ARTIGOS CIENTÍFICOS
Etnocentrismos incômodos: saberes, ontologias e cosmocentrismo ameríndio
Disturbing ethnocentrisms: knowledge, ontologies and Amerindian cosmocentrism
Etnocentrismos incômodos: saberes, ontologias e cosmocentrismo ameríndio
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, vol. 17, núm. 2, e20210044, 2022
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi
Recepção: 06 Maio 2021
Aprovação: 22 Dezembro 2021
Resumo: Em uma colocação aparentemente simples, mas pungente, Pierre Clastres sugere que, se toda cultura é etnocêntrica, somente a ocidental é etnocida. Além de querer ressaltar a tendência quase inexorável do Ocidente de sobrepujar os outros povos com sua visão de mundo – chegando, muitas vezes, às vias de fato com o extermínio étnico –, o antropólogo francês se refere especialmente ao fato de que todas as populações humanas partem de suas próprias concepções sobre a realidade para construir sua coesão coletiva e, por consequência, delimitar o que lhe é externo e estranho. Pretendo demonstrar que os saberes ditos tradicionais, comumente associados às populações indígenas, possuem suas formas próprias de interação e engajamento com o meio e com os seres a ele associado, mantendo-se a uma distância do pensamento moderno, que não é apenas de ordem técnica ou empírica, mas epistemológica.
Palavras-chave: Saberes tradicionais, Etnocentrismo, Ontologia relacional, Mitologia, Animismo.
Abstract: In a seemingly simple but pungent statement, Pierre Clastres suggests that “if every culture is ethnocentric, only western culture is ethnocidal”. In addition to his intention to highlight the almost inexorable tendency of the West to surpass other peoples with its worldview — often culminating with ethnic extermination — the French anthropologist refers especially to the fact that all human populations build their collective cohesion and consequently delimit what is external and foreign to them from their own conceptions of reality. This study aims to demonstrate that the so-called traditional knowledge commonly associated with indigenous populations has its own forms of interaction and engagement with the environment and with the beings associated with it. Such knowledge is set apart from the modern thought, which is not only technical or empirical, but epistemological.
Keywords: Traditional knowledge, Ethnocentrism, Relational ontology, Mythology, Animism.
Não sei se concordo ou não. Apenas acho difícil entender como a verdade, por si só, pode ser suficiente para uma pessoa.
(Vonnegut, 2017 [1963])Em um artigo provocativamente intitulado de “Ciência para o Ocidente, mito para o resto?”, Scott (1996) procurou mostrar que, apesar dos esforços dos ocidentais em legitimar o procedimento e a produção científica como prerrogativa reservada apenas às suas bases epistemológicas, há mais procedimentos científicos pelo mundo entre os povos não ocidentais do que nossa ciência poderia imaginar. Segundo a definição do antropólogo, se ciência é uma atividade social que tira inferências dedutivas das primeiras premissas, que essas inferências são deliberada e sistematicamente verificadas em relação à experiência e que os modelos do mundo são ajustados reflexivamente para se conformar às regularidades observadas no curso dos eventos (Scott, 1996, p. 69), então não só os Cree, povo habitante dos Grandes Lagos na fronteira canadense sobre os quais o trabalho etnográfico de Scott (1996) se dedica, fazem parte de uma população cuja observação e experimentação do/no mundo não têm nada de ‘protocientífico’, como estabelecem conexões metafóricas entre o social e o ambiental de tal forma que definem e redefinem as relações entre os objetos no mundo, que, por sua vez, são assimiladas ao significado das metáforas básicas à medida que são aplicadas em situações e contextos particulares (Scott, 1996, p. 85).
Carneiro da Cunha (2009) afirma que a insistência em identificar o conhecimento tradicional como um conjunto completo e fechado de lendas e sabedorias transmitidas desde tempos imemoriais – sobre o qual despende-se um grande esforço de preservação pelas gerações atuais, sem, contudo, que haja a preocupação em atualizá-lo – reforça a má vontade ocidental em enxergar nos métodos tradicionais as suas relevâncias e eficácias. Carneiro da Cunha (2009) prossegue pontuando que, apesar de os procedimentos (as formas, e não os referenciais) serem tradicionais, eles são bastante diversos, já que os “critérios de verdade e os protocolos de pesquisa em regimes de conhecimento tradicional não se baseiam só no experimento e na observação empírica perseguidos com paixão” – como ocorre no rigorismo restritivo da ciência moderna (Carneiro da Cunha, 2009, pp. 364-365).
Em outras palavras, a procura pelo conhecimento e a capacidade de relacionar elementos observáveis, experienciáveis e coletáveis do ambiente em que se está inserido e criar métodos para acumular, classificar e interpretar o seu conteúdo são atividades realizadas diariamente por populações cujos interesses em compreender o mundo que habitam e as relações dispostas entre eles e os demais seres é antes uma possibilidade do que uma necessidade determinada pela sobrevivência. Contudo, segundo os parâmetros da ciência moderna – em nome da qual muitos julgamentos foram atribuídos à vida de outros povos (Stengers, 2011, p. 4) –, os referenciais alternativos e a falta de uma institucionalização dos procedimentos experimentais determinam que o conhecimento tradicional tem apenas a função emergencial e perecível de suprir necessidades básicas da população que domina, estando seu real valor assegurado quando compõe os expositores de um museu ou é descrito minuciosamente em manuais. Strathern (citado em Carneiro da Cunha, 2009, p. 328) resumiu bastante bem a carência criativa que a rigidez cognitiva do objetivismo multiculturalista ocidental exerce sobre os demais povos: “Uma cultura dominada pelas ideias de propriedade só pode imaginar a ausência dessas ideias sob determinadas formas”. Estas formas, no caso, giram em torno do conflito entre economias de subsistência e economias de mercado – dois conceitos que só podem ser pensados a partir das regras epistemológicas de um conhecimento que se diz moderno e só consegue enxergar atraso à sua volta1.
Neste artigo pretendo demonstrar que os saberes ditos tradicionais comumente associados às populações indígenas possuem suas formas próprias de interação e engajamento com o meio e com os seres a ele associado, mantendo-se a uma distância do pensamento moderno que não é apenas de ordem técnica ou empírica, mas epistemológica. Em um primeiro momento, pretendo abordar a eficácia e coerência dos saberes tradicionais enquanto conjuntos de conhecimentos e experiências sobre o meio adquiridos e compartilhados entre as pessoas, apesar das investidas de menosprezo, descrédito e marginalização do pensamento moderno2 em relação a qualquer lógica diversa à sua. Na segunda metade do artigo, discutirei alguns elementos destes saberes indígenas, principalmente, relacionados a aspectos sociológicos e de interação entre humanos e não humanos, como a mitologia e o animismo.
ETNOCENTRISMO INCÔMODO
A subsistência enquanto atividade dedicada à captação de recursos nutricionais para fazer subsistir os indivíduos que fazem parte de um grupo é uma preocupação generalizada nas mais diversas sociedades e grupos humanos, independentemente de sua complexidade tecnológica. O problema, de fato, começa quando o conceito de subsistência adquire outra premissa e passa a significar um esforço apenas dedicado à sobrevivência coletiva, como se os indivíduos de um grupo, esmagados por uma incapacidade de maior produção alimentar, lutassem frente à natureza utilizando seus parcos recursos técnicos para não morrer de fome, conotando-se uma economia de sobrevivência (Rocha, 1988, p. 52). O fundamento desta interpretação é que existem determinadas etapas evolutivas as quais algumas sociedades têm mais dificuldade de superar, devido à rusticidade de suas técnicas, determinando o estágio de desenvolvimento social em que se encontram. Assim, a associação direta entre o aparato tecnológico de um grupo e o seu estágio de desenvolvimento civilizatório se traduz na ideia de que a capacidade funcional está relacionada à capacidade social e que alguns grupos são inaptos socialmente para desenvolver determinados aprimoramentos que a nossa sociedade moderna ocidental considera como parâmetros da evolução civilizatória. É esta confusão entre a “. . . noção puramente biológica da raça3 e as produções sociológicas e psicológicas das culturas humanas” que Lévi-Strauss (1993 [1952], p. 329) identifica como o “pecado original da antropologia” – que não apenas marcou o início e grande parte da trajetória da disciplina, como também definiu o espaço ao qual os povos considerados racial e culturalmente inferiores estariam relegados.
Portanto, a rusticidade de suas técnicas, impedidas de aprimoramento, provocaria o atraso social, político e cultural destes grupos, além da sua privação econômica, já que, por não disporem dos meios adequados para coletar recursos nutricionais, as sociedades primitivas estariam subordinadas à subprodutividade e condenadas a uma economia de subsistência, no sentido de sobrevivência. Sem a instrumentalização apropriada para aumentar o rendimento produtivo, estas populações estariam sempre em busca de alimentos, não lhes sobrando tempo para desenvolver novas técnicas, nem aprimorar seus meios, incapacitando-as para uma sofisticação social e civilizatória, dando a impressão de que, fragilizadas, estão sujeitas à aculturação4. Este tipo de pensamento resultou na noção do ‘primitivo evanescente’, que gera a “expressão de uma perda de objeto” para os antropólogos (Sahlins, 1997, p. 50) e uma sensação de invisibilidade para a sociedade envolvente, que se acostumou com o ‘sumiço’ dos indígenas ou a sua mimetização nas ruas. Remanescentes de um passado impresso em sua carne, em seus gestos, em sua indumentária e em sua língua, qualquer contato com a ‘civilização’ seria o suficiente para desvirtuá-los de sua pureza e retirá-los do estado natural, criando-se o impasse do ‘índio misturado’ (Oliveira, 1998).
Ao índio, portanto, é negada a capacidade de se adaptar a novos contextos ou compreender e atuar cognitivamente frente às adversidades que se impõem. Encontrando-se nesta estagnação, essas populações também acabam por ser um peso ao desenvolvimento da sociedade envolvente, cujos avanços tecnológicos geralmente são incompatíveis com a sua presença, gerando situações de violência e opressão. O mesmo se passa em um âmbito narrativo: a forma como as sociedades organizam, classificam, interpretam e aplicam na sua vida prática o conhecimento adquirido através da observação e contemplação do ambiente exerce ora um fascínio exótico nos ocidentais, ora a ilusão de que são populações limitadas em sua compreensão, restando-lhes ações impulsivas ou instintivas. Daí a ideia de que os não modernos, ainda que experienciem o mundo, não conseguem ir além do que é diretamente captado pelos cinco sentidos, não extrapolando muito isso. Seth (2013 [2004], p. 174) usa como exemplo a noção de passagem de tempo: “. . . nós, modernos, acreditamos que cada pessoa tem uma história, ainda que nem todas as pessoas tenham uma historiografia”. Esta visão sobre os demais povos é oriunda do que o autor chamou de ‘razão’: um complexo conjunto de comprometimentos a que o Ocidente se propõe, com uma ideia que seja singular e universal, sendo os compromissos epistêmicos parte disso:
E os compromissos epistêmicos que sugeriram que essas eram pessoas incapazes de representar o seu próprio passado foram os mesmos compromissos epistêmicos que sugeriram, mais adiante, que essas pessoas eram atrasadas. Ou vice-versa: que essas pessoas ainda pertencessem ao passado era algo indicado, entre outras coisas, pela sua incapacidade de representar o seu passado apropriadamente
(Seth, 2013 [2004], p. 174).Validar este tipo de teoria é aceitar que os diferentes grupos humanos, espalhados pelo globo terrestre, possuem capacidades cognitivas distintas. Admitir que alguns povos são atrasados é corroborar a falsa ideia de que o ser humano está dividido em raças biologicamente distintas, cada uma com características mentais, emocionais e psicológicas próprias. Pensar dessa forma é ir na contramão de todo avanço que as ciências biológicas e as ciências sociais vêm apresentando a respeito de uma diversidade étnica, e não racial, entre os povos humanos. Isso significa que as especificidades fisiológicas de uma determinada população não são responsáveis (ou ocasionadas) pela rudimentaridade ou sofisticação de sua produção cultural: o tipo de ferramenta usada para coleta ou produção de alimentos, a utilização ou a ausência de um sistema de escrita, a forma como as expressões artísticas são representadas, a organização social em aldeias ou em cidades são variantes dos aspectos que compõem as características culturais dos distintos povos e que não estão submetidas, delimitadas ou determinadas em razão das características físicas dos membros do grupo.
O que diferencia, de fato, as sociedades não é o grau de complexidade de sua tecnologia ou de seus apetrechos instrumentais, mas o que Descola (2014, p. 272) chamou de “worlding”: o processo de juntar o que é percebido no ambiente – e que resulta na diversidade de resoluções que cada sociedade encontra para os problemas impostos pelo meio, bem como a posição que a subjetividade toma frente à relação entre humanos e não humanos com os quais suas vidas estejam entrelaçadas5. Ora, se a comunicação entre as pessoas que compartilham os mesmos ‘elementos simbólicos’, como palavras e gestos, só é possível porque estes têm significado para as partes dentro das associações adquiridas, criadas e experienciadas “. . . em toda sorte de contextos” (Wagner, 2010 [1975], p. 77) – que também são próprios e específicos daquela comunicação –, é um equívoco supor que cada cultura ou sociedade encontre soluções específicas para problemas que são universais. Se as associações são infinitas e nunca terminam de ser feitas, deve-se esperar que as inquietações de uma população – aquilo que gera suas dúvidas sobre a existência, as motivações que mantêm tradições vivas e o devir que possibilita a coesão do grupo – sejam radicalmente diversas das nossas (Viveiros de Castro, 2002b, p. 117). Por isso, nenhuma experiência é uma função exclusivamente individual, já que só ‘acontece’ quando é compartilhada entre as pessoas não no nível da sensação, mas no nível do significado, que é a qualidade comunicável humana da experiência (Sahlins, 2008, p. 50).
Nessa medida, deve-se compreender que as pessoas organizam sua vida em função da relação que estabelecem com a natureza, os seres e os fenômenos que os circundam, e sua vida depende do tipo de intervenção que a sociedade humana faz sobre o meio ambiente:
Os objetos materiais e imateriais de nosso meio ambiente não estão nos céus de ideias eternas prontas para serem capturadas por nossas faculdades, nem são meras construções sociais que dão forma e significado a uma matéria-prima; eles são apenas agrupamentos de qualidades, algumas das quais detectamos, algumas das quais ignoramos6
(Descola, 2014, p. 273).As pessoas que compartilham os mesmos significados e a mesma ‘percepção’, que, segundo Ingold (2000, p. 166), é o modo de ação direto e prático sobre o que o ambiente proporciona ao observador engajado. Elas têm que lidar com o fato de que:
. . . a informação potencialmente disponível para um agente é inesgotável: não há limite para o que pode ser percebido [E conclui o autor]: Percepções novas surgem de atos criativos de descoberta, não da imaginação, e as informações nas quais elas são baseadas estão disponíveis para qualquer um que esteja em sintonia para buscá-las7
(Ingold, 2000, p. 166).Para os grupos indígenas, esses conhecimentos sobre como estar e atuar no ambiente provêm da observação metódica, aliada ao interesse em descobrir o funcionamento das coisas:
Para transformar uma erva silvestre em planta cultivada, uma besta selvagem em animal doméstico, para fazer aparecer em uma ou em outra propriedades alimentares ou tecnológicas que, em sua origem, estavam completamente ausentes ou apenas podiam ser suspeitadas; para fazer de uma argila instável prestes a esfarelar-se, a se pulverizar ou a rachar uma cerâmica sólida e vedada. . . . ; para elaborar técnicas, muitas vezes longas e complexas, que permitem cultivar sem terra ou sem água; para transformar grãos ou raízes tóxicas em alimentos ou ainda utilizar essa toxicidade para caça, a guerra ou o ritual, não duvidemos de que foi necessária uma atitude de espírito verdadeiramente científico, uma curiosidade assídua e sempre alerta, uma vontade de conhecer pelo prazer de conhecer, pois apenas uma pequena fração das observações e experiências (sobre as quais é preciso supor que tenham sido inspiradas antes e sobretudo pelo gosto do saber) podia fornecer resultados práticos e imediatamente utilizáveis
(Lévi-Strauss, 1989 [1962], pp. 30-31).Assim, como demonstrou Lévi-Strauss (1964 [2004]) em seus estudos sobre os mitos indígenas, os povos que habitam regiões árticas, como os Inuíte, que conseguem enxergar a olho nu as estrelas circumpolares no céu noturno, percebem mais diferenças sazonais do que, por exemplo, os Bororo, que habitam a Amazônia na região do Trópico de Capricórnio (Pecker, 2009, pp. 179-180). Isto não faz nem de uns, nem de outros privilegiados de uma provável observação mais verdadeira a respeito do mundo, mas é o resultado de como as características salientes do mundo são atualizadas pelas diferentes capacidades humanas (Descola, 2014, p. 271). Um mesmo objeto pode ter infinitos significados ou utilizações, pois não há uma qualidade elementar ou imanente nele: é o ser humano, munido de seu olhar, cultura, tradições, experiências pessoais e coletivas que injetam significado ao que se observa:
As pessoas superestimam sua objetividade porque percebem apenas uma fração das características empíricas das coisas, uma atenção e avaliação seletivas que correspondem a um ato de categorização. Observem que não estamos lidando simplesmente com sensação fisiológica, mas com juízos empíricos. Nem os mecanismos biológicos da percepção nem a universalidade deles estão em questão. O que está em questão é a organização da experiência, inclusive o treinamento dos sentidos, de acordo com os cânones sociais de relevância
(Sahlins, 2001, p. 176).A crença moderna de que os grupos indígenas vivem um atraso social e tecnológico devido à rudimentaridade de suas técnicas está, geralmente, respaldada pela ideia de que os componentes culturais de uma sociedade estão intrinsicamente relacionados às capacidades mentais e biológicas dos indivíduos. Esta precipitação culturalista ocorre em função da insistência em categorizar as sociedades humanas por estágios a serem superados ou etapas de desenvolvimento alcançadas, em um ideal que vê nos indígenas não só atraso, mas imobilismo. Lévi-Strauss já chamava a atenção, na década de 1950, para o fato de que esta percepção se origina da ignorância que temos a respeito dos verdadeiros interesses, conscientes ou inconscientes, dessas outras sociedades, cujos anseios, objetivos, temores, questionamentos e devires são diferentes dos nossos, porque têm critérios diferentes dos nossos (Lévi-Strauss, 1952 [1993], p. 346). Dez anos mais tarde, o antropólogo belga procurou desmentir a ideia de que o conhecimento dos povos indígenas era fruto do acaso ou movido pelo instinto e, por isso, menos qualificado do que o conhecimento científico moderno, argumentando que o homem não percebe as relações com o meio natural passivamente, ele as “. . . tritura depois de tê-las reduzido a conceitos, para dele inferir um sistema que nunca é predeterminado: supondo-se que a situação seja a mesma, ela sempre se presta a várias sistematizações possíveis. . .” (Lévi-Strauss, 1962 [1989], p. 113).
O que resulta disso é um envolvimento do indivíduo com o meio, compartilhado na forma de saberes e contemplação filosófica entre os membros do grupo, que lhes fornece todo um aporte sobre pensar, conhecer, experimentar e experienciar o ambiente em que habitam, provendo-lhes também de expedientes práticos, intelectuais e criativos, eficazes para atuação e intervenção através de um engajamento ativo, prático e perceptivo com os constituintes do mundo habitado, a fim não de construir uma visão de mundo, mas de ter uma visão nele (Ingold, 2000, p. 42). Esta visão é fundamental para a formulação tanto da autorreferência, como das alorreferências que um grupo estabelece ao se posicionar frente aos outros. E este posicionamento é sempre etnocêntrico e autocentrado, partindo não só das próprias concepções, mas empenhado em enquadrar o outro como alteridade, propositalmente distante do ‘nós’. O etnocentrismo, portanto, não é um privilégio dos modernos, mas uma “. . . atitude ideológica natural, inerente aos coletivos humanos” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 368). A questão é a forma como as relações vão ser estabelecidas entre os distintos grupos humanos que se encontram: o ímpeto de colonizar o outro e impor sua visão de mundo não é uma atitude universal. Aplicam-nas aquelas sociedades cujos intentos baseiam-se na inferioridade dos outros – ou, como provocou Clastres (2004 [1980], p. 82), “. . . se toda cultura é etnocêntrica, somente a ocidental é etnocida”.
Se duas populações diferentes entendem e dão significados distintos para os objetos, os costumes, as tradições, os anseios, os medos e toda sorte de práticas e sentimentos uma da outra, é porque as lógicas que dão razão ao sentido que se atribui ao que se vê, ao que se cheira, ao que se experimenta, ao que se toca e se sente partem de percepções do sensível específicas e compartilhadas pelos indivíduos daquele grupo – o que Wagner (2010 [1975], p. 78) chamou de ‘contexto convencionalmente reconhecido’: “. . . ambiente no interior do qual elementos simbólicos se relacionam entre si, e é formado pelo ato de relacioná-los. . .”, possibilitando, assim, que a comunicação e a expressão sejam “. . . possíveis na medida em que as partes envolvidas compartilham e compreendem esses contextos e suas articulações”.
A mitologia, enquanto um conjunto de narrativas que operam logicamente no nível da “. . . organização progressiva do mundo e da sociedade” (Lévi-Strauss, 1993 [1952], p. 65), é o melhor recurso para se buscar os elementos que formulam os conceitos com os quais as pessoas se basearão para apreender, significar e atuar no contexto em que estiverem inseridas.
A MITOLOGIA AMERÍNDIA
Entre os ameríndios, as narrativas mitológicas “. . . formavam um sistema de referência do conhecimento prático e conceitual que, além de prover os índios de importantes saberes a respeito dos seres e do ambiente no qual estavam inseridos, permitiam aos nativos um grau de interação com a realidade” (Felippe, 2014, p. 331). O mito é, antes de tudo, um conjunto de saberes reunidos na forma de uma narrativa, que existe, fundamentalmente, no momento em que está sendo declamada. Assim como no nosso conhecimento científico, em que a produção se realiza através da premissa de que os resultados de uma pesquisa geram dados ou recursos para a realização de pesquisas futuras (fazendo com que o conhecimento adquirido permita refinar ou redefinir o que se fará cientificamente dali em diante), os mitos não se esgotam neles mesmos – “os mitos são in-termináveis” [ênfase adicionada] (Lévi-Strauss, 2004 [1964], p. 24): sua estrutura é formada pelas experiências, investigações, saberes e definições que as pessoas de um determinado grupo foram adquirindo sobre a realidade com a qual convivem, mas também é o recurso pelo qual passam a conhecer o mundo. O mito é a forma narrativa da vivência social potencializada em escala cosmológica:
[eles] formam o polo temporalmente mais distante de um eixo que tem narrativas de experiência pessoal como o polo temporalmente mais próximo. Todo o resto deve, necessariamente, estar localizado em algum lugar entre eles. . .8
(Gow, 2001, p. 288).Um elemento bastante comum nas narrativas mitológicas de grupos indígenas da América é o personagem que ensina os índios a fazerem os utensílios domésticos, a caçar e a pescar, a fumar o tabaco ou a usar o fogo. Este personagem, comumente identificado como um demiurgo, bastante difundido nos mitos, ao invés de uma entidade a ser cultuada, é um identificador do que é externo ao grupo: funciona como um elemento discursivo que se refere à fronteira entre o ‘nós’ e os ‘outros’. Isso porque, na lógica relacional ameríndia, “. . . a relação fundante não [é] a identidade consigo mesmo. . .” (Fausto, 2008, p. 341), mas com o que lhe é externo – o forasteiro sempre carrega consigo uma subjetividade outra, colocando-o em uma posição fundamental no campo de interação com o grupo.
E é justamente desta forma que os europeus aparecem em diversos mitos ameríndios. Sua vinda não estava prevista especificamente, mas implicitamente: a visita de povos que vêm de lugares distantes, trazendo armas e instrumentos não só diferentes, como superiores, é uma forma narrativa bastante comum entre os índios da América, pois “. . . os brancos estavam contidos virtualmente, isto é, estavam previstos, formal senão historicamente, em uma estrutura constitutiva do pensamento indígena” (Viveiros de Castro, 2000, p. 49; cf. Lévi-Strauss, 1993 [1952], p. 66). Como parentes muito distantes, cuja ancestralidade remete a tempos mitológicos, os brancos reapareceram no presente pós-mitológico em aparente contraditoriedade, pois, ao mesmo tempo que dispunham de armas e instrumentos muito superiores aos dos índios, mantinham um comportamento nada amistoso:
Se os ocidentais viam, e ainda veem com frequência, os índios em termos temporais como representantes de um estágio anterior no desenvolvimento da humanidade, os índios veem essas diferenças mais em termos espaciais e não como uma questão de progresso relativo. Nos mitos dos índios, os brancos compartilham uma criação igual, mas que é seguida por uma separação original e declínio moral9
(Hugh-Jones, 1988, p. 145).A tecnologia de alta complexidade que os europeus traziam consigo é um aspecto interessante a se observar pela ótica dos mitos: as trocas realizadas como forma de estabelecimento de alianças entre índios e brancos oportunizava aos primeiros o acesso a objetos como machados de ferro ou espingardas que eram, de fato, novos para os índios, mas não uma novidade em si. A desigualdade tecnológica é, segundo os próprios mitos, uma má escolha dos índios, que tiveram a mesma oportunidade de optar por espingardas, mas preferiram o arco e as flechas. É isso que o mito lhes ensina: ainda que tenham errado, a opção “. . . foi oferecida aos índios, que não são vítimas de uma fatalidade, mas agentes de seu destino. Talvez tenham escolhido mal. Mas fica salva a dignidade de terem moldado a própria história” (Carneiro da Cunha, 1992, p. 19; Hugh-Jones, 1988, p. 145).
Por isso, entre as populações ameríndias, os mitos são “. . . plans for land use. . .” (rhem, 1996, p. 200), funcionando não como um imperativo da passagem do tempo ou um fetiche do evolucionismo ocidental ao determinar o passado como domínio das caudas do presente, mas como um guia que tende a posicionar e, em momentos críticos, reposicionar as coisas no mundo, proporcionando às pessoas a possibilidade de interagir com ele: os mitos fornecem um estoque de ideias alternativas, interpretações e cursos de ação com potencial aplicação ao presente (Hugh-Jones, 1988, p. 151).
Fausto (2012) narra uma situação peculiar que pôde presenciar no alto Xingu, demonstrando o momento em que o mito deixa de ser apenas narrado e passa a ser um ‘evento no presente’. Em 2003, durante a exibição do filme “A guerra do fogo” (Annaud, 1981) aos Kuikuro, na aldeia Ipatse, um eclipse lunar surpreendeu a todos, inclusive ao grupo de indígenas que, com câmeras filmadoras, estava registrando a sessão de cinema. Aproveitando a situação inusitada, os cinegrafistas filmaram a reação que os demais índios tiveram durante o eclipse, documentando o fenômeno meteorológico que é chamado pelos índios de Nguné amatsotilü, ‘a menstruação de lua’. Assim que a lua começou a se avermelhar, a exibição do filme foi interrompida e os Kuikuro começaram a passar polvilho no rosto para evitar que as gotas de sangue manchassem a pele, a jogar toda comida e bebida fora, pois ficaram contaminadas e a escarificar os jovens para tirarem o sangue de lua que os impregnou (Fausto, 2012, p. 66). O que ocorreu foi um ‘contexto extraordinário’, em que o eclipse lunar, sob a perspectiva Kuikuro, foi um evento cosmológico que suspendeu e substituiu a ordem ontológica ‘ordinária e intuitiva do cotidiano’ por outra ‘de caráter transformacional’. A isto, Fausto (2012) denominou de ‘feito de colchete’:
aquilo que era o background passa a foreground – o mundo transformacional, condição primeira do cosmos, se reatualiza e o mundo do cotidiano recolhe-se ao segundo plano. O eclipse é um macro-fenômeno que coloca entre colchetes o dia a dia, instaurando um outro espaço-tempo em que as fronteiras entre os seres tornam-se permeáveis e as espécies naturais passam umas nas outras: o tatu vira arraia, os peixes viram cobra e assim por diante
(Fausto, 2012, p. 69)10.Por meio das cantorias, danças e gritos, “. . . o céu reage ao ruído como se fosse uma ofensa pessoal” [ênfase adicionada] (Lévi-Strauss, 2004 [1964], p. 355), fazendo com que a distância ontológica entre os homens e as demais entidades que compõem a realidade sejam muito mais discretas do que a epistemologia naturalista desejaria. Isto porque a narrativa mitológica ensina aos índios que, no tempo em que “. . . os homens se confundiam com os animais. . .” (Lévi-Strauss, 2004 [1964], p. 141), os seres compartilhavam a mesma condição humana e, por isso, mantinham relações socialmente humanas – casavam-se, bebiam cauim até caírem bêbados, roubavam objetos dos outros, brigavam por inveja ou ciúmes etc. Os animais descritos nas narrativas mitológicas ameríndias, portanto, não eram ‘como’ humanos: eles ‘eram’ humanos, ainda que mantivessem características particulares dos animais que viriam a se tornar após os eventos cataclísmicos narrados pelos mitos (dilúvios, incêndios, divisão dos estratos terrestre e celeste etc.).
Um mito Apinayé narra um grande dilúvio em que parte dos humanos conseguiram se manter em jangadas, dando origem aos atuais Apinayé; outros foram levados pelas águas, dando origem a outros povos; e outros conseguiram escalar as árvores e se refugiar nelas, tornando-se abelhas e cupins (cf. Lévi-Strauss, 2004 [1967], p. 423). O fato de as abelhas e os cupins serem animais que vivem em árvores preconiza sua singularidade frente aos outros humanos mitológicos:
Nesse estado primordial, a diferença está pressuposta, embora não ainda posta, pois o que o mito narra é precisamente a posição da diferença, i.e., a produção de descontinuidades entre as espécies, entre os coletivos humanos, entre o céu e a terra, entre o dia e a noite, entre as terras firmes e as águas que, em seu conjunto, irão constituir o mundo tal qual o conhecemos
(Fausto, 2008, p. 338).Abelhas e cupins não são, na linguagem mitológica, elementos metafóricos (o que transformaria o mito em fábula); são metonímias, pois expressam contiguidades sintagmáticas que, diferente de “. . . deslocar sentidos entre elementos que se assemelham (como em uma metáfora), a narrativa mitológica parte de conceitos que substituem sentidos por serem dependentes e contíguos” (Felippe, 2016, p. 123). Os cupins e as abelhas não eram ‘como se’ fossem humanos no mito; eles ‘eram’ humanos e, após o evento cataclísmico, transmutaram-se nos animais que conhecemos hoje, mantendo os atributos característicos que os qualificam enquanto membros de suas espécies, mas mantêm sua condição interna humana. É isso que faz com que o universo ameríndio seja repleto de entidades que possuem subjetividades particulares, inalcançáveis para os índios, mas inegáveis enquanto expressões de mundos possíveis (Viveiros de Castro, 2002b, p. 118).
UMA ONTOLOGIA RELACIONAL: O ANIMISMO
O animismo, como o totemismo, é uma “. . . unidade artificial que existe somente no pensamento do antropólogo” (Lévi-Strauss, 1975 [1962], p. 21), já que, para nós, não animistas, ele só existe enquanto um conjunto de relações possivelmente interpretáveis, mas não experienciáveis. Isto por dois motivos: primeiro, porque o pensamento moderno, não animista, opera por meio de um paradigma objetivista em que a aquisição de conhecimento das coisas ocorre mediante a separação entre conhecedor e objeto e, muitas vezes, quebrando o objeto em suas partes para conhecê-lo (Bird-David, 1999, p. 77)11; segundo, porque não é uma condição da mente indígena, no sentido de ser uma alucinação ou ilusão coletiva: o animismo é uma “. . . teoria da mente aplicada pelo nativo. . .” [ênfase adicionada] (Viveiros de Castro, 2002b, p. 130) – ou, dito de outra forma, revertendo a afirmação proposta por Alberti e Marshall (2009, p. 344) – “Animism, then, is not a resource for theory but a source of theory” –, para nós, ocidentais, o animismo é, no máximo, uma fonte de teoria que se contrapõe à ideia tyloriana de um recurso para se pensar a teoria sobre a natureza – compreendendo-se, portanto, que ‘nós’ somos aqueles que aceitam a difícil verdade de que estamos sozinhos em um mundo mudo, cego, mas cognoscível, sobre o qual teríamos a tarefa de nos apropriar (Stengers, 2017 [2011], p. 3).
Assume-se, portanto, o animismo como um esquema ontológico (Descola, 2014, p. 275)12, cujo referencial é a relação entre humanos e não humanos a partir de características sociais, em que os indivíduos de várias espécies compartilham um mesmo tipo de interioridade, que lhes faculta uma subjetividade humana em corpos não humanos. Portanto, os não humanos possuem capacidades de consciência, inteligência, intencionalidade, mobilidade e emocionalidade, bem como a capacidade de comunicar-se (Sahlins, 2008, p. 88). Mas estas não são capacidades mentais e dispositivos sociais inventados pelas pessoas. São condições imanentes aos seres que já estavam dispostos no ambiente mitológico, inclusive quando compartilhavam a mesma fisiologia. Por isso, além dos animais, outros entes compartilham a humanidade que atravessa os seres anímicos, como as plantas, os astros celestes (como a lua, o sol e algumas constelações), os ventos, os trovões e uma variedade de seres que, em suma, deixam seu rastro no céu ou na terra (Ingold, 2006 [2013], p. 21)13.
Estas pessoas outras-que-humanas (other-than-human persons) vivem em uma efetiva relação holística e inclusiva com os humanos (Domanska, 2014, p. 67), podendo-se comunicar de diversas formas, sendo a mais comum o encontro individual no meio da mata, que geralmente resulta na morte de um dos dois, estabelecendo, naquele contexto específico, a predominância do ponto de vista do assassino – seja ele um índio, uma onça, um espírito ou uma tempestade14. Diferente do que se pode imaginar, portanto, os humanos não veem os não humanos todo o tempo como pessoas, com quem podem conversar ou trocar objetos, pois a pessoalidade está subjacente, mas nem sempre aparente. A pessoalidade do outro não humano aflora em situações específicas, sendo uma “. . . potencialidade do seu ser-no-mundo, que pode ou não emergir como um resultado de sua posição em um campo de atividade relacional” (Willerslev, 2015, p. 26). Os índios não veem humanos em todos os lugares e em todas as coisas, mas sabem que quando estão mirando uma flecha em uma presa no meio da floresta podem acabar acertando uma pessoa.
Falar de animismo é falar sobre tempo e espaço. O animismo remete a um passado mitológico que não cessa de acontecer, revisitando os índios em momentos específicos – ou sendo revisitado em situações operadas por xamãs15 – e, com isso, alertando que a percepção sobre a passagem do tempo não é privilégio nem domínio dos índios. Daí a conclusão de que os mitos são “máquinas de suprimir o tempo” (Lévi-Strauss, 2004 [1964], p. 35), mas não qualquer tempo: a tarefa dos mitos é a de obliterar a consciência de aspectos da história e permitir que ela retenha sua escala geral, mesmo que os termos e a natureza das relações entre eles estejam mudando – por exemplo, quando elementos externos surgem em decorrência de um contexto histórico, como o contato com os brancos (Gow, 2001, pp. 287-288)16. Os mitos, portanto,
. . . existem por causa da história, eles existem para amortecer os efeitos das perturbações a fim de manter a coerência do significado. Os mitos geram aparente estabilidade; uma ilusão de atemporalidade que não pode ser afetada pelas mudanças do mundo, mas o fazem por meio de suas incessantes transformações, que marcam sua própria historicidade como objeto do ponto de vista do analista17
(Gow, 2001, p. 11).A questão temporal do animismo, que diz respeito à mitologia, acaba por trazer à tona outra dimensão fundamental para se compreender as relações entre humanos e não humanos: o espaço. Ora, sendo o animismo a “compreensão de que a realidade é formada por uma pluralidade de pontos de vista projetados por subjetividades socialmente atuantes no mundo”, logo, “a realidade para a qual os índios projetam o seu ponto de vista é um composto de fronteiras separando domínios que, mesmo sendo autônomos, compõem setores interligados pelas relações estabelecidas entre si” (Felippe, 2020, p. 354). A divisão entre selvagem e doméstico, que orienta a composição dos domínios do inato e do artificial na projeção moderna sobre a natureza, não corresponde a uma forma de interação com o meio que os povos animistas levam em consideração. Esta oposição faz mais sentido a uma ontologia que projeta uma natureza impessoal e vazia, um espaço em que tudo é inerte, exceto aquilo que o homem já manipulou ou tomou para si na forma de domesticação e cativeiro. Para a maioria das populações ameríndias, o ambiente envolvente é habitação espaçosa e familiar, ordenada ao longo das gerações com tal discrição que o toque de cada um dos sucessivos inquilinos se torna quase imperceptível (Descola, 2005 [2012], pp. 70-71) – e, por inquilinos, entende-se aqui humanos e não humanos, que habitaram, habitam ou moveram seu ‘rastro’18, interagindo com o meio e com os demais seres ali presentes. O animismo, mais do que etnocêntrico, é cosmocêntrico (Viveiros de Castro, 2002a, p. 369).
Estes domínios não são espaços simplesmente dispostos para organizar os recursos disponíveis para os índios e facilitar sua interação com o meio. Pelo contrário, uma das maiores inquietações dos humanos é saber que, para poder viver, acabam sempre tendo que desrespeitar os limites de um domínio de outrem: “. . . para plantar, caçar, pescar é preciso adentrar nos espaços alheios, quase sempre com intenções predatórias” (Fausto, 2008, p. 340). E a principal característica destes domínios é a presença dos donos ou mestres, identificados como seres protetores de uma espécie, “. . . sendo responsáveis por seu bem-estar, reprodução, mobilidade. . .”, o que vai além da noção de representação: “. . . o chefe-mestre é a forma pela qual um coletivo se constitui enquanto imagem; é a forma de apresentação de uma singularidade para outros” [ênfase adicionada] (Fausto, 2008, pp. 333-334). O dono, portanto, é um indivíduo que retém a imagem de sua espécie em uma condição de singularidade plural “mais-que-um-mas-menos-que-muitos” (Blaser, 2016, p. 558)19.
É isso que leva as relações interespécies a serem simétricas e a não possibilitarem, entre os humanos, um domínio do tipo domesticação em cativeiro sobre os animais. Descola (2002) já alertava para o equívoco de se estabelecer uma relação direta entre amansamento e domesticação, típico do pensamento naturalista objetivista, que toma como premissa a dessimetria entre humanos e animais. As populações ameríndias não andinas não praticam o cativeiro com finalidade de reprodução, pois correm o risco de ocasionar uma subversão da ordem relacional entre o homem e o ambiente – ainda que não lhes seja proibida a caça, a pesca ou outras ações predatórias, contanto que sejam realizadas sob algumas condições estabelecidas para que não ocorram exageros e desrespeitos que provoquem a ira dos donos (Felippe, 2014, p. 319). A própria relação entre os animais e os donos já é estabelecida na ordem da domesticação, em que o dono conserva na sua casa ou num cercado os animais da sua espécie, protegendo-os de predadores e alimentando-se deles, quando necessário (Descola, 2002, p. 106).
Enfurecer um dono é deparar-se com a ira de uma entidade poderosa que pode se vingar depois de alguma ofensa ou transgressão feita em seu domínio ou à sua espécie. Situações em que os xamãs humanos têm que intervir de alguma maneira a fim de solucionar problemas ou acalmar a irritação de um dono furioso não são raras, e muitas calamidades, como o sumiço repentino de animais de caça de uma determinada espécie, doenças que assolam uma aldeia ou acidentes que atingem um índio sozinho, como o ataque mortal de uma onça ou o afogamento em um rio, acabam fazendo parte do cotidiano indígena. Os Toba de Formosa, na Argentina, contam que ‘si?aixaua’, ente responsável pelos rios e lagos, conseguiu barrar as intenções do governo de urbanizar uma região tipicamente turística, ao inviabilizar a construção de uma ponte após causar infortúnios que impediram as obras de drenagem da laguna pela qual o empreendimento passaria (Medrano & Tola, 2016, pp. 115-116).
O animismo das populações indígenas é uma epistemologia relacional de fato (Bird-David, 1999, p. 69) – ao contrário das ‘tolerâncias’ do naturalismo objetivista que, por exemplo, aceitam senhoras que dizem ser compreendidas por seus gatos (Stengers, 2017 [2011], p. 3). Não é simplesmente o oposto cínico do objetivismo naturalista – como um relativismo cultural disfarçado de engajamento político e preocupação ambiental –; o animismo é um relacionismo (Hornborg, 2006, p. 28). Mas não no sentido de poder falar o tempo todo com plantas, animais, espíritos ou com astros, nem os ver perambulando pela mata. Não é (ou não deveria ser) uma metáfora exótica para um tipo de harmonia entre os índios e os animais projetada pelo mea culpa de um ecologismo fracassado e panfletado no mundo industrial. O animismo diz respeito a agenciamentos que afetam e são afetados em relações potencialmente estabelecidas, mas não necessariamente acessíveis. É, antes de tudo, saber que não se está sozinho no mundo (Stengers, 2011 [2017], p. 15).
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Notas
Autor notes
Autor para correspondência: Guilherme Galhegos Felippe. Universidade Federal de Santa Maria. Av. Roraima, nº 1000. Santa Maria, RS, Brasil. CEP 97105-900 (guilherme.felippe@ufsm.br).