MEMÓRIA
Transcrição e tradução integral anotada das cartas dos índios Camarões, escritas em 1645 em tupi antigo
Transcription and complete annotated translation of the Camarão Indians’ letters, written in 1645 in Old Tupi
Transcrição e tradução integral anotada das cartas dos índios Camarões, escritas em 1645 em tupi antigo
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, vol. 17, núm. 3, e20210034, 2022
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi
Recepção: 25 Abril 2021
Aprovação: 17 Maio 2022
Resumo: As seis cartas aqui transcritas e traduzidas são manuscritos raríssimos, os únicos textos conhecidos em tupi antigo que foram escritos por índios no período colonial brasileiro. Há quase quatrocentos anos, a Real Biblioteca de Haia, na Holanda, guarda tais manuscritos. Eles são, aqui, pela primeira vez, completamente transcritos, traduzidos e comentados, embora sua existência já seja conhecida desde 1885. Em 1630, Pernambuco foi invadido pelos holandeses financiados pela Companhia das Índias Ocidentais. Toda a costa nordestina, exceto a da Bahia, foi dominada por eles. Depois de quinze anos de dominação, no ano de 1645, começou uma guerra contra a presença holandesa no Brasil, da qual também participaram índios potiguaras (de potĩ – ‘camarão’ + ‘–ara – ‘comedor’, ‘o que come’: ‘comedores de camarão’). Tais índios, parentes uns dos outros, conhecidos como ‘Camarões’, dividiram-se durante o conflito, ficando alguns ao lado dos luso-brasileiros e outros com os holandeses. Naquele ano, durante o início da guerra, entre agosto e outubro, alguns deles trocaram correspondência e suas cartas foram preservadas nos arquivos holandeses.
Palavras-chave: Potiguaras, Cartas, Tradução, Brasil holandês.
Abstract: The six letters transcribed and translated here are very rare manuscripts: the only known texts in Old Tupi written by indigenous native speakers during the Brazilian colonial period. The manuscripts have been preserved for almost four hundred years in the Royal Library of The Hague, in the Netherlands. In this paper, they are completely transcribed, translated, and commented on for the first time, although their existence has been known since 1885. In 1630, the captaincy of Pernambuco, in Brazil, was invaded by the Dutch West Indies Company, and, subsequently, all of Brazil’s northeastern coast, except Bahia, was captured. After fifteen years of Dutch rule, the Portuguese began a war to retake their former northeastern possessions, in which the Potiguara Indians (‘prawn eaters’ < Old Tupi, potĩ – ‘prawn’ + ‘–ara – ‘one who eats’, ‘eater’) participated, some supporting the Catholic Portuguese and others supporting the Protestant Dutch. A few leading figures among the Potiguara, all from the same family and known to Portuguese and Brazilian historians as the Camarões (‘Prawns’), fought against each other during the conflict. At the beginning of hostilities, some of them exchanged letters between August and October 1645, and part of their correspondence was preserved in the Dutch archives.
Keywords: Potiguara, Letters, Translation, Dutch Brazil.
INTRODUÇÃO
No século XVII, expandia-se o império marítimo holandês, que passou a disputar com Portugal a posse de colônias ultramarinas na América, África e Ásia. País convertido ao Calvinismo havia várias décadas, os Estados Gerais das Províncias Unidas tornaram-se um ambiente propício para o florescimento do capitalismo mercantil. Com efeito, organizaram-se na Holanda, com a participação maciça de capitais privados, grandes companhias de comércio, verdadeiras multinacionais do século XVII, em que não era um Estado que assumia empreendimentos colonizatórios, mas a burguesia mercantil, com apoio estatal. Em 1602, surgiu a Vereenigde Oost-Indische Compagnie (VOC, em português Companhia Unida das Índias Orientais). Em 1621 surgiu a West Indische Compagnie (WIC, Companhia das Índias Ocidentais).
Tais companhias de comércio tomariam de Portugal grandes entrepostos comerciais e disputariam com os portugueses o controle do tráfico de escravos e de regiões produtoras de mercadorias de grande valor econômico. Territórios portugueses em Angola, no Brasil e no sudeste Asiático passaram para o domínio holandês. Alguns foram retomados depois por Portugal, mas outros se tornaram colônias batavas, como Malaca, rico entreposto situado no litoral da Malásia, defronte da ilha indonésia de Sumatra. Enquanto a economia portuguesa entrava-se em crise no século XVII, a Holanda conhecia um período de grande crescimento, favorecendo o desenvolvimento do mercantilismo (Grieco, 1998; Boxer, 1961).
Assim, em 1624, a Companhia das Índias Ocidentais promoveu um ataque ao rico nordeste brasileiro, produtor de cana-de-açúcar. Seus soldados tomaram a capital da colônia, Salvador. No entanto, não conseguiram estender suas conquistas para além daquela cidade, uma vez que foram cercados por forças luso-brasileiras, que impediram seu avanço. O ataque malogrou e os holandeses foram expulsos da Bahia em 1625.
Expulsos de Salvador em 1625, os holandeses tiveram contato com um grupo indígena da Paraíba, falante do tupi antigo, os potiguaras. Esses índios eram da mesma origem dos outros que habitaram a costa brasileira no século XVI, muitos dos quais já estavam, no início do século XVII, submetidos aos portugueses e convertidos ao catolicismo. Os potiguaras viviam no litoral que ia desde a Paraíba até o Ceará. Era um grupo aguerrido, mas não coeso. Alguns eram amigos dos inimigos de Portugal, os traficantes franceses de pau-brasil. Na Paraíba, tinham como seu centro principal as aldeias da Baía da Traição. Lá, os holandeses fizeram contato em 1625 com tais potiguaras, entre os quais o índio Pedro Poti. Este partiu, junto com Antônio Paraupaba, da Capitania do Rio Grande, e mais um grupo de indígenas, para a Holanda. Lá, eles viveram por alguns anos, aprenderam holandês e tornaram-se calvinistas. Cerca de vinte índios foram levados nessa ocasião pelos holandeses (Maior, 1913).
Cinco anos depois, a Companhia das Índias Ocidentais resolveu atacar novamente a costa do nordeste brasileiro. Tal ataque ocorreu em 1630 em Pernambuco e foi bem-sucedido. Após a conquista daquela capitania, os holandeses estenderam nos anos seguintes sua dominação pela costa de Alagoas, de Sergipe, da Paraíba, do Rio Grande, do Ceará e do Maranhão. Seriam 24 anos de ocupação dessa parte do nordeste brasileiro.
Entre 1637 e 1644, o Brasil Holandês foi administrado por um humanista teuto-holandês, o conde Maurício de Nassau-Siegen, sob cuja administração houve inusitada tolerância religiosa.Os católicos puderam praticar sua religião livremente e, pela primeira vez, uma sinagoga surgiu nas Américas, tendo podido os judeus praticar sua fé. Segundo Israel (2007, p. 28, tradução nossa), “. . . o grau de tolerância concedido a esse grupo por volta do final da década de 40 do século XVII foi, de qualquer perspectiva histórica, algo totalmente sem precedentes no mundo cristão desde os tempos antigos”1. O primeiro rabino a chegar ao continente americano foi Isaac Aboab da Fonseca, em 1642. Permaneceu em Pernambuco até a expulsão dos holandeses em 1654 (Vainfas, 2010).
Nos anos da administração de Maurício de Nassau-Siegen, houve também grande desenvolvimento da infraestrutura urbanística de Recife, além de incentivo ao estudo da natureza brasileira. Pela primeira vez, a fauna e a flora do Brasil seriam descritas cientificamente, tendo sido publicada pelo naturalista Georg Marcgrave a “Historia Naturalis Brasiliae” (Piso & Marcgrave, 1648). Empréstimos foram feitos a senhores de engenho para que reconstruíssem suas propriedades (Mello, 2012).
Quando fazia já dez anos d presença holandesa no Brasil, em 1640, um importante fato histórico mudaria o rumo dos acontecimentos: a restauração do trono português, com o fim do domínio espanhol. Portugal recuperava sua independência. No entanto, precisaria lutar contra a Espanha para garanti-la. Os holandeses já estavam em guerra com os espanhóis havia décadas, pela consolidação de sua própria independência (isto é, das Províncias Unidas dos Países Baixos), a chamada Guerra dos Oitenta Anos, que só terminaria em 1648, com a Paz de Westfália. A guerra de Portugal contra a Espanha não permitiria, segundo o Pe. Antônio Vieira, ministro de D. João IV, que o reino luso tivesse forças para enfrentar os holandeses, no caso de tentar sua expulsão do Nordeste brasileiro (Boxer, 1961). Assim, num documento conhecido como “Papel Forte”, escrito em 1648, Vieira chegou a propor a entrega de Pernambuco à Holanda. Segundo ele, “. . . se Portugal e Castela juntos não puderam resistir à Holanda, como há de resistir Portugal, só, à Holanda e a Castela?” (Vieira, 1951, p. 69).
No entanto, uma reação armada ao domínio holandês começaria no próprio Brasil. Em 1644, Maurício de Nassau retornou à Europa, tornando generalizada a insatisfação com a administração holandesa, sediada no Recife. Os senhores de engenho estavam endividados com a Companhia das Índias Ocidentais. Com a partida de Nassau, as dívidas passaram a ser cobradas ostensivamente. Um dos grandes senhores de engenho de Pernambuco, João Fernandes Vieira, juntamente com André Vidal de Negreiros, comandou os brasileiros na guerra, ajudando a financiá-la, o que levaria à expulsão dos holandeses em 1654. Nessa guerra, iniciada no dia 13 de junho de 1645, lutaram, de cada lado, índios, europeus e negros escravos ou libertos. Ela é conhecida como a Insurreição Pernambucana (Hulsman, 2006).
Concorreram para agravar as causas econômicas da guerra as causas religiosas: a partida de Maurício de Nassau faria renascer a intolerância entre católicos e calvinistas. Com efeito, no dia 16 de julho de 1645, em Cunhaú, na Capitania do Rio Grande, os holandeses e seus aliados índios, comandados por um judeu-alemão de nome Jacob Rabi, mataram dezenas de pessoas durante uma missa celebrada pelo padre André de Soveral. Uma das vítimas, Mateus Moreira, teve o coração arrancado pelas costas (Pereira, 2009).
No dia 3 de outubro de 1645, nova chacina foi perpetrada pelos holandeses e por seus aliados índios, desta vez em Natal. Doze pessoas foram detidas no Forte dos Reis Magos, entre as quais o padre Ambrósio Francisco Ferro. Elas foram levadas para o porto de Uruaçu, onde as aguardava o chefe potiguara Antônio Paraupaba, aliado dos holandeses. Ele fora designado por estes como regedor da Capitania do Rio Grande, assim como o chefe Pedro Poti o fora para os índios da Paraíba e Domingos Carapeba para os de Itamaracá e Goiana. Antônio Paraupaba, à frente de mais de duzentos índios potiguaras e tapuias, determinou que seus subordinados matassem aqueles doze prisioneiros, o que foi feito com extrema crueldade (Pereira, 2009).
Tais fatos fizeram crescer a hostilidade dos luso-brasileiros contra os holandeses, numa guerra que levaria quase nove anos para terminar. No início dela, índios potiguaras da Paraíba e do Rio Grande escreveram cartas em tupi antigo, o que constitui fato de imensa importância para os estudos linguísticos e históricos. A existência de índios alfabetizados, tanto do lado dos portugueses quanto do lado dos holandeses, permitiu que essa correspondência fosse trocada entre eles. É bem conhecida a preocupação dos batavos com a alfabetização dos índios para sua evangelização (Ribas, 2018).
AS CARTAS DOS ÍNDIOS CAMARÕES: HISTÓRIA E ANÁLISE INTERNA
As seis cartas que se seguem estão entre os documentos da Companhia das Índias Ocidentais guardados na Real Biblioteca de Haia, na Holand2. Foram escritas entre 19 de agosto e 21 de outubro de 1645. Somente uma delas foi escrita em agosto, pouco mais de um mês após o massacre de Cunhaú. As outras cinco foram escritas todas em outubro, após o massacre de Uruaçu.
A existência de tais cartas foi revelada pelo historiador José Hygino Duarte Pereira, em 1885. Elas vêm acompanhadas de resumos em holandês feitos pelo pastor calvinista Johannes Eduards, que participou da ocupação holandesa do litoral nordestino.
Em 1906, o engenheiro baiano Theodoro Sampaio, autor de “O tupi na geografia nacional” (Sampaio, 1987), publicou na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano um artigo intitulado “Cartas tupis dos Camarões”. No introito, Sampaio reconhece que quase nada conseguiu fazer na tradução das referidas cartas:
Confesso que só com grande dificuldade consegui entender o tupi em que foram escritas as duas primeiras cartas, as únicas em que logrei fazer alguma coisa na restauração e tradução do texto. As restantes estão ainda para mim indecifráveis. São verdadeiros enigmas
(Sampaio, 1906, p. 36).Sampaio tentou traduzir (e o fez precariamente), apoiado nos comentários em holandês do pastor Eduards, duas cartas, uma datada de 17 de outubro de 1645 (de autoria de Diogo da Costa) e outra de 21 de outubro daquele ano (de Diogo Pinheiro Camarão). Esta última foi novamente traduzida e publicada por Navarro (1998), sendo a única das seis cartas que, até hoje, tivera tradução integral.
Embora não haja menção explícita nas cartas aos morticínios de Cunhaú e de Uruaçu, cometidos pelos holandeses e seus aliados índios, é indubitável que eles ajudaram a precipitar os acontecimentos e levar ao acirramento das hostilidades.
Das seis cartas em tupi antigo, três foram escritas por Felipe Camarão. A primeira delas, datada de 19 de agosto de 1645 e dirigida a Pedro Poti, evidencia que a correspondência entre os potiguaras divididos em campos opostos já vinha acontecendo. Ele inicia sua missiva escrevendo que “. . . enviava de novo suas palavras . . .”. Tal carta foi escrita um dia depois da tomada do forte de Serinhaém, na costa pernambucana, ocorrida nos dias 17 e 18 de agosto de 1645. As duas outras cartas de Felipe Camarão foram escritas em 4 de outubro de 1645, uma novamente para Pedro Poti e a outra para Antônio Paraupaba. Conforme diz o missivista, o portador da carta escrita em 19 de agosto foi assassinado a mando de Pedro Poti. As duas cartas de 4 de outubro, que levam a assinatura do capitão-mor Antônio Felipe Camarão, têm a mesma letra, mas que não é aquela da carta escrita em 19 de agosto. Fica evidente que houve ao menos uma carta ditada pelo capitão-mor e escrita por outra pessoa.
Das três outras cartas, todas de outubro de 1645, uma foi escrita por um irmão legítimo de Pedro Poti, Diogo da Costa, que também foi o portador das duas cartas de Felipe Camarão ora mencionadas. Com tal iniciativa, mandando um irmão de Pedro Poti levar as cartas, Felipe Camarão tentava evitar um novo assassinato de seu portador no campo inimigo holandês.
Finalmente, há duas cartas escritas pelo capitão-mor Diogo Pinheiro Camarão, uma a Pedro Poti e outra a quatro capitães potiguaras que tiveram papel importante na guerra.
INFORMAÇÕES SOBRE OS REDATORES DAS CARTAS
FELIPE CAMARÃO
Antônio Felipe Camarão era o nome de batismo de um índio potiguara que nasceu em 1600-1601. Era filho de Potiguaçu, índio da aldeia do Igapó, situada na margem esquerda do rio Potengi, perto de Natal. Foi educado pelos jesuítas, de quem recebeu as primeiras letras. Casou-se com Clara Camarão, também uma índia potiguara. Tendo participado ativamente da resistência à dominação holandesa, recebeu, em 1633, do rei Filipe IV da Espanha e Portugal a patente de capitão-mor dos índios e, em 1635, o título de cavaleiro da Ordem de Cristo. Teve papel destacado na guerra que levou à expulsão dos holandeses do Brasil. Faleceu em 1648 (Hulsman, 2006).
CAPITÃO SIMÃO SOARES
O final da primeira carta apresenta uma mensagem assinada pelo capitão Simão Soares, da Paraíba. Ele era tio de Felipe Camarão. Segundo Raminelli (2015, p. 138), “. . . em 1625, na Baía da Traição, para libertar mulher e filhos do assédio batavo, Simão Soares passou para o lado do inimigo, ‘obrigado do amor que lhes tinha’”. Os holandeses partiram da Paraíba e, ao chegarem as tropas portuguesas, ele foi dado como aliado dos holandeses e permaneceu prisioneiro dos portugueses até 1633.
DIOGO DA COSTA
Era irmão mais velho de Pedro Poti e foi encarregado por Felipe Camarão de levar as cartas que este escrevera em 4 de outubro, mencionadas anteriormente. Por sua carta dirigida a Pedro Poti, datada de 17 de outubro de 1645, é que ficamos sabendo que era irmão legítimo deste.
DIOGO PINHEIRO CAMARÃO
Foi autor de duas cartas, ambas escritas em 21 de outubro. Uma delas era dirigida a Pedro Poti e a outra a quatro chefes indígenas que lutavam em favor dos holandeses, a saber, os capitães Balthazar Araberana, Gaspar Cararu, Pedro Valadina e Jandaia.
INFORMAÇÕES SOBRE OS RECEPTORES DAS CARTAS
PEDRO POTI
Pedro Poti era índio da Baía da Traição (chamada antes Acajutibiró) na Paraíba. Levado para a Holanda em 1625, ele se converteu ao calvinismo e aprendeu holandês. Após a invasão de Pernambuco em 1630, ele voltou ao Brasil e trabalhou como intérprete para os holandeses. A participação de índios falantes de holandês e oriundos da terra que se pretendia conquistar era, com efeito, um grande trunfo que os holandeses tinham em suas mãos, pois seria necessário apoio indígena para se conquistar a terra e se combaterem os índios aliados dos portugueses. Pedro Poti e Antônio Paraupaba poderiam, efetivamente, conseguir alianças com tais índios (Raminelli, 2015).
A resposta às cartas de seus parentes potiguaras somente nos chegou por meio de sua tradução em holandês, tendo-se perdido o texto original em tupi antigo. Em sua resposta a Felipe Camarão, Pedro Poti escreveu: “Sou cristão e melhor do que vós, creio só em Cristo; . . . . aprendi a religião cristã e a pratico diariamente” (Hulsman, 2006, p. 60).
Pedro Poti era capitão da Aldeia Miageriba e foi feito regedor da Paraíba em 1645. Quando as cartas de seus parentes lhe foram dirigidas, ele estava no Forte de Santa Margarida, na Paraíba.
Há relatos sobre sua vida desregrada e propensão ao alcoolismo, tendo ele sido repreendido pela administração holandesa mais de uma vez. Foi aprisionado em 19 de fevereiro de 1649, na segunda batalha de Guararapes, e ficou preso no Forte do Cabo de Santo Agostinho. Segundo Antônio Paraupaba,
. . . foi açoitado, sofreu toda a sorte de tormentos e foi atirado em um buraco escuro, tendo as mãos e pés presos juntos por correntes de ferro, recebendo por alimento menos do que um pouco de água e de pão, e lá ficando por seis meses, chafurdando em sua própria sujeira
(Hulsman, 2006, p. 59).Segundo relatou Paraupaba, esses flagelos tinham por objetivo fazer Pedro Poti abjurar a fé calvinista e voltar ao seio da Igreja Católica. Segundo ele, tais tentativas foram vãs e Pedro Poti conservou firme sua convicção na Igreja Reformada. Depois de dois anos e meio em prisão portuguesa, foi levado para Portugal e faleceu no navio em que era conduzido preso (Hulsman, 2006).
ANTÔNIO PARAUPABA
Antônio Paraupaba era originário da Capitania do Rio Grande. Seu local exato de nascimento não é conhecido. Acompanhou os holandeses que tentaram invadir a Bahia em 1625, junto com seu pai, Gaspar Paraupaba. Na Holanda, tornou-se calvinista e aprendeu holandês. Voltou ao Brasil em 1631, quando, então, os holandeses já estavam no domínio de Pernambuco. Ele acompanhou Maurício de Nassau quando este voltou à Holanda em 1644 e, com o início da Insurreição Pernambucana, em 1645, foi designado capitão e regedor do Rio Grande. Esteve à frente do massacre de Uruaçu, ocorrido em 3 de outubro, em que vingou o massacre de Serinhaém, de 17 e 18 de agosto de 1645, comandado por Felipe Camarão e pelos chefes luso-brasileiros.
Diferentemente de Pedro Poti, Antônio Paraupaba não foi capturado pelos portugueses e seguiu para a Holanda, quando acabou a guerra, em 1654, acompanhado por sua esposa Paulina e seus três filhos, ainda crianças, tendo lá falecido dois ou três anos depois. Na Holanda, ele dirigiu requerimentos ao governo pedindo que socorresse os potiguaras que se haviam aliado aos holandeses na guerra e que sofriam duramente no Brasil sob o governo português (Hulsman, 2006).
GASPAR CARARU
O nome de Gaspar Cararu está mencionado na ata de uma assembleia dos índios reunidos na aldeia de Tapisserica, no ano de 1645 (ver a nota 52). O documento refere-se a ele como sendo da aldeia Miageriba, a mesma de Pedro Poti. Ele era um dos mais importantes chefes potiguaras aliados dos holandeses. Quando Pedro Poti foi aprisionado em 1649, na segunda Batalha de Guararapes, foi Cararu quem o substituiu como regedor da Paraíba (Hulsman, 2006, p. 46).
Outros três destinatários de uma das cartas enviadas em outubro daquele ano e que, por meio da própria missiva ficamos sabendo serem capitães potiguaras que lutavam ao lado dos holandeses, são Pedro Valadina, Jandaia e Baltazar Araberana. Destes três últimos, não temos mais informações históricas.
CRITÉRIOS PARA A TRANSCRIÇÃO PALEOGRÁFICA. ALGUMAS SOLUÇÕES ENCONTRADAS NA TRANSCRIÇÃO DOS MANUSCRITOS
O trabalho de transcrição do texto das cartas dos Camarões seguiu critérios diferentes dos utilizados para a transcrição de manuscritos em português medieval ou dos séculos XVI e XVII. Com efeito, o trabalho paleográfico com tais manuscritos implica geralmente uma transcrição fiel, com a reprodução das abreviaturas usadas, da pontuação tal como se acha no texto, da separação de elementos da mesma palavra, da união de palavras diferentes etc. Somente depois disso é que o texto é transcrito na ortografia atual. Já com relação aos manuscritos dos índios Camarões, deve-se considerar que o tupi antigo era língua de tradição oral, sem alfabeto próprio. Os textos coloniais apresentavam variações ortográficas muito grandes. Assim, utiliza-se, na transcrição das cartas, uma ortografia predominantemente fonética, que altera aquela que se encontra nos textos originais. Saltamos, assim, a etapa prévia de transcrição fiel dos manuscritos. A ortografia aqui utilizada foi a que empregaram dois grandes tupinistas do século XX, Antônio Lemos Barbosa (1956) e Frederico Edelweiss (1958), em suas obras. A ortografia utilizada por tais autores foi aqui usada, contudo, com algumas modificações: 1. Não empregamos os hifens para separar morfemas tupis, como faz Barbosa, exceto quando há composição de uma palavra da língua portuguesa com outra da língua tupi (por exemplo, cristão-kanhema, capitão-etá etc.); 2. Representamos a consoante oclusiva glotal /Ɂ/ com apóstrofo, como sucede na escrita atual do guarani paraguaio, o que não fizeram aqueles autores.
A carta de 19 de agosto é a de mais difícil transcrição, por causa de algumas características da sua ortografia e por apresentar trechos borrados.
Por ser língua de tradição oral, de povos ágrafos, houve problemas ortográficos quando o tupi antigo passou a ser escrito. Alguns deles foram os seguintes:
Não havia letra distinta para representar o fonema /ɨ/. No século XVI, a vogal ɨ era representada por ig. Passou a ser usado o ípsilon a partir de 1621, com a publicação da “Arte da Lingua Brasilica”, do padre Luís Figueira (1621). Nas cartas dos índios Camarões, contudo, são usadas indiferentemente as letras i, j e também ig para representar aquela vogal. Utilizaremos y, em nossa transcrição, para representá-la;
Os epistológrafos indígenas, ao escreverem em tupi antigo, frequentemente separavam sílabas de uma mesma palavra ou uniam palavras distintas. Vejam-se os exemplos abaixo, tomados da carta de Diogo da Costa, datada de 17 de outubro de 1645:
Paraibi guara
Aqui o sufixo -ygûara, representado no texto por i guara, teve sílabas separadas.
maẽgua çuetendebe
Aqui o sufixo -gûasu, representado no texto por guaçu, teve suas duas sílabas separadas (...gua çu...). Por outro lado, o pronome ndebe uniu-se à palavra que o antecede.
Em nossa transcrição, não mantivemos tais procedimentos;
Não era representada a consoante oclusiva glotal /Ɂ/. Em nossa transcrição, ela é representada pelo apóstrofo (‘), conforme já dissemos anteriormente;
Os sinais de pontuação e a acentuação gráfica são pouco utilizados nas cartas. Em nossa transcrição utilizamo-los sistematicamente;
Não há, nas cartas, representação sistemática de semivogais. Usava-se às vezes ẏ, às vezes j para se representar a semivogal iode /j/. Em nossa transcrição, utilizamos o acento circunflexo sobre elas (î, û e ŷ). Embora uma convenção para marcar as semivogais não seja, com efeito, necessária para que um leitor não nativo contemporâneo possa reproduzir com relativa fidelidade a fonética da oralidade setecentista, julgamos oportuno seguir uma ortografia do tupi antigo que, há décadas, vem sendo utilizada por tupinistas como Antônio Lemos Barbosa, Frederico Edelweiss e Eduardo Navarro;
Onde a letra <c> representa o fonema oclusivo velar surdo /k/, optamos por transcrevê-la por <k>. Onde <c> e <ç> representam o fonema /s/, substituímo-la por <s>;
As variantes alofônicas consonantais [mb] (alofone de /m/), [nd] (alofone de /n/), [ʃ] (alofone de /s/), [ɲ] (alofone de /j/) são, na nossa transcrição, representadas graficamente por mb, nd, x e nh, respectivamente. O b fricativo /β/ e o b oclusivo do seu alofone [mb] (nasal com distensão oral) são representados em nossas traduções pela mesma letra, b;
O fonema /ŋ/ é representado nas transcrições por ng;
As marcas de nasalidade muitas vezes não são utilizadas nos manuscritos. A nasalidade de um fonema não é amiúde marcada com til ou com n, m: mogeta (em vez de mongetá ou mõgetá), modo (em vez de mondó ou mõdó). Em nossa transcrição, as marcas de nasalidade serão sempre assinaladas, mas, às vezes, não corresponderão às que são convencionais na ortografia portuguesa. Essas marcas de nasalidade são sempre as da ‘norma clássica tupinológica’, isto é, as utilizadas por tupinistas como Lemos Barbosa, Edelweiss e Navarro.
A TRADUÇÃO DAS CARTAS PARA O PORTUGUÊS
Apresentam-se aqui traduções de cartas de uma língua de partida da família tupi-guarani para uma língua de chegada da família românica, no caso, o português.
Apresentamos para cada manuscrito duas traduções, uma livre e a outra justalinear, com o texto original transcrito. Isso permitirá acompanhar pari passu a transposição do texto em língua indígena para a língua portuguesa.
Apresenta o tupi antigo grandes diferenças estruturais em relação à língua portuguesa, entre as quais se podem mencionar as seguintes: flexão verbal à esquerda; existência de posposições; subordinação oracional pouco desenvolvida; existência de afixos de relação, semelhante ao construto das línguas semíticas; voz causativa e voz causativo-comitativa; ausência de artigos; ausência de flexão de gênero e de número das formas nominais; relação genitiva formada como nas línguas da família germânica, isto é, com inversão das palavras; sintaxe do tipo sujeito-objeto-verbo (SOV).
Assim sendo, as soluções tradutórias que aqui encontramos tiveram de considerar a índole muito diversa do tupi antigo em relação às línguas românicas. Buscamos, nas traduções justalineares, aproximar o texto de chegada o mais possível do texto de partida, até onde isso é factível. Já nas traduções livres, utilizamos a variedade linguística do português brasileiro em seu padrão contemporâneo. As soluções tradutórias foram, assim, conduzidas por maior literalidade nas traduções justalineares.
Nas traduções livres, utilizamos a sintaxe mais corrente em português, sujeito-verbo-objeto (SVO), substituindo algumas palavras e expressões por outras mais usuais no português brasileiro. Evitamos nelas o uso do pronome vós, de segunda pessoa do plural, substituindo-o pelo pronome de tratamento vocês, que é o usual no português contemporâneo, tanto no Brasil como em Portugal. Utilizamos, contudo, nas traduções justalineares, o pronome tu, que ainda é usado em certas regiões do Brasil e tem amplo emprego em outros países lusófonos.
A dicotomia tradução literal/tradução livre é, há milênios, uma questão que domina as discussões sobre os princípios da prática tradutória (Nida, 1964). Forma versus sentido, estrangeirização versus domesticação, forma versus conteúdo, tais dicotomias e outras mais permeiam as reflexões sobre tradução. Sendo as cartas dos Camarões os únicos textos conhecidos em tupi antigo de autoria de falantes nativos e, dado o pequeno número de textos nessa língua, torna-se fundamental retirar de tais cartas o máximo de informações linguísticas, o que torna centrais as questões formais e a análise da estrutura dos textos na presente tradução desses preciosos manuscritos. É preciso considerar, ademais, que seus autores eram todos bilíngues e que o contato dos potiguaras com os europeus já datava de mais de 140 anos. Assim sendo, verificar nessas cartas as influências do português sobre o tupi antigo torna-se ponto fundamental, o que coloca questões formais no centro de nossas discussões.
Os autores das cartas eram índios católicos, alfabetizados em português, com contato de décadas com os colonizadores. Sua cultura tradicional, assim, quase não aparece em seus textos, o que põe de lado questões de domesticação tradutória, as quais não se apresentam importantes aqui.
Carta 1 - de Felipe Camarão a Pedro Poti, de 19 de agosto de 1645 (Figura 1)
TRADUÇÃO
Envio minhas palavras novamente a todos vocês, meus filhos. Mando-lhes determinações novamente, por os amar de fato. Por quê? Por ser eu, na verdade, o pai verdadeiro de todos, para que vocês não percam sua salvação.
Isto não é bom em nossa terra, e vocês se desgraçam muitíssimo com seus atos, longe de mim, em sua condição de cristãos. Dirijo estas minhas palavras de novo para salvá-los do pecado.
Portanto, que todos vocês reconheçam o remédio que lhes mando. Estou pronto para fazer tudo por vocês.
Esta guerra é muito dolorosa para mim, por causa das coisas más que vocês fizeram, e eu não tenho pena de vocês.
Por que faço guerra com gente de nosso sangue, se vocês são os verdadeiros habitantes desta terra? Será que falta compaixão para com nossa gente? Ora, já duas vezes em luta?
Os homens maus, potiguaras que lutavam contra nós, morreram todos em Serinhaém. Todos os que ajudavam os homens maus morreram na batalha ontem, lamentavelmente. Os que lutaram com os homens maus para sua própria desonra, todos eles pereceram por nossas mãos. Hoje não se poupou a vida deles. Por que isso, se eles são os habitantes verdadeiros desta terra?
Vocês conhecem bem os portugueses por todas as coisas más que vocês fazem, mas vocês rejeitaram toda a culpa, então, para se livrarem desta.
Vejam que eu lhes indico novamente o que vocês devem fazer, as determinações a seguir, para que vocês não tenham dificuldades com os homens maus se eles maltratarem vocês entre si.
A saída de vocês do meio deles será algo mais que um simples abalo de gente ruim e vocês ficarão com medo. Muitos comandantes morrerão, homens ruins, por nossas mãos.
Ontem prendemos mais quatro chefes e toda a sua família em que confiavam. Capturamos a metade dos quatrocentos subordinados deles. Alguns morreram com eles por nossas mãos. Morreu o capitão André de Souza Biobi, o capitão Mateus Monteiro, o capitão Gaspar Ijibaquajiribã e também todos os seus melhores subordinados.
Não pensem que se poupa a vida dos potiguaras (da gente nossa) por esses terem sido feitos chefes. Não pensem que os homens maus livram vocês de nós. Somente a vida deles é poupada. E por que, se eles são estrangeiros?
Portanto, evitem que mais índios sejam atraídos de novo, e que fiquem sendo companheiros de guerra dos homens maus em suas ações futuras. Não quero mais, de jeito nenhum, a morte de vocês. Portanto, venham vocês todos ao meu encontro, recolhendo-se junto a mim.
Eu vou certamente perdoar-lhes todas as coisas más que vocês fizeram.
Somente este é o remédio de vocês. Portanto, fiquem contra eles, afastando-se. Eu vou ficar muito feliz se vocês fizerem isso.
Eu novamente farei vocês estarem bem, perfeitamente de acordo com seu modo de vida de antigamente. Os que se acharem aí, conforme eu disse, serão completamente arruinados. Para longe deveriam ir para fugir de mim. Que não finjam os índios uma fuga.
Que tristeza! Esta guerra é parecida com o que era a armada; sua condição é a condição daquela. Eu mesmo reconheço isso.
Deixem de se desonrar, fugindo de mim. Vou-lhes dar o perdão geral, sem dúvida. Vocês serão meus amigos.
Todos os chefes índios pedem-lhes muito que venham. Eles também lhes darão o perdão geral, de acordo com as ordens de seu próprio chefe.
Hoje, 19 de agosto de 1645.
Capp. Mor Camarão
________________________________________________________________
Se vocês não confiam, vocês são uns aleijados.
Por que os holandeses já entregaram esta terra
aos portugueses?
Portanto, reconheçam sua condição.
________________________________________________________________
Ó meus parentes, (que pena!) vim aqui para retirar vocês
de uma morada ruim.
Eis que aqui estou. Confiem em mim.
Capp. Simão Soares – Paraíba
Que se realizem estas minhas palavras.
TRANSCRIÇÃO COM TRADUÇÃO JUSTALINEAR ANOTADA
Aîmondó benhẽ || Envio de novo
xe nhe’enga || minhas palavras
opamenhẽ3 peẽme, xe ra’yretá4. || a todos vocês, meus filhos.
Pe raûsupa5 é, || Amando-os, de fato,
pe rekomonhangaba6 || determinações a vocês
aîmondó benhẽ7 peẽme. || mando novamente a vocês.
Marãnamo? || Por quê?
Opamenhẽ pe rubetéramo8 || De todos vocês como pai verdadeiro
gûitekóbo9 é, || estando eu, na verdade,
pe rekokatu || da salvação de vocês
kanhema suí10. || para não [haver] a perda.
N’i katuî nhẽ kó || Não é bom, com efeito, isto
nhandé11 retama pupé nhẽ; || em nossa terra;
pe rekó pupé || com seus atos
pekanhemetekatûabo12, || desgraçando-se vocês muitíssimo,
xe suí, || longe de mim,
cristão-ramo || como cristãos
pe rekó pupé. || na condição de vocês.
Kó xe nhe’enga || Estas minhas palavras
aîmondó benhẽ || envio-as de novo,
tekoaíba suí || do pecado13
pe pysyrõagûama14 resé. || para o futuro livramento de vocês.
Emonãnamo, || Portanto,
ta peîkugûá15pabẽ || que [vocês] reconheçam todos
pe posanga || o remédio de vocês
peẽme xe remimondó.16 || para vocês enviado de mim.
Aîkó niã ixé || Estou eu, com efeito,
peẽme opamenhẽ ma’e || a vocês todas as coisas
monhangagûama resé. || para fazer futuramente.
Sasyeté ã17 || É muito dolorosa, isso é,
ixébe18 || para mim
ma’eaíba pe remimonhangûera resé || por causa das coisas más, as feitas no passado por vocês,
kó marana, || esta guerra19,
pe raûsubare’yma. || de vocês não me compadecendo.
Marãnamo, || Por quê,
kó yby poretéramo || desta terra como habitantes verdadeiros
pe rekóreme, || se vocês estão,
amarãmonhangype20 || faço guerra
Na saûsubarypyramo ruã || Não como aqueles de quem se compadece
sekóû? || estão eles?23
Ma’ẽtepe é mokõî ygûã || Ora, duas vezes já
maramonhangápe? || em luta?
Oré resé24 omaramonhãba’e, || Contra nós os que lutavam,
apŷabaíba pitikoara25, || Os homens maus potiguaras,
kanhẽmbabi26 Serinha’ẽme27. || pereceram todos em Serinhaém28.
Apŷabaíba pytybõsara || Dos homens maus os ajudantes,
opakatu i kanhemi || todos eles pereceram
kûesé akỹ29 || ontem, lamentavelmente,
maramonhangápe. || na batalha.
Apŷabaíba irũnamo || Com os homens maus
o a’o resé || para sua própria desonra
omaramonhãba’epûera, || os que lutaram,
opakatu i kanhemi || todos eles pereceram
oré suí. || por nossa causa30.
N’onheme’engi31 îeí || Não se deu hoje
ãgûa supé quartel32. || para eles quartel.
Marãnamo, || Por quê,
kó yby poretéramo || desta terra como habitantes verdadeiros
ãgûa rekóreme? || se eles estão?
Peîkugûa33katu karaíba34 || [Vocês] conhecem bem os portugueses
opabenhẽ35 mba’eaíba || [por] todas as coisas más,
pe remimonhanga resé, || obra de vocês
opabẽ36 culpa37 seîtykite38 || toda a culpa [vocês] a lançaram fora, porém,
a’ereme, || então,
koba’e suí || dela
pe pysyrõagûama39 resé. || para o futuro livramento de vocês.
Kó ixé || Eis que eu,
pe rekorama, || de vocês o futuro proceder,
pe remimonhangûama, || as futuras ações de vocês,
pe rekomonhangaba || as determinações a vocês
aîmondó benhẽ || mando-as de novo
peẽme || a vocês
ta peîmoabaíb ymẽ || para que não tenham dificuldades [para que não façam difíceis]
apŷabaíba, || (com) os homens maus,
oîopa’ũme, oîoirũnamo || entre si [e] consigo,
pe rerekoaíme40. || a vocês no caso de maus tratos.
I xuí || Deles
pe semagûama || a futura saída de vocês 41
mba’e apŷabaíba ryryîa suí42 || algo mais que um abalo de homens maus [será]
peîeangune. || e [vocês] terão medo43.
apŷabaíba, || homens ruins,
oré suí. || por nossa causa46.
Kûesé orogûar47 benhẽ 4 tubixaba, || Ontem prendemos mais quatro chefes
opabenhẽ i nhanama48, || e toda a sua gente,
îerobîasaba49. || causa de sua confiança.
4 cento50 i boîá || Quatrocentos subordinados deles,
oîopytera rupi orogûar. || pela metade capturamos.
Amõ okanhem || Alguns morreram
oré suí || por causa de nós
irũnamo || com eles51.
Okanhẽ capitão André de Souza Bioby, || Pereceu o capitão André de Souza Biobi52,
capitão Gaspar Igibaquagiribã || o capitão Gaspar Ijibaquajiribã55
opamenhẽ i boîaeté abé. || [e] todos os seus melhores subordinados também.
Peîmo’ang ymẽ, || Não imaginem
tuîxamonhangápe56 || , ao fazerem chefes
quartel nheme’enga. || quartel ser dado.
Peîmo’ang ymẽ || Não imaginem
apŷabaíba || os homens maus
oré suí pe pysyrõ. || de nós livrarem vocês.
I xupé nhõ || A eles, somente,
ã quartel nheme’engi. || esse quartel se dá.
Marãnamo, || Por quê,
sobaîygûaramo || como habitantes de outras bandas
sekóreme? || se eles estão?
Emonãnamo, petenhẽumẽ || Portanto, evitem que,
benhẽ abá || de novo, os índios
onhemomotabenhẽmo, || sejam atraídos ainda mais,
apŷabaíba maranirũnamo || dos homens maus sendo companheiros de guerra
o gûekorama59 resé. || em suas futuras ações.
Naîpotarangaî benhẽî60 || Não quero mais, de modo algum,
pe kanhema. || a ruína de vocês.
Emonãnamo, opamenhẽ peîor || Portanto, todos venham
xe ropenhana, || me encontrar,
ixébe peîkŷabo61. || junto a mim recolhendo-se vocês.
Xe nhyrõngatu ipóne || Eu hei de bem perdoar, certamente,
peẽmene || a vocês
opabenhẽ62 mba’eaíba || [por] todas as coisas más,
pe remimonhangûera reséne63. || obra passada de vocês.
Kó nhõ pe posanga. || Este somente é o remédio de vocês.
Emonãnamo, pepu’ã64 sesé, || Portanto, fiquem contra eles,
i xuí pesema. || deles se afastando.
Emonã pe rekóreme, || Se assim for o proceder de vocês,
xe rorybeténe. || eu hei de ficar muito feliz.
Opomoingoîebykatupe65, || [Eu] os farei estar novamente bem,
akûeme pe rekopûera || de outrora [com] a antiga cultura de vocês
rupikatune. || bem de acordo.
Kó xe nhe’enga rupi || Segundo estas minhas palavras
i mokanhemetepyramo nhẽ || como os que serão muito arruinados, com efeito,
sekóûne68 || estarão.
Mamõ monẽ i xóû || Para longe deveriam ir
xe suí oîegûasema69. || de mim para fugir.
T’oîmoang ymẽ. || Que não o finjam
abá || os índios
emonã oîkoba’e. || que assim fizerem.
Kó marana || Esta guerra
akûeme akỹ70 || há tempos, ai!,
amõ armada rekopûera îabé; || é um pouco como o antigo estado da armada71;
sekó || sua condição
akûeîba’e rekó. || [é] a condição daquela.
Ixé aé || Eu mesmo
aîkugûá72 tekó. || reconheço o fato.
pekûaẽmo75 xe suí. || escapando-se de mim.
Aîme’engatu ipóne || Hei de dar certamente
perdão geral76 || o perdão geral
peẽmene. || a vocês.
Xe remimotaramo || Como aqueles que eu desejo
peîkóne. || [vocês] estarão.
Opamenhẽ || Todos
morubixabetá abá || os chefes índios
oîerureté peẽme || pedem muito a vocês
pe ruragûama77 resé. || pela vinda futura de vocês.
A’e abé oîme’ẽ78 || Eles também darão
perdão geral peẽmene79 || o perdão geral a vocês
og80 ubixaba || de seu próprio chefe
ogû81 ekomonhangaba rupi. || segundo as ordens a eles.
Oîe82, 19 de agosto de 1645. || Hoje, 19 de agosto de 1645.
Capp.am Mor Camarão
________________________________________________________________
(A mensagem a seguir, escrita no final da carta, parece ser de outra pessoa. Há um enorme rabisco sobre ela, que semelha uma rubrica. Ali, lemos o seguinte:)
Pe îerobîare’yme, || No caso do não confiar de vocês,
i aparypyramo83 || como os que são aleijados.
peîkó. || [vocês] estão.
Maranamo aîuruîuba84 || Por que os holandeses
oîme’eng ûã || entregaram já
kó yby || esta terra
karaíba supé? || aos portugueses?
Emonãnamo, || Portanto,
peîkugûá pe rekó. || reconheçam a condição de vocês.
_____________________________________________________________________
(No final da página, há uma mensagem breve do capitão Simão Soares, seguida de sua assinatura:)
Ixé anama gûy, || Ó meus parentes,
aîur ké || vim aqui
pe rerosema85 || para fazer vocês saírem comigo
tekoabaíba suí. || de uma morada ruim.
Kó bé aîkó. || Eis que aqui também estou.
Peîerobîar ixé resé. || Confiem em mim.
Capp. am Simão Soares – Paraíba
_____________________________________________________________________
(E, no canto inferior, do lado esquerdo, com a mesma letra da mensagem acima, lemos:)
Carta 2 - De Felipe Camarão88 a Antônio Paraupaba, de 4 de outubro de 1645 (Figura 2)
TRADUÇÃO
Envio-te estas minhas palavras, estando como teu verdadeiro pai, na verdade. Será que isto é contra tua vontade? Por quê? Estando eu como teu verdadeiro pai, não quero tua morte sem sentido, por seres tu um cristão, como se fosse aquele animal que não conhece a Deus.
Acaso tu estás gostando de estar com os homens maus? Com certeza, tu já tens nas tuas mãos agora tudo o que é grande. Que mais tu queres ainda deles? Tu estás sendo autêntico, de fato, (dizendo que estás) gostando deles, em tua condição de cristão, querendo matar, na verdade, teu corpo e, principalmente, tua alma? Não posso ver, sem me importar, esse teu procedimento, por te amar de verdade.
Informamos-te sobre o que tu farás se vieres diante de mim. Em toda esta terra eu posso, por minha vontade, perdoar-te pelas coisas más que tu fizeste, se tu vieres diante de mim. Portanto, deixa de acreditar nas palavras desses holandeses ou índios maus que fogem de mim com as esposas de seus próximos e quando eles contarem palavras fantasiosas minhas.
Esses brancos são sempre aquilo que tu bem conheces, em nós querendo seus escravos. Eles transgridem muito as promessas que te fazem. Fazem-nas a ti e não poupam de modo nenhum a vida de vocês, como dizem. Por que lhes fazem promessas? Para que eles (isto é, ‘os outros potiguaras’) não fiquem procurando seu próprio chefe, para que esses estejam com aquele homem ruim. Aquele holandês até lhes diz que lutem com seu Capitão-Mor e que, então, vai tratar as esposas deles ou seus filhos e filhas como seus amigos. Ele tenta inventar palavras horríveis que eu teria dito para vocês, para que eu não os salve.
Portanto, deixa de acreditar nessas coisas. Eu não sou um homem branco, mas, sim, o teu próprio pai. Assim sendo, que não dificultes a futura retirada dos nossos parentes que estão contigo, por causa dos homens maus. Que tragas a todos eles diante de mim. Eu perdoo também àqueles que estão contigo.
Teus avós não podem anular por si sós nossos regimentos. A anulação de uma única lei nossa não é mais como antigamente. Os velhos, segundo eles mesmos, acham que (matar os potiguaras aliados dos holandeses) é uma chacina.
Esses próprios homens maus é que nos obrigaram a fazer essa lei e, então, nós estamos buscando que tu não te desgraces. Vamos, mostra que tu não me repudias como esses homens ruins, estando tu na terra deles!
Eu vou para Paraguaçu, buscando aquela nossa futura morada. Eu não posso deixar desaparecer de nós mesmos as tradições do meu finado pai. Portanto, retira nossos parentes dos homens maus e venham para diante de mim. Não tenham medo de mim. Fazer isso não será difícil para vocês, de modo algum, se tu o quiseres.
Eu envio também esse teu tio (ou ‘primo do teu pai’), o sargento-mor Dom Diogo Pinheiro, para vocês fazerem isso. Que o Senhor Deus ajude vocês nisso, para sua felicidade, conforme a minha vontade.
Hoje, 4 de outubro de 1645.
O pai de todos vocês,
Capitão-Mor CamarãoTRANSCRIÇÃO COM TRADUÇÃO JUSTALINEAR ANOTADA
Kó xe nhe’enga || Estas minhas palavras
aîmondó endébe, || envio-as a ti89,
nde rubetéramo || como teu pai verdadeiro
gûitekóbo é. || estando, na verdade.
Nde remimotare’yma rupi é serã? || Será que está conforme ao que tu não desejas? (ao teu não desejar?)
Marãnamo? || Por quê?
Nde rubetéramo || Como teu pai verdadeiro
gûitekóbo, || estando eu,
n’aîpotari, || não quero,
christãoramo || na condição de cristão
nde rekóreme, || por estares tu,
nde kanhẽ tenhẽnhã90, || tua morte sem sentido,
aké so’o91 || [d]aquele animal
Tupã kugûapare’yma || que a Deus não conhece
rekó92 îabé. || como o ser [como se fosse].
Nde moapysyk ygûã, || Agrada-te já,
nipó, || porventura,
apŷabaíba irũnamo || com homens maus
nde rekó? || tu estares?
Opab ygûã || Tudo já,
nipóne || com certeza,
turusuba’e || o que é grande
ererekó || tens
nde pópe ko’y. || nas tuas mãos agora.
Ma’e abépe || Que mais
ereîpotarybé i xuí? || queres ainda deles?
Nde reté é ã || Tu és verdadeiro, mesmo,
saûsupápe eîkóbo, || a amá-los estando,
christãoramo || como cristão
nde rekó pupé, || em tua condição,
nde reté || teu corpo
memẽ nde ‘anga || [e], mais ainda, tua alma
mokanhẽeté potá? || querendo arruinar, na verdade?
Kó93 nde rekó || Esse teu proceder
n’a‘ekatuî || não posso,
nhẽ94 sepîaka, || sem mais, vê-lo,
nde raûsupa é. || por te amar95 de verdade.
Kó nde rekorama resé || Acerca daquilo que farás
oromongakugûá96 || informamos-te,
xe robaké || diante de mim
nde rureme. || se vieres.
Opabenhẽ kó yby pupé, || Em toda esta terra
ma’eaíba || as coisas más,
nde remimonhangûera resé || obra passada de ti,
a’ekatu97, || posso,
xe robaké || diante de mim
nde rureme, || se tu vieres,
xe nhyrõnamo98 endébe, || perdoar eu a ti,
xe remimotara rupikatu. || inteiramente por minha vontade.
Emonãnamo, || Portanto,
etenhẽumẽ || evita
ã karaíba || desses brancos
koîpó apŷabangaîpaba || ou índios maus
xe suí || de mim
ogû99 apixara remirekó || as esposas de seus próximos
reroîabapara || que fazem fugir consigo
nhe’enga, xe nhe’ẽmo’anga mombe’u rerobîáne. || acreditar nas palavras, no contarem [deles] palavras fantasiosas de mim.
Memẽ ã karaíba || Sempre esses brancos
nde remikugûakaturamo || como o que é bem conhecido de ti
sekóû, || estão,
nhandé resé || em nós
ogû100 emiaûsupotaramo101. || seus próprios escravos querendo.
A’e endébe || Eles para ti
nhe’engabyeteeté. || [são] muitíssimo transgressores das (próprias) palavras.
Osa’ang endébe, || Declaram-nas a ti
n’oîme’engangaî ahẽ || [e] não dão eles de modo nenhum
peẽme || a vocês102
quartel e’iba’e. || o quartel103 que dizem.
Nhe’enga osa’ang peẽme. || Palavras dirigem a vocês (i.e., fazem-lhes promessas).
Marãnamo? || Por quê?
T’oîkó ymẽ ahẽ || Para que não estejam eles104
t’oîkó nhẽ kó || para que estejam esses
ahẽ apŷabaíba irũnamo, || com aquele homem mau107,
“-T’omarãmonhang ||“– Que lutem (eles)
o Capitão-Mor resé, || com seu Capitão-Mor
a’ereme t’arekó || e, então, hei de tratar
kó ahẽ remirekopûera108 || essas esposas deles
koîpó ta’yrûera109, taîyrûera110 || ou seus filhos e suas filhas
xe remiaûsubamo ká,” || como meus amigos”
o’îabo é ã karaíba. || dizendo mesmo esse holandês111.
Xe nhe’engabaeteeté || De mim palavras112 muito medonhas
mo’anga ra’angi || (ele) tenta inventar
peẽme || para vocês,
ixé pe pysyrõ suí é. || para de mim a não salvação de vocês.
Emonãnamo, || Portanto,
etenheumẽ113 || evitarás
ã mba’e rerobîáne. || nessas coisas acreditar.
Na karaíba ruã ixé. || Não um homem branco eu [sou].
Nde ruba é ã ixé. || Teu próprio pai de fato eis que eu [sou].
Emonãnamo, || Portanto,
t’ereîmoabaíb ymẽ || que não dificultes,
apŷabaíba suí114 || por causa dos homens maus,
nhandé anametá || [de] nossos parentes
nde irũmo oîkoba’e || que estão contigo
rerosemagûama. || a futura retirada.
T’ererur ãgûa || Que tragas (a) eles
xe robaké opakatu. || diante de mim todos.
Xe nhyrõ115 ãgûa supé || Eu perdoo àqueles
nde irũnamo bé. || contigo também.
nhandé rekomonhangagûera || nossos velhos regimentos118
mokanhemetekatûabo îaîkóbo || estar destruindo verdadeiramente,
oîoupi nhẽ nhõ. || de acordo com eles mesmos, sem mais, somente.
Nhomokanhema || A anulação
oîepé nhandé rekó pupé || em uma única lei nossa
na rima’e119 bé ruã. || não é mais como antigamente.
Tuîba’e || Os velhos
kó îoapiti || isso uma matança120
rerekóû || consideram
oîoupi. || segundo eles mesmos.
Kó apŷabaíba é || Esses homens maus, mesmo,
ã kó tekó || eis que esta lei
oîmonhangukar, || obrigaram a fazer,
nhandé a’ereme é || e nós, então, na verdade,
nde rekokaturama || [de] tua futura felicidade
rekasápe121 é. || [estamos], de fato, na busca.
Eré kó || Mostra-te, eia,
kó122 apŷabaíba || desses homens maus
retãme || na terra
eîkóbo, || estando tu,
na xe pe’abo ruã || não me repudiando
a’e îabé!123 || como eles!
Ixé asó Paragûasupe || Eu vou para o Paraguaçu,
ã nhandé rekorama || essa nossa futura morada
reká é. || buscando (para buscar), na verdade.
Ixé na’ekatuî || Eu não posso
xe rubamyrĩ || do meu finado pai
nhandé rekokatumonhangaba124 || nossas tradições
mokanhema || fazer desaparecer
nhandé îosuí. || de nós mesmos125.
Emonãnamo, || Portanto,
t’ererosẽ || que faças sair contigo
apŷabaíba suí || dos homens maus
nhandé anametá || nossos parentes
xe robaké. || [para] diante de mim.
Penheangu ymẽ xe suí. || Não tenham medo de mim.
Aîpó pe rekó || Esse ato de vocês
n’i 126 îabaibangáî || não é, de modo algum, difícil,
kó tekó endé i potareme || se esse ato tu quiseres
i monhanga. || realizá-lo.
Ebokûeî bé || Esse também
nde ruba127, || teu tio (ou primo do teu pai),
sargento-mor Dom Diogo Pinheiro, || o sargento-mor Dom Diogo Pinheiro,
aîmondó || envio
aîpó pe rekó resé. || para essa ação de vocês.
Pa’i Tupana || O Senhor Deus
kó tekó resé || nessa ação
ta pe popytybõ || que ajude vocês,
pe rekokaturama resé, || para sua futura felicidade,
xe remimotara rupi. || conforme a minha vontade.
Oye128, 4 de outubro de 1645. || Hoje, 4 de outubro de 1645.
Opabenhẽ pe ruba || De todos vocês o pai,
Capp.am Mor Camarão || Capitão-Mor Camarão
Carta 3 - De Felipe Camarão a Pedro Poti, de 4 de outubro de 1645 (Figura 3)
TRADUÇÃO
Que o Senhor Deus faça chegar bem esta minha carta Consigo, para tua salvação e para minha alegria também. Eu, aqui, na Vargem, onde moro, não ajo mal ao fazer a ti as coisas, conforme é da minha vontade.
Envio-te estas minhas palavras novamente, sendo teu verdadeiro parente. Hás de mandar matar novamente, como antes fizeste, o que te leva esta minha carta? Que mandaste matar o outro, isso eu já sei.
Nesta guerra, conhecendo eu bem os fatos, não estou admirado com esse teu comportamento. Por quê? Sei bem que estás nas mãos dos homens maus (dos holandeses) e que tu, além disso, estás bem e que gostas deles.
Fizeram vir esse teu irmão, o Capitão Diogo da Costa, para me contar o que tu disseste. Dizem que um holandês, teu amigo, trouxe tua mensagem para ele, transmitindo-a conforme ela era.
Envio-te teu irmão mais velho, o Capitão Diogo da Costa, para levar minha carta agora. Mando para aí (também) teu irmão mais novo, o Sargento-Mor Dom Diogo Pinheiro, para apoiar vocês, sendo eu cristão e pai verdadeiro de todos.
Nossas antigas terras, nossos velhos ritos, tu com esses nossos parentes paraibanos, os de Cupaguaó, os de Uruburema, os de Jareroí, os de Guiratiamim, todos os antigos filhos dos habitantes da caatinga, tudo e todos estão sob as leis dos insensatos, assim como teu corpo e tua alma também estão.
Para que tu não continues a prejudicá-los, como costumas fazer, estas minhas palavras eu te mando para que tu saias de perto dos (holandeses), homens ruins. Portanto, tu hás de dificultar a retirada de toda a nossa gente deles? Não é difícil, não que tu saias com eles, se tu o quiseres. Portanto, evita estar segundo a lei desses nossos parentes insensatos, desgraçando-te muitíssimo. Também envio para aí esse teu irmão mais novo, Dom Diogo Pinheiro, se tu saíres para longe dos (holandeses,) homens maus, para que te salves.
Assim, antes de saíres, que faças teu irmão ficar bem, (deixando-o são e salvo). Portanto, traze teu avô, o velho Araruna, teu pai Jaguarari, todos os outros parentes nossos, fazendo-os sair contigo daí. Se tu fizeres isso para El Rey, será uma ação muito grandiosa de ti.
Eis que estou junto a ti para apoiar tua ação, que será desgastante. Tu viverás futuramente não como os homens maus te trataram.
Portanto, crê em minhas palavras. Todos os moradores te elogiam para mim, ficando eu muito feliz por isso.
Minhas palavras a ti são somente estas. Que o Senhor Deus te ajude em tudo o que fizeres.
Hoje, 4 de outubro de 1645.
O substituto de todos os nossos pais,
Teu irmão mais velho,
Capitão-Mor CamarãoTRANSCRIÇÃO COM TRADUÇÃO JUSTALINEAR ANOTADA
Pa’i Tupana || Que o Senhor Deus
kó xe papera129 || esta minha carta
t’ogûerosy130katu || faça chegar consigo,
nde marane’yma supé131 || para tua conservação,
xe rorybagûama resé. || para minha alegria futura.
Ixé ã ké, || Eis que eu, aqui,
Vargem pupé, || na Vargem,
xe rekoápe132, || na minha morada,
na xe marani nhẽ || eu não [estou] mal, de fato,
endébe || a ti
ma’e || as coisas
monhangagûama resé, || para fazer
xe remimotara rupikatu. || bem de acordo com minha vontade.
Aîmondó benhẽ || Envio novamente
ã xe nhe’enga || estas minhas palavras
endébe || a ti,
nde anametéramo || como teu parente verdadeiro
gûitekóbo é. || estando eu.
T’ereîukáukar || Hás de mandar matar
benhẽ é serã || novamente, mesmo,
nhandu || como de costume,
endébe || a ti
kó xe papera rerasoara? || desta minha carta o levador (o que leva)?
Ma’ẽ ra’e || Vê, então,
amõ ereîukaukar ygûá133, || que o outro mandaste matar,
a’eba’e ã || isso aí
aîkugûab ygûã. || sei já.
Kó marana pupé, || Nesta guerra,
tekó kugûaparamo || dos fatos como conhecedor
gûitekóbo é, || eu estando, de fato,
na xe putupabi || não estou eu admirado
aîpó nde rekó resé. || por esse teu procedimento.
Marãnamo? || Por quê?
Aîkugûakatu || Sei bem
apŷabaíba pópe || nas mãos dos homens maus
nde rekó, || estares tu,
nde rekobé134 abé, || estares tu bem disposto, também,
endé saûsuba. || [e] amares tu a eles.
Omour135 || Fizeram vir
ã nde ryke’yra136, || esse teu irmão mais velho,
Capitão Diogo da Costa, || o capitão Diogo da Costa,
nde nhe’engûera || tuas palavras que foram (i.e., as que disseste)
ixébe || a mim
i mombegûabo. || para contá-las.
Karaíba, || Um branco,
nde raûsupara ra’e137 || teu amigo, conforme dizem,
nde nhe’engûera || tuas palavras que foram (i.e., as que disseste)
ogûerur || fez vir consigo
i xupé, || para junto dele
i mombegûabo || contando-as
a’e rupibé. || conforme elas [são].
Nde ryke’yra || Teu irmão mais velho,
Capitão Diogo da Costa, || o Capitão Diogo da Costa,
aîmondó endébe || envio a ti
xe papera rerasóbo || minha carta fazendo ir consigo
ko’y ã138. || agora.
Nde rybyra139, || Teu irmão mais novo,
Sargento-Mor Dom Diogo Pinheiro, || o Sargento-Mor Dom Diogo Pinheiro,
aîmondó || envio
ebokûé koty || para aí
opabenhẽ pe resé, || por todos vocês,
opabenhẽ pe rubetéramo || de todos vocês como pai verdadeiro
gûitekóbo é, || estando eu, na verdade,
cristãoramo. || [e] na condição de cristão.
Nhandé rupagûera, || Nossos antigos pousos140,
nhandé rekomonhangagûera, || nossos velhos ritos,
endé abé, || tu também,
ã nhandé anama || esses nossos parentes
Paraibygûara, || paraibanos (habitantes da Paraíba),
Kupagûaoygûara141, || os (habitantes) de Kupagûaó,
Uruburemygûara142, || os (habitantes) de Uruburema,
Yareroîygûara143, || os (habitantes) de Iareroí,
Gûyratiamygûara144, || os (habitantes) de Guiratiamim,
opabenhẽ || todos
ka’atingygûara ra’yrûera, || os antigos filhos dos habitantes da caatinga145
tekokugûabe’yma rekó rupi, || dos desatinados segundo a lei (estão),
nde reté || teu corpo
memẽ nde ‘anga. || [e], mais ainda, tua alma (estão).
Endé i mokanhema benhẽ nhã146 suí é || Para tu não os arruinar novamente, como de costume,
ã xe nhe’enga || estas minhas palavras
aîmondó endébe || envio a ti
apŷabaíba suí || dos homens maus
nde semagûama resé. || para tua futura saída.
Emonãnamo, || Portanto,
t’ereîmoabaíbyne || hás de dificultar
apŷabaíba suí || dos homens maus
opabenhẽ nhandé anama || de todos os nossos parentes
rerosemagûama? || a futura saída contigo?
N’iî abaibangaî || Não é difícil, de modo algum,
endé ãgûa rerosema, || tu a eles fazer sair contigo
endé i potareme. || no caso de tu o quereres.
Emonãnamo, || Portanto,
etenheumẽ || evita
ã nhandé anama || desses nossos parentes
tekokugûabe’yma || insensatos
rekó rupi || segundo a lei
eîkóbo147, || estar,
enhemokanhẽetekatûabone. || desgraçando-te muitíssimo.
Emokûeî148 bé nde rybyra, || Também esse teu irmão mais novo,
Dom Diogo Pinheiro, || Dom Diogo Pinheiro,
aîmondó ebokûé koty, || envio para aí,
kûépe || para longe
nde sẽme149 || no caso da saída de ti.
apŷabaíba suí, || dos homens maus,
nde pysyrõarama resé. || para tua futura salvação.
Emonãnamo, || Portanto,
nde s? nhanondé150, || antes de tua saída,
t’ereîmo’ekatu || que faças ficar bem (que favoreças)
nde rybyra || teu irmão mais jovem151
nde rekorama resé. || em tuas ações futuras (naquilo que fizeres).
Emonãnamo, || Portanto,
nde ramỹînha, || teu avô,
tuîba’e Araruna, || o velho Araruna,
nde ruba Îagûarari, || teu pai Jaguarari,
amõ opabenhẽ || os outros todos
nhandé anama || nossos parentes,
t’ererur, || que os faças vir contigo,
senosema152. || fazendo-os sair contigo.
Koba’e tekó, || Isto [será] uma ação,
ma’egûasueté || uma coisa muito grandiosa
endébene, || para ti,
endé i monhangeme || no caso de tu a fazeres
El Rey supéne. || para El Rey.
Kobé aîkó || Eis que estou
endébe || junto a ti
nde rekó resé, || por tua ação153,
i kane’õba’erama. || que será desgastante (cansativa).
Na apŷabaíba || Não dos homens maus
nde rerekopûera îabé ruã || como o antigo modo de te fazerem estar consigo
irã ereîkóne. || futuramente estarás.
Emonãnamo, || Portanto,
erobîar || crê154 [em]
xe nhe’enga. || minhas palavras.
Opabenhẽ moradores || Todos os moradores
nde mombe’ukatu || te louvam
ixébe, || diante de mim,
koba’e resé || por causa disso
xe rorybeté gûitekóbo. || eu muito feliz estando.
Aîpó nhõ || Essas155 somente
xe nhe’enga endébe. || [são] minhas palavras a ti.
Pa’i Tupana || O Senhor Deus
ta nde popytybõ || te ajude
nde rekorama resé. || em tuas ações futuras.
Oîe, 4 de outubro de 1645. || Hoje, 4 de outubro de 1645.
Opabenhẽ nhandé ruba || De todos os nossos pais
rekobîara, || o substituto,
nde ryke’yra, || teu irmão mais velho,
Cappam Mor Camarão. || Capitão-Mor Camarão156.
Carta 4 - De Diogo da Costa a Pedro Poti, de 17 de outubro de 1645 (Figura 4)
TRADUÇÃO
Que o próprio Deus chegue com minha cartinha para tua salvação, ó meu irmãozinho Pedro Poti. Enviamos a ti também essa minha cartinha.
De que tens ressentimentos? Nós nos dividimos ao meio. De que te ressentes?
Vem, saindo daí. Há já algum tempo estou ficando cansado de ti. Teu primo também, o Capitão-Mor também e, mais ainda, teu irmãozinho, o Sargento-Mor.
Sai, sem pensar mais, assim que leres esta minha carta. Por que estás gostando dos homens maus? E de mim tu não gostas? Por quê?
Dizendo-me que te enganam, que eu certamente sou um deles, repelindo-me, tu terias afeto por mim?
Não te contarei que os portugueses se importam contigo? O chefe dos portugueses quer muito a tua saída. Todos os portugueses da Paraíba ficariam muito felizes se viessem aqueles que se rendessem contigo.
Se tua saída for difícil, manda algum índio para me informar disso, e eu vou para te retirar. Ou, então, avisa-me por um sinal teu. O chefe quer dar-te, por tua saída, algo muito grandioso. Vem, saindo daí. Tu não gostas de mim?
Morreu teu irmão mais novo, Lippe Tocaia; nossa mãe morreu no Muçuí.
Somente isso te digo, ó meu irmão mais novo.
Teu irmão mais velho, Capitão Diogo da Costa.
Hoje, dezessete de outubro de 1645.
TRANSCRIÇÃO COM TRADUÇÃO JUSTALINEAR ANOTADA
Pa’i Tupana é || O Senhor Deus, [ele] próprio,
xe paperi157 || minha cartinha
t’ogûerosykatu || que bem faça chegar consigo
nde marane’yma supé, || para tua conservação,
xe rybyri gûy, || ó meu irmãozinho158
Pero Potĩ gûy. || Pedro Poti159.
Ebokûé bé || Também essa
xe paperi || minha cartinha
îamondó endébe. || enviamos160 a ti.
Ma’e tekópe || De que fatos
ereîmoasy? || te ressentes?
Îaîemonhãmbyterype161. || Fizemo-nos pela metade (dividimo-nos).
Ma’epe || De que
ereîmoasy? || te ressentes?
Eîor esema. || Vem, saindo.
Akûéme bé || Desde há tempos
aîkó xe kane’õramo162 || estou-me cansando
nde resé. || de ti.
Nde ryke’yra bé, || Teu primo (ou irmão) mais velho163 também,
Capitão-Mor abé, || o Capitão-Mor164 também,
memẽ nde rybyri, || e, mais ainda, teu irmãozinho,
Saligento165-Mor abé. || o Sargento-Mor, também.
Esemĩ166, || Sai, não mais,
kó xe papera || esta minha carta
repîaka rupibé. || tão logo vires.
Marãpe ereîkó || Por que estás
apŷabaíba raûsupa167? || os homens maus amando?
Ixépe || E a mim
na xe raûsubi îepé? || não me amas tu?
Marãpe? || Por quê?
nde ipó ahẽ” || tu és deles, certamente”,
e’îabo xebe, || dizendo [isso] a mim,
xe pe’abo, || me repelindo,
nde îoseî170 xépemo? || tu serias desejável para mim?
Karaíba nde anga’o || Os portugueses contigo importarem-se
naîmombe’uî xûé || não contarei
ndebe? || a ti?
Opotar171 eté || Quer muito
karaíba murubixaba || o chefe dos portugueses172
nde sema. || tua saída.
Sorybeté niã || Estariam muito felizes, com efeito,
opabenhẽ karaibetá173 || todos os portugueses
Paraibygûara || (habitantes) da Paraíba,
nde îeme’engagûera174 || os companheiros de tua passada rendição,
rureme. || no caso de virem.
Nde sema || Tua saída,
abaíme175, || difícil no caso de [ser],
eîmour || faze vir
abá amõ || algum índio
xe mongakuapa176 || para me informar,
t’asóne || [e] hei de ir
nde renosema, || para te fazer sair comigo,
koîpó endé || ou de ti
i kugûapaba rupi. || por um meio de saber dela.
Ome’ẽmotá177 || Quer dar,
niã morubixaba, || com efeito, o chefe
nde sema resé, || por tua saída,
ma’ẽgûasueté || algo muito grande
ndebe. || para ti.
Eîor esema. || Vem, saindo.
Na xe raûsupe îepé? || Não me amas tu?
Omanõ raka’e178 || Morreu
nde rybyra || teu irmão mais novo
Lippe Tokaîa; || Lippe Tocaia;
îandé sy omanõ || nossa mãe179
Musu’ype. || morreu no Muçuí180.
Aîpó nhote, || Isso somente [te digo],
xe rybyry gûy. || ó meu irmão mais novo.
Nde ryke’yra, || Teu irmão mais velho,
Capitão Diogo da Costa. || Capitão Diogo da Costa.
Oîe, daçaçeti de oitubro, 1645. || Hoje, dezessete de outubro de 1645.
Carta 5 - De Diogo Pinheiro Camarão a Pedro Poti, de 21 de outubro de 1645 (Figura 5)
TRADUÇÃO
Ao senhor Capitão Pedro Poti o próprio Deus, Nosso Senhor, te dê saúde.
Antes de tu leres esta minha carta, que saibas que eu estou muito feliz, e pergunto pela saúde de todos vocês, eu também não estando mal, na verdade.
Para fazer-lhes as coisas, as coisas que vocês desejam, para fazer as coisas, envio estes meus soldados aí, perto dos teus caminhos, para a saída de vocês, dizendo-lhes: – Observem a saída de alguns dos seus.
Mandei o capitão Diogo da Costa, dizendo-lhe: – Prenda alguns homens ou algumas mulheres para conversar e diga a eles que vocês foram para retirá-los. Conversem com eles primeiro e, depois de conversar, faça-os ir para dar notícias a vocês.
Envio-te estas minhas palavras, senhor Pedro Poti, como coisa sabida de Nosso Senhor Deus. Por quê? Vê que eu sou teu parente legítimo. Vem para sair do que é parecido ao fogo do diabo. Reconhece tua condição de cristão! Por que queres perder verdadeiramente tua condição de cristão? Por que queres verdadeiramente perder teu estado de filho do Senhor Deus? Que queres fazer, na verdade?
Sendo ignorante, tu estás, de fato, querendo muitíssimo arruinar-te. Quantos cristãos perdidos viste? Não são os portugueses que se perdem. Por quê? Porque, por serem cristãos, o Senhor Deus não pode os fazer perecer.
Aqui estamos, novamente, querendo a retirada de vocês, conforme as palavras do senhor Capitão-Mor Antônio Felipe Camarão e também conforme as palavras do chefe de todos os portugueses.
Eu estou admirado com vocês, vendo sua fuga para longe de nós; mas não somos nós seus parentes? Por que vocês nos detestam? Nós não lhes fizemos nenhum mal. Tudo bem, vocês não fizeram nenhum mal para nós.
Para aí também vai a carta do Capitão-Mor para ti. Vai também para aí outra carta do Capitão-Mor para Antônio Paraupaba.
Oxalá o Senhor Deus entrasse em seus corações, ó cristãos! E se vocês saíssem, nós estaríamos muito felizes, para vê-los sempre.
Para aí também mandei duas mulheres até vocês, para levar notícias e para que te contem minha situação aqui.
Vão essas notícias somente. Que vocês estejam vivendo bem. O Senhor Deus esteja com vocês.
Hoje, 21 de outubro de 1645.
Teu irmão mais novo e teu amigo, Sargento-Mor Dom Diogo Pinheiro Camarão.
TRANSCRIÇÃO COM TRADUÇÃO JUSTALINEAR ANOTADA
Ao sñor181 Capitão Pedro Potĩ182 || Ao senhor Capitão Pedro Poti
Îandé Îara || Nosso Senhor
Pa’i183 Tupã é || Deus, ele próprio,
tekobekatu || saúde
t’ome’eng184 endébe. || dê a ti185.
Ikó xe papera || Esta minha carta
endé sepîak îanondé, || antes de tu a veres,
xe rorykatu ã || eu estou muito feliz,
opabenhẽ pe || de todos vocês
marane’yma resé || acerca da saúde
gûiporandupa, || perguntando,
xe abé ã, || eu também,
na xe marani nhẽ || não mal, com efeito,
gûitekóbo. || estando eu.
Peẽme || A vocês
ma’e || das coisas
monhangagûama resé, || para a realização futura
ma’e pe remimotara, || as coisas de vocês desejadas186,
ma’e monhangagûama resé || das coisas para a realização futura,
aîmondó || envio
ã xe soldados ebapó, || estes meus soldados aí,
nde rapé ypype, || junto dos teus caminhos,
pe sema resé, || para a saída de vocês,
“-Pekûaî || “Vão
ãgûa amõ || de alguns deles
sema repîaka” || para ver a saída”,
gûi’îabo. || dizendo eu.
Aîmondó || Enviei
Capitão Diogo da Costa, || o Capitão Diogo da Costa:187
“-Peîpysyk188 abá amõ || “– Prendam alguns homens
koîpó kunhã amõ || ou algumas mulheres
ta peîmongetá”. || para que (vocês) conversem”.
“-Pe renosema é || Para vos fazer sair conosco, na verdade,
ikó oroîur” || eis que viemos”,
peîé i supé189. || digam a eles.
“Peîmongetá ranhẽ; || “Conversem com eles primeiro;
i mongetá roîré, || depois de conversar com eles,
ta peîmondó || que os façam ir
ãgûa mongakuapa”, || para a eles190 dar notícias”,
gûi’îabo191. || dizendo eu.
Pa’i Tupã Îandé Îara || De Nosso Senhor Deus
reminguabamo, || como o que é sabido,
ikó xe nhe’enga || estas minhas palavras
aîmondó endébe, || envio-as a ti,
Snor Pedro Potĩ. || senhor Pedro Poti.
Marãnamo? || Por quê?
Xe ã || Eis que eu
nde anama retekatu. || [sou] de tua família corpo verdadeiro.
Eîor esema || Vem saindo
Anhanga192 ratá || [ao] fogo do diabo
nungara suí. || do que é parecido.
Eîkuab || Reconhece
cristãoramo || como cristão
nde rekó! || tua condição!
Marã || Por que
ereîmokanhẽmotaretekatupe || queres arruinar verdadeiramente
cristãoramo || como cristão
nde rekó? || teu estar?
Marã || Por que
ereîmokanhẽmotaretépe || queres verdadeiramente arruinar
Pa’i Tupã || do Senhor Deus
ra’yramo || como filho
nde rekó? || teu estado?
Marã ereîkopotaretépe? || Que queres fazer na verdade?
Tekokuabe’ymamo, || Sendo desatinado,
erenhemokanhẽmotaretekatu || querendo muitíssimo arruinar-te
endé anhẽ || tu verdadeiramente
eîkóbo. || estás193.
Mobype || Quantos
cristão-kanhema || cristãos perdidos
eresepîá194? || viste?
Karaíba || Os portugueses
na okanhemba’e ruã. || não são os que se perdem.
Marãnamo? || Por quê?
Cristãoramo || Como cristãos
sekóreme, || por estarem eles,
nd’e’ikatuî || não pode
Pa’i Tupã || o Senhor Deus
i mokanhema. || fazê-los perecer.
Ikó bé oroîkó || Aqui novamente estamos,
pe renosema motá195, || querendo a saída de vocês conosco,
sr. Capitão-Mor || do Sr. Capitão-Mor
Antônio Felipe Camarão || Antônio Felipe Camarão
nhe’enga rupi, || conforme as palavras,
opabenhẽ || [e] de todos
karaíba || os portugueses196
rubixaba nhe’enga rupi bé. || do chefe conforme as palavras também.
Xe putubabeté ã gûitekóbo || Eis que eu estou-me admirando
pe resé, || com vocês,
oré suí || de nós
pe nhegûasema || sua fuga
repîaka; || vendo;
na pe anama ruãtepe oré? || mas não somos nós parentes de vocês?
Ma’e resépe || Por que
oré amotare’ym peîepé? || nos detestam vocês?
Oré n’oromonhangi197 || Nós não fizemos
ma’eaíba amõ || coisa má alguma
peẽmo. || a vocês.
Neĩ, peẽ || Tudo bem, vocês
na peîmonhangi || não fizeram
ma’eaíba amõ || coisa má alguma
orébe. || para nós.
Emokûeî bé || Para aí também
capitão-mor papera || do Capitão-Mor a carta
sóû || vai
endébe. || para ti.
Emokûeî bé || Para aí também
Antônio198 Paraupaba supé || para Antônio Paraupaba
amõ capitão-mor papera || outra carta do Capitão-Mor
sóû. || vai.
Pa’i Tupã || O Senhor Deus
temõ || oxalá
oîké || entrasse
pe py’a199 pemo, || em seus corações,
cristão gûé! || ó cristãos.
A’emo pe sẽmo200 || E se vocês saíssem,
oré rorybetémo201, || nós estaríamos muito felizes,
pe sẽmemo, || se vocês saíssem,
memẽ pe repîakamo202. || para vê-los sempre.
Emokûeî bé || Para aí também
mokõî kunhã203 || duas mulheres
aîmondó || enviei
peẽme, || para junto de vocês,
moranduba rerasóbo, || para as notícias fazerem ir consigo
t’omombe’u || [e] para que relatem
ké xe rekó || aqui minha situação
endébe. || para ti.
Aîpó nhõ || Essas, somente,
moranduba || notícias
sóû. || vão.
Peîkobekatu peîkóbo. || Estejam (vocês) vivendo bem.
Pa’i Tupã || O Senhor Deus
t’oîkó || esteja
pe irũnamo. || com vocês.
Hoje 21 de outubro, 1645 anos. || Hoje, 21 de outubro de 1645 anos.
Nde rybyra, || Teu irmão204 mais novo
nde raûsupara, || [e] teu amigo,
Sargento-Mor Dom Diogo Pinheiro Camarão. || Sargento-Mor Dom Diogo Pinheiro Camarão.
Carta 6 - De Diogo Pinheiro Camarão aos capitães Baltazar Araberana, Gaspar Cararu, Pedro Valadina e Jandaia, de 21 de outubro de 1645 (Figura 6)
TRADUÇÃO
Que o Senhor Deus esteja com vocês, dando-lhes saúde, ó senhores capitães.
Eu estou muito feliz, perguntando se vocês estão bem. Eu, na verdade, também não estou mal.
Enviei estas minhas palavras a vocês quatro, ó capitães Baltazar Araberana, Gaspar Cararu, Pedro Valadina e Jandaia, para que vocês façam as coisas necessárias. Deste modo, envio-lhes estas minhas palavras.
O Capitão-Mor Dom Antônio Felipe Camarão fez-me vir de novo aqui à Paraíba por causa de vocês. Ele me disse, quando me fez vir, que eu escrevesse uma carta para lhes enviar. Ele me disse que, ao mandar a carta, eu lhes perguntasse se vocês querem sair para junto de nós e que nós viríamos para isso.
Assim, eu envio a vocês esta carta. Eu não faço isto por maldade.
Por que vocês fogem de nós? Acaso vocês não são nossos parentes?
Respondam a esta minha carta. Por que será que nos afastaremos tanto, sendo parentes uns dos outros? Acaso, com este nosso modo de agir, não estaremos pecando?
Respondam a esta minha carta. Se vocês não se importarem comigo, dizendo “não”, então eu vou levar em conta o que vocês fazem. Se vocês disserem “não”, eu não vou me interessar mais por vocês, não vou me preocupar mais com vocês, ó senhores capitães.
Vocês, como cristãos, estão doentes. Agora, para sua desgraça, estão muito vulneráveis. Antigamente vocês eram cristãos, mas deixaram, infelizmente, de amar ao Senhor Deus.
Vão somente estas notícias.
O Senhor Deus esteja com vocês.
Hoje, 21 de outubro de 1645.
Do seu amigo e parente legítimo,
Sargento-Mor Dom Diogo Pinheiro Camarão.TRANSCRIÇÃO COM TRADUÇÃO JUSTALINEAR ANOTADA
Pa’i Tupã || O Senhor Deus
t’oîkó pe irũnamo, || esteja com vocês,
pe momarane’yma, || a vocês fazendo saudáveis,
Snor capitão-etá205 gûé. || ó senhores capitães.
Xe rorykatu ã || Eis que eu estou muito feliz,
pe marane’yma resé || acerca da saúde de vocês
gûiporandupa, || perguntando,
xe abé ã || eu também
na xe marani nhẽ gûitekóbo. || não estando mal, na verdade.
Peẽme ma’e || A vocês as coisas,
pe rekotebẽsaba || objeto da necessidade de vocês,
monhangagûama resé, || para a realização futura,
aîmondó ã || eis que envio
xe nhe’enga || minhas palavras
peẽme 4, || a vocês quatro,
capitão-etá gûé, || ó capitães,
Capitão Barthezar Araberana, || Capitão Barthezar Araberana,
Capitão Gaspar Cararu206, || Capitão Gaspar Cararu,
Capitão Pedro Valadina, || Capitão Pedro Valadina,
Capitão Îendaîa. || Capitão Jandaia.
Nã ã xe nhe’enga || Deste modo, estas minhas palavras
aîmondó peẽme, || envio a vocês,
xe moú rá || fazendo-me vir de novo
Capitão-Mor Dom Anto Fhelippe207 Camarão, || o Capitão-Mor Dom Antônio Felipe Camarão,
pe resé, || por causa de vocês,
ké Paraípe. || aqui à Paraíba.
“-Eîkûatiar papera, || “– Escreve uma carta,
i mondóbo || enviando-a
ãgûa supé. || a eles.
‘-Pesemõtápe || ‘– (Vocês) querem sair
orébe? || para junto de nós?
Oroîur ã || Eis que viemos
pe renosema’, || para fazê-los sair conosco’
eré ãgûa supé, || dize a eles,
papera mondóbo”, || a carta enviando”,
e’i ã ahẽ || disse isso ele,
xe moú. || fazendo-me vir.
A’e rupi, || De acordo com isso,
ã ikó papera || eis que esta carta
aîmondó peẽme. || envio a vocês.
Xe ã naîkóî || Eis que não procedo
tekoaíba resé. || por maldade.
Marãnamope || Por que
peîegûasem || (vocês) fogem
oré suí? || de nós?
Na oré anama ruãtepiã peẽ? || Mas não [são] nossos parentes, porventura, vocês?
Peîmour || Façam vir
ikó xe papera || desta minha carta
poepykaba. || a resposta.
Marã || Por que
îaîope’aetekatupîãne, || havemos de nos afastar tanto, porventura,
oîoanamamo? || sendo parentes uns dos outros?
Îandé rekó pupé piã || Com nosso procedimento, acaso
îaîkó tekoaíba rine? || estaremos no pecado?
Peîmour || Façam vir
ikó xe papera poepykaba. || desta minha carta a resposta.
“Aani” pe ‘e || “Não” (se for) o dizer de vocês,
xe ri || por mim
pe nhemomotare’yme208 || no caso do não se interessar de vocês,
a’ereme || então
t’aîkuáne pe rekó. || hei de reconhecer seus atos.
“Aani” || “Não”
pe ‘ereme, || se for o dizer de vocês,
t’aîkó ymẽne || não hei de me interessar
pe resé, || por vocês,
na xe putupabi ã209 || não me preocuparei
pe resé, || com vocês,
Sñor Capitão-etá gûé. || ó senhores capitães.
Peẽ cristão-ramo || Vocês, como cristãos,
pe rekoruînhẽ210. || estão doentes.
Ko’y peẽ, || Agora, vocês,
pe kanhema resé, || para sua perdição,
naeté211 katupe. || estão grandemente a descoberto.
Erima’e || Antigamente
cristão rekóû, || (vocês) eram cristãos,
Pa’i Tupã || do Senhor Deus
raûsuba || o amor
pe’abo ra’u212. || deixando, infelizmente.
Aîpó nhõ moranduba || Essas notícias, somente,
sóû. || vão.
Pa’i Tupã || O Senhor Deus
t’oîkó pe irũnamo. || esteja com vocês.
Oye, 21 de outubro 1645 Annos. || Hoje, 21 de outubro de 1645.
Pe raûsupara, || De vocês o amigo
pe anametekatu, || [e] de vocês o parente legítimo,
Sargento-Mor Dom Diogo Pinheiro Camarão || Sargento-Mor Dom Diogo Pinheiro Camarão.
CONCLUSÃO
Estas seis cartas, aqui transcritas e traduzidas linha a linha, constituem um corpus ideal para se analisar o tupi antigo no século XVII. Elas desmentem afirmações equivocadas de Câmara Jr. (1965), que acreditava na existência de um ‘tupi jesuítico’. Nelas, vemos, na pena dos próprios índios, a língua que Anchieta e Figueira gramaticalizaram em 1595 e 1621, respectivamente, embora com algumas transformações trazidas pelo contato com a língua portuguesa.
O que os índios escreveram revela, pela primeira vez, aspectos do tupi antigo tal como ele era falado mais de cem anos após o início da colonização do Brasil. A alfabetização nos aldeamentos católicos ou calvinistas foi um fator de grande importância para isso.
As cartas evidenciam, por outro lado, as tensões produzidas no seio de comunidades indígenas da América pela cisão da cristandade na Europa. Com efeito, as guerras de religião e as rivalidades entre católicos e protestantes transferiram-se, com a colonização, para as terras de ultramar, envolvendo seus povos nos conflitos vividos no velho continente, separando comunidades e famílias para as quais os laços de sangue tinham uma importância vital. Vemos, nos manuscritos, índios a matar a outros índios, seus parentes próximos ou distantes, em nome da religião ou de interesses de Estado.
A desestruturação do mundo tradicional indígena é claramente perceptível em tais cartas. Com efeito, o próprio Felipe Camarão admitiu-o, ao prometer a Pedro Poti, em sua carta de 19 de agosto, que novamente faria os potiguaras viverem “de acordo com seu modo de vida de antigamente”. A mesma insatisfação ele manifestou na carta que escreveu a Antônio Paraupaba, em 4 de outubro: “Eu vou para Paraguaçu, buscando aquela nossa futura morada. Eu não posso deixar desaparecer de nós mesmos as tradições do meu finado pai”.
Estas cartas são, assim, no âmbito da linguística indígena brasileira, os documentos mais valiosos que foram salvos da voragem do tempo.
REFERÊNCIAS
Anchieta, J. (1954). Poesias. (Manuscrito do século XVI). Museu Paulista/Comissão do 4º Centenário da Cidade de São Paulo.
Anchieta, J. (1595). Arte de Grammatica da Lingoa mais usada na Costa do Brasil [Edição facsimilar]. Imprensa Nacional.
Anchieta, J. (1993). Doutrina Cristã (Catecismo Brasílico) (Vol. 1). [Edição facsimilar de manuscrito do Arquivo da Postulação Geral da Companhia de Jesus]. Edições Loyola.
Araújo, A. (1952 [1618]). Catecismo na Língua Brasílica. PUC do Rio de Janeiro.
Barbosa, A. L. (1956). Curso de tupi antigo. Livraria São José.
Boxer, C. R. (1961). Os holandeses no Brasil – 1624-1654 (Coleção Brasiliana, Vol. 312). Companhia Editora Nacional.
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Notas
Autor notes
Autor para correspondência: Eduardo de Almeida Navarro. Universidade de São Paulo. Letras Clássicas e Vernáculas. Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 – Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. CEP 05508-900 (edalnava@yahoo.com.br).