Resumo: Este artigo propõe uma revisão conceitual e etnográfica sobre a luta corporal alto-xinguana (kindene), que encerra os rituais pós-funerários em homenagens aos chefes (egitsü). Organizado segundo um intrincado sistema de convites, trocas e formalidades, o ciclo interétnico do egitsü tem na kindene seus momentos de mais intensa interação entre os povos da região. As relações entre donos, aliados e convidados, ancoradas no aparentamento dos chefes com os falecidos homenageados, determinam a formação dos times anfitriões e seus adversários, implicando um cenário de ‘mistura’ e diferenciação. A dinâmica dos combates separa a apresentação dos campeões, potenciais ‘substitutos’ dos chefes atuais, dos lutadores comuns. Tal separação, reflexo da fabricação dos corpos e reclusão diferenciada em famílias de chefes, garante visibilidade aos campeões, parte de um processo dialético entre exibição pública de performances e confinamento doméstico para produção de pessoas. Neste artigo, a kindene não será analisada como epifenômeno do ritual, ‘arrefecimento de tensões’ ou ‘válvula de escape’ para os conflitos intra e interétnicos – perspectiva que orientou trabalhos que passaram pelo tema –, mas como um modo de construção da chefia por meio de biografias, contendas políticas locais e regionais, rivalidades históricas que atravessam gerações e transformações que consolidaram o sistema regional alto-xinguano.
Palavras-chave: Luta esportiva, rituais interétnicos, corpo e pessoa, chefia, alto Xingu.
Abstract: This conceptual ethnographic review examines wrestling practices in the Upper Xingu known as kindene that end post-funeral rituals to honor chiefs (egitsü). Organized according to an intricate system of invitations, exchanges, and formalities, in kindene the interethnic cycle of egitsü contains intense interactions between the peoples in this region. Relationships between owners, allies, and guests rooted in the kinship of the chiefs with the honored deceased determine the composition of the host teams and their opponents, resulting in a scenario of ‘mixture’ and differentiation. The dynamics of the fights separate the presentation of champions (who may potentially replace the current chiefs) from the ordinary fighters; this separation, a reflection of the production of bodies and differentiated seclusion in the families of these leaders, ensures visibility for the champions in part of a dialectical process between the public exhibition of performances and domestic confinement to produce people. This article does not analyze kindene as an epiphenomenon of the ritual (to ‘cool tensions’ or serve as an ‘escape valve’ for intra- and interethnic conflicts, notions that have guided previous work on this topic), but rather as a way to construct chieftaincy through biographies, local and regional political disputes, historical rivalries spanning generations, and transformations that have consolidated the Upper Xingu regional system.
Keywords: Fighting games, interethnic rituals, body and person, chieftaincy, upper Xingu.
DOSSIÊ
A luta esportiva nos rituais pós-funerários: corporalidade, chefia e disputa política no Alto Xingu
Fighting games in post-funeral rituals: corporality, chieftaincy, and political dispute in the Upper Xingu
Recepção: 28 Abril 2022
Aprovação: 06 Outubro 2022
A proposta deste texto é debater um tema que, mesmo presente em inúmeras obras, de variadas épocas, ficou subnotificado tanto do ponto de vista etnográfico quanto conceitual, em face de sua importância para os povos alto-xinguanos. A luta esportiva kindene, mais conhecida como huka-huka, é um combate corporal disputado em determinadas situações, como na chegada de um visitante à aldeia estrangeira ou nos casamentos interétnicos, ocasião em que o noivo deve enfrentar todos os lutadores locais – devido à regra de residência uxorilocal pós-matrimônio. Nos rituais intercomunitários, a luta tem lugar de destaque, inclusive as lutas femininas, sendo um modo de lidar com a alteridade. Todavia, e este será nosso tema específico, o ápice dos combates ocorre no encerramento dos rituais pós-funerários egitsü1.
Trata-se de uma modalidade de luta em que os oponentes devem tocar a parte posterior da perna do rival, agarrá-lo pelas costas ou executar golpes de arremesso para obter a vitória – objetivo almejado pelos lutadores e clímax das comemorações. Embora o empate seja o resultado mais recorrente, os combates apresentam alto nível de intensidade, sendo realizados logo pela manhã do último dia do ciclo ritual – chamado de ‘final’, momento em que os povos se encontram todos reunidos no pátio da aldeia anfitriã. Inclusive, sobre os brancos que participam como turistas, Guerreiro (2015a, p. 415) afirma: “Com essa incorporação dos brancos no processo, os dois últimos dias do egitsü (o dia da produção das efígies2 e das lutas) acabaram se transformando no emblema mundialmente conhecido desse ritual”.
Com uma variedade de golpes, técnicas e táticas, as disputas ocorrem entre o time dos anfitriões, somados aos aliados situacionais, contra os convidados adversários, também situacionais, separados entre si. Veremos que, com essa dinâmica organizacional, que depende das relações de parentesco entre chefes e homenageados falecidos, o time anfitrião faz bem mais lutas que seus convidados, principalmente os campeões (kindotoko, algo como ‘donos de luta’) que se apresentam primeiro e separadamente dos demais – após serem convocados pelos chefes (anetü) e ‘donos’ do ritual3.
A região do Alto Xingu é conhecida pela ênfase nas redes de trocas matrimoniais (casamentos preferenciais com a prima cruzada bilateral e alianças estratégicas), comerciais (por meio de especialidades étnicas) e cerimoniais (um conjunto de festas por variados motivos para os quais os povos se convidam mutuamente). Esse ‘tripé relacional’ passou a ocupar o lugar da guerra como forma de relacionamento interétnico, principalmente após a delimitação do Parque Indígena do Xingu (PIX)4 na década de 1960 (Menget, 1978; Menezes Bastos, 1989, 1995).
Algumas das transformações entre guerra e ritual, que privilegiam esses modelos de trocas e consolidam regimes de alteridade, são apresentadas através de temas que caracterizam os povos que fazem parte deste complexo regional (C. E. Costa, 2022). O chamado ‘amansamento dos índios bravos’ se deu pelas mudanças da dieta alimentar, à base de peixe e mandioca; dos hábitos sexuais; da calma e resiliência; da ‘xinguanização’ (Menezes Bastos, 1984, p. 142). Não somente no campo teórico, mas também discursos nativos enaltecem que, enquanto outras populações indígenas fariam guerras, os alto-xinguanos trocam presentes, realizam manifestações artísticas, músicas, danças e disputam modalidades de combates corporais, notadamente durante os rituais pós-funerários5 (Gregor, 1990, p. 113; Heckenberger, 2001, p. 91; Fausto, 2007, p. 28).
São ao menos nove povos: Kalapalo, Kuikuro, Matipu, Nahukua (karib), Yawalapiti, Mehinaku, Wauja (aruak), Aweti e Kamayurá (tupi). Alguma literatura propõe uma maior diversidade étnica no interior dos grupos locais que foi se perdendo ao longo da história de contatos, mudanças e epidemias (Menezes Bastos, 1989; Guerreiro, 2015a). Como na aldeia Kalapalo de Tanguro, uma família do povo Naruvotu6 reside há tempos, praticamente desde sua abertura, na década de 1970, resultado de uma das muitas fissões promovidas em torno da chefia e outros assuntos conectados, como a feitiçaria7. Processo que, em ritmo acelerado ultimamente, promove a expansão no número de aldeias e fragmentação do poder político (Barcelos Neto, 2006) – o que veremos ser decisivo na formação dos times de luta.
Podemos afirmar que a kindene, junto a outras especificidades, delimita fronteiras da alteridade, instituindo a separação entre kuge hekugu (‘gente de verdade’, o nível mais restrito a que poderíamos delimitar de povo), kuge (‘gente’, povos com quem se estabelecem relações de trocas), ngikogo (‘outros diferentes’, a imagem da alteridade distante, perigosa) e os kagaiha (brancos). Essa é a diferenciação no idioma karib, mas os marcadores linguísticos têm semelhanças entre os povos da região (Viveiros de Castro, 1977). Saber lutar e todo o conjunto de conhecimentos que compõe a formação dos lutadores8 são características decisivas para ‘virar gente’ (Basso, 1973; Coelho de Souza, 2001), isto é, fazer parte desse multiétnico e multilinguístico sistema regional9.
A centralidade da luta como modelo de relação interétnica será nosso referencial etnográfico para trabalhar não apenas o momento do confronto ritualizado, mas também temas adjacentes fundamentais para a região. Mais especificamente, integrar o debate sobre a chefia, que envolve todo o universo ritual, com a fabricação corporal, principalmente através da ‘reclusão pubertária’ dos jovens campeões em famílias de chefes. Pretendemos desenvolver uma associação entre o dado e o construído na transmissão (Guerreiro, 2015a) e continuidade (Fausto, 2017) da chefia através de biografias que se consolidam durante os combates regionais – nesta etapa da vida dos jovens futuros chefes. Trata-se de um processo dialético entre a produção doméstica dos corpos e a exibição regional de performances, entre esconder os reclusos dos olhares dos outros nos cantos mais escuros das casas e apresentar os jovens chefes nos momentos rituais em que se encontram presentes os outros que são ‘gente’.
Este processo de fabricação corporal é definidor na produção dos grandes chefes10, neste momento particular da vida em que estão sendo feitos para serem campeões de luta, para não perder, para se preparar para as próximas etapas de sua formação da pessoa e temporalidade ritual: lutadores campeões, chefes patrocinadores, falecidos homenageados (Barcelos Neto, 2012). Esse ciclo de fabricação do corpo, que tem início com a entrada na reclusão, é baseado em procedimentos fisiológicos, sociológicos e cosmológicos que ajudam a garantir que os jovens sejam feitos chefes, a partir de famílias de chefes, para se confrontar contra outros que passam por processos semelhantes.
Nesse cenário de disputas esportivas11 entre campeões, identidades e alteridades étnicas se mostram determinantes para o jogo político, tanto no plano local da aldeia, das relações entre as aldeias de um mesmo povo, quanto entre os povos no sistema regional. Aqui, a ideia tetsualü de ‘mistura’, do ‘colorido’ dos povos e línguas (Mehinaku, 2010) é decisiva no estabelecimento de alianças e rivalidades que se modificam a cada evento. Isso porque as pessoas geralmente se identificam com ao menos dois etnônimos, ampliando as relações de parentesco que conectam chefes e homenageados falecidos. Esta é a base para a diferenciação entre anfitriões, aliados e convidados, firmada por meio da formalidade do sistema de convites.
Veremos como o aparentamento entre chefes e homenageados, assim como disputas políticas envolvendo a chefia, são fundamentais para a consolidação dos times que se alteram a cada egitsü. Aliados em um evento podem ser adversários no seguinte, o que potencializa rivalidades, gerando embates e contradições não somente entre os lutadores, mas também entre as torcidas. Isso porque são as torcidas que atuam performaticamente para a confirmação dos resultados nos combates, seja cantando a vitória de seu competidor, ou ao chamar o empate para finalizá-lo e ter início o próximo combate.
O enfoque na luta que encerra o egitsü também tenderá a priorizar um panorama das relações interétnicas que não passaram incólumes das transformações contemporâneas. O desenvolvimento das técnicas; as mudanças nas percepções dos modos de se obter as vitórias; a maior conexão entre lutadores e torcidas, exaltando disputas políticas; as comemorações dos vencedores e suas relações familiares associadas. Essas transformações fazem parte de um período em que se alteram os regimes de trocas, maior financeirização da economia (Novo, 2018) e aumento da circulação de bens e pessoas12. O complexo cerimonial se intensificou, e o ponto conhecido como a vitalidade dos rituais pode ser evidenciado tanto no aumento de suas capacidades organizacionais como na quantidade em que são realizados13.
Pretendemos demonstrar que, mesmo numa tomada histórica ampla sobre esse universo, desde as expedições pioneiras do século XIX, passando pelas pesquisas pós-demarcação do TIX em meados do século XX, até mais recentemente, o que se percebe é a manutenção da kindene como marca do relacionamento interétnico. A luta contra o outro e todo o vasto conjunto de conhecimentos que integram a modalidade acompanham as transformações do ‘sistema social’ (Menget, 1985, p. 133), tratado por pax xinguana.
Começaremos pelo debate sobre a fabricação dos corpos durante a reclusão, atrelando os domínios etnográficos a propostas conceituais recentes sobre ação e influência, cuidado e controle, consideração e maestria nos processos de formação da pessoa. Seguiremos para a contextualização da kindene no conjunto das atividades que compõem o egitsü, enfatizando a centralidade dos combates na organização ritual. Por fim, faremos uma tomada específica sobre a luta, os relacionamentos entre os lutadores, as performances das torcidas, os resultados e a vivacidade que mantêm a kindene como idioma simbólico fundamental na interação entre os povos alto-xinguanos.
O período chamado de ‘reclusão pubertária’ no Alto Xingu é reconhecido por seus processos de fabricação corporal em vista do idioma simbólico próprio ao continente sul-americano, a corporalidade (Viveiros de Castro, 1977, 1979; Overing, 1977; Seeger et al., 1979; Lima, 2002; Vilaça, 2005). Em outra oportunidade, procuramos enfatizar como a reclusão dos lutadores campeões, realizada determinantemente em famílias de chefes, deve ser tomada etnograficamente, de modo a diferenciá-la das demais, especificando suas qualidades, pretensões e todo o universo relacional que se movimenta nesse período decisivo na formação da pessoa. Para evidenciar essas especificidades, inclusive as disputas locais e regionais que se movimentam em torno da chefia e da produção de futuros chefes, abordamos tal período sob o signo da ‘política da reclusão’ (C. E. Costa, 2020).
Em sua forma mais tradicional, a reclusão tem início com o tiponhü, ritual de furação de orelhas que marca a entrada dos meninos no isolamento dentro de casa14. É dito que todos devem passar pelo período, mas, para os filhos de chefes, o fato deve ser anunciado quando da realização do tiponhü. Nesse momento, os povos são convidados para conhecer os futuros chefes, os ‘substitutos’ dos chefes atuais, atestando o caráter de continuidade na produção da chefia. Esses jovens enfrentarão uma reclusão diferenciada, no tempo e nos quesitos executados, para se tornarem grandes lutadores, pois um campeão de luta é, potencialmente, um chefe:
Cada ritual no Alto Xingu é feito, primordialmente, para uma única pessoa. Todos os demais que dele participam são chamados de ‘os acompanhantes’. Assim, no Pohoká wauja [tiponhü], apenas um menino terá ambos os lóbulos auriculares perfurados com agulha de fêmur de onça. Eventualmente, outros meninos de ‘alta linhagem’ de amunaw [chefe] poderão ter uma de suas orelhas perfuradas com tal agulha. Nos ‘acompanhantes’ usam-se apenas agulhas de madeira. Inicia-se aí uma série de procedimentos que distinguirá os meninos de uma mesma geração. Entre os Wauja, o Pohoká tem sido feito a cada 15 anos, em média. Nessa ocasião, todas as aldeias do Alto Xingu são convidadas a (re)conhecer o menino que foi escolhido para ser um futuro amunaw. A diferença de idade entre eles varia em até sete anos. Depois do ritual, os meninos entram em seu primeiro ano de reclusão. Mas aquele que teve os lóbulos auriculares perfurados com fêmur de onça terá uma reclusão mais prolongada que os demais, terá, portanto, uma fabricação distintiva de seu corpo, tomará eméticos ‘fortes’
(Barcelos Neto, 2005, p. 278, ênfase adicionada).Tendo em vista recente debate conceitual entre a ‘política da consideração’ (Kelly & Matos, 2019) e a ‘maestria’ (Fausto, 2008; L. Costa, 2013; Fausto & L. Costa, 2021), retomamos o tema para mostrar como as relações próprias a este período podem ser lidas a partir desta discussão. Isso porque é durante a reclusão que se produzem pessoas, por meio de relações que envolvem outras pessoas que agem em função dessa produção. Embora não seja nossa proposta revisitar a literatura levantada nessa querela, pretendemos demonstrar duas vias que se complementam para a boa execução desse expediente: a do parentesco consanguíneo no núcleo familiar e as relações assimétricas da afinidade.
A reclusão pubertária é reconhecida como processo definidor nesta etapa da vida dos jovens pelas transmissões e continuidades da chefia, objetificadas na diferença entre a reclusão dos campeões/convocados/futuros chefes, daquela dos lutadores ‘comuns’, diferenças que reverberarão em outros momentos das carreiras dos lutadores – como nas apresentações separadas dos demais durante os combates rituais. Nem todos os reclusos têm acesso, ou mesmo suportam as substâncias, os procedimentos realizados, as prescrições e as abstenções – notadamente, as sexuais, uma das ‘causas’ usuais para explicar a derrota dos campeões, junto com a feitiçaria e as capacidades técnicas15.
A efetividade de uma reclusão bem realizada é parte da biografia de um grande chefe, pois, nesta fase da vida, eles são campeões de lutas, exibindo suas performances regionalmente. E só se produzem grandes lutadores em reclusões bem administradas, rígidas na manutenção dos requisitos necessários, zelo que parte principalmente da mãe e da parentela masculina, pai e avôs, que apresentarão o inventário botânico dos fortificantes, cicatrizantes e potencializantes utilizados nas escarificações e como eméticos. Eles também transmitirão os ensinamentos éticos, morais, filosóficos, práticos, a ‘sentarem nos bancos’ (ugihongo) – na síntese etnográfica do chefe Kalapalo Ageu para Guerreiro (2015a, p. 155). São eles ainda que levam os jovens para enfrentarem campeões rivais nos momentos rituais16.
Essas relações no plano da consanguinidade, de ações e influências entre uma pessoa que age e outra que é alvo dessa ação, atuam no processo de transmissão de conhecimentos e afetos, que se estenderá na vida de um chefe, nos processos de fabricação de seu corpo, de sua casa, de sua sepultura e efígie. O núcleo familiar produz relações de parentesco ao produzir corpos de parentes.
Entretanto, relações assimétricas com afins cosmológicos, como o ‘dono das ervas’ ou os ‘donos de luta’, também povoam o universo relacional dos reclusos. Nesses termos, e com uma proposta etnográfica focada na reclusão dos lutadores campeões em famílias de chefes, enfatizamos a coexistência das relações consanguíneas no núcleo doméstico, bem como as relações assimétricas dos reclusos com os ‘espíritos’ (itseke).
Se o jovem for calmo, respeitar os procedimentos de isolamento, de fala baixa apenas com pais e irmãos, resiliente, e, acima de tudo, mantiver a castidade, os ‘donos das ervas’ ajudarão os reclusos, e suas substâncias utilizadas na escarificação e como eméticos surtirão efeito. Em contrapartida, para o caso da quebra desses procedimentos, principalmente as relações sexuais, o jovem não conseguirá bons resultados nos processos de fabricação de seu corpo, restando, em casos mais graves, a chamada ‘doença da reclusão’, que trata de uma parestesia dos membros inferiores (Verani, 1990).
Além dos ‘donos das ervas’, que intermedeiam essas relações entre reclusos e substâncias, outros seres cosmológicos ligados ao universo da luta também se relacionam com os reclusos, especialmente a sucuri. Após o encontro do jovem sozinho na mata com a sucuri (o ‘roteiro’ da relação com os espíritos), ele deve segurá-la por seu rabo e aguardar seus movimentos. Se a cobra morder o jovem em sua mão é sinal de que ela aceita o recluso, algo como a ‘adoção temporária’, típica da maestria (Fausto, 2008, p. 333; Fausto & L. Costa, 2021, p. 17).
A partir daí, ele terá de matar a cobra, cortar seu rabo e fazer um enfeite ritual usado pelos lutadores durante as apresentações da flauta atanga – relacionada aos lutadores. Este seria o enfeite original, um dos artefatos materiais ligados aos campeões, como o colar de unha de onça, usado pelos chefes donos do ritual. Mas, ficando na sucuri, ela vai aceitar o jovem que mordeu através da intensificação de sua reclusão, com maior rigidez nos procedimentos de isolamento. E, por meio dos sonhos, irá transmitir seus conhecimentos aos reclusos.
Para Kelly e Matos (2019, p. 391), a relação mestre/dono seria um caso particular de uma ideia mais geral tomada via ‘ação significativa’: “toda ação significativa (i.e., que tem efeitos e consequências perceptíveis) poderia ser explicada – ou compreendida, ou justificada, ou questionada etc. – como envolvendo a separação entre uma pessoa que age e uma outra pessoa tomada como a causa da ação”, restando dizer que essa relação entre pessoas coloca uma sob a consideração da outra.
Já para Fausto e L. Costa (2021), seria menos produtivo pensar nas relações de maestria como uma manifestação particular desse amplo espectro. Como definem sua empreitada:
Queremos descrever (e teorizar sobre) relações de caráter assimétrico na Amazônia. Nesse âmbito, elaboramos um modelo de agência magnificada, que não se confunde com uma teoria geral da ação. A relação mestre-xerimbabo é o esquema por meio do qual um certo tipo de agência se faz possível e se torna visível
(Fausto & L. Costa, 2021, p. 2).Entretanto, os próprios autores reconhecem como os assuntos se entrelaçam em alguns pontos. Notam, ainda, que a proposta da ‘política da consideração’, apesar das incompletudes demonstradas quando se trata das relações assimétricas e de afinidade, poderia ser usada para tratar especificamente das relações do núcleo familiar: “Por isso, o artigo [de Kelly e Matos (2019)] permanece quase restrito ao parentesco humano, entendido sobretudo como o domínio da consanguinidade – as relações entre afins simétricos ou assimétricos passam a ocupar um lugar menor, assim como as relações interespecíficas” (Fausto & L. Costa, 2021, p. 10).
Nossa proposta será demonstrar que a fabricação do corpo e a formação da pessoa do recluso pode ser encarada tanto por essa via do parentesco humano no núcleo familiar (lutador e seus pais), como por meio de relações assimétricas com seres interespecíficos (donos das ervas; sucuri). Ao tomar o recluso como alvo da ação e influência, cuidado e controle, seja pela consanguinidade, especialmente com seu pai e mãe, seja pela via da relação assimétrica da afinidade, a maestria de seres magníficos, atores externos passam a ser responsáveis pelos processos de fabricação de seu corpo.
As relações domésticas são fundamentais para o bom desenvolvimento da reclusão, não apenas da fabricação do corpo, mas de um amplo processo de formação da pessoa pela qual se transmite também a chefia. Neste caso, o lutador ocupa um ‘lugar de agente moral’ para o qual se irradiam ações desde o domínio da consanguinidade. No plano doméstico, existe toda uma política da consideração entre o recluso e seus consanguíneos, que agem em prol de sua fabricação corporal e formação de pessoa, um processo de coagir e compelir por meio de ações que produzirão um grande lutador, potencial chefe que dará continuidade àquela família de chefes.
Já as relações assimétricas da afinidade, sejam com os donos das ervas, sejam com os donos da luta, são tomadas por este outro modelo de cuidado e controle com base na maestria. Um tenso equilíbrio entre o cuidado com o xerimbabo, no caso o lutador, que deve ser retirado dos olhares dos outros, da inveja, do risco de fragmentação de seu corpo e pessoa, e o controle, que deve ser exercido sobre ele por esse afim cosmológico, interespecífico, o dono das ervas ou o dono das lutas, que exige, principalmente, o rígido controle sobre a atividade sexual como condição decisiva para o bom desenvolvimento da reclusão. Isso é feito para que as ervas tenham efeitos e promovam um corpo alto, forte e resistente, e para que o lutador possa sonhar com seu mestre, momento em que ele vai ensinar os golpes, técnicas e segredos para se tornar um campeão.
Em contrapartida, a família consanguínea também deve manifestar certo controle sobre seu recluso, pois ele será resultado das capacidades dessa mesma família em dar continuidade à chefia. Por isso, mães e pais, além de zelosos, são rígidos principalmente no isolamento do recluso. Ainda nessa dupla perspectiva, os mestres são cuidadosos com eles, no caso de obedecerem aos quesitos exigidos, orientando para uma reclusão efetiva, inclusive sem o risco da chamada ‘doença da reclusão’.
Do ponto de vista etnográfico, durante a reclusão, podemos separar controle e cuidado manifestados pelos agentes, consanguíneos ou afins assimétricos, que atuam em função do recluso. No domínio das relações de parentesco, são os pais os principais zeladores de uma reclusão bem-feita, promovendo alimentação correta, itens necessários para escarificação e eméticos, banhos, isolamento social, limpeza dos gabinetes nos cantos escuros da casa, ensinamentos tradicionais, procedimentos que visam à fabricação corporal e à formação da pessoa, assim como à continuidade da chefia no núcleo doméstico. Há nisso a noção de que somente famílias de chefes podem fazer novos chefes, seja pelo dado, a hereditariedade e a continuidade substancial, seja pelo construído, os ensinamentos, as transmissões dos conhecimentos (Guerreiro, 2015a).
No plano das relações assimétricas, o controle e o cuidado partem dos seres cosmológicos que propiciam, ou não, saberes específicos para o bom desempenho tanto da fabricação do corpo como dos resultados nas lutas rituais. Mas, nesse caso específico – que aproxima e diferencia as relações de consanguinidade e afinidade do recluso, as complementaridades entre cuidados e controles –, um tema se sobressai: a fundamental abstinência sexual por parte do recluso como condição necessária para que esses procedimentos surtam efeito. Embora o cuidado com a alimentação seja importante, é o controle sobre a atividade sexual que ratifica o elo entre agente e alvo da ação.
Então, se de um lado existe o cuidado dos pais em alimentar corretamente os reclusos, e os donos das ervas permitem que as substâncias usadas tenham efeito na construção de um corpo forte, saudável e resistente, do outro, o controle é exercido sobre a atividade sexual. Em síntese, cuidado alimentar e controle sexual são o que liga a política da consideração, atrelada ao domínio do parentesco consanguíneo, fabricado a partir das relações internas à casa entre recluso e seus pais. E a relação de maestria, tomada a partir da adoção temporária, um tipo de relação assimétrica entre os donos das ervas/lutas com os reclusos, desde que eles cumpram determinados requisitos.
Todavia, as relações de afinidade do lutador não se restringem a esses aspectos da maestria. A fabricação corporal dos campeões, pensada e executada para o enfrentamento performático contra o outro durante os rituais, é consolidada por meio de um conjunto de oposições. Enquanto no domínio doméstico se fabricam os corpos e as relações de consanguinidade (o aparentamento no núcleo familiar), no âmbito regional ocorrem os confrontos contra a alteridade, a sempre ambígua figura do outro. Se os itens usados na reclusão para a escarificação e eméticos remetem às características dos grandes chefes-árvores – dureza, resistência –, o aspecto vegetal que associa os chefes como esteio de seu povo, um superconsanguíneo, os objetos rituais próprios aos campeões destacam a predação – jaguar, anaconda – e enfatizam a alteridade animal, função-jaguar própria ao relacionamento entre os chefes rivais.
Se esconder o recluso faz parte desse processo de não deixar fragmentar a pessoa, de tirá-la do convívio, das fofocas, da inveja que o belo pode suscitar (Ewart, 2008), a exibição ritual apresenta a continuidade da chefia naquela família de chefes, as habilidades e capacidades demonstradas em tornar famoso, em convocar os substitutos dos chefes atuais – e daqueles que estão sendo homenageados:
Os chefes reúnem, ao mesmo tempo, as facetas de protetor e inimigo, consanguíneo e afim potencial. Esta dualidade não é apenas ‘conceitual’, restrita aos mitos, mas é objetivada (precisa se objetivar) nos corpos dos chefes, seja sob a forma do corpo individual, da casa ou da sepultura. Ela é de fato constitutiva de qualquer corpo, pois todos têm um potencial humano/parente e um potencial animal/diferente, mas apenas os corpos dos chefes são feitos intencionalmente para tornar essa dualidade visível (pois só um chefe precisa aparecer como pai para os seus e inimigo para os estrangeiros)
(Guerreiro, 2015a, pp. 294-295).É importante frisar que, do ponto de vista técnico dos combates, essa produção de pessoas na reclusão se completa a partir de seus desempenhos nos rituais, fazendo parte das destacadas características da individualidade e do prestígio dos chefes construídos nesses momentos de exibição pública. Uma reclusão bem-feita, que retira os jovens do convívio social por longos períodos e respeita os procedimentos exigidos, se completa com grandes performances rituais, tornando famosos os melhores lutadores.
Com esse panorama sobre os processos de fabricação corporal e formação da pessoa dos campeões – que envolve aparentamento e alteridade, consanguinidade e afinidade, individualidade e transmissão de conhecimentos –, o domínio da reclusão se constitui como campo político de disputas no entorno da chefia. Tanto no âmbito local, da aldeia, como no plano regional, as famílias de chefes dão continuidade ao seu status de chefia por meio das distintas capacidades em formar grandes campeões, potenciais futuros chefes, que se exibirão performaticamente. Deste modo e a partir de agora, trataremos das lutas nos rituais pós-funerários egitsü, momentos mais aguardados e objetivo principal para o qual o corpo dos jovens masculinos é fabricado.
Como vimos, ocorre todo um investimento nas famílias de chefes para a produção de grandes lutadores, campeões que vão se apresentar durante os rituais pós-funerários contra adversários que passam por processos semelhantes. Seja pelas relações que produzem o parentesco no núcleo doméstico, transmitindo e dando continuidade à chefia, seja pelas relações assimétricas da afinidade, os jovens campeões têm seus corpos fabricados objetivando os combates rituais contra o outro, homólogos considerados ‘gente’ (kuge), cujos efeitos dessa fabricação corporal e ensinamentos tradicionais serão colocados em confronto.
Nesse quesito, a disputa política em torno da chefia tem, na arena do combate esportivo, campo para se manifestar, seja no plano das disputas faccionais, seja na alteridade interétnica. O egitsü, um ritual em tudo envolto com a instituição da chefia, será agora tomado primordialmente a partir dos combates, momentos em que os potenciais futuros chefes, ‘substitutos’ dos chefes atuais que organizam as atividades, se confrontam em homenagens aos chefes falecidos.
A kindene é o auge de um ciclo, disputada no chamado ‘final’, quando os povos participantes se encontram todos reunidos no pátio central da aldeia anfitriã. Antes, porém, inúmeras atividades são realizadas, desde o enterro do futuro homenageado e aceitação de sua família em patrocinar o ritual, até a definição das posições cerimoniais, especialmente de sepultadores e convidadores, que agirão como ‘intermediários’ entre a família dona e seus aliados e convidados. Geralmente, um homenageado é o principal, tendo mais um ou dois como acompanhantes e suas respectivas famílias, que ajudarão na organização das atividades e ampliarão o regime de alianças para a formação dos times.
Os povos que se reconhecem parentes dos homenageados, na figura de seus chefes, irão compor o time de luta junto aos anfitriões, ao passo que os convidados serão seus rivais – levando-se em conta o faccionalismo da política regional. Essa dinâmica situacional, que depende das relações dos chefes com os homenageados de ocasião, é definida por um conjunto de convites. Convidadores previamente escolhidos pelos donos da festa vão até as aldeias e aguardam ser recebidos, cumprindo procedimentos formais até que os convites sejam aceitos pelos chefes locais17. A disputa política entre os chefes corrobora a formação dos times, seja na definição dos aliados, seja na não participação em rituais para os quais não estabeleciam boas relações com o homenageado ou com os donos18.
Firmadas as posições de anfitriões, aliados e convidados, etapas preparatórias movimentam o ciclo ao longo do período. Para manter o foco nas lutas, apenas mencionaremos as principais delas, sabendo que o egitsü é tema de dedicado interesse na literatura da região sob diversificados e complementares aspectos (Agostinho, 1974; Carneiro, 1993; Menezes Bastos, 2001; Junqueira & Vitti, 2009; Avelar, 2010; Guerreiro, 2015a, 2015b; Fausto, 2017).
As festas para armazenar pequi e polvilho acontecem ao longo do ano e são organizadas pelas famílias donas do ritual para acumular o alimento que será ofertado aos convidados ao final. Elas patrocinam essas festas e recebem em troca a comida que será estocada. Já na semana do evento, os aliados chegam com certa antecedência, trazendo sua contribuição de polvilho e polpa do pequi e participam juntos da pescaria ritual, cujos peixes serão moqueados pelas famílias patrocinadoras. Importante notar que, na chegada dos aliados, já ocorre a disputa por meio da luta, ou seja, a kindene é o modo relacional de se lidar com a alteridade, mesmo entre aqueles que estarão juntos no mesmo time nos combates finais. Após esses combates e durante a semana, duplas de músicos se apresentam tocando as flautas atanga – instrumento relacionado aos campeões de luta –, acompanhados de dançarinas. Podemos dizer que as flautas consolidam a aliança para a formação dos times de luta: aqueles que tocam juntos a atanga não se enfrentarão em combates. Pelo menos não naquele evento que homenageia aqueles chefes, o que indica a variabilidade relacional a cada ritual.
No sábado, véspera do final, as efígies previamente cortadas e dispostas nos arredores da aldeia são trazidas para o pátio central e ornamentadas por especialistas rituais. As famílias enlutadas vão chorar a saudade do que está falecido defronte delas e tomarão o banho para encerrar o luto, num momento de grande comoção. Após muito tempo sem pintarem seus corpos, recebem a pintura e se preparam para o final.
Depois de terminadas as apresentações das flautas atanga e suas danças, da ornamentação das efígies e do banho cerimonial, os chefes anfitriões e aliados definem o time de luta principal, fazendo a convocação e a exibição prévia de seus campeões. Essa convocação será repetida antes de cada confronto no dia seguinte, garantindo visibilidade aos campeões que, após chamados, permanecem na ‘posição jaguar’ em quatro apoios um ao lado do outro, sendo que a ordem de sua convocação é mantida para sua luta, salvo impedimentos que veremos a seguir.
Ao entardecer, os convidados começam a chegar e montar seus acampamentos no entorno da aldeia anfitriã. Separados entre si, revezam para realizar o ‘roubo do fogo’, quando simulam uma invasão à aldeia e tomam madeiras previamente acesas com intensa gritaria e dança característica. Posteriormente, seus cantores (auguhi), em duplas, cantam e tocam seus chocalhos defronte da sepultura. Os convidados se revezam tanto para realizar a apresentação dos auguhi como para pegar o fogo central e partir para a mata, local em que passam a noite em vigília. Essa sequência dos convidados será repetida nos confrontos contra o time anfitrião na manhã seguinte.
Na véspera do final, a disposição dos participantes é inteiramente voltada paras as lutas, com os anfitriões em frente à casa das flautas ou na casa dos homenageados. Os lutadores não devem dormir para não correr o risco de ter maus sonhos, o que prejudica o desempenho. A vigília é passada entre conversas em tom ameno e finalizações dos preparativos materiais: cinturões, braçadeiras, joelheiras, tornozeleiras, pinturas corporais e benzimentos xamânicos pela fumaça do tabaco – realizados pelos grandes pajés e antigos mestres de luta19. Neste momento, os campeões também são alvos preferenciais dos cuidados e recebem maior atenção. Nota-se um alto nível de concentração e de tensão, o que aumenta a expectativa para os combates.
Terminados esses preparativos, os lutadores se direcionam para a casa dos homenageados e aguardam a sinalização feita pelos chefes e donos do ritual, que já estão posicionados defronte às efígies no pátio central. Com uma chamada que ocorre logo ao clarear do dia, o time de luta anfitrião e seus aliados saem das casas e realizam uma dança ritmada com batidas do pé no chão, enquanto circulam a casa das flautas. Permanecem um tempo com essa apresentação até que se concentram juntos às efígies.
Os convidados, que também passaram a noite em preparação após o roubo do fogo, aguardam o sinal de seus convidadores nos arredores da aldeia. Um de cada vez adentra o pátio, formando um cerco aos anfitriões. Este círculo irá se completar para novamente começar a mesma dança, música e batidas de pés no chão. No momento da dança, os convidados fecham um único círculo, mas, acabada a apresentação, os povos se separam. Devido às alianças organizacionais, é comum que anfitriões e aliados tenham mais quatro ou cinco povos convidados, que se dividem no entorno da aldeia, mais próximos às casas.
O cenário antes do início dos combates separa anfitriões e aliados, no pátio central junto às efígies, dos convidados, formando um semicírculo mais próximos às casas, divididos entre si. Os donos do ritual, então, passam a fazer a convocação de seus campeões, aqueles que irão se apresentar separadamente, com uma luta de cada vez. Entre dez e quinze são chamados, saem do bloco de lutadores e permanecem em quatro apoios no espaço em que ocorrerão os combates. Quanto melhor o lutador, antes ele é convocado, estabelecendo hierarquias que misturam capacidades técnicas e questões políticas. Guerreiro (2015a, p. 165) afirma sobre a exibição dos futuros chefes:
Estas situações de exposição pública nos rituais regionais não apenas tornam uma pessoa visível e conhecida, mas por meio dela se produz uma memória genealógica impressionante a respeito dos chefes e campeões de luta que boa parte das pessoas não mantém sequer a respeito de parentes próximos.
Fausto (2017, p. 669) afirma que convocar os campeões é uma maneira de se exaltar a continuidade da chefia, ao denominar o invocado por ‘neto de temido-respeitado’ (itsanginhü higü). Já pelo aspecto tático dos combates, a convocação é debatida entre os donos do ritual e seus aliados em conversas prévias, tomando em conta as condições dos campeões a cada evento20.
Todos os convocados (hotuko, algo como ‘primeiros’) são apresentados neste momento de grande visibilidade regional. São os campeões, aqueles que estão ou estiveram em rígidas reclusões, pertencentes às famílias de chefes que ali estão para homenagear seus parentes falecidos e poderão assumir futuramente posições de chefia. Depois do último convocado, eles retornam para junto do time anfitrião, iniciando-se as lutas individuais.
Apenas o primeiro, o melhor lutador, permanece no local dos combates enquanto aguarda seu rival que vai ao seu encontro. Os oponentes se encaram e fazem movimentos em círculos, grunhindo ‘uhú, uhú, uhú’ antes de se chocarem, apoiados sobre os joelhos e procurando agarrar mãos e pescoço um do outro. Golpes de entrada, ataque e defesa são combinados com intenção de desequilibrar o oponente para atingir a parte posterior de sua perna ou agarrá-lo por trás, o que pode terminar com algum golpe de arremesso – o principal objetivo do combate. Em caso de sucesso, seja pelo toque ou arremesso, a torcida do lutador que ganhou passa a comemorar efusivamente com gritos ininterruptos: ‘uh, uh, uh, uh, uuuu’. Se nenhum lutador conseguir aplicar golpes com efetividade, ambas as torcidas gritam um simples ‘uh’, sinal de que o combate terminou empatado e deve ter início o próximo.
A kindene é uma modalidade de luta agarrada de grande intensidade, com combates de curta duração. Assim que acaba a primeira luta, o próximo parte para a arena, e a sequência dos lutadores convocados se mantém diante daquele povo convidado. Uma a uma, essas lutas exibem os melhores anfitriões versus os melhores daquele povo convidado, sendo que a repetição desses combates promove e instiga grandes rivalidades.
Terminadas as apresentações dos convocados – por vezes, com o primeiro fazendo mais de uma luta –, os chefes anfitriões seguram seus campeões e iniciam-se blocos de lutas que acontecem ao mesmo tempo entre competidores de ‘segundo escalão’, por assim chamar. São mais de 20 combates simultâneos que tomam o pátio central, em que lutadores escolhem e revezam seus adversários. Ao sinal dos chefes, eles retornam para junto das efígies, e outro bloco toma o pátio, até que todos tenham participado21 – inclusive, as crianças numa roda à parte. Essa sequência se repete até que os anfitriões tenham se defrontado contra todos os convidados separadamente: convocação e exibição dos campeões, lutas entre os primeiros, lutas coletivas. Deste modo, o time anfitrião compete bem mais que seus adversários, sendo a resistência uma das maiores características de um kindoto. Os campeões anfitriões chegam a lutar até dez vezes num único dia, ao passo que os campeões convidados lutam duas ou três.
Depois de confrontar todos os povos convidados, os lutadores se recolhem, e é hora da exibição das reclusas. As meninas que podem estar deixando a reclusão são guiadas pelos chefes para levar os alimentos para os convidados. Polpa e castanha do pequi, beiju de mandioca e peixe assado são oferecidos com solenidades e possibilidades de trocas matrimoniais – embora pouco efetivadas atualmente. Essa exposição dos lutadores campeões e das reclusas que entregam alimentos atesta visibilidade aos/às futuros/as chefes/as no plano regional.
Quando todos os convidados são agraciados, a movimentação é intensa por parte dos convidados para a obtenção de combustível, para irem embora. Nesse momento de ‘liminaridade’ provocado pelo fim do ritual, a preocupação das pessoas é com a feitiçaria, que seria mais provável ocorrer, daí a pressa pela gasolina e óleo diesel para retornarem para suas aldeias, seja de moto, carro, caminhão, barco ou balsa.
Com esse panorama extensivo sobre como são formados os campeões na reclusão, suas atribuições para a continuidade da chefia e a dinâmica dos combates durante os rituais pós-funerários, seguiremos agora para assuntos específicos sobre a luta. O relacionamento entre os lutadores; as comemorações das torcidas pelas vitórias; a importância em não perder e o consequente predomínio dos empates. Todos os temas que demonstram a vivacidade da luta enquanto um dos símbolos da xinguanidade.
Esperamos ter alinhavado a existência de um intricado movimento de alianças e rivalidades políticas que se atualizam por meio do sistema de convites para a participação nos rituais pós-funerários. Fundamentada no parentesco entre os homenageados e os chefes, essa variabilidade apresenta contornos etnográficos, ou melhor, pode ser aferida a partir das mais usuais até aquelas menos prováveis22. Somam-se a isso as disputas faccionais que se revigoram de acordo com a ampliação do número de aldeias de um mesmo povo, geralmente movidas por acusações de feitiçaria e tentativas de quebra do poder político dos chefes, além da referida mistura étnica (tetsualü) que se encontra na formação das aldeias23.
Por conta disso, as relações entre os lutadores são alteradas a cada ritual. Embora as performances esportivas sejam as mesmas, o opositor é variável, de modo que seu aliado hoje pode ser adversário no próximo evento. Todavia, essa dinâmica que amplia o universo de adversários encontra um limite nas relações matrimoniais, um impedimento para que certos combates aconteçam e, mesmo que estejam em vias de começar, um dos lutadores se retraia, cedendo seu lugar para o próximo.
Alguns autores chamaram a atenção para que a luta fosse realizada entre ‘primos cruzados’ (Menezes Bastos, 1989, p. 397), cunhados em potencial. De fato, os primos cruzados são oponentes. Entretanto, quando uma relação matrimonial os conecta, eles não devem se enfrentar. Um lutador não confronta os irmãos consanguíneos de sua esposa, tampouco os ‘classificatórios’ (otohongo), filhos dos irmãos de seu pai e das irmãs de sua mãe. A consolidação do matrimônio impõe certa evitação entre os cunhados, prevalecendo entre eles a ‘vergonha’ (ihütsu).
Do ponto de vista conceitual, Rivière diferencia a afinidade, tomada como valor englobante das relações, da ‘afinabilidade’, isto é, as relações de afinidade que se efetivam através das relações matrimoniais: “diferenciar a condição potencial para ser um afim e os laços reais produzidos por um casamento efetivamente realizado” (Rivière, 1986, p. 56). Essa diferenciação nos indica que os campeões adversários sejam considerados ‘afins potenciais’ (Viveiros de Castro, 2002, p. 415). Os confrontos entre eles não respondem a categorias de relação, antes, são categorias de relacionamento (Basso, 1973).
O matrimônio converte a relação de adversários em cunhados e impede o confronto, fazendo com que um dos lutadores recue e dê seu lugar para o próximo, o que nos faz pensar que a posição de devedor daquele que recebe a esposa compromete a disputa. A igualdade de condições prévias que estrutura o jogo e cujas performances promoverão as diferenças ao final (Lévi-Strauss, 2004 [1962]) não se efetiva nessa relação entre cunhados.
E tais diferenças engendradas pelas disputas são respaldadas por meio de embates performáticos entre as torcidas. Devido às distâncias entre o local em que ocorrem os combates – no pátio central – e os espectadores, fica difícil ver os resultados quando não são conseguidos de maneira inconteste, como nos golpes de arremesso. Aliás, essa é uma das ‘reclamações’ dos lutadores mais velhos, que afirmam que antigamente era preciso agarrar e segurar a perna ‘cinco segundos’ para fazer valer a vitória. Dizem ainda que, atualmente, basta encostar, e a torcida já começa a cantar a vitória. A distância não permite que se veja claramente se um lutador tocou ou não a perna de seu oponente, o que gera ambiguidades nas interpretações dos resultados. Para dirimir tais dúvidas, cada time envia seus representantes para assistir de perto aos combates e convocar as torcidas a vibrarem por suas vitórias. Os nginiko (literalmente ‘olhadores’) não são árbitros, pois a kindene não possui tal mediação arbitral, eles não influenciam no desenvolvimento dos combates, mas traduzem pela via do olhar os resultados para suas torcidas que respondem entusiasmadamente a partir de seus chamados.
Essa exaltação da torcida na vibração pelos resultados positivos, em contraste com o desalento amargo da derrota, é condizente com a reconhecida pacificação das relações entre esses povos no contexto atual. Porém, autores mais antigos, como Steinen (1940, p. 142), Murphy e Quain (1955, p. 91) e Schaden (1965, p. 81), chamavam atenção para o silêncio dos espectadores durante as lutas. Numa época em que as relações entre os vizinhos eram (mais) instáveis, guerras ou trocas se faziam situacionais e poderiam ser realizadas entre eles, o que poderia ser deflagrado com ânimos acirrados pela disputa esportiva. Já na conjuntura atual, a torcida tem uma participação efetiva nos combates, sendo que, por vezes, ambas comemoram resultados diferentes e transferem para si as emoções dos combates, inflamando disputas e rivalidades, transformando práticas torcedoras por meio das práticas do olhar (C. E. Costa, 2021b).
Deste modo, notamos que a sensibilidade do olhar indica uma dupla perspectiva atrelada à luta ritual: da formação da pessoa e importância conferida ao isolamento dos reclusos em contraste com a visibilidade dos futuros chefes nos momentos rituais, e dos olhadores que fazem a mediação entre lutadores e torcidas. As práticas do olhar se voltam tanto para a importância da visibilidade conferida aos campeões, à exibição dos futuros chefes no âmbito regional, como para a ação dos olhadores, que acaba por ser referencial para os desenvolvimentos das relações entre times e torcidas contextuais.
Por isso, reiteramos que as mudanças do torcer redimensionam as relações entre aqueles que formam esse complexo regional e se convidam mutuamente para os rituais. Num primeiro momento, em que confrontos bélicos eram uma possibilidade efetiva, havia certa indissociabilidade entre guerra e ritual, e as torcidas permaneciam em silêncio, mesmo após vitórias de seus campeões. A instabilidade dessas relações exigia que a participação das torcidas fosse quase nula, para não exaltar ânimos e inimizades latentes.
Todavia, e devido às transformações pelos quais a região passou, os processos de ‘xinguanização’, as performances dos torcedores se tornaram determinantes, com a participação deles extrapolando os limites dos combates e intensificando rivalidades. Hoje, a comemoração é incentivada exatamente por essa figura dos nginiko, com casos em que as torcidas disputam literalmente no grito a vitória de seu competidor. Com toda essa excitação torcedora, e apesar da consolidação da pax xinguana, animosidades podem aflorar e conflitos podem ocorrer, sendo essencial a participação dos chefes para acalmar os impulsos violentos.
Conquanto as torcidas tenham essa atuação no deferimento dos resultados, enfatizamos que não há placares gerais que contabilizem vitórias e derrotas, mas todos sabem sobre desempenhos individuais, principalmente das performances dos grandes campeões que não devem perder, daí o significativo número de empates24. Este elevado número será interpretado a partir de dois pontos complementares. Do ponto de vista técnico, por conta das condições físicas desiguais entre os oponentes e a quantidade de lutas realizadas no dia. Como visto, de acordo com a organização ritual, os campeões anfitriões fazem bem mais combates que seus adversários, o que implica um desgaste físico e emocional que causa desequilíbrios entre os competidores. Deste modo, o empate é considerado um bom resultado, ainda mais para as últimas lutas de cada evento.
Da perspectiva que associa a performance dos lutadores ao estatuto da chefia, o não perder pode ser lido a partir de duas questões trabalhadas por autores que se debruçaram sobre o tema na região. Expandindo os significados dos resultados nos combates, o empate é associado a duas noções: à de ‘homenagem’ (Guerreiro, 2015a, p. 416), vinculada ao ritual egitsü, uma continuidade da chefia entre gerações, fazendo com que os campeões não devam perder para honrarem seus antepassados; e à construção da ‘biografia’ dos grandes chefes (Barcelos Neto, 2012), da notoriedade, de jamais ter sido derrotado, principalmente por golpe de arremesso, pois, como também vimos, o toque na perna pode causar diferentes interpretações entre as torcidas, mas o arremesso não deixa margem para dúvidas. A invencibilidade almejada compõe qualidades distintivas na história de vida dos campeões: “Um verdadeiro campeão, conhecido como kindoto (‘mestre de luta’), adquire um notável prestígio” (Fausto, 2017, p. 659). E é esse prestígio, adquirido enquanto um campeão de luta que os chefes em formação levarão para as próximas etapas de suas vidas.
Ao revisitar a literatura, partindo do conteúdo etnográfico, a proposta deste texto foi mostrar como a kindene permanece uma das marcas características dos povos alto-xinguanos. Em que pese a ‘esportificação’ da prática, notada na maior participação da torcida na comemoração dos resultados, em sua proximidade com os lutadores, no êxtase da comemoração, que, se antes era contida e serena, agora é extravasada como se fosse a vibração por um gol no futebol25.
Apesar disso, a movimentação técnica, a preparação dos grandes campeões e o momento esperado continuam exercendo o mesmo fascínio de outras épocas – o que é confirmado na quantidade de trabalhos audiovisuais produzidos sobre o tema, seja pelos nativos, seja pelos brancos visitantes26.
Algo que poderia ser tomado em dois sentidos: a continuidade que a luta permitiria para a pesquisa etnológica no Alto Xingu; e a questão da propriedade desses conhecimentos, pois, em grande parte, definiu fronteiras da alteridade durante a complexa formação do ‘sistema regional’. Se alguns povos que se avizinhavam deixaram de participar ou nem mesmo aprenderam a lutar, como os Suyá, Trumai ou os Txicão, outros aprenderam a modalidade, o que certamente ajudou na entrada neste universo relacional. A luta é uma parte importante, mas, ainda assim, uma parte de todo um conhecimento mítico/ritual compartilhado entre esses povos, que se convidam mutuamente.
Num exemplo do que seria ‘pesquisa de campo de longa duração’, Seeger (2020) afirma que os Suyá assumem algumas formas de transformações muito rapidamente, outras, porém, em tempo demorado. Ao se referirem ao passado distante, contam sobre a época em que ‘bebiam apenas água’ ou ‘dormiam no chão’, para retomar tempos de antes dos contatos interétnicos com populações xinguanas. Esses ‘processos de aculturação’, também analisados por Schaden (1965) entre os grupos aruak, karib, tupi e gê, trazem instigantes questões: por que alguns povos aprenderam a beber mingau, dormir em redes, ou, ainda, a manutenção das aldeias circulares, as relações no plano sociológico, embora não tenham se ‘apropriado’ dos rituais pós-funerários? Por que não fazem parte desse complexo sistema de convites interétnicos? Em suma, não aprenderam a lutar?
Ao destacar os processos que transformavam as culturas que adentravam o complexo regional, o abandono de suas antigas características e a maneira como as práticas hostis, a guerra, o assassinato e a tomada de mulheres iam paulatinamente sendo substituídas por trocas comerciais amigáveis, parcerias estratégicas, alianças matrimoniais e convites formais para rituais, Heckenberger (2001, p. 90, ênfase adicionada) diz:
Além disso, os novos habitantes deveriam não apenas tornar-se ‘outro’ (xinguano), mas também ser aceitos pelas comunidades xinguanas na qualidade de ‘nós’. Interação contínua, troca, intercasamentos e visitações proporcionavam uma entrada no sistema regional, mas o que distingue os xinguanos dos não xinguanos não é o grau de troca, mas o grau com que os grupos partilham sistemas subjacentes de significados culturais, valores e práticas (por exemplo, não agressão, generosidade, dieta de peixe e mandioca, aldeias circulares). A identidade xinguana depende não apenas de práticas culturais compartilhadas, mas também, mais fundamentalmente, da adoção da cosmologia e ideologia distintas, e inclusive de um mito de origem comum, além da co-participação nos rituais intertribais, notadamente no ciclo de rituais em torno da chefia concentrados na cerimônia do Kwarup [egitsü].
É desse composto de saberes tradicionais e modos de vida, e a maneira como entram em circulação nesse intricado modelo de trocas de bens materiais e imateriais que a kindene faz parte. Não apenas das técnicas e táticas dos combates em si, mas de toda a formação exigida na preparação dos jovens campeões. É por esse conjunto de conhecimentos que se faz necessário pensar a ‘política da reclusão’ e a maneira como é por meio dessa fabricação de corpos e produção de pessoas que se estabelecem as contendas políticas entre os chefes, tanto no plano faccional, das disputas políticas locais, de onde muitos autores já apontaram a variedade étnica e linguística que se perdeu ao tomar a unidade da aldeia, como no plano regional e o fundamento de rivalidades históricas e alianças estratégicas.
Fabricar corpos, produzir lutadores e homenagear falecidos é a atribuição que os grandes chefes atuais devem desenvolver através dessa economia política de pessoas e prestígio. A manutenção da chefia no plano familiar depende dessas transmissões e continuidades, em distintas temporalidades, num mesmo movimento em que se desenrolam embates políticos aqui tratados por meio dos confrontos na luta ritual kindene.
Autor para correspondência: Carlos Eduardo Costa. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Av. José Moreira Sobrinho, s/n. Jequié, BA, Brasil. CEP 45208-091 (caecso@yahoo.com.br).