dela, em média, 1.200 escudos, sendo esses lucros, variavelmente, 5,3% da produção total daquele colégio. A botica do Colégio do Rio de Janeiro produzia, em média, 600 escudos, sendo estes 2,5% do total de sua produção econômica. A botica do Colégio de Recife gerava 600 escudos, sendo estes, relativamente, 19,4% da produção total do colégio. A botica do Colégio de São Paulo retirava, em absoluto, de sua produção 400 escudos, sendo isto, relativamente, 36,6% de sua produção total. A botica do Colégio de Olinda obtinha entre 100 e 150 escudos de sua produção farmacêutica, relativamente, 7,3% de sua produção econômica total. Por fim, A botica do Colégio de Santos adquiria 150 escudos, sendo estes, relativamente, 14,3% de sua produção total.
Essas informações apontam para a regularidade do funcionamento destas boticas e para a sua importância econômica60 no sustento dos espaços de atuação da Companhia de Jesus na América portuguesa (colégios, residências, escolas, missões etc.). Tais boticas podem ser associadas às fazendas da Companhia de Jesus da Província do Brasil pela sua importância econômica. Essas farmácias, que acumulavam importante carga de saberes científicos, constituíam-se, portanto, em função dos lucros da ordem, mas não só: elas dirigiam-se também para o provimento dos moradores da sociedade luso-americana do período moderno. Era a nobreza local, o clero, os mercadores, os artesãos e outros grupos sociais aqueles que adquiriam os medicamentos fabricados pelos padres e que davam o retorno monetário à produção dos mesmos, ainda que parte dessa produção fosse escoada para os desvalidos, como os escravos, e empregada junto às populações indígenas das missões.
Diante da análise da estrutura das boticas jesuíticas, de seus boticários e de sua importância econômica e formativa, é importante avaliar seu papel inovador para o saber de botica da época pela análise precisa dos remédios inventados em alguns daqueles espaços de saber. Através do estudo do manuscrito “Collecção de várias receitas e segredos particulares” (1766)61, podemos ali observar a invenção de inúmeras novas receitas empregadas na sociedade luso-americana do Antigo Regime.
Nesta farmacopeia jesuítica, ocorre a descrição de algo em torno de 223 receitas medicamentosas produzidas e comercializadas pelos jesuítas da Assistência de Portugal. Algumas daquelas receitas eram tiradas de outros receituários correntes nas boticas europeias, outras, a grande parte, na verdade, eram invenções dos colégios portugueses, americanos e asiáticos da Companhia de Jesus daquela Assistência. Das 223 novas receitas dos colégios jesuíticos dispostos na jurisdição do Império português, 40 receitas eram oriundas do Colégio da Bahia, duas do Colégio do Rio de Janeiro e sete do Colégio de Recife62. Em todas essas 49 novas receitas americanas, para além de sua inusitada configuração substancial, podemos vislumbrar a presença evidente de muitos simples provenientes da natureza americana, os quais foram sendo amplamente conhecidos dos jesuítas, como dissemos, desde o seu contato com o meio e as populações locais, em 1549.
A historiadora Marques (2004) argumentou que as farmacopeias portuguesas tiveram um grande valor na apropriação de matéria-prima americana e na sua difusão na Europa. Contudo, muito antes das farmacopeias, os jesuítas, em suas cartas e documentos de botica, mostravam ter amplo conhecimento de muitos simples da América lusa. Desde o final do século XVI, muitos simples já eram conhecidos dos padres, como o caju, o ananás (abacaxi), o andá, a copaíba, a mandioca, a sapucaia, o jenipapo, a ipecacuanha, o jaborandi, a almecega-do-brasil, a caroba, entre muitos outros63. Entretanto, esse saber ficou restrito ao interior da ordem; as informações circulavam somente entre aqueles padres, o que não nos impede de afirmar que a medicina indígena já tinha ganhado o mundo bem antes do século XVIII.
Para além do conhecimento dos simples, os irmãos jesuítas trouxeram ao espaço americano inúmeras formas filosóficas ou científicas de se apropriar do conhecimento natural. Trouxeram a cultura hipocrática e galênica, com forte influência árabe, dos médicos e boticários lusitanos, além de uma ampla gama de novidades teóricas e práticas que vinham tendo impacto na cultura europeia do período moderno, desde o século XVII. Referimo-nos especialmente à cultura espagírica e à tradição química que vinham ganhando território na Europa católica desde o tempo em que muitos sábios, na sua maioria oriundos dos ambientes germânicos, vinham reabilitando não só as inovações de Paracelso, mas, com isso, todo o debate dos alquimistas medievais e da teoria química contida nos livros filosóficos64.
Ao contrário do que postulam alguns historiadores, como, ainda, Marques (2004), ao afirmar que o conhecimento e a prática da química (arte espagírica) só teriam chegado em Portugal no século XVIII e, antes disso, no XVII, com algumas poucas alusões de alguns poucos autores, como Frei Manuel de Azevedo e Duarte Madeira Arrais, esses saberes e práticas já eram do conhecimento dos jesuítas portugueses65. No ‘Estado do Brasil’, o irmão André da Costa, como dissemos, conhecia a arte espagírica – os processos de tratamento químico dos simples – e se servia de um laboratório montado na botica do Colégio da Bahia para dissolver substâncias tiradas da natureza tropical e produzir novos medicamentos, como foi aquela versão reformada da ‘Triaga Brasílica’ feita pelo referido irmão, que adicionava, à receita de base, óleos e sais químicos e alguns dos ingredientes contidos no seu emplastro de tabaco, como o “sumo de tabaco verde e a goma amoníaca depurada”)66. Esses saberes espagíricos, portanto, já eram empregados e conhecidos no Império português, em Portugal e na América portuguesa, muito antes do século XVIII e da difusão da química médica nos tratados publicados em Portugal67.
Dito isto, vemos que os maiores centros científicos, relativos à cultura de botica ou à farmácia, da Companhia de Jesus na América portuguesa foram: a botica do Colégio da Bahia, a do Colégio de Recife, a do Colégio do Rio de Janeiro e a do Colégio de Olinda. Para além dos lucros gerados por essas boticas, essas quatro mencionadas tiveram um papel inovador, pelo fato de produzirem amplo conhecimento sobre a natureza local e de empregarem métodos de produção medicamentosa muito recentemente adotados nas mais importantes boticas europeias. A cultura boticária dos padres da Província do Brasil bebia dos mais recentes debates científicos travados na Europa e se servia dos produtos tropicais para confecção de medicamentos, gerando inovação que provavelmente será notada e terá impacto, inclusive no Velho Mundo, o que se pode conjecturar pela persistência desses saberes no documento jesuítico de 1766. Mas isso ainda carece de maiores estudos e reflexões.
Essas boticas onde atuavam exímios boticários fazendo convergir saberes europeus e americanos não só acumularam os saberes e os utilizaram na produção de mezinhas, como também serviram como locais de estudo e formação de futuros boticários. Como dissemos, em muitas boticas dos colégios notamos a presença não só de boticários (pharmacopola), mas também de assistentes de boticário, o que nos remete para a presença de um sistema de reprodução de saberes farmacêuticos no interior das farmácias desses colégios jesuíticos da América portuguesa e, em especial, aquelas do ‘Estado do Brasil’.
Como era praxe no aprendizado dos ofícios manuais à época, a difusão do conhecimento era feita com base na relação entre ‘mestre e discípulo’: os aspirantes a algum saber manual colocavam-se à disposição do mestre, enquanto ajudante, sócio ou assistente em suas oficinas. Esse modelo de aprendizado pela prática e pela sujeição a uma figura mais experiente, um ‘mestre’, era corrente nas oficinas europeias e fincou-se na América lusa pela ação dos portugueses e, quiçá, dos jesuítas.
Constatamos a presença de assistentes de botica no período em que foram boticários, no Colégio do Rio de Janeiro, o irmão Benedito (ou Bento) Gomes, de 1737 a 1745, e, no Colégio da Bahia, os irmãos Antônio da Fonseca, em 1719, e Domingos Lemos, de 1732 a 1748, sendo esses três os boticários encarregados da farmácia da formação dos assistentes sob sua guia.
O primeiro assistente aparece em 1719 na botica do Colégio da Bahia, sob a supervisão, somente naquele ano, do irmão Antônio da Fonseca. Seu assistente foi o irmão Francisco da Silva. Depois de Fonseca, no Colégio do Rio de Janeiro, em 1737, o irmão Domingos de Lemos formou o mesmo irmão Francisco da Silva, em 1739, o irmão José Freire e, em 1743, o irmão João Baptista. Depois de Lemos, de novo no Colégio da Bahia, o irmão Domingos Lemos formou o irmão Francisco da Silva, de 1745 a 1748, e o irmão Sebastião Teixeira, de 1746 a 1748.
Para melhor averiguarmos esse sistema difusor de saberes, convém analisar as trajetórias profissionais dos quatro irmãos que foram assistentes de boticário e puderam, com essa formação obtida pela prática, gerir, eles próprios, diferentes boticas, situadas nos mais variados colégios da América portuguesa. Disso, tiraremos, inclusive, informações sobre os mestres boticários já levantados.
Comecemos inicialmente analisando os passos formativos do exímio irmão boticário Francisco da Silva68, que iniciou seu ofício, como dissemos, em 1719, como assistente do irmão Antônio da Fonseca, boticário do Colégio da Bahia. Em 1720-1722, Francisco da Silva atuava como boticário do Colégio em que havia aprendido o ofício. Em 1737, dezessete anos depois, ele torna-se novamente ‘assistente’ do irmão boticário Benedito Gomes, na botica do Colégio do Rio de Janeiro. Talvez essa ida do irmão Silva à botica do Colégio do Rio de Janeiro como ‘discípulo’ dissesse respeito aos saberes ali acumulados, alguns dos quais eram possivelmente inexistentes na botica de Salvador. É provável que houvesse um ‘saber regional’, baseado no conhecimento dos simples de cada uma daquelas localidades, acumulado por cada uma dessas boticas com base nos diferentes biomas com os quais os padres tinham contato em cada uma dessas regiões onde se situavam os colégios69.
Depois disso, de 1738 a 1741, ele aparecia na documentação jesuítica como boticário do Colégio de Olinda. Ali, o irmão Silva devia dispor de grande autoridade e importância: levando saberes da Bahia e do Rio de Janeiro para o ambiente pernambucano. De 1745 a 1748, Francisco da Silva voltou ao Colégio da Bahia para complementar ainda mais a sua formação boticária como assistente do mestre Domingos Lemos. Francisco da Silva transitou, portanto, como ‘discípulo’, pelas escolas de Antônio da Fonseca (Bahia), de Benedito Gomes (Rio de Janeiro) e de Domingos Lemos (Bahia), tendo adquirido, provavelmente, grande quantidade de saberes farmacêuticos em sua trajetória. Talvez fosse ele o boticário mais bem formado da Companhia de Jesus na América portuguesa, com maior experiência prática e maior conhecimento da natureza local.
Pode-se argumentar essa afirmação pela observação de muitas mezinhas inventadas pelo irmão Francisco da Silva no documento “Collecção de várias receitas e segredos particulares” (1766): naquela importante farmacopeia da Companhia, este irmão era bastante referido, por ser o inventor, precisamente, de 13 remédios empregados para as mais diversas moléstias. De todos os boticários da Província do Brasil, ele era aquele que mais havia inventado medicamentos e que mais havia circulado entre as boticas luso-americanas como assistente de muitos mestres boticários.
Outro irmão que tem uma trajetória importante de ser lembrada é José Freire70: tendo começado a sua formação como assistente do irmão boticário Benedito Gomes no Rio de Janeiro, em 1739, trabalhou como boticário, ‘custódio, roupeiro, cuidador das demais coisas domésticas e enfermeiro’ no Colégio de São Paulo, de 1741 até 1748. Há aqui, também nesse caso, uma transferência de saberes da botica do Colégio do Rio de Janeiro para aquela do Colégio de São Paulo, onde a escola de Benedito Gomes (Rio de Janeiro) provavelmente teria feito tradição.
Outra trajetória memorável é a do irmão boticário João Baptista71, originário do Piemonte. Ele começou seu aprendizado, assim como José Freire, na botica de Benedito Gomes, no Rio de Janeiro, em 1743. Depois, nos anos de 1746, 1748 e 1757, trabalhou como boticário daquele mesmo colégio onde principiou seu ofício. Neste caso, não há, como nos dois casos ora mencionados, um processo de circulação regional (interna) de saberes no seio dos colégios da Companhia de Jesus. Esse irmão, como Freire, fez a sua formação na botica carioca e ali permaneceu como seu operador.
Finalmente, a trajetória do irmão Sebastião Teixeira72 atesta para a circulação de saberes de botica numa direção inversa. Tendo começado sua formação boticária em 1746 e 1748, sob a supervisão do irmão boticário Domingos Lemos na botica do Colégio da Bahia, o irmão Teixeira passou a exercer seu ofício como boticário e ‘porteiro’ no Colégio de São Paulo. Isso atesta para uma circulação de saberes da Bahia para São Paulo e para uma certa concentração, naquele colégio, de conhecimentos oriundos dessas duas tradições boticárias da Companhia de Jesus. Isso se for possível falar em ‘duas’ tradições, coisa ainda a ser averiguada e avaliada em pormenor, com base em documentação mais detalhada e no estudo destes protagonistas aqui tratados. Assim sendo, Teixeira era discípulo da escola de Domingos Lemos (Bahia).
Destas trajetórias formativas, podemos conjecturar a existência nesses espaços de três mestres boticários, a saber, o mestre Antônio da Fonseca e o mestre Domingos Lemos, ambos da botica do Colégio da Bahia, e o mestre Benedito Gomes, da botica do Colégio do Rio de Janeiro. Destes três caposcuola, o discípulo que mais se beneficiou dos conhecimentos adquiridos e transmitidos nesses centros de formação foi o irmão Francisco da Silva, que atuou como assistente desses três grandes boticários jesuítas.
O que foi transmitido dos saberes indígenas ou conhecimentos locais e das tradições médicas europeias, como aquelas tradicionais e aquelas espagíricas, das quais fizemos alusão no ponto anterior? Para avaliar essa questão, somente contamos com documentação produzida por um dos atores dessa narrativa: o assistente de boticário e boticário Francisco da Silva. Não há nenhum documento produzido pelos mestres boticários, nem pelos demais discípulos.
Pelo estudo das mezinhas de autoria do irmão Francisco da Silva, descritas na “Collecção de várias receitas e segredos particulares” (1766), podemos observar que havia, em muitas delas, a presença de ingredientes locais, como era o caso da jalapa, da bicuíba e do bálsamo-do-brasil. Havia muitas plantas provenientes da Ásia em suas fórmulas, como as coloquíntidas, o ópio e o açafrão. Sobre os conhecimentos químicos aplicados pelo padre André da Costa no Colégio da Bahia, seu uso foi tão difundido que a fórmula ainda persiste na coletânea de receitas manuscrita dos padres de 1766. Além disso, nota-se, entre as receitas do irmão Silva, a presença de uma fórmula medicamentosa usada para purga; a receita da Hercules infans era composta por tártaro emético, sal policresto e pedra bazar ou bezoar. Os dois primeiros ingredientes provinham da tradição química: o tártaro era uma substância formada, entre outras coisas, por sais calcários, já o sal policresto era tido por alguns historiadores como o sulfato de potássio.
A arte farmacêutica foi empregada pelos jesuítas desde sua chegada na América. Os missionários da ordem entraram em contato com inúmeros saberes da terra através do encontro com a cultura dos nativos e pelo estudo da natureza local. Contudo, até 1670, essas iniciativas, talvez mais ligadas ao esforço missionário dos padres, não eram usadas pelos mesmos como fontes de renda, nem possuíam, por isso, um caráter mais sistemático e racional, não sendo uma prática relevante para a sociedade luso-americana da época.
Antes mesmo de 1670, como dissemos, o esforço dos padres voltou-se também para os moradores portugueses e filhos de portugueses das vilas e cidades destes trópicos. E, diante disso, os padres não só vislumbraram uma oportunidade para adquirirem maiores recursos para as suas atividades, pela venda de seus produtos, como para melhor prover aquela sociedade com serviços inexistentes, pela falta de mão de obra capacitada.
A partir de 1670, com a criação da botica do Colégio do Rio de Janeiro, os jesuítas passaram a organizar melhor essas práticas, tendo em vista a formação ‘humilde’ dos noviços e o provimento daquela sociedade portuguesa com medicamentos. Depois dessa experiência no Rio de Janeiro e na Bahia, os colégios de Olinda, de São Paulo, de Recife, de Santos e da Paraíba seguiram o mesmo exemplo, constituindo em seus espaços lugares de saber farmacêuticos onde eram produzidos, vendidos e doados remédios para os indivíduos e as famílias daquela sociedade. Esses espaços foram muito importantes para a renda de cada um desses colégios, ajudaram a sustentar ainda mais as outras práticas da Companhia de Jesus junto às sociedades indígenas e aos moradores europeus, e constituíram-se como centros de saber farmacêutico da ordem religiosa no seio da nascente sociedade luso-americana.
O retorno econômico obtido naquelas ‘fábricas de remédios’ facilitou o maior investimento da Companhia de Jesus em suas atividades – manutenção de maior número de padres, investimento em atividades escolares, missões, entre outras atividades –, mas também permitiu que a ordem desenvolvesse ainda mais aquelas fontes de riqueza, como o foram as boticas dos padres.
As invenções farmacológicas dos jesuítas, acreditamos, apontam para um investimento não só financeiro, mas também na formação de padres boticários e na organização cada vez maior daqueles espaços, provendo-os com matérias-primas, bibliotecas e utensílios de fabrico de mezinhas. O caso da botica do Colégio de Recife é aqui paradigmático: tendo em vista que, apesar de não gerar inicialmente tantas rendas em absoluto, como gerou o laboratório da Bahia, pôs-se em pé de igualdade com a botica do Rio de Janeiro, não só pelo retorno financeiro obtido, mas também pela quantidade de inovações boticárias ali produzidas. Isso sem falar da importância econômica relativa da produção daquela botica para o Colégio de Recife. As descobertas e as invenções destes padres apontam para a complexificação cada vez maior dessa estrutura jesuítica na América lusa.
Além disso, os jesuítas tiveram grande importância na apropriação de saberes locais, pelo contato com a natureza americana e com os povos nativos. E esses saberes não foram unicamente empregados nas estratégias de conversão dos indígenas, mas também na construção de um saber farmacêutico adequado às necessidades locais, o qual derivava de uma cultura reinol, europeia, de cariz galênico, mas com grandes impactos dos debates os mais recentes travados na Europa, como o foi o do saber espagírico, que dirigiu a prática do importante boticário do Colégio da Bahia, André da Costa. Sua atuação enquanto boticário não só serviu para o desenvolvimento e a afirmação do uso de teorias e procedimentos oriundos do Velho Mundo, como permitiu ressignificar as tradições dali oriundas pelo uso das matérias-primas locais, produzindo, assim, um saber de botica todo particular e que, muito possivelmente, teve impacto na tradição farmacológica portuguesa e europeia.
Esses saberes não ficaram só na posse de alguns padres farmacêuticos, foram ensinados, a partir do século XVIII, nas boticas a outros irmãos que atuavam como assistentes dos mestres boticários, perpetuando aqueles saberes no interior da ordem não só na América portuguesa, mas em toda a ‘Assistência de Portugal’.
Agradecemos imensamente ao colega Carlos Alberto de Moura Zeron, por nos ter disponibilizado a documentação do Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma, sem a qual não poderíamos ter concluído este estudo.
Autor para correspondência: Bruno Martins Boto Leite. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Rua Dom Manuel, s/n, Dois Irmãos. Recife, PE, Brasil. CEP 52171-900 (bruno.boto@ufrpe.br).