Resumo: O presente artigo visa investigar a Amazônia turística enquanto espaço heterotópico com o intento de colocar em destaque os valores culturais e naturais que podem valorizar o turismo de floresta, nomeadamente polarizado entre uma Amazônia paradisíaca e infernal. Metodologicamente, apoia-se na análise de conteúdo categorial de textos de viagens pela floresta amazônica, maioritariamente associados a expedições de descoberta e/ou científicas, realizadas entre os séculos XVI e XXI. Verifica-se que as viagens tendem a iniciar com o maravilhamento face ao desconhecido, mas, com a sua continuação e confronto com a realidade, levam ao desmoronar de mitos e utopias, bem como ao (re)encontro da Amazônia heterotópica – lugar real, mas ‘outro’. A ‘perda’ do idílio original conduz à desconstrução da heterotopia positiva, nomeadamente através da influência de forças extrínsecas e intrínsecas ao homem.
Palavras-chave: Amazônia, heterotopia, turismo de floresta, cultura, paraíso.
Abstract: This paper aims to investigate the touristic Amazon as a heterotopic place. The main objective is to highlight the cultural and natural values that can enhance forest tourism, polarized between a paradisiacal and infernal Amazon. Methodologically, it is based on categorial content analysis of travel texts in the Amazon rainforest, mostly associated with scientific and discovery expeditions, between the 16th and 21st centuries. The analysis shows that travels tend to start with wonder facing the unknown Amazon. Still, the physical contact with the ‘real’ Amazon leads to the deconstruction of myths and utopias and the (re)encounter of the heterotopic Amazon – a ‘real’ but ‘other’ place. The ‘loss’ of the original idyll leads to the end of a positive heterotopia through intrinsic and extrinsic forces.
Keywords: Amazonia, heterotopia, forest Tourism, culture, paradise.
ARTIGOS CIENTÍFICOS
Heterotopia e turismo: a Amazônia entre o paraíso e o inferno
Heterotopia and tourism: between paradise and hell in the Amazon rainforest
Recepção: 01 Novembro 2021
Aprovação: 04 Julho 2022
Na atualidade, o turismo é a expressão de uma heterotopia. Turismo, enquanto espaço ‘outro’, tende a manifestar-se no reforço da sua expressão espacial ou territorial, à medida que se assiste à multiplicação de pontos de origem e de destino das viagens e à crescente integração de territórios diversos e distantes no espaço das relações turísticas.
Nesse contexto, o presente artigo visa averiguar, exploratoriamente, de que modo a aposta no desenvolvimento do turismo de floresta pode apoiar-se em narrativas transtemporais sobre a Amazônia que a destaquem enquanto espaço heterotópico, polarizado entre o ‘paraíso’ e ‘inferno’.
O artigo inicia com um breve enquadramento conceitual de mito, utopia e heterotopia. Segue apresentando a opção por uma metodologia qualitativa assente na análise de conteúdo categorial de um conjunto de textos/narrativas de expedições de ‘descoberta’ e ‘científicas’ referentes à Amazônia brasileira, nomeadamente associadas à construção de teorias científicas. A tônica é evidenciar a relação entre o sujeito (autor/viajante), o papel que desenvolve com o lugar (floresta amazônica) e o tempo, no contexto da ‘construção’ hetero-utópica do paraíso (heterotopia positiva), e sequente ‘desconstrução’ dessa visão (heterotopia negativa). Essas viagens, como pioneiras no descobrimento e conhecimento de novos territórios, são aqui consideradas precursoras de novos espaços futuramente ‘apropriados’ pelo turismo. Finaliza-se apresentando as principais conclusões.
“Todo o mito, independentemente da sua natureza, enuncia um acontecimento que teve lugar in illo tempore e constitui por esse fato, um precedente exemplar para todas as ações e ‘situações’ que, depois, repetirão este acontecimento” (Eliade, 2004, p. 530). Na perspectiva do espírito moderno, o mito anula a história. Utopia e heterotopia são conceitos frequentemente perspectivados em dicotomia. Utopias são ‘não lugares’, formas idealizadas do espaço na sociedade.
O conceito de heterotopia, etimologicamente proveniente da combinação entre ‘hetero’ (diferente ou outro) e ‘topos’ (espaço), literalmente traduzido por ‘outros espaços’, foi primeiramente desenvolvido por Foucault (2005 [1966]), em “As palavras e as coisas”, e aprofundado na Conferência do Círculo de Estudos de Arquitetura (Cercle d’Études Architecturales), intitulada “De outros espaços” (1967), na sequência do texto de Luis Borges (1974 [1949]), “O Aleph”.
Como assinalam vários autores, heterotopia é um conceito novo, complexo, polêmico e em construção, surgindo como ‘mal definido’, ‘contraditório’ (Knight, 2017), ‘dinâmico’ (Bal, 2009 citado em Rassa, 2014), de ‘geografia imaginária’ (Frank, 2009 citado em Rassa, 2014), “flexível e aberto a múltiplas e conflituantes interpretações” (Rassa, 2014, p. 9). O fato tem conduzido a que o conceito gere, por um lado, críticas mais negativas e, por outro, “defensores mais entusiastas” (Johnson, 2016, p. 2).
O conceito de heterotopia está associado ao pensamento do espaço. Na conferência “De outros espaços”, Foucault (1984 [1967]) introduziu a ideia de que a sociedade contemporânea se define sobretudo pela importância que atribui à sua relação com o espaço. Focault reafirma que se está na ‘época do espaço’ – “época da simultaneidade, justaposição, do próximo e do disperso” (citado em Stone, 2013, p. 3). O espaço é percebido em relação com todos os outros espaços, mas de modo a neutralizar ou inverter o conjunto de relações que se estabelecem e se enquadram num ‘reflexo’ ou ‘espelho’. Para Foucault (2013), o espelho é uma utopia, uma vez que é ‘um lugar sem lugar’, mas é também uma heterotopia, tendo em conta que onde o espelho existe na realidade é onde há, no lugar que o sujeito ocupa, uma espécie de efeito de retorno; é a partir do espelho que o sujeito se descobre ausente do lugar onde está, uma vez que não se visualiza lá. A ‘função espelho’, como sublinha Sarapina (2016, p. 238), assente em Foucault e Miskowiec (1986), está associada a dois extremos:
. . . um cria o espaço que é “outro” por ser perfeito e bem organizado em contraste com o mundo caótico usual; o outro cria um espaço de ilusão que expõe todos os espaços reais dentro dos quais a vida humana se desenrola como ainda mais ilusória.
A concepção de espaço de Foucault, ligada ao conceito de heterotopia e à sua conexão com o esquematismo de Kant1, leva-nos ao reconhecimento de que “. . . a ordem espacial necessariamente produz verdades e leis regionais e locais em oposição às universais” (Dehaene, 2019, p. 2). Podemos designar como heterotópicos os espaços onde se aplica a regra de não sobreposição. Esses espaços são ‘tipos de utopias’ no contexto das quais os espaços reais, que podem ser encontrados em nossa cultura, são simultaneamente representados, contestados e revertidos – “tipos de lugares que existem fora de todos os outros lugares, mesmo que possam ser localizados” (Chowdhury, 2019, p. 4).
Eles são a representação de formas reais de utopia, contendo coisas desordenadas ou indesejáveis dentro de si, como “lugares que perturbam a normalidade da vida” (Chowdhury, 2019, p. 2). Assim, “heterotopias são localizáveis ao contrário das utopias” (Chowdhury, 2019, p. 4). As heterotopias – como espaços físicos ou mentais – agem como ‘outros lugares’ a par com ‘lugares existentes’. “Os espaços não podem ser tornados heterotópicos. A heterotopia existe per se. Os espaços heterotópicos contêm uma confrontação, uma dinâmica de espaço e contra espaço” (Vedder citado em Johnson, 2010, p. 249).
O conceito de heterotopia foi primeiramente aplicado às ciências tradicionais do espaço, como a arquitetura ou a geografia. Posteriormente, com a crescente interdisciplinaridade, estendeu-se às ciências humanas e sociais. Johnson (2010) destaca essa virada espacial nos estudos pós-modernos, fazendo referência a vários artigos que desenvolveram a heterotopia na arquitetura (De Meulder, 1998), nos estudos de literatura (Reid-Pharr, 1994), na sociologia (Norval, 1999) e na antropologia (Feld, 1997), entre outros.
A heterotopia aplicada aos estudos do turismo é recente (principalmente desde 2000), havendo necessidade de mais investigação, tendo em conta o número ainda reduzido de trabalhos. Contudo, a forte dimensão temporal e espacial do turismo tem justificado a aplicação do conceito a diferentes tipologias, tais como turismo cultural (Annist, 2013), turismo literário (Parezanović, 2020), turismo médico (Bochaton & Lefebvre, 2008), paisagens (Stadler & Mitchell, 2010), turismo de fronteira (bordeline tourism) (Vergopoulos, 2016), turismo negro (Stone, 2013), turismo de memória e patrimônio (Sarapina, 2016), turismo de costa/sol e mar (Addis, 2020), turismo urbano, turismo religioso (Shackley, 2002), turismo de compras (Coëffé & Morice, 2020), turismo de montanha (Jacquemet, 2017), turismo musical e de floresta (Baticle & Hanus, 2018), entre outros. A maioria desses estudos sublinha a aplicação dos seis princípios heterotópicos a tipologias distintas de turismo.
O turismo de floresta tem envolvido um número limitado de estudos, nomeadamente quando associado à heterotopia. Contudo, o número crescente de turistas a visitar florestas potencializa novas abordagens. Esse tipo de turismo, como integrante do ecoturismo, está associado a “. . . viajar para áreas naturais sem contaminação com o objetivo específico de estudar, admirar e desfrutar tanto da paisagem e suas plantas e animais, como as manifestações culturais existentes (passadas e presentes) que se encontrem nestas áreas” (Buendía Azorín & Colino Sueiras, 2001 citado em Carballada, 2016, p. 82). Associa-se a uma multiplicidade de terminologias ou tipologias (entre elas, cabe destacar turismo de natureza, turismo cultural, turismo científico e turismo sustentável, entre outras) que o delimitam enquanto turismo ‘responsável’, ‘respeitável’ e ‘honesto’ (Quintana, 2020, p. 2). Destaca-se igualmente pelas fortes dimensões educacional, interativa, democrática e participativa (Quintana, 2020, p. 2).
Mais recentemente, o ecoturismo tem avançado para a próxima fase, afirmando-se como turismo ecocultural. Segundo Quintana (2020), esta ‘nova’ tipologia nasce do ecoturismo, que é defendido pelas Nações Unidas desde 2012 e visa estar alinhado com um desenvolvimento sustentável. Ou seja, assenta numa “simbiose entre o turismo natural e o turismo cultural[,] apoiada na sustentabilidade e limitações de uso, por atividades de pequena escala e uma experiência turística de alta qualidade” (Quintana, 2020, p. 3).
O turismo ecocultural é uma ‘nova forma de turismo’ que tem como principal motivação “a observação, a apreciação e a contemplação como experiência no ambiente natural e cultural” (Quintana, 2020, p. 2). Nesta tipologia, as dimensões cultural e criativa, bem como a científico-educacional, ganham destaque, nomeadamente no contexto da sua relação quer com o turismo cultural quer com o científico, o que, por sua vez, é manifestado na oferta de produtos turístico-culturais-científicos. Este tipo de turismo pressupõe o estreitar da interconexão entre cultura-natureza, considerando, por um lado, a ascensão de um novo paradigma e, por outro, a diluição da visão dicotômica ‘natureza’ versus ‘cultura’, evidente fundamentalmente a partir da segunda metade do último século. Este novo paradigma é perspectivado como facilitador de uma ampla apreciação dos ecossistemas e do respectivo ‘conteúdo cultural’, valorizador de elementos ‘identitários’ (Carballada, 2016, p. 85), ‘inseparáveis’ (Esfehani & Albrecht, 2018, p. 15) das florestas e das comunidades. Lee et al. (2010) refletem sobre os trabalhos de Font et al. (2001), sublinhando que o desenvolvimento turístico e recreativo das florestas deve estar apoiado num planejamento e em uma gestão sustentáveis dos recursos, que estabeleçam compromissos viáveis entre a conservação da biodiversidade florestal e os fins econômicos.
Na sua articulação com o uso turístico, os bens culturais manifestam-se sob três grandes formas: 1) “fonte de atração e complemento de qualquer oferta turística”; 2) “ferramenta de conservação”; 3) “um motivador e facilitador do comportamento cultural dos visitantes” (Esfehani & Albrecht, 2018, p. 15). A ‘compreensão’ do que se visita pressupõe ‘interpretação’ assente na valorização da atratividade dos recursos (quer contemplando as “características intrínsecas do recurso natural” quer as “características extrínsecas dos recursos naturais e culturais”) (Carter & Bramley, 2002, pp. 179-180). O papel de espécies e/ou de ecossistemas ‘emblemáticos’ ou ‘carismáticos’ podem igualmente servir de “símbolos e pontos de união para estimular a consciência e ação de conservação” (Hall et al., 2011) e potenciar a atração turística. O fato conduz a ter presente a importância em considerar modelos de planejamento e gestão sustentáveis (Quintana, 2020, pp. 3-5) e o papel das redes (Johann, 2005, p. 103).
Este paper tem como objetivo primeiro compreender de que modo o turismo de floresta pode apoiar-se em narrativas transtemporais sobre a Amazônia que valorizem a experiência turística e ponham em destaque a floresta amazônica enquanto espaço heterotópico, no contexto da ambivalência paraíso versus inferno. Em termos de objetivos específicos, pretende: 1) refletir sobre a interconexão entre os conceitos de turismo e heterotopia; 2) analisar de que modo as narrativas de viagens pela Amazônia associadas a expedições de descoberta e/ou científicas (fundamentalmente protagonizadas por cientistas ou proto-cientistas) ‘construíram’ uma Amazônia heterotópica como paraíso versus inferno; 3) colocar em destaque a riqueza de conteúdos interpretativos que podem ser ‘(re)vividos’ (in loco) através da futura oferta de experiências associadas a tours turísticos com foco em valores culturais e científicos.
Em concordância, após o enquadramento conceitual de heterotopia e a análise de conteúdo de textos de viagens pela Amazônia, segue-se a aplicação do conceito de heterotopia à floresta amazônica como lugar turístico. Em conformidade, o conceito de heterotopia é menos reconhecido como um descritor da floresta amazônica, mas mais como um ‘método analítico’ (Johnson, 2010) para destacar simultaneamente a construção da Amazônia e o fato de ser ‘apropriada’ pelo turismo. Enquanto espaço heterotópico, a Amazônia é aqui considerada como ‘espaço relativo’, um processo ‘instável de mediação’ (Johnson, 2010), uma ‘categoria mental e representacional’ (Johnson, 2010).
O artigo adota uma metodologia qualitativa assente numa análise de conteúdo categorial (Bardin, 2015) de obras (narrativas) de naturezas distintas (relatos, relações, cartas, livros científicos, crônicas), resultantes de viagens pela floresta amazônica (brasileira), tendo em conta a dimensão cronológica (análise transversal no tempo), motivacional (motivação de descobrimento/conhecimento do autor do texto na sua viagem à Amazônia), científica-cultural e natural (fundamentalmente textos de cientistas e proto-cientistas bem como os elementos – por exemplo, fauna e flora – por eles descritos). Em suma, textos que contribuíram para o maior ‘conhecimento’ da floresta amazônica paradisíaca e infernal. Essas obras são aqui percebidas como ‘construtoras’ da identidade amazônica ao longo de seis séculos – do XVI ao XXI. Há também recurso a fontes secundárias.
Os textos selecionados enquadram-se em duas grandes categorias: ‘primeiras viagens e/ou expedições’ (séculos XVI e XVII) e ‘viagens e/ou expedições naturalistas, filosóficas, técnicas, científicas’ (século XVIII ao XXI).
Na primeira categoria, distinguem-se os seguintes protagonistas/autores: Américo Vespúcio2, Gaspar de Carvajal3, Cristóvão de Lisboa4, Cristobál de Acuña5, Padre António Vieira6, Willem Pies (Piso) e Georg Marcgrave7.
Associado à segunda, são aqui distinguidos, no século XVIII, Charles-Henri de La Condamine8, Alexandre Rodrigues Ferreira9 e Alexander Von Humbolt10. No século XIX, Johann Baptiste von Spix e Carl Phillipp von Martius11, Alfred Wallace12, William Bates13 e Georg Heinrich von Langsdorff14. No século XX, Percy Fawcett15, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas16, Claude Levi Strauss e Euclides da Cunha17. No século XXI, National Aeronautics and Space Administration (NASA) (NASA, 2022).
Neste contexto, o presente artigo baseia-se em três grandes assunções.
A primeira está centrada na indissociabilidade entre natureza e cultura. Existe porosidade entre patrimônio natural e cultural (tangível e intangível), compatível com uma abordagem integrada de patrimônio, no contexto da ascensão do ‘novo paradigma’ (Henriques, 2020, p. 587). O Complexo de Conservação da Amazônia Central (CCAC), no Amazonas, está classificado como Patrimônio Natural da Humanidade (2002 e 2003), devido ao seu ‘valor universal excepcional’ assente nos critérios (ix) e (x). O CCAC é composto pela “maior área protegida da bacia amazônica (com mais de 6 milhões de hectares) e é reconhecido como uma das regiões mais ricas do planeta em termos de biodiversidade” (UNESCO, 2019). O documento “Como dar mais força ao Patrimônio Mundial no post 2020” (IUCN, 2019), dentre outros aspectos, sublinha a importância em fomentar as ‘ligações entre a cultura e a natureza’. A Amazônia está igualmente classificada como ‘Monumento da Natureza’, pelo ICOMOS (2007).
A segunda assunção baseia-se no reconhecimento da existência de uma Amazônia ambivalente: paradisíaca e infernal. A floresta amazônica constitui-se como espaço dinâmico de experimentação. A assunção é da existência de textos ‘positivos’, ‘negativos’ e ‘dialetizados’. Deve-se notar que o idílio é previamente ‘construído’ no contexto cultural do ‘Velho Mundo’, sendo, por isso, pré-existente à descoberta da Amazônia. O confronto com a realidade (no âmbito de um processo histórico) leva ao desmoronar de mitos e utopias e ao (re)encontro com a Amazônia heterotópica – lugar real, mas ‘outro’. A ‘perda’ do idílio original conduz à desconstrução da heterotopia positiva, nomeadamente por meio da influência de forças extrínsecas e intrínsecas ao homem.
Assim, em primeiro lugar, através da análise de conteúdo de textos de viagens do passado, analisam-se como ‘categorias’, por um lado, os ‘elementos positivos’ (associados ao paraíso); por outro, os ‘elementos negativos’, ‘decetivos’, ‘desmistificadores’, ‘transformadores’, característicos da visão infernal ou da ‘perda do paraíso’. Essa abordagem leva em conta os elementos constitutivos da lógica hegeliana: tese (paraíso), antítese (inferno) e síntese (a realidade).
A terceira baseia-se na assunção da existência de duas amazônias: ‘material (ou real)’ e ‘textual’. Nos textos selecionados, foram perspectivadas as temáticas ‘paraíso’ e ‘inferno’ (realidades heterotópicas), entendidas como o ‘outro’ lugar.
Como sublinha Holanda (1996, p. 203), as imagens conceituais da visão mítica da América associam-se a um ‘paraíso redescoberto’, mas oscilam igualmente para o ‘engano maléfico’. Na acepção de Gondim (1994, p. 77), considerar a Amazônia parte integrante do Novo Mundo da América do Sul, dando ênfase à sua representação pela temática ambiental, pela noção do exotismo (ora edênica, ora infernal), é compatível com o que nomeia por ‘invenção da Amazônia’.
O mito do paraíso é indissociável do ‘fim do sonho’ (Legrain, 2010) a que se segue ‘o castigo e o exílio’. Kant, sobre o texto de Gênesis, “. . . descobre um primeiro homem afirmando um ato de liberdade e fazendo uso da sua razão... Nessa perspectiva, não é tanto Deus que fecha as portas do paraíso, mas mais o homem que vira as costas à mais bela utopia, abre os olhos, coloca Deus entre parênteses e desenvolve os seus próprios recursos” (Legrain, 2010, p. 33).
O paraíso ou a ‘procura do paraíso’ remete-nos para a ‘origem’ do mundo (Legrain, 2010, p. 15). Associa-se frequentemente ao ‘comportamento mitológico’ que, na acepção de Eliade (2004, p. 165), se revela no “. . . desejo de reencontrar a intensidade com que se viveu ou conheceu uma coisa pela primeira vez; de recuperar o passado longínquo, a época beatífica do princípio”. A ‘nostalgia do paraíso’ estará, então, associada ao “desejo experimentado pelo homem de se achar sempre e sem esforço no coração do mundo, da realidade e da sacralidade e, em suma, de superar de maneira natural a condição humana . . . . , a condição anterior à queda” (Eliade, 2004, p. 474).
O paraíso terrestre é frequentemente associado ao jardim – jardim do Éden – , espaço de liberdade, felicidade, beleza, bem-estar, alegria. “O jardim proporciona uma imagem do mundo, um espaço de simulação de condições paradisíacas, um lugar de alteridade onde os sonhos se realizam na expressão de um mundo melhor” (Meyer, 2003 citado em Johnson, 2016).
As primeiras viagens e avistamentos da América, Novo Mundo (Mundus Novus), Quarta Pars Mundi, refletem o (re)encontro com o paraíso. Vespúcio (2003 [1545] citado em Henriques, 2020, p. 589), num dos primeiros avistamentos da Amazônia, diz-nos: “e certamente se o paraíso terrestre em alguma parte existir, não longe daquelas regiões estará distando”. E ainda: “creio que com dificuldade tantas espécies entrariam na Arca de Noé”.
A riqueza da terra é recorrentemente assinalada por vários autores: “É terra temperada, onde se colherá muito trigo, e se darão todas as árvores frutíferas . . . . está aparelhada para criar todo o gado . . . . e há muita caça de toda a espécie” (Carvajal, 1941, pp. 62-63). “[Os índios] Vinham com as suas jóias e arrecadas de ouro” (Carvajal, 1941). “. . . A respeito do rio das Amazonas pode-se afirmar que suas margens são, pela fertilidade, paraísos, e, se a arte ajuda a fecundidade do solo, todo ele terá aprazíveis jardins . . .” (Acuña, 1994, pp. 68-70).
. . . fico pensando no quanto é fácil transformar esta floresta virgem em verdejantes campinas e produtivas plantações, exigindo-se para tanto uma concentração mínima de trabalhos e esforços. . . . Juntos, mostraríamos à gente do país como seria possível criar aqui um verdadeiro paraíso terrestre a curto prazo. . .
(Wallace, 2004, p. 135).Este Novo Mundo é também território a conquistar pela religião católica, atraindo missionários evangelizadores do indígena, perspectivado majoritariamente como ‘selvagem convertível’ e ‘naturalmente bom’ (vide obras de Luiz Figueira, Claude d’Abbeville e Yves d’Evreux, Cristóvão de Lisboa, Antônio Vieira, entre outros).
A curiosidade e o conhecimento acerca do mundo estão também expressos em várias narrativas, nomeadamente associadas a ‘viagens de naturalistas’, ‘viagens filosóficas’, ‘viagens científicas’ (Henriques, 2020, p. 592). Destacam-se: “A terra em si . . . é um paraíso; aqui mesmo são tantas as produções que eu não sei a que lado me volte” (Ferreira, 2003 [1783], p. 20)18; “Que felicidade . . . . minha cabeça gira de alegria . . . . Que tesouro de observações eu vou poder realizar para enriquecer meu trabalho sobre a construção da terra” (Humboldt, 2020 [1819])19; “[bacia amazónica] o ‘paraíso dos naturalistas’, num país de ‘perpétuo verão’” (Bates, 2007 [1859], p. 133); “há momentos em que do confronto com a natureza intocada surge a imagem do ‘tempo da criação’, do ‘gênesis’ e do ‘paraíso’” (Spix & Martius, 2017 [1817-1820]); “[A Amazónia possuía] os maiores segredos do passado ainda preservados em nosso mundo de hoje” (Fawcett, 2010).
Logo no momento da sua descoberta e nos séculos que se seguiram, a Amazônia é frequentemente representada enquanto território onde a ‘força da natureza’ e a ‘força do homem’ se exercem com violência infernal. É território ‘à margem da civilização’, onde a lei do mais forte se impõe – ora a da natureza como força onipotente, ora a do homem que escraviza os mais fracos.
A força da natureza faz-se sentir na Amazônia por meio dos seus múltiplos elementos meteorológicos, orográficos, biológicos de fauna, flora etc. que ameaçam o homem e o enfraquecem física (doenças e fome) e/ou psiquicamente (doenças, espírito), levando, de forma recorrente, à morte. Esses elementos, enquanto transmissores de mal-estar, associam-se fortemente ao fato de a ‘área geográfica ser doentia’ (Domingues, 1991, p. 77). Segundo Domingues (1991, p. 78), a temática ‘doenças associadas à Amazônia’ relaciona-se às enfermidades sofridas pelos viajantes/visitantes (fossem eles europeus, brasileiros ou indígenas) derivadas do ambiente hostil; aos “vírus e micróbios de que eram portadores os brancos e os negros e que se transmitiam a indivíduos que não se encontravam imunes”; e à “má alimentação e [a]o consumo e utilização de águas não filtradas”, dentre outros aspectos. Essas forças individuais ou conjugadas ameaçavam o homem, dando-lhe a visão do ‘inferno’.
Logo nos primeiros relatos do ‘encontro’ europeu com o território amazônico, a natureza labiríntica e opressora emerge. Por exemplo, os relatos de Carvajal e Acuña evidenciam as inúmeras forças da natureza – chuvas torrenciais, rios transbordantes, caminhos de lama, insetos propagadores de doenças, animais hostis, mata densa e intransponível – que tiveram de enfrentar, como se estivessem a ser submetidos a uma espécie de provação que teriam de ultrapassar para concretizar a missão que lhes estava destinada. Dizem-nos: “Chegamos a [um estado de] privação tão grande que estávamos comendo apenas couro, cintos e solas de sapatos, cozidos com certas ervas, de forma que tão grande era nossa fraqueza que não conseguíamos ficar em pé” (Carvajal, 1941, p. 19). “E se não fosse a praga de mosquitos, tão abundantes em muitas paragens, se poderia chamar à boca cheia um dilatado paraíso” (Acuña, 1994, p. 189).
No século XVIII, La Condamine (2000 [1745]) destaca, dentre outros aspetos, ter sido atormentado por nuvens dos mais variados tipos de mosquitos, morcegos, animais perigosos (yacu-mama) e forças da natureza, como a pororoca e o seu barulho aterrador: “Os morcegos que chupam o sangue dos cavalos, dos burros, e até dos homens, se quando dormindo não se garantem com o abrigo de uma barraca, são um flagelo espalhado pelos países quentes da América” (La Condamine, 2000 [1745], p. 109).
Mais tarde, Wallace (2004) põe igualmente em destaque as ‘grandes moléstias’, chuvas fortes e incessantes, bem como a existência de uma multiplicidade de insetos que não dão descanso dia e noite. Por exemplo, descreve o ‘bicho do pé’, o chigoe, pulga minúscula que escava túneis na pele dos dedos do pé e que quando fica grande provoca uma dor muito forte.
Nos relatos ao longo dos séculos, vários exploradores dão nota tanto das doenças que padeciam durante as suas viagens quanto das doenças que atingiam indígenas, colonos, residentes. Deve-se notar que muitas das povoações indígenas da várzea amazônica encontradas pelos primeiros viajantes não sobreviveriam ao século seguinte (XVII), o que foi resultante não só da devastação e do apresamento, mas também devido a epidemias derivadas do contato com os europeus.
A preocupação com as doenças tropicais está patente em Piso, por exemplo, na descrição “das endemias então reinantes no Brasil e dos meios de tratá-las” (Piso & MarcGrave, 1948 [1648]).
Desde o momento do trajeto de Barcelos para Rio Branco, Alexandre Ferreira ficou impressionado com a dizimação da população indígena por uma epidemia de sarampo. Assim que os índios se fixavam em um povoado, a doença grassava e devastava a aldeia: “Ao sarampo (measles), que no estabelecimento da aldeã suffucou a sua população, ajunde V. Exa. cada uma das causas, que se lhe seguiram, e o coadjuvaram, para acabar de diminuir os índios . . .” (Ferreira, 2003 [1783], p. 20). Paralelamente, Ferreira revela ter enfrentado várias dificuldades, como doenças (sezões, corrupção, sarna, disenteria) e a própria morte de membros da expedição.
Muitos outros viajantes continuaram a contrair graves doenças, entre as quais grande parte era desconhecida e sem cura, como malária ou febre amarela (por exemplo, Bonpland contraiu malária em 1800; Wallace teve malária em 1850; Spix e Martius tiveram ambos malária, tendo Spix vindo a falecer desse mal), distúrbios mentais transitórios ou permanentes (decorrentes de isolamento prolongado, estresse associado às duras condições das viagens, por exemplo sentido por Langsdorff, no final de sua viagem ao Amazonas, entre 1826 e 1828), para além de febres contínuas (podres, ardentes, malignas), intermitentes ou sezões (terçãs, quartãs), remetentes, obstruções, correnças, muitos deles acabando por morrer (Barros Henriques, 2008).
Spix e Martius (2017 [1817-1820]) relatam que a sua expedição se confrontou muitas vezes com imagens infernais de ‘selvas solitárias’, ‘escuras’, associadas a ‘insetos malignos’ e animais ‘tormentosos’, que martirizaram ‘do modo mais cruel’ e provocam várias doenças, noites mal dormidas ao relento, cansaço, dentre outras contrariedades – “escuro como o inferno, emaranhado como o caos” (Martius, 1943 [1824] citado em Barros, 2005, p. 263).
Langsdorff (1997 [1826], p. 236), reportando-se à Amazônia, perspectiva-a como ‘fim de mundo’, ‘buraco do inferno’ (Porto Velho do Rio Preto). Doenças e enfermos (na Vila Diamantino) chamaram-lhe a atenção, pelo que sublinha “a quantidade de enfermos (com doenças venéreas, lepra, febres malignas) e a falta de assistência médica” (Langdorff, 1997 [1826], p. 1319). Bolle e Pinto (2013), com base nas anotações de Langsdorff, sublinham as doenças da alma, expressas na ganância dos habitantes na exploração de diamantes, com “caráter mercantilista e mesquinho”, “velhacaria”, “fraudes”, “vida desregrada”, com “noitadas de jogatina ininterrupta, muito vinho e mulheres’ – excessos que ‘acabam enfraquecendo muito o organismo humano”. Quando Langsdorff (citado em Bolle & Pinto, 2013, p. 275) fica doente, salienta: “Em vez de um diário de viagem, preciso escrever; isto sim, uma história de doenças”; e, ainda: “Mais dois dias deploráveis: febre constante, inapetência total e jejum . . .”. Nas palavras de Langsdorff (1997 [1826], p. 275): “Todos à minha volta também estão doentes”.
Em várias expedições, o sentimento de isolamento e solidão extremos, como sinônimo de vazio e ausência, é relatado. Bates (2007 [1859], p. 7) refere: “A perspectiva de ficar atolado naquela hedionda solidão não era de modo algum agradável . . .”.
No início do século XX, a força da natureza, associada à Amazônia, continua uma realidade nos textos que a evocam, afetando física e psicologicamente os viajantes. Fawcett, ao mesmo tempo que evidencia a força da natureza, descreve a dificuldade do homem nela subsistir:
. . . quando a selva inexplorada começa . . . . Vamos ter de sofrer todas as formas de exposição . . . . Teremos de chegar a uma resistência mental e do sistema nervoso, além de física, pois homens, sob essas condições em geral, desmoronam quando sua mente sucumbe antes do seu corpo
(Fawcett, 2010).Na procura da ‘grande descoberta do século’ e na sua última expedição, descreve a região como ‘inferno envenenado’. No seu último sinal de vida (em mensagem telegrafada), informava: “Faz muito frio à noite e as manhãs são frescas; mas os insetos e o calor aparecem por volta do meio-dia e daí até seis da tarde é só sofrimento no acampamento. . .”20 (Fawcett, 2010, p. 327).
Uma Amazônia ‘pendular’ e ‘paradoxal’ é evocada por Euclides da Cunha. Ao mesmo tempo grandiosa, por um lado, é também espaço de ‘abandono’ e ‘esquecimento’ (dela e daqueles que nela vivem), por outro. No ensaio “À margem da História”, Cunha (2018) sublinha que a natureza é ‘portentosa’ e que o clima detém uma ‘função superior’. Simultaneamente, evoca o outro extremo, em que essa mesma natureza é ‘soberana e brutal’, ou seja ‘uma adversária do homem’ (Cunha, 2018). Essa última perspectiva leva Lima (2011) a destacar que, na obra referida, a natureza se associa a destruição, caos, desordem e inconstância, como determinantes da degradação humana.
O primeiro encontro ‘oficial’ na Amazônia, entre europeus e índios, protagonizado por Pinzón, corresponde igualmente à primeira luta entre ambos. Com as descobertas subsequentes, conquistas e colonização, as lutas e guerras serão recorrentes, quer entre europeus e índios, quer entre europeus (diferentes potencias coloniais), quer ainda entre índios (intertribais). Deve-se notar que as lutas e guerras caminham lado a lado com os interesses socioeconômicos e políticos.
Na primeira descida do Grande Rio, Carvajal descreve uma luta entre os espanhóis e as ‘mulheres guerreiras’, dando lugar ao mito das amazonas, que está na origem do nome do rio Amazonas:
Elas lutavam com tal ardor que os índios não ousavam recuar e se algum fugia à nossa frente eram elas quem os matavam à paulada . . . . Em verdade houve uma dessas mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins, e as outras, um pouco menos, de modo que os nossos bergantins pareciam porcos-espinhos
(Carvajal, 1941, pp. 60-61).A conquista e sequente colonização levou à existência de bandeiras e entradas, que reforçavam o aprisionamento de índios para escravatura, ao mesmo tempo que fomentavam a fuga dos índios para o interior da mata, despovoando as localidades ribeirinhas.
A missionação e a difusão da fé cristã, se, por um lado, nos primeiros tempos, acarretavam vários perigos para os missionários, resultando no assassinato de alguns deles pelos índios, por outro, muitos foram os missionários a denunciar e a revoltar-se contra o aprisionamento de indígenas e a crueldade no seu tratamento.
Por exemplo, Cristóvão de Lisboa batizou milhares de índios, que, segundo palavras suas, “são todos mui dóceis” (Lisboa, 1624? a 1627?). Revoltou-se com ‘os vexames’ que os índios sofriam e a ‘má conduta’ dos capitães e colonos, os quais, na sua opinião, dificultavam o trabalho evangelizador (Lisboa, 1624? a 1627?).
O Padre Antônio Vieira, insurgindo-se contra situações de grave injustiça para com os índios – ‘exploração ou desumanas matanças’ – por parte dos colonos e com a cumplicidade das autoridades interessadas ‘no sangue e suor dos índios’, ou seja, na sua escravização, deixa manifesta a visão do inferno em sermões e cartas. Salienta: “[num espaço de 40 anos] se mataram e se destruíram, por esta costa e sertões, mais de dois milhões de índios e mais de quinhentas povoações como grandes cidades, e disso nunca se viu castigo” (Vieira, 1657 citado em D’Azevedo, 1925). No sermão do ‘Espírito Santo’, associado à defesa dos índios (e em carta ao príncipe D. Teodósio, Maranhão, em 25 de janeiro de 1653), diz:
O desamparo e necessidade espiritual que aqui se padece é verdadeiramente extremo, porque os gentios e os cristãos todos vivem quase em igual cegueira por falta de cultura e doutrina, não havendo quem catequiz[e], nem administre sacramentos, havendo, porém, quem cative, e quem tiranize, e, o pior, quem o aprove; com que portugueses, e índios todos se vão ao inferno
(Vieira, 1653 citado em D’Azevedo, 1925, p. 301).A violência nessas terras é também assinalada por Humboldt. Nesse enquadramento, Lopes (2006, p. 227), no relativo à obra “ Cosmos”, de Humboldt, destaca: “os progressos da ciência do mundo . . . foram adquiridos ao preço de todas as violências e de todas as crueldades que os conquistadores, ditos civilizados, trouxeram de um lado a outro da Terra”. Essa assunção deixa em evidência uma relação euro-indígena assente em estruturas de poder que a própria expedição muitas vezes é também reflexo disso.
A imagem de um paraíso ameaçado é manifestada em Spix e Martius, resultante das atividades econômicas (tais como os produtos importantes de exportação: o algodão, o cacau, o café, a salsaparrilha e a madeira; a produção de látex), associadas à organização de trabalho e de comércio injusta, assente em trabalho escravo e na ‘opressão exercida por certos colonos imigrados’ (Spix & Martius, 2017 [1817-1820]).
No século XX, a injustiça mantém-se, e Euclides da Cunha faz menção ao trabalho escravo manifesto na organização social presente nos seringais. Ela é perspectivada como das mais ‘criminosas’, assente na ‘tremenda anomalia’ [d]o homem que trabalha para escravizar-se (Cunha, 1976, p. 131). “No Amazonas acontece. . . . esta cruel antilogia: sobre a terra farta e a crescer na plenitude risonha de sua vida, agita-se, miseravelmente, uma sociedade que está morrendo” (Cunha, 1976, p. 291).
Para Euclides da Cunha (1976), a Amazônia associa-se a uma sociedade onde a ‘civilização’ está ausente e, consequentemente, onde a violência e o egoísmo do homem o condenam no juízo final. Daí que Bolle (2005, p. 151) destaque alguns trechos da obra de Cunha nos quais o ambiente do trabalhador é caracterizado em termos que sugerem o inferno: “paraíso diabólico dos seringais”, “diabólica geometria requerida pela divisão dos diferentes lotes” (Bolle, 2005, p. 131), “paraíso perdido” (Bolle, 2005, p. 291), “deserto amazônico” (interior, distante da costa) (Bolle, 2005, p. 69), “estrada” (Bolle, 2005, p. 280), “tentáculos de um polvo” (Bolle, 2005, p. 292), numa ausência civilizacional. Para Cunha (1976), a história é uma ‘história dos sofrimentos’, um retrato do ‘martírio’ dos ‘condenados’ da Terra (Amazônia), espaço periférico à civilização. De fato, sublinha que não só os primeiros povoadores indígenas foram votados à escravização e ao extermínio; em similitude, mais recentemente, forasteiros e trabalhadores vivem neste território em precariedade cíclica (assente em relações de trabalho patrão-seringueiro duras e com contornos de escravatura).
Também para Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, a doença articula-se com a resolução da organização do trabalho, destacando a disseminação da malária como a ‘campeã de morte’ ou ‘o duende do Amazonas’. Daí os autores sublinharem que a ‘solução segura da questão da borracha’ depende ‘primacialmente do problema sanitário’ (Schweickardt & Lima, 2007). Os médicos salientavam: “É no rio Negro que se encontra a condição mais primitiva de trabalho, a menor atividade nos serviços de extração da borracha e as mais precárias condições de vida humana” (FIOCRUZ/COC, 1992, p. 120). Daí a pobreza tradicional deste rio, e a grande decadência que é dado observar em todos os seus centros populosos. “Nele, o índice endêmico pelo impaludismo é elevadíssimo, havendo a agravante da ausência absoluta de assistência médica” (Cruz, 1913 citado em Schweickardt & Lima, 2007). “O pagamento do trabalho duro ‘era feito com comida, roupas e álcool, sem nunca ter recebido qualquer remuneração em dinheiro’” (Cruz et al., 1972, p. 109 citado em Schweickardt & Lima, 2007, p. 35).
Oswaldo Cruz (citado em Cruz et al., 1972, p. 10), numa carta a Salles Guerra, refere:
Há aqui uma célebre cidade de Santo Antônio que é um verdadeiro horror do ponto de vista sanitário. Creio que no inferno não há região análoga. . . . A população infantil não existe e as poucas crianças que se vêem têm vida por tempo muito curto. . . . Sem o mínimo exagero, pode-se afirmar que toda a população de Santo Antônio está infectada pelo impaludismo.
As relações de poder estão na gênese da destruição e da agonia da Amazônia ao longo do tempo. Lévi-Strauss (2001, p. 408) nomeia os trópicos como “tristes e agonizantes”. A este propósito, Rocha (2009, p. 77) interpreta: “Os trópicos são tristes não pela sua natureza, mas pelo que lhes foi feito ou que ainda está fazendo. . . . E a tristeza decorre então da nostalgia e da decepção com um exotismo que não existe mais”. A obra “Tristes trópicos” enfatiza a busca do ‘tempo perdido’. O naufrágio da Europa frente ao Monte do Purgatório: “a aventura ao coração do Novo Mundo significa antes de mais nada que ele não foi o nosso, e que carregamos o crime da sua destruição”, é ‘antiviagem’ (um conceito de Levi Strauss). Segundo Santiago (2005, p. 26), “Para Lévi-Strauss a viagem é o mais íntegro a priori para a violência. O contato entre culturas diferentes, por mais idealizado que seja, é contágio, transmissão, disseminação de vírus do corpo ocidental no corpo estrangeiro. E vice-versa”.
No século XXI, a ‘agonia da destruição’ acentua-se. Cada um de nós “ou continua, por sua omissão, a compactuar com o desmatamento e o caos social reinante, ou se rebela e age como forma de buscar a justiça social e a biossociodiversidade . . .”, o que leva o autor a avançar com a sua defesa na “Carta da Amazônia” (Meirelles Filho, 2006, p. 383). Na Amazônia, o ‘ritmo da devastação’ nos últimos 40 anos é assinalável, tendo em conta a relação entre o avanço da pecuária, o desmatamento e o trabalho escravo. “Desde a década de 1960, a Amazônia é um violento palco de conflitos agrários” (Repórter Brasil, 2016). Adicionalmente, “cerca de 20% de sua vegetação original foi derrubada para dar lugar a grandes empreendimentos de agropecuária, mineração e de hidroeletricidade”. A destruição da Amazônia com desmatamento e sequentes alterações climáticas repercute não apenas naquele território, mas expande-se a todo o planeta, antecipando a total perda do ‘paraíso’. No Earth Science Data Centers, da NASA, dados fundamentam que:
Durante os últimos 15 anos, mais de 190.000 milhas quadradas . . . . de floresta foram desmatadas na Bacia Amazônica, e 7.700 milhas quadradas estão sendo desmatadas a cada ano. Centenas, talvez milhares, de futuras plantas, animais, cogumelos e insetos já foram perdidos. . . . Quais são os impactos da mudança da cobertura da terra na Amazônia local e globalmente?
(Lindsey, 2002).Para dar resposta, foi estabelecido o Large-Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia (LBA-ECO) (NASA, 2022), mas a vontade política de alterar a tendência de destruição está aquém do desejável.
Segundo Foucault (1984 [1967]), as heterotopias são universais.
O primeiro princípio define dois tipos de heterotopias, nomeadamente as de crise e de desvio. A Amazônia ‘construiu-se’, enquanto um ‘desvio’ do Velho Continente, para o Novo Mundo (mais promissor, rico, feliz), a partir da época dos descobrimentos, época, por excelência, de construção de heterotopias e de heterotopias com dimensões utópicas.
Contudo, o Novo Mundo e a Amazônia não resistiriam ao ‘princípio da realidade’. Num primeiro momento, o ‘encontro’ entre esses dois mundos é expresso pelos europeus como de ‘idílio’ face ao ‘paraíso’, o jardim do Éden. Textualmente, está refletido tanto em ‘heterotopias ilusórias’ quanto em ‘heterotopias compensatórias’, numa espécie do que Foucault (1984 [1967]) designava por ‘heterotopia feliz e universalizante’. Mas o idílio, como representação do mundo na sua perfeição simbólica, torna-se breve, ‘passageiro’ e ‘frágil’ (Zurcher Idylle citado em Johnson, 2010), dando lugar ao ‘paraíso perdido’, em que a própria expressão traz a negação do idílio e da heterotopia positiva.
Sequencialmente e de modo dialético, a Amazônia vai, por meio do processo transformacional, tornando-se um espaço ‘outro’, ‘contra’ o homem: espaço de esquecimento (dos não lembrados), de opressão, não liberdade, condenação, incomunicabilidade, à margem, extraordinário (na diferença) (de passagem progressiva de uma heterotopia positiva para uma negativa). Espaço-limite de resistência humana, nomeadamente associado ao confronto entre as culturas europeia e indígena.
Essa fronteira tem a sua sustentação tanto na ‘força da natureza’ quanto na ‘força do homem’, as quais têm o poder de transformar a Amazônia em ‘espaço de crise’, de ‘caos’. Caos dos sentidos dos homens em colapso, caos na malignidade, caos de miséria física e da alma, desprovida da (quase) possibilidade de esperança. E, embora ‘outro’ espaço, ‘outra’ realidade, ela vê refletidos em ‘espelho’ os mesmos ‘fantasmas’ do Velho Mundo.
Esse processo transformacional é recorrentemente ‘instável’. A instabilidade da concepção heterotópica deve-se ao fato de a Amazônia ‘variar’ tanto entre uma heterotopia positiva quanto negativa, uma vez que nem sempre se passa de paraíso para inferno – por vezes, as duas visões oscilam ao longo dos textos de viagens. Do desvio original, enunciado anteriormente, a Amazônia, enquanto espaço turístico, constitui-se ela própria como um espaço de ‘desvio’. A assunção é de que o processo de turistificação dos territórios evolui para a construção de heterotopias, associando-se ao fato de o espaço turístico ser cada vez mais ‘hetero’, ‘mais longínquo’, ‘mais exótico’, ‘mais fora do limite’ e, por isso, exercendo o ‘fascínio da alteridade’. Como assinala Foucault (1984 [1967] citado em Sarapina, 2016, p. 9), a “sociedade de consumo de lazer era uma forma de ociosidade e, por sua vez, uma espécie de desvio (ou mesmo crise)”. No entanto, enquadrado por processos de homogeneização global, é preciso evitar que o espaço ‘outro’ se torne o ‘mesmo’.
No tempo pretérito, a Amazônia era um lugar distante e de difícil acesso. Na atualidade, embora com lugares ainda impenetráveis, associados à impossibilidade de uso turístico, a Amazônia tem vindo a ‘abrir-se’ crescentemente ao turismo, oferecendo uma multiplicidade de atrações, tais como birdwathing, turismo de base comunitária, cruzeiros, turismo religioso, gastronomia, jungle loadges, ecotourismo, parques e reservas e turismo de aventura (VisitAmazonas, 2020).
A deslocalização do turista requer a satisfação das suas necessidades neste ‘outro’ espaço, temporariamente ‘vivido’ e palco de comportamentos distintos do dia a dia (residência habitual). Presentemente, o turista pode reservar um voo (internacional ou doméstico) e aceder ao local pretendido num dia (ou menos). Adicionalmente, as novas tecnologias da informação e comunicação contribuem para a rapidez de acesso a packages organizados, que podem incluir a reserva de alojamento, viagens de barco, transportes, excursões, restauração, animação, guias etc. Disso, são exemplos os tours disponibilizados pela TripAdvisor (2020) para a Amazônia brasileira. Esses tours dão igualmente ao turista a capacidade de conhecer mais a floresta e melhorar a experiência, estabelecendo a ruptura com o tempo clássico.
Entre os 53 tours incluídos na categoria ‘excursões culturais’, distinguem-se desde tours à cidade histórica de Manaus a tours por cachoeiras e cavernas, tours de visualização de animais (toninhos, jaguares, golfinhos cor-de-rosa, botos, piranhas) e plantas (espécies e fauna carismáticas), atividades econômicas (história da borracha, museu do seringal etc.), comunidades e rituais indígenas, envolvendo touring (de barco, autocarro, a pé), cuja dificuldade pode variar de fraca a difícil, podendo, além disso, durar de meio dia a vários dias. Paralelamente, há igualmente que se destacar a oferta de tours mais associados a motivações culturais-científicas, ofertados por universidades, museus, entre outras entidades públicas e privadas, frequentemente valorizadoras da dimensão educacional; alguns desses passeios, embora de forma mais esporádica, colocam em destaque naturalistas e cientistas viajantes pela Amazônia e seus contributos para o conhecimento.
Contudo, a oferta organizada de tours com conteúdos interpretativos associados a expedições de descobertas e/ou científicas da Amazônia não é frequente nem regular. Assim, considera-se importante a aposta na diversificação do turismo, com ênfase na oferta de produtos valorizadores de cultura e ciência.
Ora, a interpretação da floresta como paraíso versus inferno no decurso do tour reflete ‘em espelho’ a realidade passada, podendo este ser ‘vivido’, mas com ‘afastamento’, ‘controle’, ‘mediado’, detendo um papel determinante na ‘redução do tempo’ (rapidez de acesso e redução do tempo de viagem), no sentido de que a mediação de conhecimento é mais facilmente condensada e apresentada. Consequentemente, a floresta é um lugar de paraíso e inferno – extremos que a cápsula do turismo protege. Finalizado o tour pela floresta, os turistas geralmente podem retornar confortavelmente à civilização, usufruindo de um conjunto de serviços, como alojamento, restaurantes, transportes etc. Como acentuava Urry (2002 citado em Stadler & Mitchell, 2010, p. 181), “A própria noção de turismo implica uma certa superficialidade, também inscrita no conceito de ‘olhar’ turístico”. Segundo o autor, “há tipicamente uma clara distinção entre o familiar e o distante e que tais diferenças produzem tipos distintos de zonas liminares que situam a experiência turística como algo fora do tempo, fora do espaço”.
O fato conduz-nos ao segundo princípio de Foucault (2013), o qual sugere que cada heterotopia tem uma função precisa na sociedade. A mesma heterotopia pode, segundo a sincronia da cultura em que se insere, adotar um funcionamento ou outro. “No curso de sua história, toda sociedade pode perfeitamente diluir e fazer desaparecer uma heterotopia que constituirá outrora, ou então organizar uma que não existisse ainda” (Foucault, 2013, p. 22). A dualidade de, simultaneamente, providenciar a distância e permitir a conexão é inerente à Amazônia como expressão de uma heterotopia de funcionalidade. A floresta da Amazônia pode funcionar como um lugar onde os turistas podem aprender sobre o Novo Mundo face ao colapso e à decadência do Velho Mundo, através da oferta de tours e de experiências turísticas transformadoras (Pine & Guilmore, 1998), baseado em (re)criar, (re)viver realidades e sentimentos de viajantes de tempos passados.
Os tours turísticos, ao contribuírem para o reconhecimento da floresta amazônica como ‘outro’ espaço, ‘símbolo do poder da natureza’, ‘natureza inexplorada’, o ‘último’ reduto do ‘paraíso’, podem potenciar uma experiência transformacional do turista assente na conscientização da importância de novos valores de conservação e preservação opostos à destruição atual da floresta.
Como Foucault (2013, p. 19) sublinha: “Não se vive em um espaço neutro e branco; não se vive, não se morre, não se ama no retângulo de uma folha de papel”. O fato pode conduzir à reflexão sobre os valores em crise da civilização atual e à necessidade de novos valores que apelem à sua preservação/conservação e que sustentem e a reforcem como patrimônio da humanidade, requerendo um planejamento e gestão sustentáveis. Tendo em vista que a função de qualquer heterotopia individual é passível de mudar ao longo do tempo, entende-se que aquilo que foi lugar de exploradores e cientistas pode, agora, ser lugar de um novo turismo ecocultural.
O terceiro princípio de Foucault de ‘realidades justapostas’ tem aqui enquadramento. Durante os tours turísticos organizados, assistimos às “funções narrativas como uma sintaxe espacial que organiza o espaço em séries lineares ou interconectadas. A cadeia de operações espaciais produz representações de locais apropriando-se e manipulando seus nomes ‘próprios’” (De Certeau, 1984, pp. 104-115 citado em Sarapina, 2016, p. 232). “Em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis” (Foucault, 2013, p. 24).
Uma experiência turística associada à oferta de um tour assente nos valores culturais e científicos da Amazônia potencia (re)criar a simultaneidade de sentimentos de viajantes do passado no presente, e a relação entre esses sentimentos e o atual turista. Ou seja, a experiência assenta tanto no ‘sentimento’ do binômio dialético ‘paraíso versus inferno’ vivido diretamente pelo turista, quanto no seu ‘sentimento’ alicerçado no(s) ‘sentimento(s)’ expressos nas narrativas dos ‘viajantes do passado’, que o presente apagou.
No decurso do tour, a justaposição de conteúdos interpretativos pode possibilitar ao turista aceder a várias realidades espaço-temporais apoiadas no reaparecimento, ‘no presente’, de objetos utópicos ou heterotópicos (do passado) e a sua respectiva destruição (paraíso versus inferno). Essas ‘outras’ realidades espaço-temporais do passado podem, ou não, ser (re)encontradas na sua fisicidade ou materialidade, no presente.
Ao longo dos séculos, haverá locais e comunidades descritos nos textos que deixaram de existir ou sofreram grandes modificações. Mas o (re)encontro sempre acontece, nem que seja pelo (des)encontro de procurar e já não existir. As heterotopias podem manifestar-se em “espaços mentais ou físicos, que atuam como ‘outros espaços’ ao mesmo tempo que os espaços [são] existentes” (Foucault, 1984 [1967], p. 7), mas são sempre “lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purificá-los. São como contra-espaços” (Foucault, 1984 [1967], p. 7). Todos podem aceder a esses sítios heterotópicos, no entanto, “na verdade, não é mais do que uma ilusão, pois julga-se que se entra onde se está, mas se entra excluído” (Foucault, 1984 [1967], p. 7).
A heterotopia é mais eficaz quando distorce a experiência convencional do tempo. O quarto princípio sugere que as heterotopias estão ligadas a fatias de tempo, denominadas por Foucault como heterocronismo. Foucault (2013) presume dois tipos de relação com o tempo: acumulação/conservação (por exemplo, museus e bibliotecas) e transitoriedade (por exemplo, festa, festival, feira), esta última ligada ao tempo em seu estado mais fútil, mais transitório e mais precário. Como Foucault (2013, p. 25) salienta, “há heterotopias que são ligadas ao tempo, não ao modo da eternidade, mas ao modo da festa: não eternitárias, mas crônicas”, bem como “outras heterotopias, enfim, são ligadas não à festa, mas à passagem, à transformação, ao labor de uma regeneração” (Foucault, 2013, p. 26).
Muitos textos de viagens pela floresta amazônica têm vindo por meio de um processo de ‘acumulação’ a ‘construí-la’ (metaforicamente) enquanto paraíso versus inferno, ao longo de séculos. Lugares concretos, imaginações literárias, visões de cidades perdidas no meio da floresta, rios, plantas e animais são recorrentemente referenciados e potencializam a construção de narrativas turísticas. A Amazônia turística como heterotopia de cronologia tende a apoiar-se na compreensão de um espaço natural (reservas e parques temáticos), ele próprio entendido como um museu – museu vivo – onde se acumulam in situ uma multiplicidade de espécies que refletem a grande biodiversidade deste espaço; por exemplo, no estado do Amazonas (Brasil), destacam-se museus de história natural, o Museu da Amazônia (MUSA), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), o Centro Cultural dos Povos da Amazônia, o Museu do Índio, a Galeria Amazônica, dentre outros. Os museus apelam à estruturação de redes, onde muitas das coleções de naturalistas e cientistas (artefatos ou objetos resultantes de viagens do passado) expostas são também a expressão da acumulação do tempo.
Os turistas, na visita à floresta, tendem a permanecer por curtos períodos de tempo. Os tours turísticos que enalteçam a dimensão cultural e científica por trilhas e lugares selecionados na floresta (assentes na construção criativa de narrativas) só poderão ter expressão caso se apoiem na oferta de experiências mais aprofundadas, muitas vezes estabelecendo ruptura com os tours clássicos massificados, muito embora dificilmente consigam apagar a sua dimensão turística, recaindo necessariamente na temporaneidade. Contudo, todos os tours visarão transmitir quer a acumulação do tempo (interpretação assente em narrativas do passado) quer introduzir a transitoriedade numa dinâmica de festivalização, associada ao consumo turístico temporário do tour.
Simultaneamente, tendem a associar-se a “rituais de valorização e obtenção de acesso (temporário) . . . ., os quais pressupõem um dado quadro regulamentar, bem como o pagamento de taxas e/ou bilhetes que permitem a entrada no local ou aceder ao passeio” (Stone, 2013, p. 13). Num território como a Amazônia, onde ainda grassam doenças como malária, febre amarela, dengue etc., orientações para prevenção e controle de doenças, declarações de isenção de responsabilidade médica, emissão de equipamentos e medicamentos de saúde e medidas de segurança aos turistas antes de sua visitação, como a vacinação, são de extrema relevância, funcionando como ‘ritual de purificação’.
Essa característica associa-se ao quinto princípio, o qual salienta que as heterotopias pressupõem um sistema de abertura e fechamento que as isola e as torna penetráveis: “as heterotopias possuem sempre um sistema de fechamento que as isola em relação ao espaço circundante” (Foucault, 2013, p. 26). Denominado aqui como heterotopias de (des)valorização, os lugares heterotópicos devem ter um sistema de rituais, ou o que Foucault chamou de ‘purificações’, para valorizar (abrir) e desvalorizar (fechar) o espaço.
Em geral, não se entra em uma heterotopia como em um moinho, entra-se porque se é obrigado . . . . , ou entra-se quando se foi submetido a ritos, a uma purificação. Há até mesmo heterotopias inteiramente consagradas a esta purificacão
(Foucault, 2013, p. 26).Só se pode entrar com “certa permissão e depois de ter realizado um certo número de gestos” (Foucault, 2013, p. 26).
Contudo, Foucault pontua que há igualmente heterotopias que não são fechadas ao mundo exterior, mas, ao contrário, “constituem pura e simples abertura” (Foucault, 2013, p. 27).
Todo mundo pode entrar, mas, na verdade, uma vez que se entrou, percebe-se tratar-se de uma ilusão e que se entrou em parte alguma. A heterotopia é um livro aberto, que tem, contudo, a propriedade de nos manter de fora
(Foucault, 2013, p. 27).O sexto princípio das heterotopias assenta nesse papel que podem ter ao criarem um ‘espaço de ilusão’ ou ‘um outro espaço, um outro espaço real’ perfeito, face ao nosso espaço real desordenado, este último associado à heterotopia de compensação. “Em suma, heterotopias de ilusão e compensação colocam em foco binários entre o real e o surreal” (Stone, 2013, p. 13). Os textos de naturalistas e cientistas ao longo de séculos sobre a Amazônia funcionam como espelhos heterotópicos simultaneamente de ilusão e compensação. De um lado, porque ‘deslocam’ muitos dos mitos, utopias, histórias, identidades, do Velho Mundo para o entendimento do Novo Mundo e da Amazônia, o que em si representa uma ilusão. Por outro lado, a Amazônia, ainda não ‘apropriada’ pela velha civilização e podendo ser experienciada como ‘último reduto intocável’ da natureza e de um ‘homem bom’, oferece a possibilidade de se usufruir do que já foi ‘perdido’ nos países/cidades de origem dos turistas, tornando-a uma heterotopia de compensação. Os turistas consomem essa ilusão à medida que aprendem sobre outros viajantes do passado e sentem a compensação face ao que já não existe nos seus países de origem.
A floresta amazônica é aqui reconhecida enquanto espaço heterotópico, em que a heterotopia está no universo introduzido através da interpretação de um conjunto de textos de viagens associadas a expedições de descoberta e/ou científicas, desde o século XVI até a atualidade, polarizada entre paraíso e/ou inferno.
A Amazônia, enquanto espaço de turismo de floresta e no enquadramento de um turismo ecocultural, a desenvolver-se de forma sustentável, requer a ‘construção’ de experiências turísticas, em que as dimensões cultural e criativa, bem como a cientifico-educacional, possam ganhar destaque.
Considerando que heterotopia está no universo introduzido na interpretação, destacou-se a riqueza de conteúdos interpretativos, ‘derivados de viagens do passado’, que podem ser (re)vividos – (in loco) através de experiências associadas a tours turísticos. O pressuposto é de que os turistas podem beneficiar-se de um processo duplo de ‘passagem da Amazônia textual para a real’ e seguidamente da ‘passagem da Amazônia real para a textual’, do real para o texto e/ou do texto para o real.
Os textos-alvo de análise evidenciaram a multiplicidade de características intrínsecas e extrínsecas dos recursos amazônicos passíveis de interpretação turística assente em uma visão de interconectividade entre cultura e natureza potencializadora de um maior desenvolvimento sustentável do turismo. De forma recorrente, iniciam com o maravilhamento face ao desconhecido, muitas vezes entendido como o (re)encontro com o paraíso idealizado, o jardim do Éden, destacando-se elementos positivos associados a beleza, liberdade, força da natureza, riquezas e comunhão do homem com a natureza e com o sublime. Contudo, com a continuação da viagem, à medida que os viajantes, fundamentalmente primeiros descobridores e cientistas, se embrenham na floresta amazônica, esse paraíso simbólico e mítico tende a perder-se, derivado do respectivo contato com a realidade, confrontando-se tanto com perspectivas duais paraíso/inferno quanto com perspectivas do inferno (‘elementos negativos’, ‘deceptivos’, ‘desmistificadores’, ‘transformadores’, tais como doenças, animais/insetos, estrutura econômica, violência, injustiça).
Em concordância, vão-se perspectivando as relações dialéticas ‘paraíso’ versus ‘inferno’, colocando a tônica quer num processo transformacional do positivo ao negativo (pressupõe a alteração da visão do texto e do sujeito refletida na transformação dos elementos originários de um paraíso em inferno), quer num processo ‘instável’ (pressupõe a concessão oscilante da Amazônia entre ‘paraíso’ e ‘inferno’). A identidade amazônica tende a ser então entendida enquanto ‘processo transformacional instável’.
Ademais, a floresta amazônica, pela vastidão do seu ‘conteúdo cultural-científico’, poderia explorar futuramente a oferta mais sistemática de tours assentes em novos segmentos de visitação (mais motivados por cultura e ciência), novas temáticas (paraíso versus inferno), novas espacialidades (seleção de locais descritos em narrativas científico-culturais), positividade (curiosidade, conhecimento, educação, evasão, entretenimento), estímulo aos sentidos (fauna, flora, floresta e locais descritos nos textos), mix de recordações. Tours, então, mais associados à ‘memória’ histórica dessas viagens (através do contato com textos dos viajantes – Amazônia textual), constituindo-se, ela própria, como expressão de uma heterotopia.
Na verdade, os textos contemplados funcionam como espelhos heterotópicos, simultaneamente de ilusão e compensação, especialmente porque ‘deslocam’ muitos dos mitos, utopias, histórias e identidades do Velho Mundo para o entendimento do Novo Mundo e da Amazônia, o que, em si, representa uma ‘ilusão’. O consumo dessa ‘ilusão’ pode, sequencialmente, representar uma ‘compensação’, face ao que os turistas já não podem ‘encontrar’ nos seus países de origem. Pode, igualmente, potencializar uma experiência turística transformacional, fundamentada na consciencialização da importância de novos valores de conservação e preservação, opostos à destruição atual da Amazônia, como ‘outro’ espaço.
Do ‘jardim’ e do seu ‘povo original’ perspectiva-se a destruição dos dois à medida que a globalização econômica, social, cultural a par da virtualização se disseminam. Que maior ameaça haverá senão aquela dos homens não lutarem pela defesa da Amazônia e dos seus paraísos (re)encontrados?
Este artigo foi financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Foundation for Science and Technology – FCT) através do projeto UIDB/04020/2020.
Autora para correspondência: Claúdia Helena Henriques. Universidade do Algarve. Campus Penha, 8000. Faro, Algarve, Portugal. CEP 8005-139 (chenri@ualg.pt).