Resumo: Este estudo visa apresentar os resultados estratigráficos e zooarqueológicos do sítio arqueológico RS-158: Alberto Talayer, localizado no município de Santa Vitória do Palmar, Rio Grande do Sul. O objetivo é revisar as informações estratigráficas das campanhas de escavação dos anos 1970 e apresentar novos resultados zooarqueológicos e estratigráficos da escavação realizada em 2014. Os dados estratigráficos indicam que as ocupações desse sítio possuem uma sequência com mais de 2 metros de profundidade, com cinco camadas e indícios de diferentes níveis de ocupação (níveis arqueológicos IIa e IIIa), marcadas por períodos pré-cerâmico e cerâmico (tradição Vieira). Nos dois montículos que compõem o sítio arqueológico RS-158, a caça de mamíferos teria sido a principal atividade econômica, se destacando com a abundância do veado-campeiro. O problema relativo à sobreposição de diferentes níveis arqueológicos em uma estrutura antrópica encontra nesse estudo um contributo direto com o estabelecimento de variados níveis de ocupação e sua correlação entre os diferentes montículos. Assim, o sítio apresenta características específicas do ambiente no qual se localiza, com interações com os ecossistemas pampeanos, como campos sulinos, rios e lagoas.
Palavra-chave: Cerritos, Arqueologia pampeana, Zooarqueologia, Estratigrafia.
Abstract: This study aims to present the stratigraphic and zooarchaeological results of the RS-158 archeological site Alberto Talayer, located in the municipality of Santa Vitória do Palmar, Rio Grande do Sul, Brazil. The study aims to review the stratigraphic information from the excavation campaigns of the 1970s and to present the new zoo-archaeological and stratigraphic results of the excavation carried out in 2014. The stratigraphic data indicate that the occupations of this site have a sequence of more than 2 meters in depth, with five layers, and evidence of different levels of occupation (archaeological levels IIa and IIIa) marked by pre-ceramic and ceramic periods (Vieira tradition). In the two mounds that make up the RS-158 archaeological site, hunting of mammals would have been the main economic activity, as shown by the abundance of pampas deer. Thus, the site presents specific characteristics of the environment in which it is located, with interactions with Pampa ecosystems such as its southern plains, rivers and lakes.
Keywords: Cerritos, Pampean Archeology, Zooarcheology, Stratigraphy.
Artigos Científicos
Estratigrafia e zooarqueologia de cerritos de Santa Vitória do Palmar, Rio Grande do Sul. Novos dados sobre o sítio RS-158: Alberto Talayer
Stratigraphic and zooarchaeology of cerritos from Santa Vitória do Palmar, Rio Grande do Sul. New data on the site RS-158: Alberto Talayer
Recepção: 27 Março 2021
Aprovação: 20 Janeiro 2022
A planície costeira e o sistema de lagoas Patos-Mirim apresenta uma significativa gama de dados publicados associados a contextos arqueológicos com sítios conhecidos como cerritos (López Mazz, 2001; Milheira et al., 2016, 2017, 2019a, 2019b; Rogge, 2004; Schmitz et al., 1997). Esses sítios arqueológicos são descritos como aterros artificiais, formando pequenas elevações como microrelevos no terreno (montículos); de sua construção, resultam negativos topográficos, erguendo formas circulares, ovais ou elípticas (Milheira et al., 2016; Schmitz, 1976). São compostos principalmente por sedimento de matriz arenosa e material orgânico, podendo chegar até 100 m de diâmetro e 7 m de altura (Bracco et al., 2008; Gianotti, 2015; Iriarte, 2003; López Mazz, 2001; Milheira & Gianotti, 2018; Schmitz, 1976).
As evidências encontradas em cerritos permitem sugerir que alguns foram utilizados como locais de sepultamentos, áreas de descarte de refugo e também como zonas de habitações. Os cerritos, muitas vezes, ocorrem em áreas sazonalmente alagadiças, possuindo arquitetura considerada um marco histórico ligado à identidade social dos nativos pampeanos (Becker, 1992; Menestrino & Mentz Ribeiro, 1995; Milheira et al., 2016; Rogge, 2004).
Em relação à cultura material, a associação entre o que se considera como cerâmica da Tradição Vieira e o tipo de sítio cerrito é clara. No entanto, a descoberta de sítios líticos com material façonado bifacialmente sugere a existência de momentos de ocupações pré-ceramistas durante o Holoceno inicial e médio nas áreas de ocorrência dos cerritos (O. Oliveira, 2014; Schmitz, 1976).
Os cerritos aparecem majoritariamente concentrados entre as porções leste e norte do Uruguai até a metade sul do Rio Grande do Sul e em partes do nordeste argentino e delta do rio Paraná (Milheira et al., 2016). Sua dispersão sul-norte cobre desde a desembocadura do rio da Prata em território uruguaio até o rio Jacuí, no Rio Grande do Sul, e na costa atlântica uruguaia e extremo sul brasileiro à porção média e baixa do rio Uruguai (Garcia, 2019; Rogge, 2004). São encontrados nas proximidades das lagoas e banhados ao longo das planícies fluviais e/ou flúvio-deltaicas. São geralmente agrupados, mas há também os isolados (Schmitz et al., 2006). Quando agrupados, podem apresentar entre eles indícios de caminhos e praças centrais (Milheira et al., 2016).
De maneira geral, o surgimento e o desenvolvimento dos cerritos como um fenômeno arqueológico meridional se dividem em dois grandes grupos geográficos: setentrional e meridional. Os cerritos setentrionais estão localizados ao redor da lagoa dos Patos (Camaquã, Rio Grande, Rio Grande do Sul). A sequência cronológica local é de cerca de 2.200 anos, indo de 2.500 a 300 anos AP. A fase mais antiga, pré-cerâmica, vai de 2.435 a 2.000 anos AP e a cerâmica, de 2.000 a 1.335 anos AP (fase Torotama) e entre 1.335 e 200 anos AP (fase Vieira). Nessa última fase, foi percebido um contato cultural com grupos Guarani até o período colonial. Do ponto de vista arqueofaunístico, é possível pensar em sítios com características pesqueiras em ambientes estuarinos (Chanca et al., 2021; Garcia & Milheira, 2011; Milheira et al., 2016; Silva et al., 2006; Schmitz, 1976; Schmitz et al., 2006; Ulguim, 2018). Os sítios meridionais estão dispersos ao redor das lagoas Mirim, Mangueira e de seus tributários (municípios de Santa Vitória do Palmar, Rio Grande do Sul, e, no Uruguai, na região de Tremta y Tres e no alto curso do rio Negro), com data basal de 5.000 anos AP (Bracco et al., 2008). A característica que permeia esses sítios mais ao sul do Brasil é a semelhança com os da região de rio Negro, Uruguai, compartilhando uma tendência para atividades de caça (López Mazz et al., 2003; A. Rosa & Jacobus, 2009; Schmitz et al., 1997, 2006). Na área aqui definida como Meridional (terras baixas sul-rio-grandenses e Uruguai), os dados indicam que os cerritos eram compostos por grupos especializados na caça majoritária de cervídeos e outros mamíferos de médio e pequeno portes (Pavei et al., 2016; Moreno, 2016; A. Rosa, 2006; Schmitz et al., 1997) e na pesca em ambientes de água doce, com forte incidência da espécie Synbranchus cf. marmoratus (Bica-Méndez, 2020).
Apesar de avanços no registro de dados culturais sobre padrões arquitetônicos, geográficos, cronológicos e comportamentais, poucas pesquisas sistemáticas foram realizadas na região meridional do Rio grande do Sul. Assim, percebe-se que o conhecimento arqueológico sobre os sítios cerritos está em construção, principalmente nos meridionais, fazendo com que novos estudos possam contribuir diretamente com o preenchimento de lacunas referentes aos dados arqueológicos da planície costeira do Atlântico Sul ligada ao sistema de lagoas Patos-Mirim.
Este trabalho tem como objetivo revisar as informações estratigráficas do sítio RS-158 e apresentar os resultados arqueológicos da escavação realizada no ano de 2014. A pesquisa visa colaborar com dados arqueológicos inéditos para as discussões culturais associadas às ocupações humanas ocorridas na planície litorânea do extremo sul brasileiro. Os dados fornecidos neste artigo refinam o conhecimento arqueofaunístico, contextual e arqueoestratigráfico da área arqueológica das lagoas Mirim-Mangueira referente às ocupações do Holoceno final. Além disso, contribui com as discussões sobre esse tipo de sítio arqueológico e os vestígios faunísticos associados aos grupos humanos que ocuparam o sistema lacustre atlântico Mirim-Patos (e.g., Bica-Méndez, 2020; Chim, 2016; Moreno, 2014, 2016; Pintos, 2000; Schmitz et al., 1997; Schorr & Schmitz, 1975; Ulguim, 2010).
Entre os anos 1967 e 1972, os pesquisadores do Instituto Anchietano de Pesquisas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (IAP/UNISINOS) identificaram, na região do Chuí, 48 locais com cerritos, compostos por mais de 150 estruturas monticulares (Schmitz et al., 1997). Nessa pesquisa, ficou constatado que os cerritos tinham ampla distribuição ao longo dos terraços pleistocênicos e holocênicos e das margens das áreas de inundação dos arroios Chuí, del Rei, do Pastoreio, dos Provedores e da lagoa Mangueira (Schmitz et al., 1997).
Um dos sítios escavados pelo IAP e que forneceu dados arqueológicos regionais foi o RS-158: Alberto Talayer (Instituto Rio Grande do Arroz – IRGA) (Figura 1).
O sítio arqueológico RS-158 está localizado na margem direita do arroio Chuí, no município de Santa Vitória do Palmar (Figura 1). Os trabalhos no sítio ocorreram em duas campanhas: 1967 e 1971. O sítio era composto por sete cerritos, sendo escavados os 1, 2, e 5.
Os trabalhos ocorreram em duas áreas de intervenção por cerrito, resultando em aproximadamente 16 m2 escavados, que representam cerca de 27 m3 de volume de sedimento (Tabela 1). Os resultados indicaram que se tratava de um sítio principalmente pré-cerâmico (Figura 2). Os componentes arqueológicos identificados mais significativos foram: material lítico na forma de pequenas lascas (203), núcleos (11), fragmentos (41), um fragmento cerâmico, um enterramento humano e remanescentes de fauna (Schmitz et al., 1997).
Do ponto de vista estratigráfico, as descrições dos seis perfis do sítio RS-158 contidos em Schmitz et al. (1997) indicam que os cerritos 1, 2 e 5 apresentavam o mesmo padrão sedimentar. Em resumo, os depósitos evidenciavam matriz sedimentar areno-argilosa dividida em quatro camadas estratigráficas. As descrições do corte 1 (cerrito 1) indicam que a divisão estratigráfica se baseou principalmente na diferença da coloração e em componentes arqueológicos que eram mais abundantes entre os 75-150 cm de profundidade. Assim, visando unificar a descrição estratigráfica dos perfis dos seis setores de escavação (Tabela 1), propomos a construção de uma seção colunar que represente as descrições estratigráficas contidas em Schmitz et al. (1997). A nomenclatura pedoestratigráfica foi adotada com base nas descrições dos trabalhos de 1968 e reinterpretadas (Figura 2).
Do ponto de vista geológico, a região está inserida na bacia sedimentar de Pelotas (Barboza et al., 2011). Na área de estudo, ocorrem sedimentos quaternários siliciclásticos (areias quartzosas) derivados de planícies aluviais, justapostas em quatro sistemas deposicionais do tipo Laguna-Barreira (transgressão e regressão do nível relativo do mar), além de fatores autogênicos (Tomazelli & Villwock, 2005; M. Rosa et al., 2017). Do ponto de vista cronológico, foram propostas para o Pleistoceno as formações dos sistemas Laguna-Barreira I, II, III (interglaciares) e para o Holoceno o sistema Laguna-Barreira IV (interglacial) (Caron, 2014; Tomazelli et al., 2000).
Esse arcabouço geológico resultou em uma paisagem suprida por sedimentos costeiros e marinhos, que formaram no sistema emerso praias, campos de dunas e lagoas litorâneas (Reinson, 1992).
As características físicas e climáticas favoreceram as condições necessárias para a consolidação do bioma específico: o pampeano. No Brasil, ele está presente na porção centro-sul do Rio Grande do Sul e forma zonas ecotonais com a Mata Atlântica. O bioma Pampa é dividido entre fitossociologias distintas, classificadas como campestres, florestais e uma área de transição localizada na região do Escudo sul-rio-grandense, porém, devido às condições morfoclimáticas, o que predomina é a fitofisionomia campestre (Freitas et al., 2009).
Esse mosaico ambiental abriga uma riquíssima biodiversidade. São estimadas mais de 3.000 espécies, compostas majoritariamente por gramíneas, com quase 500 espécies descritas (Stefanello, 2020). Essas características peculiares do bioma são refletidas também na diversidade da fauna, com considerável endemismo. Para o bioma, são descritas mais de 400 espécies de aves (EMBRAPA, 2020). Para a mastofauna, Paglia et al. (2012) citam 83 espécies, sendo 13 endêmicas da região. Algumas espécies de mamíferos são emblemáticas, tais como o zorrilho [Conepatus chinga (Molina, 1782)], o graxaim-do-campo ou ‘zorro’ [Lycalopex gymnocercus (G. Fischer, 1814)], o cervo-do-pantanal [Blastocerus dichotomus (Illiger, 1815)] e o veado-campeiro [Ozotoceros bezoarticus (Linnaeus, 1758)]. Para a herpetofauna e ictiofauna, é descrita uma miríade de espécies no bioma Pampa (Herpetologia-UFRGS, 2019). A ictiofauna chama a atenção devido aos peixes anuais endêmicos dos alagamentos sazonais dos pampas, que apresentam rápido desenvolvimento e conseguem manter seus ovos enterrados no período de seca (diapausa) (Furness, 2016).
O cenário evolutivo da paisagem da área está associado às mudanças paleoambientais ocorridas no Quaternário Superior e que provocaram sucessivos episódios de transgressão e regressão marinha (M. Rosa et al., 2017; Tomazelli & Villwock, 2005). No recorte estudado, ocorrem as unidades de sistema Barreiras III (125 ky AP) e IV (6-5 ky AP) (Adlam, 2014).
A área costeira local (praia do Hermenegildo) evoluiu de 6-5 mil anos AP até o presente sob um comportamento costeiro caótico e condição de erosão costeira durante uma lenta queda do nível do mar a partir dos 6-5 mil anos AP (Caron, 2014; Lima et al., 2013). A parte interna (continental) da barreira existente em 6-5 anos AP estava localizada a pelo menos algumas centenas de metros ou possivelmente a alguns quilômetros a leste (Caron, 2014). Do ponto de vista paleoclimático, a formação do sistema de dunas transgressivas pós-5ky AP ocorreu em condições climáticas mais secas, em intervalos de aproximadamente 405 a 583 anos AP (Dillenburg et al., 2017).
A escavação do ano de 2014 foi definida em áreas horizontais quadradas, retangulares e trincheiras. Cada área de escavação foi dividida em quadrículas de 1 m2, nomeadas com letras maiúsculas, em ordem alfabética. O método de escavação foi por decapagens em níveis arbitrários de 10 cm e o sedimento foi triado em malha de 3 mm. Foram abertas seis áreas de escavação, totalizando 62 m2 escavados em áreas (Figura 3, Tabela 2).
O estudo dos perfis estratigráficos do sítio RS-158 foi realizado segundo critérios lito e pedoestratigráficos, através de descrição macromorfológica e aplicação de nomenclatura numérica. A numeração das camadas sedimentares e dos níveis arqueológicos seguiu o sentido do topo para a base usado em arqueologia (Brown & Harris, 1993; Harris, 1989). A descrição estratigráfica seguiu procedimentos sedimentológicos adaptados de Nichols (2009) e pedológicos, de Santos et al. (2015) e IBGE (2013), utilizando as seguintes etapas e procedimentos: individualização e denominação de camada e/ou sequência deposicional; tipo de contato entre camadas; estrutura interna; transição entre camadas; bioturbação; matriz sedimentar e cor. Os componentes arqueológicos coletados foram agrupados em abundância percentual relativa aos níveis arbitrários de 10 cm. Após realizar a descrição estratigráfica, as informações foram sintetizadas em uma secção colunar que conjuga as características estratigráficas dos perfis analisados.
A análise dos vestígios faunísticos utilizou-se de índices quantitativos e qualitativos referentes ao número de partes de esqueleto identificado (NISP) e ao número mínimo de indivíduos (NMI) (Reitz & Wing, 2008). Alterações de origem antrópica, como corte, fratura e queima, seguiram os parâmetros contidos em Reitz e Wing (2008). Os restos ósseos foram identificados com auxílio da coleção osteológica de referência do Laboratório de Arqueologia Pedro Ignácio Schmitz (LAPIS), da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), bem como bibliografia especializada (Higuchi, 1982; Loponte, 2004; Cherem & Ferigolo, 2012). A descrição taxonômica para os mamíferos seguiu Paglia et al. (2012) e para os peixes consultamos o Sistema Integrado de Informações Taxonômicas (ITIS)1. O porte dos mamíferos foi consultado em Jacobus (2013) e Paglia et al. (2012).
A análise estratigráfica indica que o depósito é composto predominantemente por areia quartzosa e sedimento orgânico, resultando em textura predominantemente franco-arenosa. A sequência apresenta diversificados componentes arqueológicos, como lítico lascado, microcarvões (média de 1 cm2) e ossos fragmentados, sendo que alguns estão carbonizados e/ou calcinados.
Os dados macroscópicos demonstram que não ocorreram mudanças no sistema de deposição a ponto de marcar zonas de contato abruptas entre diferentes camadas. O registro estratigráfico parece ter sido formado sob influência majoritariamente antrópica artificial, materializando sequências estratigráficas sem limites entre as camadas bem delimitadas, com material em contexto e transições difusas. A lateralidade das camadas segue a convexidade topográfica atual do cerrito. A acumulação de sedimento orgânico indica níveis com a maior densidade de componentes arqueológicos nas sequências estratigráficas do sítio arqueológico.
Foram identificadas quatro camadas estratigráficas com materiais arqueológicos em cerca de 80 cm de profundidade máxima escavada. Do ponto de vista arqueológico, os materiais estão distribuídos com maior abundância entre os 20-30 e 40-60 cm de profundidade em ambas sequências (cerritos 1 e 2), associados às camadas II e III (Figuras 4 e 5). A seção colunar do cerrito 1 representa as maiores profundidades alcançadas nas escavações ocorridas no ano de 2014, sendo que nenhuma alcançou a base estéril do cerrito (Figuras 4 e 5).
Ao total, foram analisados 4.112 fragmentos faunísticos (NISP) de dois níveis arqueológicos dos cerritos 1 e 2 do sítio RS-158. Os vestígios faunísticos determinados no cerrito 1 somam 1.517 no nível arqueológico IIa e 1.861 no nível IIIa e, no cerrito 2, somam 146 vestígios no nível IIa e 588 no nível IIIa. Do total (4.112),671 vestígios foram apenas contabilizados como vertebrados indeterminados por estarem muito fragmentados e de impossível classificação taxonômica mais apurada, sendo contabilizados 662 no cerrito 1 e 49 no cerrito 2 (Tabela 3).
A composição taxonômica do sítio RS-158 é caracterizada por três classes de vertebrados (peixe, ave e mamífero), entre os quais cinco ordens, seis famílias e nove espécies são de mamíferos; três ordens e três espécies são de peixes ósseos; e de ave, uma espécie (Tabela 3).
Em relação à distribuição vertical destes vestígios, nota-se que o nível arqueológico IIIa de ambos os cerritos apresentou maior diversidade e abundância de espécies. Em ambos cerritos, é clara a abundância de cervídeos, sendo que a espécie O. bezoarticus se destaca entre as demais. Foi identificado apenas um indivíduo de cervo-do-pantanal (B. dichotomus) em ambos cerritos.
O roedor foi o segundo grupo mais expressivo, destacando-se a família Cavidae, que aparece em todos os níveis arqueológicos de ambos os cerritos, porém com expressiva quantidade de indivíduos no nível arqueológico IIIa do cerrito 1. Os tatus (Dasypodidae) aparecem no cerrito 1 com oito indivíduos no nível arqueológico IIIa e cinco indivíduos no nível IIa. E, por fim, também ocorrendo somente no nível arqueológico IIIa do cerrito 1, a ordem Carnivora apresenta fragmentos ósseos de um indivíduo indeterminado e de um indivíduo de cachorro-do-mato (L. gymnocercus) (Tabela 4).
Os peixes são mais abundantes no nível arqueológico IIIa do cerrito 1. Dentre eles, três ordens, três famílias e duas espécies foram identificadas. Os cienídeos predominam especialmente com a miragaia [Pogonias cromis (Linnaeus, 1766)]. Os bagres da família Ariidae são os menos capturados, compondo dois indivíduos distribuídos nas duas camadas do cerrito 1. Nesta amostra, o muçum [Synbranchus cf. marmoratus (Bloch, 1795)] aparece com dois indivíduos no nível arqueológico IIIa. No cerrito 2, foram identificados somente vestígios de peixes ósseos e Perciformes indeterminados (Tabela 4). E, por fim, da classe das aves, foram identificados três indivíduos no nível arqueológico IIIa do cerrito 2 e em ambos os níveis arqueológicos do cerrito 1 (Tabela 4).
O material faunístico encontra-se muito fragmentado, podendo estar relacionado ao processamento do indivíduo ainda fresco ou atribuído a um processo pós-deposicional. Indiferentemente do fato, esse alto grau de fragmentação afeta diretamente na qualidade da amostra, influenciando os resultados de número mínimo de indivíduos. No entanto, durante as análises do material em laboratório, foram observadas três categorias de modificação óssea nos remanescentes faunísticos ocasionadas pelo processamento humano: marcas de corte, fratura e queima (Tabela 5).
Na camada IIa do cerrito 1, um total de 537 remanescentes faunísticos, de 1.515, apresenta alteração antrópica. Destes, 534 (99,44%) vestígios exibem sinais de carbonização. As marcas de cortes e fraturas equivalem a somente um fragmento, correspondendo apenas em 0,19% dos vestígios, respectivamente. As modificações predominaram nos mamíferos, sendo que a carbonização foi registrada em 490 (91,81%) vestígios. Fratura, corte/fratura e carbonização/corte também com foram registrados em apenas um vestígio cada (0,19% respectivamente). Nos peixes, foi identificada somente carbonização em três (0,29%) remanescentes. Em fragmentos de táxons indeterminados, foram registrados 41 (7,64%) fragmentos com marca de carbonização.
Na camada IIIa, 350 remanescentes faunísticos, de um total de 1.861, estão com presença de alteração antrópica. A queima equivale a 335 (95,7%) do total de elementos com alterações antrópicas, seguidos por 11 (3,14%) ossos de mamíferos com fraturas. A categoria corte/fratura é identificada em um (0,29%) elemento anatômico de mamífero e marca de corte em três remanescentes também de mamíferos, equivalendo a 0,86% do total. Em 244 (69,71%) vestígios de mamíferos, foram observadas marcas de carbonização. Nos peixes, foi constatada a modificação ocasionada por carbonização em apenas um elemento, equivalendo a 0,29% dos fragmentos. Por fim, os fragmentos de táxons indeterminados correspondem a 90 (25,71%) elementos carbonizados.
O mesmo aspecto é observado no cerrito 2, onde vê-se predominância das marcas de carbonização, sobretudo nos mamíferos. Na camada IIa, dois tipos de modificação óssea foram identificados em 60 vestígios faunísticos, de 146, sendo que carbonização corresponde a 59 (98,3%) e fratura somente a um (1,67%) vestígio. Um total de 50 (83,3%) fragmentos de mamíferos e nove (15%) de táxons indeterminados está carbonizado. Fratura ocorre apenas em um (1,67%) osso longo de mamífero. Já na camada IIIa, foram identificados 237 fragmentos com alteração antrópica. Carbonização aparece em 228 (96,2%), seguida por fratura, marca de corte e carbonização/fratura em três elementos, respectivamente, equivalendo a 1,3% cada categoria somente em fragmentos de mamíferos. 224 (94,5%) vestígios da mastofauna estão carbonizados. Em sequência, dois (0,84%) ossos de peixes e também dois (0,84%) ossos de táxons indeterminados estão carbonizados (Tabela 6).
No nível arqueológico IIa do cerrito 1, nota-se que os dentes correspondem às partes mais abundantes deste nível arqueológico, pois 58,42% são de fragmentos indeterminados de molares e/ou pré-molares. Dos dentes possíveis de identificar, 5,94% equivalem aos molares e 0,94% aos pré-molares. Também da região do crânio, uma fração de um chifre foi identificada, equivalendo a 0,99% dos restantes (Figura 6).
Do esqueleto axial, foi identificada apenas uma vértebra (0,99%) de região indeterminada. Dos elementos apendiculares, o úmero e a ulna aparecem com 0,99%, respectivamente. O osso navicular apresenta 1,98%, metapodiais com 5,94%, sendo seis elementos, um deles com marca de queima. O fêmur aparece com dois fragmentos (1,98%), entre os quais um apresenta marca de corte e fratura intencional. Vestígios de tíbia somam 1,98%, correspondendo a dois fragmentos, sendo um com fratura intencional. O osso calcâneo corresponde a 2,97%, com três vestígios e astrágalo correspondendo a 7,92%, com oito elementos, sendo que dois apresentam marcas de queima. Por fim, das falanges foram recuperados quatro fragmentos, sendo uma mesial, uma distal, uma proximal e uma indeterminada. Destas, duas estão queimadas.
No nível arqueológico IIIa do cerrito 1, os fragmentos recuperados que compõem o crânio são compostos pelos dentes, chifre, mandíbula e maxilar. Dos dentes, a maioria está fragmentada e soma 36,04%, sendo 5,41% de molares e 0,9% de pré-molares e incisivos. Mandíbula e maxilar também representam 0,9% dos fragmentos. Os demais fragmentos compõem o esqueleto apendicular. A escápula é identificada com 0,9%, sendo um fragmento com marca de corte. Quatro úmeros somam 3,6%, sendo três deles com fratura intencional. Um fragmento de ulna apresenta marca de fratura (4,5%). Não foi possível definir os metapodiais, devido à fragmentação, os quais somam 10,81%, sendo que três apresentam fraturas intencionais e dois, queima. Dois metatarsos foram identificados (1,8%), sendo um deles com marca de fratura. Um fêmur foi identificado sem modificação óssea (0,9%). Uma tíbia (4,55%), com marca de corte/fratura.
Nenhuma modificação óssea foi identificada no único fêmur presente na amostra. Os cinco calcâneos também não apresentaram nenhuma modificação óssea. Navicular e escafoide também não apresentaram nenhuma modificação. Navicular representa 6,31% dos fragmentos de cervídeo e escafoide, 1,8%. Os astrágalos representam 8,11% dos fragmentos, sendo que três deles estão queimados. E, finalmente, as falanges indeterminadas aparecem com 4,5% dos fragmentos, sendo uma falange distal queimada e apenas dois fragmentos sem modificação óssea.
No nível arqueológico IIa do cerrito 2, foram encontrados dois astrágalos (28,57%) queimados, uma tíbia (14,29%) também queimada, um fêmur (14,29%) com fratura intencional, além de um fragmento de dente indeterminado, um molar e um pré-molar (Figura 7).
No nível arqueológico IIIa do cerrito 2 dos ossos apendiculares, foram recuperadas três falanges distais (13,89%), sendo: duas com marca de queima; dois fragmentos de úmeros (5,56%), um queimado e outro com queima e fratura intencional; dois metapodiais (5,56%), um deles fraturado intencionalmente; dois escafoides (5,56%) queimados; um rádio (5,56%) fraturado e um sem modificação óssea. Também foram recuperados um calcâneo (2,78%) queimado, um fêmur (2,78%) com queima e fratura e um astrágalo (2,78%) queimado.
Demais fragmentos apendiculares, como um fragmento de metatarso, um navicular, um fragmento de falange indeterminada e uma falange proximal, representam 2,78% dos fragmentos e não possuem modificações ósseas. Do esqueleto axial, foram encontrados três fragmentos da cintura pélvica e uma vértebra, sem marcas antrópicas. Finalmente, do esqueleto do crânio foram identificados seis fragmentos (16,67%) de dentes indeterminados, dois incisivos (2,78%), um molar e uma mandíbula, que equivalem a 2,78% da amostra e não apresentaram nenhuma modificação óssea. Um fragmento de pré-molar (2,78%) foi encontrado com marca de queima.
Associada ao conjunto faunístico, foi identificada uma falange proximal humana no nível arqueológico IIIa do cerrito 1 nos 40 cm de profundidade (Figura 8).
Os cerritos analisados estão associados a uma planície lagunar com altitude média atual de 16 metros acima do nível do mar, assentados sobre o sistema laguna-barreira III. A estratigrafia do depósito é constituída majoritariamente por areias quartzosas, cuja cronologia geológica remete ao Pleistoceno superior. A textura arenosa, rica em sedimento orgânico e pontuada por nódulos carbonáticos, sugere que a construção do cerrito foi realizada com material sedimentar local, provavelmente em condições de baixo regime das águas, que permitiriam a precipitação de carbonatos e a construção e o gerenciamento da estrutura. Essa interpretação pode ser corroborada pela cimentação do depósito areno-quartzoso através de sedimentos lamíticos depositados em regime hídrico calmo, típico de lagoas e lagunas.
Os níveis arqueológicos identificados e sua leitura através das secções colunares dos cerritos indicam que a maior densidade de ocupação do sítio ocorreu entre 20-30 e 40-60 cm de profundidade, associadas às camadas sedimentares II e III. No entanto, as densidades percentuais verticais do material lítico e ósseo plotados indicam a possibilidade de diferentes níveis de ocupação do sítio.
Assim, os dados em conjunto da escavação de 2014 sugerem 2 níveis arqueológicos (IIa e IIIa). O nível IIa está associado à camada sedimentar II e representa o início mais preservado das últimas ocupações ocorridas no sítio. Nesse nível, foi identificado um fragmento de cerâmica associada à tradição Viera (cerrito 2, com 20-30 cm de profundidade). Já o nível IIIa, associado à camada sedimentar III, representa a maior densidade de materiais arqueológicos. Material cerâmico não foi identificado.
A conjugação dos perfis estratigráficos e dados arqueológicos entre as escavações de 1968-1971 e 2014 indica que as ocupações desse sítio possuem uma sequência estratigráfica com mais de 2 m de profundidade e indícios de diferentes níveis de ocupação, sendo que o mais recente está associado a cerâmica e práticas mortuárias. A natureza antrópica do depósito sedimentar escavado e sua exposição a perturbações pós-deposicionais impelem limites de correlação estratigráfica entre os diferentes cerritos. No entanto, a análise dos dados em conjunto indica coerência estratigráfica, com sobreposição de nível cerâmico ao pré-cerâmico (Figura 9).
Assim, a sequência estratigráfica do sítio RS-158 tem origem antrópica que resultou em cinco unidades em aproximadamente 2 m máximos de potência arqueoestratigráfica, com a seguinte sequência e características gerais (Figura 9):
Unidade estratigráfica I: sedimentos inconsolidados constituídos por depósito areno-quartzoso de planície lagunar da barreira pleistocênica 3 (Q3pl3). Esse depósito foi manipulado para o início da construção dos cerritos. Sem componentes arqueológicos;
Unidade estratigráfica II (pré-cerâmico): marca o início da acumulação sedimentar antrópica em discordância erosiva com a camada I. Os sedimentos se caracterizam pela acumulação de matéria orgânica. A base da camada tem os componentes arqueológicos ocorrendo pontualmente em bolsões, indicando intermitência no limite vertical dos níveis arqueológicos;
Unidade estratigráfica III (pré-cerâmico): indica as maiores densidades de componentes arqueológicos e sedimentos orgânicos. No topo da camada, foi exposto a raízes de gramíneas;
Unidade estratigráfica IV (cerâmico): queda da densidade dos componentes arqueológico e sedimentos orgânicos. Está associada a enterramento humano e cerâmica Viera. Está exposta a raízes de gramíneas;
Unidade estratigráfica V: fecha a sequência arqueoestratigráfica local. Apresenta raízes de gramíneas e os maiores indícios de perturbação pós-deposicional.
Do ponto de vista sedimentar, os dados do presente estudo são similares aos encontrados em cerritos setentrionais e meridionais, que indicam a manipulação de material sedimentar local na construção das estruturas monticulares, resultado de dois sistemas deposicionais: um inferior natural e um superior antropogênico (Milheira et al., 2019a; Castiñeira et al., 2013; Bonomo et al., 2011; Villagran & Gianotti, 2013).
A falta de evidências arqueológicas (fogueiras, buracos de estaca, níveis arqueológicos horizontalizados) e a característica sedimentar predominantemente homogênea, semelhante a solos naturais com evidências de bioturbação, indicam similaridades com o modelo espaço-temporal descontínuo de interpretação de formação dos cerritos, que vê os complexos de montículos como áreas multifuncionais, com diversas obras de terraplenagem ocupadas e abandonadas de forma intermitente (Villagran & Gianotti, 2013).
A localização dos cerritos do sítio RS-158 a 100 metros do atual canal do arroio sugere uma característica de assentamento semelhante aos sítios correspondentes encontrados na área de dispersão de cerritos do leste Uruguaio (banhados de India Muerta, Sierra de San Miguel y Cuenca de la Laguna Negra) (Bonomo et al., 2011).
Os dados estratigráficos sugerem que o sítio RS-158 tem seu surgimento associado à exploração de recursos terrestres específicos, com a predominância do veado-campeiro, indicando atividade de predação especializada. Em períodos mais recentes, o local parece ter sido ressignificado, com surgimento de vestígios humanos em deposição secundária associada ao aparecimento da cerâmica Vieira (Schmitz et al., 1997).
Em relação à fauna, os mamíferos foram os recursos mais explorados em todos os níveis arqueológicos de ambos os cerritos. No entanto, o número mínimo de indivíduos é baixo, possivelmente devido à alta fragmentação, o que pode influenciar na compreensão do sítio como um todo. O cerrito 1 apresenta o maior número de fragmentos ósseos do sítio RS-158. Assim, os dados indicam que a caça teria sido a principal atividade econômica da população do RS-158 na obtenção de proteína, principalmente de cervídeos, como o veado-campeiro (O. bezoarticus).
Se compararmos o número de espécies de mamíferos presentes no ambiente de Pampa, apenas algumas delas [Ozotoceros bezoarticus, Blastocerus dichotomus, Cabassous tatouay (Desmarest, 1804), Dasypus spp., Lycalopex gymnocercus, Cavia sp. e Lutreolina crassicaudata (Desmarest, 1804)] estão presentes no registro arqueológico (apenas 13% da fauna do Pampa) e foram escolhidas pelos grupos humanos que ocuparam o cerrito (Paglia et al., 2012). Esse fato elucida a disponibilidade de algumas espécies para serem encontradas no bioma e preferencialmente capturadas durante a ocupação pré-colonial local, como é o caso do veado-campeiro.
O veado-campeiro (O. bezoarticus) é comum em ambientes de vegetação campestre, o que provavelmente favoreceu a sua abundância e, consequentemente, a manutenção econômica dos grupos pré-coloniais nos pampas. Indivíduos de veados-campeiros podem ser vistos como gregários, em pares, trio ou até mesmo em grupos com até quatro membros, com formação de grupos maiores na primavera, sendo os machos preferencialmente solitários em todas as estações (Nowak & Paradiso, 1983 citado em Góss Braga et al., 2000). O porte médio e sua biomassa na faixa dos 20 a 40 kg (Paglia et al., 2012) os configuram como o recurso calórico mais importante em ambos os cerritos, mesmo com predomínio das espécies de pequeno porte, como roedores, marsupiais, tatus e cachorro-do-mato.
O veado-campeiro possui enorme importância na dieta de diferentes grupos humanos do Rio Grande do Sul, estando presente em 84% dos mamíferos registrados nos sítios arqueológicos de diferentes ambientes (A. Rosa & Jacobus, 2009). O processamento destes indivíduos é notado sobretudo na evidência direta de contato com o fogo, possivelmente como descarte, e nas fraturas de ossos longos, que poderiam estar ligadas à retirada da medula óssea, rica em calorias, ou mesmo à retirada de tendões para a confecção de atilhos e cordéis, como salientado por Chim (2019), ou na confecção de artefatos (Mingatos & Okumura, 2020) (Figura 10).
O cervo-do-pantanal (B. dichotomus), maior cervídeo brasileiro, foi encontrado nos dois montículos, porém em baixa quantidade. O habitat de maior incidência desta espécie são os ambientes de várzeas. Cervídeos desta espécie podem chegar a 1,5 m de altura e pesam de 100 kg (fêmeas) a 300 kg (machos) (Duarte, 1996).
A obtenção destes grupos se baseou na especialidade da caça de cervídeos, porém a captura de mamíferos de pequeno e médio portes, como marsupiais, tatus, ratão-do-banhado e cachorro-do-mato, ocorria esporadicamente, destacando-se, sobretudo, a relevância dos preás (Cavia sp.). Existem quatro espécies congêneres deste pequeno roedor no Brasil, sendo Cavia magna (Ximénez, 1980) e C. aperea (Erxleben, 1777) recorrentes no bioma Pampa (Paglia et al., 2012; Queirolo, 2016). Essas espécies possuem peso de 549g (C. aperea) até 750g (C. magna) (Paglia et al., 2012), e hábitos gregário, crepuscular quer possibilitariam compor a dieta das populações pré-coloniais, uma vez que as tornam conspícuas nesses ambientes.
A presença marcante desses pequenos roedores pode estar ligada aos hábitos reprodutivos, uma vez que se trata de um processo rápido e ficam aptos reprodutivamente o ano inteiro, com picos na primavera e no verão (Kraus et al., 2003). Essa estratégia reprodutiva dos roedores, de rápida recuperação, teria sido crucial para a manutenção demográfica das populações humanas, garantido vantagens de sobrevivência em ambientes úmidos (Stiner, 2001 citado em Acosta & Pafundi, 2005). A presença do preá no sítio é marcada por partes anatômicas predominantemente da região do crânio, sobretudo fragmentos da mandíbula, corroborando a ideia de que seriam levados inteiros para o sítio. As marcas de alterações antrópicas estariam somente nos ossos longos, em partes com maior quantidade de carne, onde foram observadas fraturas e marcas de queima.
Os mamíferos menos representativos teriam sido capturados de maneira aleatória ou oportunística. Esses espectros de mamíferos identificados possibilitam pensar numa caça ativa, com auxílio de indústrias bélicas ou com as próprias mãos.
Outros grupos de fauna explorada que estariam disponíveis o ano todo, e garantiriam a permanência dos construtores do cerrito por longos períodos no sítio, foram os peixes, segunda classe mais representativa no lugar. Observou-se tanto a presença de espécies marinhas/estuarinas, como a miragaia (P. cromis) e os bagres (Ariidae), equanto aquelas de água doce, como o muçum (S. cf. marmoratus); estas, todavia, ocorreram apenas no cerrito 1. Sua presença em sítios arqueológicos também é destacada por Bica-Méndez (2020), que destaca a abundância de indivíduos para o sítio CH2D01 (2360-250 anos 14C BP), com a segunda taxa mais explorada, sendo preferencialmente selecionados indivíduos com mais de 1 m de comprimento. Jacobus e A. Rosa (2013) também destacam a presença desta espécie em sítios de abrigos da tradição Umbu, no nordeste do Rio Grande do Sul. Além desses, Prestes-Carneiro e Bearez (2017) destaca a ocorrência da espécie em diversos sítios arqueológicos e salienta a importância da espécie para a dieta das populações humanas durante o período pré-colonial amazônico. O muçum, única espécie dulciaquícola encontrada no sítio RS-158, possui distribuição ampla e ocorre em diversos ambientes, como rios, lagoas e banhados, estando adaptado a locais pobres em oxigênio, podendo sobreviver longos períodos enterrado na lama (semi-estivação) (Kramer et al., 1978; Moraes et al., 2005). Essa característica ecológica faz dele um animal de fácil captura, ocorrendo em diversos sítios da América do Sul até o Panamá, com destaque para a região da Amazônia no período pré-colombiano.
Espécies de peixes marinhos/estuarinos eram frequentemente pescadas, principalmente de cianídeos e arídeos, representados pelas miragaias, corvinas e pelos bagres. De forma geral, a miragaia é estuarina-dependente e apresenta hábitos relacionados aos estuários, como forrageio ou reprodução (A. Oliveira & Bemvenuti, 2006; Andrade-Tubin et al., 2008). Duas espécies do gênero Genidens são descritas: Genidens barbus (Lacépède, 1803) e Genidens genidens (Valenciennes, 1839). O bagre G. genidens é uma espécie eurialina (com adaptação à variação de salinidade) e é dependente dos ambientes lagunares e das lagoas costeiras (A. Oliveira & Bemvenuti, 2006; Andrade-Tubin et al., 2008). Esses peixes poderiam ser capturados esporadicamente, de modo a complementar a dieta ou na substituição da caça. Seriam capturados nas lagoas adjacentes, como Mirim e Patos, ou no arroio Chuí. Corroborando resultados de análises isotópicas de carbono e nitrogênio em 20 indivíduos humanos e em um cachorro doméstico (Canis lupus familiaris Linnaeus, 1758) para os sítios cerritos setentrionais PSGLF-02, PSG-01, PSG-02, PSG-03, PSG-06 e PSG-07 (Lagoa do Fragata e Pontal da Barra), há indícios de uma predileção alimentar mista por espécies marinhas/estuarinas, de água doce e por animais terrestres (Milheira et al., 2016; Ulguim & Milheira, 2017; Chanca et al., 2021).
Os dados analisados no presente artigo, à luz da bibliografia arqueológica regional, sugerem algumas possibilidades comportamentais dos grupos construtores de cerritos. A construção de grandes volumes de sedimento em ambiente propício a alagamentos requereu organização coletiva. Além da construção, essa organização se manifestou na fauna obtida, sendo que a predominância do veado-campeiro sugere atividade de caça especializada. A falta de evidências arqueológicas condizentes com habitações fixas sugere que os cerritos do sítio RS-158 seriam estruturas erguidas com associação à caça. Essa atividade específica resultou em camadas arqueológicas ricas em fauna, matéria orgânica, material lítico pequeno (≈ 3 cm3) e restos de combustão, principalmente microcarvões.
O sítio RS-158 apresenta características específicas do ambiente no qual se localiza, com interações com os ecossistemas pampeanos, como campos sulinos, rios e lagoas. Essa interação é visualizada nos remanescentes faunísticos, que outrora dominavam o cenário paisagístico local. A baixa incidência ou a virtual ausência de outros grupos faunísticos, como peixes, aves e répteis, pode estar relacionada com uma especificidade do grupo. Além do veado, pode-se observar que os mamíferos de pequeno porte estariam completando a dieta ou fazendo interações indiretas com a população, como é o caso do preá (Cavia sp.). Os veados abatidos parecem ter sido caçados nas margens dos acampamentos e levados inteiros, devido à presença predominante das partes pobres em proteínas, como fragmentos de mandíbula, dentes e falanges. Após a utilização, os vestígios estariam, muitas vezes, sendo jogados diretamente ao fogo. As marcas antrópicas, como fratura e corte, sugerem duas atividades específicas: uma relacionada à retirada da medula óssea, rica em proteína, e outra aos cortes, sobretudo nos ossos apendiculares inferiores, possivelmente relacionados à retirada quase completa dos tendões para confecção de ferramentas, além da retirada do couro.
Assim, o Pampa como bioma, é marcado por uma paisagem de campos secos, sedimentos arenosos e fauna rica e dispersa. O clima é majoritariamente seco e frio, exposto a fortes ventos e incidência solar, resultando em uma paisagem interpretada como monótona, pobre e alheia a ocupações humanas fixas e densas em períodos pré-coloniais. No entanto, a manipulação de grandes volumes de sedimentos como intervenção direta nas características físicas desse ambiente indica o forte caráter antrópico da paisagem atlântica sul-oriental do sistema das lagoas Mirim-Patos. O fenômeno humano de construção dos cerritos transformou a paisagem natural em cultural, modificando-a e adaptando-a ao estilo de vida humano no ambiente pampeano.
Somos gratos à bióloga mestra Daniela Bôlla e à arqueóloga doutora Giulia Marciani, pela ajuda com a língua estrangeira, na revisão do abstract, e também aos editores e pareceristas, pelas contribuições que melhoraram a versão final deste artigo.
Autor para correspondência: Diego Dias Pavei. Universidade Federal de Sergipe, Laranjeiras, Sergipe, Brasil. (diego.pavei@unesc.net).