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Introdução ao dossiê “Antropologia, arqueologia e linguística no Alto Xingu”
Introduction to dossier Anthropology, archaeology and linguistics in the Upper Xingu
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, vol. 18, núm. 1, pp. 1-4, 2023
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi

DOSSIÊ


Recepção: 31 Março 2023

Aprovação: 01 Abril 2023

DOI: https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0037

À memória de Aritana Yawalapíti e de Pedro Agostinho e Aritana Yawalapíti

O Alto Xingu é uma das regiões pioneiras da pesquisa etnológica nas terras baixas da América do Sul. Uma das contribuições mais decisivas dos estudos lá realizados, desde o fim do século XIX, incide principalmente sobre o entendimento de sistemas regionais multilíngues e multiétnicos entre povos indígenas do mundo. Esse entendimento foi construído a partir de uma longa relação de convergência crítica de temas clássicos da antropologia social – ritual, xamanismo, mitologia, música, cultura material, parentesco, corporalidade, história, economia entre outros – que singularizam o Alto Xingu na etnologia brasileira.

O Alto Xingu é conhecido como sendo uma área simultaneamente geográfica – que basicamente corresponde à bacia dos formadores do rio Xingu, no estado do Mato Grosso – e cultural multilíngue e multiétnica, cuja formação se inicia por volta do ano 1400 (Heckenberger, 2001). A primeira e a segunda expedições científicas à região, respectivamente nos anos de 1884 e 1887, lideradas pelo etnólogo alemão Karl von den Steinen (1886, 1892), ofereceram uma série de evidências que permitiram mais tarde caracterizar o Alto Xingu como uma área cultural singular, em contraste com os povos maiormente jê, carib e tupi que viviam/vivem nas imediações da bacia dos formadores do Xingu, seja ao norte, sul, leste e oeste desta (Galvão, 1950, 1953; Menezes Bastos, 1995). A região é, portanto, documentada desde muito cedo por pesquisadores especializados, resultando na constituição de um extenso corpus de dados na forma de coleções etnográficas, arqueológicas, fotográficas, cartográficas, fonográficas e anotações e registros etnográficos, demográficos e sanitários.

Embora a localização geográfica do Alto Xingu lhe permitisse estar relativamente resguardado de intrusões, isso não impediu que os povos xinguanos fossem gravemente afetados por sucessivas epidemias entre meados do século XIX e o ano de 1954, quando houve uma devastadora epidemia de sarampo. Os efeitos acumulativos dessas epidemias, somados ao estabelecimento de instituições do estado brasileiro, como a Força Aérea Brasileira, transformaram profundamente os povos da região e as relações entre eles e deles com a sociedade nacional. As primeiras pesquisas sistemáticas lá realizadas ocorreram sob esse contexto de intensas e traumáticas transformações.

Entre o final da década de 1940 e meados da década de 1960, os riscos de epidemias e genocídio forçaram um movimento de concentração das aldeias dos povos xinguanos a uma distância radial inferior a cinquenta quilômetros do posto administrativo Capitão Vasconcelos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), fundado em 1948. Esse movimento de concentração só começou a ser revertido no início de década de 1990. Os Wauja, por exemplo, fundaram a aldeia Ulupuwene no Alto Batovi, na esquina sudoeste da Terra Indígena do Xingu (TIX), em 2010, reocupando, muitas décadas depois, uma parte de seu território ancestral e se estabelecendo, de modo permanente, na maior proximidade possível do importante sítio sagrado Kamukuwaká, que ainda continua fora dos limites demarcados da TIX, infelizmente. A estabilização da segurança sanitária, o crescimento demográfico contínuo e acelerado a partir da década de 1980 e a transferência da administração da TIX para os indígenas, em 1982, permitem um novo cenário político e, com ele, a projeção nacional de lideranças xinguanas, que assumiram um papel de articuladores e mobilizadores durante a redemocratização e até os anos recentes. Os trabalhos de campo que baseiam os artigos desse dossiê foram realizados nesse período de expansão demográfica e de intensificação das relações com as cidades do entorno da TIX e para além delas, que resultaram num maior acesso dos xinguanos a serviços educacionais, especialmente formação graduada e pós-graduada, e novas oportunidades econômicas.

Perspectivas panorâmicas sobre o Alto Xingu já foram apresentadas em duas coletâneas que precedem este dossiê. A primeira (Coelho, 1993) e a segunda (Franchetto & Heckenberger, 2001) publicaram resultados de pesquisas de campo realizadas, respectivamente, entre as décadas de 1950 e 1980 e entre as décadas de 1970 e 1990. Pesquisas realizadas na década de 1970 sobrepõem-se, portanto, em ambas, adensando um panorama resultante do progressivo investimento em pesquisa pós-graduada no Brasil na segunda metade do século XX.

As duas primeiras décadas do século XXI foram bastante frutíferas para pesquisas monográficas e multidisciplinares no Alto Xingu, contemplando novos temas e abordagens, e aprofundando o desenvolvimento teórico em torno de temas paradigmáticos na região. Não apenas as pesquisas em antropologia, arqueologia e linguística se consolidaram, mas também o contexto da vida indígena no Brasil, e no Alto Xingu, atravessaram transformações significativas, com efeitos próprios sobre teorias e métodos, bem como sobre interpretações e paradigmas.

O presente dossiê, dividido em duas partes, reúne os resultados dessas transformações em doze artigos científicos multitemáticos, construídos a partir de pesquisas realizadas entre seis povos indígenas do Alto Xingu – Wauja, Mehinako e Yawalapíti (de língua arawak), Kalapalo e Kuikuro (de língua carib) e Kamayurá (de língua tupi-guarani). A primeira parte do dossiê traz artigos de autoria de Patrícia Rodrigues-Niu e Mafalda Ramos (“Entre o céu e a terra: subsídios para uma arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos”), Kanawayuri Kamaiurá e Mayaru Kamayurá (“Arquivo Kamayurá: pesquisa, documentação e transmissão da memória”), Marina Novo (“Territórios em expansão: reflexões sobre transformações recentes em uma aldeia kalapalo”), Amanda Horta (“Aqui não é igual aldeia: encontros entre indígenas do Território Indígena do Xingu, na cidade de Canarana, Mato Grosso, Brasil”), Carlos Costa (“A luta esportiva nos rituais pós-funerários: corporalidade, chefia e disputa política no Alto Xingu”) e João Carlos Almeida (“Esboço biográfico de Aritana Yawalapíti: a formação de um chefe prototípico”). A segunda parte do dossiê será publicada no volume 18, número 3, setembro - dezembro 2023, do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Apresentamos aqui os artigos da primeira parte.

Rodrigues-Niu e Ramos (2023) apresentam um estudo arqueológico das práticas de sentido na longa duração a partir da abordagem de padrões de uso, mobilidade e (re)ocupação da paisagem na região da bacia do rio Kamukuwakewene/Batovi. As autoras analisam a combinação de sentidos temporais lineares e não lineares que definem o carácter multitemporal desse território. A análise abrange, ainda, os significados simbólicos de um dos sítios sagrados mais importantes para a cosmologia xinguana, a Gruta de Kamukuwaká, morada do chefe primordial homônimo.

O artigo de Kamaiurá e Kamayurá (2023) descreve a pesquisa que embasa a constituição do Arquivo Kamayurá, um projeto de reconhecimento e avaliação de registros histórico-antropológicos com os objetivos de sua salvaguarda e transmissão de conhecimentos kamayurá para futuras gerações. O Arquivo vem selecionando materiais coletados por pesquisadores antropólogos e linguistas que trabalharam ou que ainda trabalham com os Kamayurá desde a década de 1960.

Novo (2023) analisa as transformações econômicas e sociais decorrentes da introdução de novas tecnologias de comunicação, de uma via de acesso terrestre às cidades e de novas relações monetárias. O argumento principal da autora é de que esses elementos “possibilitam aos Kalapalo a criação de conexões espaço-temporais, aproximando territórios e pessoas antes desconectados” (Novo, 2023, p. 1).

O artigo de Horta (2023) analisa a socialidade indígena na cidade de Canarana e suas relações de continuidade e descontinuidade com a socialidade nas aldeias do Alto Xingu, com ênfase sobre as gradações de parentesco e o tema da boa distância.

O artigo seguinte, de autoria de Costa (2023), realiza uma revisão conceitual e etnográfica sobre a luta corporal xinguana (kindene) a partir de trabalhos de campo do autor feitos entre os Kalapalo. Kindene é analisada como elemento fundamental da produção de chefes (anetü), ou seja, um tipo específico de pessoa, cujo prestígio político é reconhecido, entre outras coisas, pelo tratamento que seu corpo recebe de seus genitores durante a reclusão pubertária e pela sua habilidade como lutador de kindene.

O dossiê é concluído com o artigo de Almeida (2023), dedicado à biografia de Aritana Yawalapíti, considerado um chefe de caráter modelar, de capacidades diplomáticas excepcionais, com profundo conhecimento da ritualística e da etiqueta xinguana. Sua biografia oferece elementos importantes para entender a noção xinguana de chefe prototípico e de reconhecimento supralocal. O falecimento de Aritana em 2020 causou imensa tristeza em todas as aldeias do Alto Xingu, e as principais delas cumpriram ritos de luto em solidariedade à sua família. Muitos dos autores deste dossiê tiveram o prazer e o privilégio de desfrutar da sua generosidade, de presenciar seus modos elegantes e de testemunhar o extraordinário senso de responsabilidade com que Aritana conduziu a vida política e ritual do Alto Xingu. Os autores do dossiê deixam aqui registradas sua estima e admiração por esse grande dono de apapalu.

A partida de Aritana e, com ele, de muitas outras pessoas de referência nas comunidades xinguanas aconteceu por ocasião da epidemia de SARS-CoV-2. Essa ocasião radicalmente adversa, e que trazia tantas memórias difíceis de outros momentos de sua história, foi enfrentada pelos povos do Alto Xingu com sua já bem conhecida clareza, organização e resistência. Já cumpridos os lutos formais dessas perdas, evitamos aqui enfatizar a tristeza, esperando que os estudos que seguem sejam gestos de compromisso continuado dos pesquisadores que atuam na região com a lição xinguana de se restabelecer regularmente a força da vida.

REFERÊNCIAS

Almeida, J. C. (2023). Esboço biográfico de Aritana Yawalapíti: a formação de um chefe prototípico. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220023. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0023

Coelho, V. P. (Org.). (1993). Karl von den Steinen: um século de Antropologia no Xingu. Edusp.

Costa, C. E. (2023). A luta esportiva nos rituais pós-funerários: corporalidade, chefia e disputa política no Alto Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220019. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0019

Franchetto, B., & Heckenberger, M. (2001). (Orgs.). Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Editora da UFRJ.

Galvão, E. (1950). O uso do propulsor entre as tribos do Alto Xingu. Revista do Museu Paulista, Nova Série, (4), 353-368.

Galvão, E. (1953). Cultura e sistema de parentesco das tribos do Alto Rio Xingu. Boletim do Museu Nacional, Nova Série, Antropologia, (14), 1-56.

Heckenberger, M. (2001). Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durée, 1000-2000 d.C. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 21-62). Editora UFRJ.

Horta, A. (2023). Aqui não é igual aldeia: encontros entre indígenas do Território Indígena do Xingu, na cidade de Canarana, Mato Grosso, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220017. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0017

Kamaiurá, K., & Kamayurá, M. (2023). Arquivo Kamayurá: pesquisa, documentação e transmissão da memória. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220086. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0086

Menezes Bastos, R. J. (1995). Indagação sobre os Kamayurá, o Alto-Xingu e outros nomes e coisas: uma etnologia da sociedade Xinguara. Anuário Antropológico, 19(1), 227-269. https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6592

Novo, M. P. (2023). Territórios em expansão: reflexões sobre transformações recentes em uma aldeia Kalapalo. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220012. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0012

Rodrigues-Niu, P. F., & Ramos, M. (2023). Entre o céu e a terra: subsídios para uma Arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220022. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0022

Steinen, K. (1886). Durch Central Brasilien. Brockhaus.

Steinen, K. (1894). Unter den Naturvökern Central-Brasiliens. Dietrich Reimer.

Notas

Barcelos Neto, A., & Valentini, L. (2023). Introdução ao dossiê “Antropologia, arqueologia e linguística no Alto Xingu”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20230037. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0037.

Autor notes

Responsabilidade editorial: Jimena Felipe Beltrão
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES Os autores declararam participação ativa durante todas as etapas de elaboração do manuscrito.

Autor de correspondência: Aristoteles Barcelos Neto. University of East Anglia. Sainsbury Research Unit for the Arts of Africa, Oceania and the Americas. Sainsbury Centre for Visual Arts. Norwich NR4 7TJ Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte (a.barcelos-neto@uea.ac.uk).



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