Resumo: Este artigo analisa a institucionalização dos museus regionais brasileiros e os seus impactos na imaginação museal de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976). O intuito é observar as ressonâncias dos museus regionais criados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e as singularidades desse projeto no contexto museológico brasileiro. Desse modo, por meio de análise documental e revisão bibliográfica, reconstrói momentos decisivos da concepção dos museus regionais, a partir do conceito de civilização material, e da criação do Museu do Diamante, em Diamantina, Minas Gerais. As análises demonstraram os agenciamentos entre as trajetórias de Juscelino Kubitschek e Rodrigo Melo Franco de Andrade ao forjarem uma determinada memória sobre Diamantina e mobilizarem uma imaginação museal em consonância com a projetada pelo SPHAN no âmbito dos museus regionais.
Palavras-chave: Museus regionais, Civilização material, Museu do Diamante, Imaginação museal, Juscelino Kubitschek.
Abstract: This paper analyzes the institutionalization of Brazilian regional museums and its impacts on Juscelino Kubitschek’s (1902-1976) museological imagination. The aim is to observe the resonances of regional museums created by the National Historical and Artistic Heritage Service (SPHAN) and the singularities of these projects in the Brazilian museological context. Through document analysis and bibliographic review, the study reconstructs decisive moments in the conception of regional museums based on the concept of material civilization and the creation of the Diamond Museum in Diamantina, Minas Gerais. The analysis demonstrates the assemblages among the trajectories of Juscelino Kubitschek and Rodrigo Melo Franco de Andrade when they forged a specific memory about Diamantina and mobilized a reimagined museum aligned with the one projected by SPHAN within the scope of regional museums.
Keywords: Regional museums, Material civilization, Diamond Museum, Museum imagination, Juscelino Kubitschek.
ARTIGOS CIENTÍFICOS
A ‘civilização material’ nos museus regionais do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: confluências entre a criação do Museu do Diamante e a imaginação museal de Juscelino Kubitschek
The ‘material civilization’ in the National Historical and Artistic Heritage Service regional museums: confluences between the creation of the Diamond Museum and Juscelino Kubitschek’s museological imagination
Recepção: 10 Agosto 2021
Aprovação: 19 Janeiro 2022
Há manifesto interesse público e conveniência nacional em que as atividades culturais extra-escolares exercidas pela União não fiquem circunscritas às grandes cidades do litoral ou apenas às capitais. Os meios escassos de que dispõem, para a ilustração e a educação de suas populações, os núcleos urbanos do interior do Brasil tornam muito mais necessária e importante aí a ação dos poderes públicos federais com aquele objetivo. A obra educativa dos museus e bibliotecas públicas, inteligentemente localizadas no território nacional, será tanto mais proveitosa quanto a ação desses estabelecimentos tem maior extensão que o ensino intra-escolar.
(Kubitschek, 1947, p. 1).Este artigo examina aspectos da institucionalização dos museus regionais brasileiros e os seus impactos na imaginação museal de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976). Aqui, o intuito é observar as ressonâncias dos museus regionais criados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)1 como um dos repertórios centrais na proposta museal de Kubitschek no período em que foi deputado federal, entre 1946 e 1950. O argumento é de que o projeto de criação do Museu do Diamante, na cidade de Diamantina, em Minas Gerais, sintetizaria a ‘imaginação museal’ em torno dos museus regionais, visualizada como “capacidade singular e efetiva de determinados sujeitos articularem no espaço (tridimensional) a narrativa poética das coisas” (Chagas, 2003, p. 64).
A partir das reflexões de Mario Chagas (2005), é possível compreender a imaginação museal como uma operação seletiva de intenções e de gestualidades para a produção de determinadas matrizes discursivas ou tendências de pensamento que podem gerar experimentações nos espaços museais. No que o autor definiu como ‘narrativa poética das coisas’, ou uma narrativa construída a partir da mobilização de imagens, formas e objetos, os museus são compreendidos enquanto espaços de produção, arquivamento e circulação de memórias erigidas por meio da interação com as coisas, em uma codificação compartilhada:
Um museu, seja ele qual for, só pode ser produzido e reconhecido como tal quando está inserido numa codificação social compartilhada, quando faz parte de uma experiência comum. Sobretudo nas sociedades complexas e contemporâneas essa experiência que denomino de participação museal é um dado concreto. Na raiz dessa experiência está aquilo que se denomina de imaginação museal. É com base nessa imaginação que os museus são produzidos, reconhecidos, lidos, inventados e reinventados. A minha sugestão é que a imaginação museal seja compreendida como a capacidade humana de trabalhar com a linguagem dos objetos, das imagens, das formas e das coisas. A imaginação museal é aquilo que propicia a experiência de organização no espaço – seja ele um território ou um desterritório – de uma narrativa que lança mão de imagens, formas e objetos, transformando-os em suportes de discursos, de memórias, de valores, de esquecimentos, de poderes etc., transformando-os em dispositivos mediadores de tempo e pessoas diferentes.
(Chagas, 2005, p. 57).A profusão e dispersão dos textos de Juscelino Kubitschek relativos à temática dos museus, as suas iniciativas institucionais e as singularidades de suas propostas estimularam a pesquisa que integra um projeto mais amplo visando o mapeamento de fontes relacionadas à sua atuação no campo dos museus e patrimônios. Este artigo, por meio de análise documental e revisão bibliográfica, evidencia como a criação do Museu do Diamante reforçou o projeto de interiorização dos museus e o discurso sobre o papel ‘civilizador’ dos museus regionais, orientados pelos chamados ciclos econômicos.
Esse argumento está explícito no trecho em epígrafe a este artigo, extraído da justificativa do Projeto de Lei n.º 138-E, apresentado por Juscelino Kubitschek na Câmara dos Deputados em 1947, cujo dossiê foi disponibilizado pela equipe do Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados. O projeto propõe a criação do Museu do Diamante e da Biblioteca Antônio Torres, em Diamantina, cidade natal de Kubitschek, e se respalda no argumento da interiorização dos museus e bibliotecas como caminho para a “ilustração e a educação de suas populações nos núcleos urbanos do interior do Brasil. . . . Para a formação moral, cívica e cultural dos nossos patrícios do interior” (Kubitschek, 1947, p. 1). Na verdade, é importante visualizar a ambiguidade da proposta que evidencia as singularidades regionais, ao incentivar a criação de museus e bibliotecas no interior do país, reforçando, ao mesmo tempo, o papel ‘civilizador’ dessas instituições. No caso específico do Museu do Diamante, demonstra as confluências entre a imaginação museal de Kubitschek e a dos intelectuais do SPHAN na década de 1940 e 1950.
A justificativa da criação do Museu do Diamante apresentada no projeto de lei elaborado por Juscelino Kubitschek se respalda no discurso de Afonso Arinos de Melo Franco (2005), ao articular o ‘desenvolvimento da civilização material’ ao ciclo econômico do diamante. Por sua vez, também dialoga com o discurso do SPHAN quando se ancorou nos mesmos argumentos para criar os chamados museus regionais. Não é por acaso que Kubitschek, conforme os documentos no dossiê do Projeto de Lei n.º 138-E, também conferiu aos museus uma ação ‘civilizatória’, ao difundir ‘ilustração e a educação às populações dos núcleos urbanos do interior do Brasil’, função potencializada em coleções remanescentes dos ciclos econômicos:
Não será preciso encarecer a importância da mineração do diamante na história econômica, social e mesmo política do nosso país para justificar a criação do Museu do Diamante. . . . Entretanto, pode acrescentar-se que a instituição e a organização inteligente de museus técnicos especializados e regionais cada dia se recomenda mais às nações civilizadas, entre as suas iniciativas de finalidade cultural.
(Kubitschek, 1947, p. 2).Foi a partir da ambiguidade2 em torno da imagem dos museus regionais como contraparte dos museus nacionais e, ao mesmo tempo, como instauradores de um critério de divisão, marcado por fronteiras espaciais e cronológicas definidas em decorrência dos ciclos econômicos (o pau-brasil, o açúcar, o tabaco, a pecuária, a mineração de ouro e de diamante, o café e o ciclo industrial), que o SPHAN promoveu a interiorização da política museológica nos anos 1930 a 1950. Conforme destacou Pierre Bourdieu (1998), o conceito de região está relacionado às lutas pelo monopólio de impor uma definição legítima das divisões do mundo social. Ao sublinhar a etimologia do termo ‘região’, destaca-o como princípio da divisão: do latim regio deriva de rex, autoridade que circunscrevia as fronteiras. Portanto, é possível reconhecer os museus regionais como um modo de classificação resultante da relação de forças materiais e simbólicas no campo do patrimônio no Brasil.
Partindo dessa hipótese, o artigo analisa a criação do Museu do Diamante e a sua inserção na rede dos museus regionais do SPHAN, concebidos como instâncias de salvaguarda e extroversão dos vestígios da ‘civilização material’ no Brasil. Do mesmo modo, evidencia como essa articulação impactou os agenciamentos de Juscelino Kubitschek na mobilização de estratégias que configuraram uma imaginação museal em consonância com a projetada pelo SPHAN nas cidades mineiras.
O discurso da interiorização dos museus no Brasil pode ser evidenciado em algumas das primeiras ações do SPHAN, na década de 1930, sob a pauta da valorização do patrimônio cultural móvel. De acordo com Lygia Martins Costa (2002), a organização dos museus monográficos fora dos grandes centros urbanos contribuiu para a criação de um programa original, ao reconhecer nas coleções peças até então desvalorizadas, com destaque para a criação dos museus da Inconfidência (1938), em Ouro Preto, Minas Gerais, das Missões (1940), em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, e do Ouro (1945), em Sabará, Minas Gerais. A autora utilizou o termo ‘museus monográficos’ para se referir aos museus que tematizaram a ‘civilização do ouro’ e a ‘civilização jesuítico-indígena’ e também a expressão ‘museus regionais’ evidenciando que, apesar das marcas regionais, os museus criados em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul adquiriram um significado nacional. Esse significado dialoga com a noção de ‘civilização’ decorrente dos “ciclos socioeconômicos e políticas que o país em sua pluralidade cultural viveu” (L. Costa, 2002, pp. 27-28).
Nesse aspecto, Lygia Martins Costa (2002) apresenta o significado de museu regional ao compreendê-lo como intérprete de uma região, ao preservar e explorar culturalmente o acervo que o constituiu, expressando diferentes realidades locais. Do mesmo modo, sugere a relação telúrica das comunidades com as coleções: “ao verem reunidas e articuladas esses remanescentes familiares, passam a compreender o processo de sua própria civilização, com tópicos que desde o berço ouviam contar” (L. Costa, 2002, p. 29). Em suas análises, esses museus traduziriam a fisionomia dos distintos ciclos econômicos e sociais, com apresentação em profundidade de um tema monográfico que importaria substancialmente à região.
Nas análises de Mario Chagas (2017), o museu regional não era originalmente uma categoria nativa do SPHAN. O pesquisador destaca que, desde meados do século XIX, esse termo era utilizado fora do país para expressar a preservação, por meio dos museus regionais, museus temáticos de cunho local e museus a céu aberto, de aspectos regionais ameaçados de desaparecimento3.
Essa constatação é significativa quando se observa que a seção de museus, prevista no anteprojeto de Mario de Andrade para a criação do SPHAN, em 1936, contemplava apenas quatro museus nacionais no Rio de Janeiro (Arqueologia e Etnografia, História, Belas-Artes e Artes Aplicadas e Técnicas Industriais). Já o Decreto-Lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937, que organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, definiu no artigo 24 que a União manteria, além do Museu Histórico Nacional e do Museu Nacional de Belas Artes, “tantos outros museus nacionais quantos se tornarem necessários, devendo outrossim providenciar no sentido de favorecer a instituição de museus estaduais e municipais, com finalidades similares” (Decreto-Lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937).
Letícia Julião (2009) informa que as iniciativas museológicas surgiram como um programa marginal no âmbito da política preservacionista do SPHAN, mas que foram beneficiadas pelos conhecimentos produzidos na gestão do patrimônio. Segundo a pesquisadora, isso pode ser observado no discurso da ‘civilização mineira’ enquanto chave interpretativa e legitimadora da política do patrimônio nos anos 1930 e 1940:
O discurso consagrado pelo SPHAN de identificação da sociedade mineradora com a origem da própria nacionalidade deve muito ao pensamento de Afonso Arinos de Melo Franco. Em particular ao seu conceito de civilização brasileira que, pode-se dizer, constituiu-se em uma chave interpretativa do discurso patrimonial legitimado nos anos 1930 e 1940. Além da interlocução permanente que mantinha com Rodrigo M. F. de Andrade, Arinos ministrou um curso para o grupo de funcionários do SPHAN em 1941, cujas palestras foram publicadas em 1944 com o título “Desenvolvimento da civilização material no Brasil”. Nessa e em outras obras, o autor faz coincidir a ideia de ‘civilizações’ com aquela de ciclos econômicos, inscrevendo, assim, a marcha civilizacional em trajeto marcado pelos ápices de riquezas geradas no país e seus consequentes rastros materiais. Considerada a cultura realizada, a civilização é definida, pelo autor, como o aproveitamento que o homem faz do mundo para satisfazer suas necessidades, o que implicaria técnica e distintos graus de qualidade de vida. Nessa escala evolutiva, defendia, as culturas que interessam, de fato, são aquelas que transmitem à posteridade sua concepção e interpretação do mundo.
(Julião, 2009, p. 149).Conforme destacado, Afonso Arinos de Melo Franco ministrou cinco palestras sobre a ‘civilização material’ no Brasil, entre outubro e novembro de 1941, para os servidores do SPHAN. As palestras foram publicadas em 1944 na obra “Desenvolvimento da civilização material no Brasil” (Franco, 2005), cujo argumento impactou a compreensão e a gestão das políticas do patrimônio no Brasil. Afonso Arinos era primo de Rodrigo Melo Franco de Andrade e membro do Conselho Consultivo do SPHAN, sendo um dos intelectuais mais atuantes na ‘Academia SPHAN’ (Veloso, 2018). De acordo com Fonseca (2005), uma das principais contribuições do conceito de ‘civilização material’ foi a possibilidade de visualizar os bens e conjuntos urbanos a partir da relação com o processo histórico de ocupação das diferentes regiões do país.
Afonso Arinos interpretou os processos sócio-históricos nacionais tendo como foco a leitura dos vestígios e das transformações da herança material, entre os séculos XVI e XIX (Franco, 2005). Sua proposta consistiu, em grande medida, na aplicação dos argumentos apresentados em “Síntese de história econômica do Brasil”, obra em que partiu dos ciclos econômicos para delinear uma história nacional, do ciclo do pau-brasil até a industrialização (Franco, 1958). José Murilo de Carvalho (2005) reconhece que, nas palestras formuladas para os funcionários do SPHAN, depois reunidas em livro, Arinos “amplia o leque de manifestações da civilização, atendendo às necessidades do treinamento dos técnicos do órgão” (Carvalho, 2005, p. 14). Este argumento é resumido no prefácio de Rodrigo Melo Franco de Andrade (2005), quando sublinhou que o curso de Arinos consistia em um modo de orientar os estudos e trabalhos dos técnicos do SPHAN, ampliando os conhecimentos sobre o aspecto material do processo histórico nacional. Nesse aspecto, reconhece a investigação das ocorrências da ordem material na formação brasileira como fundamental para a elaboração de uma história da arte no Brasil.
A opção por efetuar uma interpretação sobre a formação da nacionalidade a partir do conceito de ‘civilização material’, nos moldes delineados por Afonso Arinos de Melo Franco (2005), consistiu na sistematização dos critérios técnicos já utilizados pelos integrantes do Conselho Consultivo do SPHAN na seleção daquilo que deveria (e, por conseguinte, do que não deveria) configurar o chamado patrimônio histórico e artístico nacional. O curso tornou-se, assim, um modo de orientar o olhar dos técnicos do SPHAN em seus enquadramentos da cultura material digna de ser salvaguardada como vestígio da ‘civilização’. Essa interpretação reforçava as práticas do SPHAN na valorização dos ciclos do ouro e do diamante em Minas Gerais, o que definiu como “o centro principal da civilização brasileira no século XVIII” (Franco, 2005, p. 99). Do mesmo modo, a obra de Afonso Arinos evidencia os critérios etnocêntricos e evolucionistas que respaldaram a prevalência dos bens da herança portuguesa nos tombamentos realizados pelo órgão, reconhecidos como o ápice da ‘civilização material’ no país:
O desenvolvimento da nossa civilização material é de base portuguesa, entendida no seu complexo luso-afro-asiático. A contribuição negra e índia, muito notável na elaboração do nosso psiquismo nacional, é pouco importante na civilização material, não somente por ter sido absorvida no choque com um meio muito mais evoluído, mas também porque as condições de sujeição em que viviam as raças negra e vermelha não permitiam a expansão plena das suas respectivas formas de cultura. Por isto mesmo, os elementos negros e índios, presentes na nossa civilização material, salvo um ou outro mais notáveis, são de difícil identificação.
(Franco, 2005, p. 37).A leitura de Afonso Arinos sintetiza aquilo que o SPHAN reconhecia como digno de ser classificado como patrimônio histórico e artístico da nação. Seus argumentos subsidiaram muitos dos pareceres do Conselho Consultivo do SPHAN e dos artigos que integraram a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, periódico criado em 1937 e que contribuiu para a consolidação do seu discurso institucional. O curso de Arinos, os pareceres do Conselho Consultivo e os textos publicados na Revista do Patrimônio são documentos significativos para a compreensão de uma “formação discursiva específica, cuja dinâmica simbólica é dada pela permanente tematização do significado de categorias de histórico, de passado, de estético, de nacional, de exemplar, tendo como eixo articulador a ideia de patrimônio” (M. Santos, 1996, p. 77).
As pesquisas de Analucia Thompson et al. (2012) evidenciam a prevalência do conceito de ‘civilização material’ nos textos e nas ações institucionais difundidas nos primeiros anos da Revista do Patrimônio. Argumentam que, para Afonso Arinos, a noção de civilização consistia no controle da natureza pela técnica, o que resulta no entendimento de múltiplas civilizações. Todavia, os pesquisadores reconhecem que, impactado pela leitura evolucionista, Arinos defendia a herança portuguesa como a base do desenvolvimento da ‘civilização material’ brasileira. Isso explicaria a preferência pela patrimonialização dos bens de expressão europeia e a demarcação dos objetos originários do período colonial: “o tempo do patrimônio é o tempo das fundações histórico-culturais do país, o tempo da colônia, origem e destino de nossa singularidade nacional” (Thompson et al., 2012, p. 190). No mesmo aspecto, Luciano Teixeira (2011) reconhece que Afonso Arinos narrou a epopeia de uma ‘civilização’ nos trópicos, ao trazer a materialidade como foco interpretativo e construir uma moldura para delinear os fatos considerados memoráveis da história e do patrimônio nacional.
Em leitura similar, Robson Orzari Ribeiro (2013) reconhece os impactos do curso de Afonso Arinos e do conceito de ‘civilização material’ nas seleções, nos inventários e nos tombamentos realizados pelo SPHAN. Nesse aspecto, sublinha a associação entre o ‘desenvolvimento civilizacional’ brasileiro e os ciclos econômicos: “o Brasil litorâneo e canavieiro – com as ocupações jesuíticas no Sul e no Nordeste; o Brasil aurífero e ‘barroco’ – com a figura do bandeirante no Centro-Oeste e Sudeste; o Brasil da corte e da cafeicultura – no Sudeste” (Ribeiro, 2013, p. 60). A partir dessa interpretação, é possível constatar que grande parte do mapeamento da cultura material efetuado por Arinos coincide com os tombamentos realizados pelo SPHAN, em uma classificação que resultou na prevalência da cultura portuguesa na colonização do país, na preservação dos resquícios dessa cultura material e na valorização do ciclo da mineração, em Minas Gerais. Por isso, considerava a relevância do século XVIII na formação do Brasil: “fixou a população no interior, estabeleceu ligações internas entre as mais distantes capitais, deu ao Brasil, afinal, a sua configuração física. Durante ele, o país começa a se apresentar na sua diversidade material” (Franco, 2005, p. 119).
Não é sem motivos que, para os intelectuais do SPHAN, Minas Gerais era visualizada como uma ‘civilização’ e o patrimônio, um modo de conceber a nação ‘civilizada’. De acordo com Mariza Veloso (2018), isso contribuiu para que os integrantes da ‘Academia SPHAN’ construíssem um discurso em que Minas e o século XVIII se transformaram em metonímia da nação, tendo como consequência a atenção privilegiada dada ao barroco mineiro. Os argumentos de Afonso Arinos sobre a ideia de ‘civilização brasileira’, apresentados nos capítulos sobre o ciclo do ouro e do diamante em sua “Síntese de história econômica do Brasil” (Franco, 1958), eram similares aos dos intelectuais do SPHAN sobre os bens culturais a serem salvaguardados:
Sob o ponto de vista da civilização brasileira a contribuição das minas é insuperável e inesquecível. . . . As minas desenvolveram até um grau nunca dantes atingido, a cultura intelectual brasileira. Do centro das Gerais saíram grandes intelectuais que projetaram a glória brasileira em Portugal em outros países europeus. Formou-se uma alta aristocracia mental de juristas, prosadores, críticos, historiadores e poetas. Começaram a penetrar no Brasil as grandes ideias revolucionárias do século XVIII, e antes deste ter fim, a tragédia da Inconfidência Mineira mostra o caminho que tais ideias tinham percorrido. O centro da cultura lusa passa a ser a região da minas. . . . E dentro deste ambiente, rico de forças culturais, a arte brasileira produz a sua mais poderosa figura, genial mulato Antônio Francisco Lisboa, o ‘Aleijadinho’, nascido em 1730, que foi um legítimo expoente da civilização do ouro. . . . Essas sumárias indicações mostram a importância nacional e internacional que assumiu, no meu país, o ciclo econômico da mineração.
(Franco, 1958, pp. 70-71).Essas reflexões demonstram os motivos dos primeiros tombamentos realizados pelo SPHAN, em 1938, contemplarem os conjuntos arquitetônicos e urbanísticos de seis cidades mineiras: Ouro Preto (processo n.º 0070-T-38), Mariana (processo n.º 069-T-38), São João del-Rey (processo n.º 068-T-38), Tiradentes (processo n.º 066-T-38), Serro (processo n.º 65-T-38) e Diamantina (processo n.º 64-T-38). Tal argumento também pode ser observado em afirmações de Rodrigo Melo Franco de Andrade (1987), quando analisou os monumentos de arte e bens de interesse histórico em Minas Gerais: “as construções integrantes das cidades originárias dos grandes centros de mineração do ouro e dos diamantes – Ouro Preto, Mariana, São João del-Rei, Tiradentes, Sabará, Serro e Diamantina –, . . . . formam o núcleo mais denso do acervo nacional” (Andrade, 1987, p. 60).
Por exemplo, essa argumentação pode ser visualizada nos documentos que integram o processo de tombamento do conjunto arquitetônico e urbanístico de Diamantina, localizado no Arquivo Central do IPHAN - Seção Rio de Janeiro. Diversos ofícios da municipalidade foram encaminhados a Rodrigo Melo Franco de Andrade nas décadas de 1930 e 1940 apresentando dúvidas sobre os efeitos da patrimonialização. Na resposta que o diretor do SPHAN encaminhou ao prefeito João Brandão Costa, em 17 de setembro de 1941, é possível observar como a preservação da ‘civilização material’ em seu conjunto sustentou o tombamento da cidade mineira:
O que constitui monumento, pelo seu excepcional valor histórico e artístico, não é nenhum dos edifícios considerado, em si mesmo, isoladamente, [mas] a sua coexistência, a sua conservação em conjunto, formando um todo que, por isso mesmo, assume feição urbanística e arquitetônica de valor inestimável, tanto do ponto de vista puramente histórico, como do histórico-artístico. É esse conjunto que importa preservar, no seu todo, pois empresta às cidades, que ainda apresentem essa documentação viva de sua formação e desenvolvimento originários, a sua fisionomia peculiar. É, portanto, esse conjunto (bem material, que é de toda a cidade sem pertencer particularmente a quem quer que seja) o objeto do tombamento, o monumento incorporado ao patrimônio histórico e artístico nacional.
(Andrade, 1941, p. 1).No âmbito dos museus, Rodrigo Melo Franco de Andrade (1987) ressaltou a necessidade de o SPHAN criar instituições fora do Rio de Janeiro em virtude do incremento do comércio de antiguidades no país, tornando “de conveniência manifesta um esforço para serem retidos, nas áreas prejudicadas, os espécimes mais expressivos que restassem do acervo regional, por meio de sua compra para o patrimônio da União” (Andrade, 1987, p. 159).
É neste contexto que os museus regionais se tornaram metonímia do discurso de ‘civilização material’ difundido pelo SPHAN, ao permitirem a mobilização de sua diversidade. Tornaram-se formas potentes de tradução desse pensamento – embora coadjuvantes às ações de preservação do patrimônio de ‘pedra e cal’ – ao articularem bens móveis representativos de determinados ciclo econômico e região, bens imóveis remanescentes do mesmo contexto (os museus foram instalados em exemplares arquitetônicos considerados sínteses dessa ‘civilização’) e conjuntos urbanos reconhecidos como patrimônios nacionais pelos mesmos motivos. Essa leitura é importante ao reconhecer as distinções dos museus nacionais vinculados ao SPHAN, centrados no Império e sediados no então Distrito Federal, a exemplo dos herdados (Museu Nacional e Museu Histórico Nacional), e dos que criou a partir de núcleos preliminares: “o Museu Nacional de Belas Artes formou-se a partir do acervo da antiga Academia Imperial de Belas-Artes, e o Museu Imperial teve sua origem associada ao antigo Museu Histórico de Petrópolis, herdando inclusive seu patrimônio” (Julião, 2009, p. 148).
Do mesmo modo, o papel dos museus regionais do SPHAN na preservação dos vestígios da ‘civilização material’ pode ser visualizado nas justificativas de criação do Museu das Missões, no Rio Grande do Sul (Decreto-Lei n.º 2.077, de 8 de março de 1940). A valorização do ‘acervo regional’, o combate à dispersão dos bens em decorrência do comércio de antiguidades e o discurso sobre a adequada ocupação dos remanescentes arquitetônicos consistiram nos motivos que transformaram o Museu das Missões em um laboratório para a criação dos museus regionais4.
O SPHAN deslocou a política museológica não apenas geograficamente, mas configurou novas coleções e discursos museográficos inovadores, ao promover a musealização de vestígios de uma cultura tida como civilização. Essa leitura pode ser evidenciada, por exemplo, na ideia de ‘civilização mineira’ e na instituição de uma rede de museus em Minas Gerais:
Criados entre os anos 1930 e 1950, os museus da Inconfidência, do Ouro, do Diamante e Regional de São João Del Rei significativamente distribuíam-se pelas quatro antigas comarcas da Capitania das Minas – Vila Rica, Sabará, Serro do Frio e Rio das Mortes – o que permitia assegurar uma atuação museal a toda extensão geográfico-administrativa da empresa colonial na sociedade mineradora. Organizados nos principais núcleos urbanos coloniais de Minas, antigas cabeças de comarcas, à exceção de Diamantina, os museus lograram musealizar vestígios de uma cultura concebida como civilização. Eram instituições que resultavam e, ao mesmo tempo, concorriam para a produção de um discurso baseado na premissa de que, na conformação do fenômeno urbano e nos seus desdobramentos culturais, encerrava-se o grande legado das Minas para o país. Celebravam, portanto, uma civilização vista como germinal da brasilidade, e cujo documento mais visível de sua existência eram exatamente as estruturas urbanas sobreviventes dos séculos XVIII e XIX. . . . Que outro meio senão os museus para melhor mostrar uma cultura realizada pelo engenho, técnica e gênio de uma sociedade? . . . Comungando o mesmo propósito de reverenciar a suposta civilização mineira, os museus da Inconfidência, do Ouro, do Diamante e Regional de São João Del Rei circunscrevem uma zona de cruzamento museal, fixada pela semelhança de suas práticas de colecionamento e de suas interpretações do passado mineiro e brasileiro. A despeito das diferenças de porte, da abrangência e do volume específicos de seus acervos ou de terem sido criados em contextos políticos distintos, esses museus não apenas são de natureza semelhante como também conservam fortes ligações de reciprocidade.
(Julião, 2009, p. 149-151).Os museus reafirmavam a suposta civilização mineira, reforçando a tese da centralidade de Minas Gerais no desenvolvimento da ‘civilização material’ brasileira. Essas instituições consistiram em locais de preservação e de promoção dos vestígios dessa ‘civilização’ e, nesse aspecto, foram estrategicamente criadas nas cidades reconhecidas como patrimônio nacional: Museu da Inconfidência (Decreto-Lei n.º 965, de 20 de dezembro de 1938), em Ouro Preto; Museu do Ouro (Decreto-Lei n.º 7.483, de 23 de abril de 1945), em Sabará; Museu Regional de São João del-Rei, em São João del-Rei; Museu Regional Casa dos Ottoni, no Serro; e Museu do Diamante (Lei n.º 2.200, de 12 de abril de 1954), em Diamantina.
Além de evitar a dispersão de objetos e coleções representativos dessa ‘civilização material’, contribuindo para a preservação e manutenção desses bens móveis em suas regiões de origem, a ideia era de que os museus regionais propiciassem a valorização da ‘arquitetura tradicional brasileira’ manifesta nos imóveis escolhidos para essa finalidade. Rodrigo Melo Franco de Andrade (1987) sugeriu os museus como formas de ocupação de imóveis tombados e restaurados pelo SPHAN em diversas cidades brasileiras, a fim de “utilizarem obras de arquitetura antiga, restauradas às expensas do poder público federal e incorporadas ao domínio da União, para fins compatíveis com o interesse histórico ou plástico de semelhantes edificações” (Andrade, 1987, p. 160). Nestes casos, é interessante perceber a eleição de prédios cuja história se vinculava à temática dos museus e ao modo como os museus regionais tornaram-se fruto de um investimento pautado em “uma história selecionada numa materialidade que a autenticava, por meio de objetos tanto arquitetônicos quanto móveis” (Chuva, 2009, p. 184).
O Museu da Inconfidência foi concebido como um museu nacional, certamente em virtude da centralidade de Ouro Preto, do barroco mineiro e da Conjuração Mineira na formação discursiva da ‘Academia SPHAN’ (Veloso, 2018). No discurso de inauguração do Museu da Inconfidência, em 11 de agosto de 1944, Rodrigo Melo Franco de Andrade (1987) reconheceu que ele assinalava “o início de uma orientação nova e de relevante significação, adotada pelo governo da União a respeito dos museus nacionais. Deixando de limitar-se a organizar e desenvolver essas instituições federais apenas na capital da República” (Andrade, 1987, p. 165). Essa leitura constituiu exceção no âmbito dos museus criados fora do Distrito Federal nos primeiros anos do SPHAN, visto que as demais instituições foram reconhecidas como regionais, em virtude da diversidade geográfica que abarcava os diferentes ciclos econômicos e da possibilidade das experimentações colecionistas e museográficas pautadas nessa divisão temática.
Lygia Martins Costa (2002) explicita a simbiose entre a temática que sustentou a criação dos primeiros museus regionais e a relação com os ciclos econômicos, além das especificidades entre os museus cuja temática evidenciava o mesmo ciclo. Nessa interpretação, é possível identificar nos primeiros museus do SPHAN o protagonismo do ciclo da cana-de-açúcar (Museu da Abolição, no Recife); do ciclo do charque/couro (Museu das Missões, em São Miguel das Missões), do ciclo do café (Casa da Hera, em Vassouras), bem como a predominância do ciclo da mineração (Museu do Ouro, em Sabará; Museu do Diamante, em Diamantina; Museu Regional de São João del-Rei, em São João del-Rei; Museu Regional Casa dos Ottoni, no Serro; Museu das Bandeiras, em Goiás). Portanto, essa leitura demonstra como sintetizaram e preservaram os remanescentes da ‘civilização material’ no Brasil. Reforçando essa argumentação, Letícia Julião (2009) analisa como os museus regionais em Minas Gerais salvaguardaram os exemplares da ‘civilização mineira’:
Ao se encarregarem da preservação da herança cultural de partes da história das Minas – a extração do ouro, do diamante, o movimento da Inconfidência, a sociedade nos séculos XVIII e XIX – eles funcionam como elementos que se complementam e que concorrem simultaneamente para fixar e potencializar uma mesma imagem do passado. Referenciam todos a mesma matriz histórica, cujo enredo, evocado por meio do repertório fixo de objetos, traduz uma imagem idealizada da sociedade mineradora, na qual predominam a herança da cultura barroca e católica e de um universo estético erudito e materialmente requintado. . . . É notável o predomínio de objetos de arte sacra e de mobiliário, categorias que disputam a primazia sobre as demais. Destacam-se também os utensílios e objetos domésticos – aqui compreendidos os serviços de cozinha e de mesa e equipamentos de trabalho, que avultam, particularmente, no Museu do Diamante. Algumas categorias se distinguem por museu: objetos de iluminação, livros e textos impressos, acessórios de decoração, insígnias, transporte e seus apetrechos e fragmentos construtivos sobressaem no Museu da Inconfidência; objetos pecuniários e armas no Museu do Diamante; objetos de culto e de cerimoniais e fragmentos construtivos no Museu Regional de São João del-Rei. É possível afirmar que os acervos dos quatro museus formam um conjunto que estampa vestígios da civilização mineira, tal como postulava o ideário do SPHAN.
(Julião, 2009, p. 151).Os museus regionais contribuíram para reforçar o discurso da salvaguarda e promoção da ‘civilização material’ mineira, a partir da seleção da cultura material considerada exemplar, que dialogava com o discurso difundido pelo SPHAN em sua política de preservação dos conjuntos arquitetônicos e urbanísticos. Por meio da mobilização de bens móveis e integrados, foi possível experimentar outras imaginações museais (Chagas, 2003), elegendo os vestígios para a comprovação e tradução da ‘civilização’ originária dos ciclos do ouro e do diamante5. Nesse aspecto, é relevante pensar as classificações que resultaram na eleição dos conjuntos urbanos remanescentes do período colonial em Minas Gerais como síntese do nacional.
Do mesmo modo, torna-se fundamental perceber os critérios da seleção de edifícios (para tombamento, aquisição, restauração e acolhimento de museus), ressaltando o diálogo entre a finalidade anterior do imóvel e o eixo temático do museu e, portanto, visualizar os imóveis como um dos principais acervos musealizados. Por fim, esses elementos sobrepostos indiciam o papel dos museus na emergência de um discurso sobre o patrimônio sustentado na cultura material, especialmente os museus regionais cuja configuração monográfica, a partir dos ciclos econômicos, potencializaram o discurso de ‘civilização material’ nacional forjado pelo SPHAN.
No período em que o SPHAN foi dirigido por Rodrigo Melo Franco de Andrade (1937-1968), duas foram as principais justificativas apresentadas para a criação dos museus regionais: a necessidade de evitar que o ‘acervo regional’ continuasse disperso, em virtude do comércio de antiguidades, e de dar uma destinação para os imóveis tombados de propriedade da União (Andrade, 1987). Os museus regionais, nesse aspecto, extrapolariam a salvaguarda dos bens móveis e integrados, tornando-se uma forma de preservar os imóveis considerados significativos pela narrativa do SPHAN e também de gerar dinamicidade aos conjuntos históricos e arquitetônicos tombados como patrimônio nacional.
Nessa perspectiva, os museus regionais tornaram-se fruto de um projeto de preservação dos vestígios da ‘civilização material’ brasileira, tendo como referência os diferentes ciclos econômicos, conforme os argumentos apresentados anteriormente. Afonso Arinos de Melo Franco (1936) utilizou a expressão ‘resquícios’ para compreender a formação do conceito de ‘civilização’ brasileira. Inicialmente focado nos aspectos psicológicos, a atuação do historiador como membro do Conselho Consultivo do SPHAN contribuiu para uma espécie de transposição do termo para a cultura material, o que confluía com as práticas e com o discurso institucional do órgão preservacionista.
Nesse contexto, se o Museu das Missões constituiu a experiência inaugural de museu regional no âmbito do SPHAN, marcado pela tentativa de preservação dos vestígios da ‘civilização jesuítica’ no Sul do país, ele se tornou uma exceção, em virtude da necessidade de se construir um prédio para a criação do museu. Embora inspirados na concepção da ‘coleção de vestígios’ e na preservação dos bens móveis originários da experiência nas Missões, os demais museus regionais criados pelo SPHAN foram criados em prédios adaptados para essa finalidade. Essa constatação é interessante na medida em que os museus também foram concebidos como forma de preservação dos imóveis tombados, ao garantirem uma destinação que sustentaria uma ‘coerência’ entre continente e conteúdo. Em outras palavras, a justificativa dos tombamentos dos imóveis era mobilizada no intuito de musealizar os edifícios, também entendidos enquanto vestígios da ‘civilização material’, ou seja, como uma das principais peças do acervo.
Exemplar dessa argumentação é o fato de muitos dos museus regionais serem abrigados em imóveis definidos previamente, como pode ser visualizado no decreto de criação do Museu do Ouro (Decreto-Lei n.º 7.483, de 23 de abril de 1945), quando estabeleceu que o mesmo deveria ser implantado na antiga Casa de Intendência do Ouro, em Sabará. Nesse caso, muitos dos objetos que integraram sua coleção foram adquiridos inspirados na finalidade originária do prédio e, por essa razão, houve prevalência de mobiliário que evidenciasse a configuração da antiga Casa de Intendência do Ouro (Dinnouti, 2009; Almeida, 2018).
Outra experiência impactada por uma leitura similar consistiu no Museu Regional de São João del-Rei, processo resultante de um longo conflito pela preservação do imóvel, a antiga Casa do Comendador João Antônio da Silva Mourão. Não foi por acaso que, após impedir a demolição do imóvel, promover seu tombamento e sua restauração, os técnicos do SPHAN projetaram inicialmente que o museu deveria obedecer às peculiaridades da planta, correspondendo de modo efetivo aos usos originais, ou seja, amparado na apresentação de ambientes familiares, projeto abandonado posteriormente (Flores, 2007).
Lygia Martins Costa (2002) sintetizou essa prática institucional ao afirmar que os museus do SPHAN “seguiram no intuito de se defender um monumento tombado, restaurado e sem utilização determinada ou apropriada e, concomitantemente, bens culturais móveis desprotegidos” (L. Costa, 2002, p. 301). Leitura similar pode ser visualizada em ofício que Rodrigo Melo Franco de Andrade enviou para Sylvio de Vasconcellos, em 29 de março de 1954:
Os próprios edifícios nacionais de valores históricos e artísticos que se acham entregues a esta repartição. . . . são destinados permanentemente à visitação pública, para propagar o conhecimento e a apreciação da arquitetura tradicional brasileira. A DPHAN tem envidado todos os esforços ao seu alcance para instalar nesses imóveis serviços culturais como bibliotecas, arquivos e museus, e os vai sucessivamente abrindo à curiosidade e aos interesses populares.
(Tavares, 2016, p. 53).A implantação dos museus regionais pelo SPHAN conciliou a salvaguarda dos imóveis e bens móveis, por meio de uma destinação à visitação pública, visando difundir os conhecimentos daquilo que a instituição reconhecia como a ‘arquitetura tradicional brasileira’ ou, conforme apresentado, os vestígios da ‘civilização material’ no Brasil. Na verdade, os museus regionais podem ser concebidos como instrumentos pedagógicos utilizados para a difusão e legitimação do discurso preservacionista forjado pelo SPHAN, transformando-se em tentativa de apaziguar ou solucionar alguns dos conflitos em torno do tombamento dos conjuntos urbanos.
As análises de Letícia Julião (2008) sobre os museus do SPHAN em Minas Gerais corroboram essa ideia. A pesquisadora sublinha que é “curioso observar que a organização desses museus ocorreu como desdobramento de negociações ou mesmo de embates do PHAN6 com proprietários, em defesa da preservação de imóveis ameaçados” (Julião, 2008, p. 216). Após elencar as trajetórias do Museu Regional de São João del-Rei, do Ouro e do Diamante, concluiu que “prédios ameaçados de serem demolidos têm sua preservação assegurada ao serem incorporados ao patrimônio da União, o que se dá concomitantemente ao processo de organização dos museus que passam a sediar” (Julião, 2008, p. 217).
Esse debate pode ser visualizado no caso de Diamantina, após o tombamento de parte do seu conjunto arquitetônico e urbanístico pelo SPHAN, em 17 de fevereiro de 1938. No processo de tombamento (n.º 64-T-68 – Arquivo Central do IPHAN), é possível identificar ofícios de diferentes prefeitos de Diamantina endereçados a Rodrigo Melo Franco de Andrade com o intuito de elucidar dúvidas e relatar conflitos decorrentes desta proteção. As principais dúvidas consistiam na possibilidade de serem feitas construções ‘modernas’ e sobre os procedimentos de salvaguarda dos bens, além da solicitação da revisão do perímetro tombado.
Muitos moradores e moradoras de Diamantina não compreendiam o tombamento dos imóveis e a atuação do SPHAN. O exemplo da Casa do Padre Rolim, antiga residência de um dos integrantes da Conjuração Mineira, é emblemático: o proprietário do imóvel se desentendeu com o representante do SPHAN na cidade, em virtude de algumas alterações propostas, fato que resultou na desapropriação e aquisição pela União, em 1943 (Julião, 2008).
Em um primeiro momento, a casa seria destinada à instalação da delegacia regional do PHAN e a uma biblioteca pública, mas acabou por sediar o Museu, originalmente concebido para ocupar uma casa à Rua da Quitanda. A ideia do museu, ao que tudo indica, antecede a incorporação da casa do Padre Rolim à gestão do Patrimônio. Em 1941, o PHAN procedera a um levantamento de objetos pertencentes a colecionadores de Diamantina, de interesse da instituição, dando início ao lento processo de aquisição do acervo museológico.
(Julião, 2008, pp. 217-218).Certamente as tensões em torno do tombamento do conjunto arquitetônico e urbanístico de Diamantina contribuíram para a propositura da criação do Museu do Diamante e da Biblioteca Antônio Torres, meios de promover uma destinação aos dois imóveis da União localizados na cidade e, ao mesmo tempo, de efetuar uma espécie de contrapartida aos seus moradores e moradoras, em decorrência das limitações ao direito de propriedade impostas pelo tombamento. Essas são as justificativas do Projeto de Lei n.º 138-E, de 1947, apresentado à Câmara dos Deputados por Juscelino Kubitschek:
Já foram criados museus federais em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, assim como em Ouro Preto e em Sabará, estabelecimentos esses que têm prestado valiosos serviços para o fim a que se destinam e, devem, pois, ser multiplicados, sobretudo atendendo-se a despesa modesta. . . . O museu que se visa instituir aproveitará o acervo já notável de obras de arte tradicional reunidas pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional num edifício colonial dos mais genuínos e característicos, subsistentes entre nós, há pouco inteiramente restaurado pela referida repartição. . . . a cidade de Diamantina tem, desde alguns anos, o conjunto arquitetônico de sua área urbana tombado pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e, por efeito desse tombamento, a respectiva população sofre restrições no exercício de seu direito de propriedade sobre os edifícios integrados naquele conjunto. O objetivo da medida adotada pelo referido órgão do Ministério da Educação em relação à cidade é preservar o aspecto histórico das construções e dos logradouros subsistentes do legendário Arraial do Tijuco, que constituem efetivamente, pela sua unânime arquitetônica e pelos seus traços peculiares, um monumento nacional de valor inestimável. . . . Mas, se há de fato interesse nacional relevante em que tal conjunto seja preservado, ainda que com prejuízo da liberdade da população no tocante aos respectivos bens, será de justiça estrita que a União favoreça a mesma população com a prestação de serviços culturais de ordem a compensar o mais possível as restrições aos seus direitos individuais impostas em benefício da coletividade brasileira.
(Kubitschek, 1947, pp. 1-2).As justificativas apresentadas por Juscelino Kubitschek no projeto de lei recordaram a criação pelo SPHAN do Museu das Missões, do Museu da Inconfidência e do Museu do Ouro, demonstrando a necessidade de se ampliar para outras regiões a difusão de museus e bibliotecas. A citação dos museus contribuiu para legitimar a implementação da preservação dos vestígios da ‘civilização material’ do ciclo do diamante, conforme demonstrado na proposta de Afonso Arinos de Melo Franco (2005), e, consequentemente, inspiraria a criação de museus referentes a outros ciclos econômicos. No projeto de lei, a Comissão de Educação e Cultura foi representada pelo deputado Jorge Amado, que explicitou essa argumentação em seu parecer:
O projeto do deputado Juscelino Kubitschek é dos mais louváveis pois colocará numa vasta e importante região do interior do Brasil uma biblioteca e um museu especializado que vão concorrer, sem dúvida, para que se amplie o gosto e o interesse pelos estudos históricos, econômicos e artísticos ligados à indústria da mineração de diamantes. Só devemos lastimar que não haja da parte do governo um plano organizado e em execução que levante museus e bibliotecas por todo o país, especialmente os museus especializados e as bibliotecas comunitárias. Onde, por exemplo, o nosso Museu do Café ou o nosso Museu de Africanologia? Existe na Bahia, referente aos estudos de africanologia, o Museu Nina Rodrigues que se deve ao interesse de médicos e estudiosos, mas a verdade é que o grande museu que o assunto comporta não existe e um fabuloso material de estudo está sendo perdido. Onde o Museu do Cacau, o Museu da Borracha?
(Amado, 1947, p. 1).É provável que os interesses afetivos de Kubitschek em criar em sua cidade natal dois espaços culturais federais mobilizaram a iniciativa, aliados aos interesses do SPHAN e da municipalidade de Diamantina. Isso se evidencia quando inseriu na justificativa as restrições enfrentadas pela população em virtude do tombamento do conjunto arquitetônico e urbanístico, a restauração do imóvel – local que abrigaria o futuro museu – e as coleções de arte reunidas pela instituição. Portanto, as informações no projeto de lei sugerem uma articulação prévia com a direção do SPHAN, no intuito de solucionar os impasses em decorrência da gestão do patrimônio em Diamantina. Definiram, ainda, que o Museu do Diamante seria instalado no imóvel colonial conhecido como Casa de Balcão Muxarabiê, e que a Biblioteca Antônio Torres e a sede da regional do SPHAN seriam instaladas na Casa do Padre José da Silva e Oliveira Rolim, imóveis desapropriados e restaurados pela União.
O fato é que os trâmites do projeto de lei de Kubitschek somente foram concluídos com a promulgação da Lei n.º 2.200, de 12 de abril de 1954, assinada pelo presidente Getúlio Vargas. Apesar de a lei informar onde deveriam ser instalados o Museu do Diamante e a Biblioteca Antônio Torres, na prática, ocorreu uma inversão e a Casa do Padre Rolim tornou-se a sede do museu. De acordo com Oliveira (2015), a escolha da Casa de Balcão Muxarabiê provavelmente se deveu ao fato de algumas das coleções que subsidiaram o museu estarem ali abrigadas7, sendo transferidas para a Casa do Padre Rolim em julho de 1954:
Essa mudança de sede do Museu do Diamante ocorrida em 1954 possivelmente pode ser entendida numa linha de defesa do SPHAN na época de fortalecimento da memória de personagens de nobres do período colonial, ou seja, habitava-se a memória do passado como ocupação, nesse caso tornando a casa do mais rico funcionário da coroa no Tijuco que foi a família do inconfidente padre Rolim.
(Oliveira, 2015, p. 99).É provável que a mudança da sede do museu esteja relacionada à estreita relação do Padre José da Silva e Oliveira Rolim com a Conjuração Mineira, um dos temas centrais escolhidos pelos intelectuais do SPHAN como mito fundador da nação. O imóvel foi confiscado pela Coroa Portuguesa e colocado em leilão, em virtude do envolvimento do padre com a Conjuração, consistindo em vestígio que dialogaria, inclusive, com a narrativa do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Em 1943, por exemplo, a participação de Juscelino Kubitschek foi fundamental para que o imóvel fosse adquirido pelo SPHAN: “Rodrigo Melo Franco de Andrade acaba equacionando a questão fazendo uso de suas relações pessoais e políticas, telefonando a Juscelino e a Capanema, e solicitando interferência no caso” (Gonçalves, 2010, p. 156).
Juscelino Kubitschek contribuiu para que a Casa do Padre Rolim fosse incorporada à União e, posteriormente, transformada em Museu do Diamante. O museu foi inaugurado em 1954 e, um ano depois, Kubitschek seria eleito presidente da República. Em correspondência a Rodrigo Melo Franco de Andrade, datada de 23 de fevereiro de 1956, o monsenhor José Pedro Costa, então diretor do museu, traduziu algumas das narrativas que sintetizaram sua criação:
A história de Minas está ligada ao ciclo do ouro e das pedras preciosas. Se pelo ouro explicamos o florescimento da própria civilização ocidental, pela sua fase de industrialização, pela paixão das pedras preciosas compreendemos a formação da capitania, cujo território foi desvirginado pelos aventureiros. Quanto a diamante propriamente dito, sabemos sobre que influência social teve ele nas Minas Gerais, formando um tipo próprio de civilização e criando, inclusive, figuras de curiosa substância humana, como Chica da Silva. Era realmente indispensável um Museu do Diamante, para acolher marcos e vestígios de um dos mais fascinantes capítulos da história mineira. . . . Poucas cidades podem orgulhar-se de possuir um povo tão amante do seu passado. E por isso mesmo pode dar ao país um presidente que tão bem representou as virtudes características dos mineiros.
(Oliveira, 2015, pp. 114-115).Os relatos do diretor do museu evidenciam a importância do ciclo do diamante para a construção de um ‘tipo próprio de civilização’ e do Museu do Diamante como abrigo para os vestígios dessa ‘civilização’ material. Do mesmo modo, sugerem que Juscelino Kubitschek seria representante dessa cultura construída em torno das pedras preciosas. Isso é interessante ao se observar que, devido às relações afetivas com a terra natal e às diferentes posições políticas ocupadas ao longo do tombamento do imóvel, da criação e implementação do museu (prefeito de Belo Horizonte, deputado federal, governador de Minas Gerais e presidente da República), Kubitschek foi constantemente acionado pelos agentes do campo do patrimônio nas causas relacionadas à sua cidade natal8. Segundo Luiz Gonzaga dos Santos (1963), apesar das restrições impostas pelo tombamento que “tiravam um pouco o seu progresso”, Diamantina também obteve benefícios: “em compensação acabou a dor de cabeça dos católicos para efetuarem os consertos de que tanto necessitavam as nossas igrejas, algumas ainda do tempo do Tijuco” (L. Santos, 1963, p. 78). Nesse contexto de transformações, concluiu como fundamental a atuação de Kubitschek: “a política estava forte e trazendo grandes vantagens para Diamantina, pois começava a elevar-se nosso conterrâneo e grande amigo de sua terra natal, o então deputado Juscelino Kubitschek de Oliveira”, destacando que a cidade “começou a progredir assustadoramente e obtinha tudo com facilidade” (L. Santos, 1963, p. 78).
Em vários momentos, o então deputado Juscelino Kubitschek destacou que seu interesse pela preservação de Diamantina não constituía um ato de bairrismo. Na justificativa do projeto de lei de criação do Museu do Diamante, por exemplo, ele sublinhou que a escolha da cidade “não foi inspirada por sentimento de bairrismo, nem mesmo representa um preito de veneração. . . . Se impôs pela própria existência de acervos preciosos de obras de arte e de interesse histórico” (Kubitschek, 1947, p. 2).
O fato é que a patrimonialização de Diamantina e a criação do Museu do Diamante propiciaram a configuração de uma imaginação museal singular na trajetória de Juscelino Kubitschek (Chagas, 2003). Essa conclusão se dá em virtude da percepção de que o Museu do Diamante confluiu com as experimentações realizadas pelo SPHAN no âmbito dos museus regionais, em um diálogo explícito com a imaginação museal de Rodrigo Melo Franco de Andrade (L. Costa, 2002). A criação de um museu regional em Diamantina tornou-se um objetivo comum aos dois intelectuais, a ponto de Kubitschek, como deputado federal, propor o projeto que chancelava a configuração de museus calcada na ‘civilização material’ e nos ciclos econômicos, respaldado na proposta feita pelo SPHAN.
Perceber o Museu do Diamante como uma exceção na imaginação museal de Juscelino Kubitschek é relevante quando se contrasta com iniciativas museais e patrimoniais anteriores, no período em que foi prefeito de Belo Horizonte (1940-1946). Em 1943, durante a sua gestão na prefeitura, Kubitschek criou o Museu Histórico de Belo Horizonte (atual Museu Histórico Abílio Barreto), concebendo-o em conjunto com o historiador Abílio Barreto. Para tanto, mantiveram estreito diálogo com Rodrigo Melo Franco de Andrade e os técnicos do SPHAN, embora apresentassem uma perspectiva diferente.
No caso do Museu Histórico de Belo Horizonte, apesar do SPHAN ter restaurado o prédio da antiga Fazenda do Leitão (fazenda remanescente do Arraial do Curral del Rey, povoação mineradora do século XVIII) e orientado a sua concepção museológica, houve uma discordância no que diz respeito à narrativa apresentada. Kubitschek (1976) reconheceu que a restauração e a sua transformação em museu consistiram em uma forma de evitar sua demolição. Para tanto, solicitou a Rodrigo Melo Franco de Andrade a restauração e o tombamento do imóvel, que ocorreu em 19519:
Quando os engenheiros me falaram da necessidade de se demolir a Fazenda Velha, fiquei preocupado. Na mesma hora telefonei a Rodrigo Melo Franco de Andrade, responsável pela Diretoria do Patrimônio Histórico Nacional, solicitando-lhe que viesse a Belo Horizonte. Uma semana mais tarde expliquei-lhe o problema, manifestando minha apreensão de que, no futuro, outro prefeito pudesse sacrificar a Fazenda Velha. Rodrigo Melo tranquilizou-me. “Não se preocupe. Vou providenciar imediatamente o tombamento do imóvel”. Enquanto se processava no Rio o tombamento, procurei restaurar a fazenda. Não só restaurá-la, mas proporcionar-lhe a perspectiva a que fazia jus, em face de sua importância histórica. Desapropriei a área circundante, de forma a deixá-la isolada, no centro de um parque. Quanto à Fazenda Velha, em si, mandei restaurá-la, devolvendo-lhe a característica novecentista, com o assoalho em diversos níveis, os moirões à mostra nas paredes e o forro de telha vã em algumas de suas peças. Em seguida, assinei um decreto, convertendo-a em museu.
(Kubitschek, 1976, p. 53).Embora pareça similar à experiência do Museu do Diamante, ao observar o tombamento e a restauração de um imóvel em uma fazenda remanescente do ciclo da mineração e a criação de um museu nas dependências do velho casarão construído em 1883, a experiência do Museu Histórico de Belo Horizonte apontou para uma outra concepção de patrimônio que incluía fatos recentes da nova capital mineira e, portanto, inseria na narrativa museológica objetos que destoariam da temporalidade acionada pela fazenda e pelo imóvel. Desse modo, a imaginação museal acionada no Museu Histórico de Belo Horizonte extrapolava a preservação de elementos exclusivos do período colonial, ao valorizar a cultura material10 relacionada à construção de Belo Horizonte: “Juscelino Kubitschek, ao absorver a metodologia estado-novista de preservação, também criava seus próprios critérios na valorização da memória da cidade. . . . conciliou a memória belo-horizontina com o ideário de progresso e modernidade” (Cedro, 2007, pp. 140-141).
É necessário destacar que Juscelino Kubitschek foi constantemente mobilizado para promover agenciamentos no campo dos museus e patrimônios, especialmente em sua cidade natal, integrando a rede de sociabilidade do SPHAN durante o Estado Novo, nos termos apresentados por Raul Amaro Lanari (2010). O pesquisador atesta esse argumento ao analisar os documentos sobre a publicação da obra “Arraial do Tijuco: cidade Diamantina”, do diamantinense Aires da Mata Machado (1945), escolhida como décimo segundo volume da série Publicações do SPHAN. Ao explicitar uma das correspondências que Aires Machado enviou a Rodrigo Melo Franco de Andrade, destacou que “Juscelino Kubitschek ficou interessadíssimo por uma nova edição, para ampliar, ainda mais, a propaganda da sua. . . . cidade natal. Espontaneamente, ofereceu-se para ajudar na consecução desse objetivo” (Lanari, 2010, p. 89).
No caso de Diamantina, observa-se que a imaginação museal difundida pelo Museu do Diamante, que confluía com a dos demais museus regionais criados pelo SPHAN, se configurou em um contexto de realização de projetos modernistas na cidade, exigindo a conciliação e a atualização dos critérios para a valorização do conjunto arquitetônico e urbanístico. Segundo Cristiane Souza Gonçalves (2010), “talvez como contrapeso a todos esses dilemas – de estar em face dos pressupostos da preservação, e em pleno contexto político ‘desenvolvimentista’ – o SPHAN aprovaria alguns projetos modernos para o contexto tombado de Diamantina” (Gonçalves, 2010, p. 158). Nessa leitura, a cidade se tornou palco para experimentações modernistas e para a visualização das contradições no campo do patrimônio, a exemplo dos projetos de Oscar Niemeyer:
A atuação de Oscar Niemeyer em Diamantina está intimamente conectada à figura de Juscelino Kubitschek. . . . Em Diamantina JK solicitou a Niemeyer que desenvolvesse os seguintes projetos: uma sede social para a Praça de Esportes já existente; um hotel – denominado Hotel Tijuco, em referência ao antigo arraial – para que se fomentasse, assim como em Ouro Preto, o turismo na região; uma escola pública primária que levaria o nome de sua mãe, a ex-professora Júlia Kubitschek. Além dessas obras, Niemeyer teria projetado, em 1951, a Estação do Aeroporto, nunca construído.
(Gonçalves, 2010, p. 168).A criação do Museu do Diamante e a realização de obras modernistas, muitas delas na área tombada pelo SPHAN, consistiram em projetos de intervenção no campo do patrimônio que explicitam tensões e conciliações no âmbito da imaginação museal de Juscelino Kubitschek e de sua concepção preservacionista, nas interfaces entre os repertórios forjados entre a ‘arquitetura tradicional’ e a ‘arquitetura moderna’. No caso do Museu do Diamante, embora os documentos demonstrem que Juscelino teve participação determinante em sua criação, é possível inferir que ele não teve a mesma atuação nos debates sobre o modo como a instituição apresentaria sua narrativa, especialmente se for considerado o intervalo de sete anos entre a sua propositura e a efetiva criação.
O Museu do Diamante integrou um amplo projeto do SPHAN no intuito de evitar a dispersão dos objetos e propiciar uma destinação para os imóveis tombados no âmbito das cidades cujos conjuntos arquitetônicos e urbanísticos foram considerados significativos para o projeto de salvaguarda da ‘civilização material’ no Brasil.
As articulações em torno da concepção e da organização dos chamados museus regionais evidenciam uma imaginação museal singular e, ao mesmo tempo, as escolhas políticas referentes às classificações, seleções e disposições das narrativas concernentes ao patrimônio nacional. As ambiguidades apresentadas a partir da relação entre nacional e regional foram o mote para a visualização dos museus enquanto um espaço de poder em que se consolidavam e difundiam determinados projetos de nação, como um dos lugares privilegiados na disputa por projetos de futuro.
Nesse aspecto, é relevante destacar os cruzamentos entre as trajetórias de Juscelino Kubitschek e Rodrigo Melo Franco de Andrade que, apesar de terem concepções distintas sobre a narrativa dos museus, estiveram profundamente associados à criação do Museu do Diamante e à preservação de uma determinada memória sobre Diamantina. Do mesmo modo, demonstra a necessidade de uma análise mais aprofundada dessas relações com o intuito de perceber “as contradições que permeavam a conduta pioneira do órgão federal de preservação, e os paradoxos de um projeto que surgiu e que se constituía atrelado à própria experiência política então vigente” (Gonçalves, 2010, p. 189).
As reflexões recuperam itinerários no campo dos museus e do patrimônio no Brasil, na primeira metade do século XX, que evidenciam aspectos da imaginação museal de Juscelino Kubitschek de Oliveira em confluência com o projeto do SPHAN em suas primeiras décadas de atuação. Esse exercício investigativo possibilitou compreender diferentes dramaturgias da memória, reconhecendo “como determinados intelectuais oriundos de áreas de conhecimento distintas da Museologia pensam e operacionalizam o que pensam (quando a operacionalização acontece) no campo dos museus e da Museologia” (Chagas, 2015, p. 24). Para tanto, resta evidenciar a necessidade de realização de análises aprofundadas sobre os aspectos que permearam a criação de outros museus regionais, a sua relação com a rede de museus do SPHAN e o modo como propiciaram a extroversão de um projeto de nação calcado em vestígios de uma ‘civilização material’ oriunda de distintos ciclos econômicos.
Esta pesquisa foi financiada por meio de bolsa de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Autor para correspondência: Clovis Carvalho Britto. Universidade de Brasília. Faculdade de Ciência da Informação. Campus Darcy Ribeiro. Brasília, DF, Brasil. CEP 70910-900 (clovisbritto@unb.br).