Resumo: O artigo evidencia a atuação de List como burocrata, secretário da Associação Alemã da Indústria e Comércio e deputado na Assembléia Legislativa de Württemberg para mostrar que boa parte de suas ideias econômicas, incluindo suas críticas à ortodoxia liberal clássica, já se encontravam formuladas antes de seu exílio nos Estados Unidos. Para situar este debate em um contexto maior, detalham-se não apenas o processo de difusão e ressignificação de A Riqueza das Nações nos territórios germânicos, mas também como List demonstra as inconsistências do free trade, em se tratando de países caracterizados por notáveis desníveis em termos de forças produtivas. Nota-se que, devido à sua experiência como burocrata, ainda sob forte influência do Cameralismo, este constituiu-se importante fonte de inspiração para List, sobretudo no que concerne ao papel do Estado na criação das condições propícias para o desenvolvimento econômico.
Palavras-chave: Friedrich List (1789-1846), Cameralismo, Economia política, Livre comércio, Adam Smith (1723-1790).
Abstract:
The article highlights List’s acting as bureaucrat, secretary of the German Association of Industry and Commerce and deputy at the Württemberg Legislative Assembly to show that much of his economic ideas, including his criticisms of classical liberal orthodoxy, were already formulated before his exile in the United States. In order to place this debate in a larger context, it details not only the process of diffusion and resignification of The Wealth of Nations in German domains, but also how List demonstrates the inconsistencies of free trade, in the case of countries characterized by remarkable disparities in terms of productive forces. It is noteworthy that due to his experience as a bureaucrat, still under strong influence of Cameralism, this constituted an important source of inspiration for List, above all, with regard to the role of the State in creating the propitious conditions to economic development.
JEL B10, B15, B31.
Keywords: Friedrich List (1789-1846), Cameralism, Political economy, Free trade, Adam Smith (1723-1790).
Artigos originais
Friedrich List: livre comércio e protecionismo na integração econômica dos estados alemães
Friedrich List: free trade and protectionism in the economic integration of German states
Recepção: 27 Dezembro 2018
Aprovação: 22 Fevereiro 2022
Reconstituir aspectos do contexto histórico em que Friedrich List (1789-1841) concebeu suas ideias econômicas pode ser elucidativo para entender a influência de eventos como a ocupação napoleônica, o período de docência em Tübingen e principalmente suas atividades como secretário da Associação Alemã da Indústria e Comércio (Deutsche Handels – und Gerwerbeverein) na formulação de suas teses, antes de migrar para os Estados Unidos. Esse entendimento diverge do pensamento de estudiosos como Margareth Hirst, Ha-Joo Chang e outros, para quem List só adquiriu maturidade intelectual durante sua permanência nos Estados Unidos, mais precisamente quando de seu contato com o American System. De fato, parece inegável que List tenha sido influenciado pelo debate em curso sobre as questões tarifárias naquele país. Não se pode inferir disso, todavia, que ele tenha elaborado suas teses centrais somente após o contato com economistas americanos, haja a vista que muitas de suas proposições de reformas administrativa e econômica já se encontram enunciadas em seus escritos anteriores a seu exílio (Hirst, 1909, p. 117; Chang, 2007a, p. 25-61; 2007b, p. 33; Oliveira, 2017, p. 195).
Por conseguinte, no que se segue, discutir-se-ão as ideias econômicas de List a partir de sua experiência na burocracia do Reino de Württemberg, ou seja, quando ainda vigorava a ocupação napoleônica, pois acredita-se que, nesse período, em contato direto com questões práticas de administração, finanças, comércio e tributação, List questionou-se acerca da validade universal dos postulados econômicos clássicos1. Ao tomar conhecimento do intrincado sistema alfandegário e outros problemas econômicos que obliteravam o desenvolvimento das forças produtivas alemães, List encontrou nisso os elementos constitutivos não apenas para sua crítica à escola inglesa, mas também para elaboração de sua original concepção de Economia Política. Ao percorrer esse caminho, buscase não apenas delinear o processo de formação de List, mas também oferecer interpretação alternativa para explicar a evolução de seu pensamento econômico.
O pressuposto fundamental que norteia este estudo baseia-se outrossim no fato de que nenhum texto fala com voz única, ou seja, nenhum autor extrai suas ideias de uma intuição pura a priori, anterior a qualquer experiência. Ao contrário, seus escritos respondem às grandes questões de seu tempo, o que impõe de um lado fazer um exame minucioso das particularidades teóricas da obra, e de outro buscar entendê-la à luz do contexto em que foi concebida. Para tanto, o procedimento metodológico aqui empregado respalda-se na pesquisa qualitativa de cunho documental, a qual se caracteriza pelo esforço de compreender materiais escritos como jornais, revistas, obras literárias e científicas, cartas etc., a partir do contexto histórico em que surgiu e do qual é parte, buscando-se com isso elaborar novas e/ou complementares interpretações para os fenômenos estudados, mediante a técnica de análise de seu conteúdo, de modo que se vislumbrem evidências que propiciem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção e recepção de suas mensagens. Nesse sentido, ao reconstituir as etapas de formação intelectual de List, salienta-se não apenas a influência dos eventos na formulação de suas teses, mas também como o autor alemão ressignificou as ideias, os conceitos e as representações como recurso cultural disponível em sua época (Godoy, 1995, p. 22-23; Blaug, 2001, p. 151-152).
Em 1776, veio à luz a primeira tradução alemã de A Riqueza das Nações, feita por J. F. Schiller, um alemão que viveu em Londres. De imediato, no entanto, pouco interesse despertou a obra de Smith entre os alemães2. Certamente, a lentidão no reconhecimento das ideias de Smith se deve à má qualidade da tradução de Schiller, o que explica a sua rápida difusão após a versão oferecida por Christian Garve, publicada em meados da década de 17903. A princípio, o texto de Smith foi encarado apenas como mais um dentre a vasta plêiade de obras de economistas ingleses, franceses e italianos traduzidas para o alemão4. Nesse respeito, vale salientar que a obra do escocês James Steuart (1712-1790), An Inquiry into the Principles of Political Economy (Investigação sobre os Princípios de Economia Política, 1767), foi de longe o tratado econômico mais citado durante as décadas de 1770 e 1780 nos territórios alemães, já que, pelo menos em parte, sua reflexão sobre a economia podia ser facilmente assimilada pela tradição cameralista5 (Tribe, 1988, 133-140; 2004, p. 25; Schumpeter, 2006, p. 476; Roscher, 1874, p. 598).
Conforme Wilhelm Roscher, entre 1776 e 1795, não houve real compreensão das ideias de Smith, pois, apesar dos esforços supracitados, as referências à sua obra eram de tal modo ambíguas que a obscureciam. De fato, o primeiro escritor alemão a dar expressão ao pensamento econômico smithiano foi Georg Sartorius (1765-1828), em um volume original intitulado Handbuch der Staatswirthschaft (Manual de Economia Política, 1796), obra voltada para suas aulas na Universidade de Göttingen (Tribe, 19885, p. 14; Roscher, 1874, p. 598). Seu Handbuch baseia-se inteiramente na obra de Smith, dividindo-se em duas seções, da qual a primeira, Die Elemente der Nationalen Wohlstand (Elementos da Prosperidade Nacional), trata das questões sobre a produtividade do trabalho e seus limites, a teoria do valor de troca e da renda, bem como aspectos do capital e da distribuição da riqueza (Roscher, 1874, p. 616; Sartorius, 1796, p. 2-3). Apesar da exposição quase mimética das ideias do economista escocês, Sartorius introduz apreciável acomodação entre o pensamento clássico e a tradição cameral alemã. Por causa disso, desde então, nota-se crescente referência à obra de Smith na literatura cameralística (Tribe, 2004, p. 27).
Seguindo semelhante lógica interpretativa, Johann Friedrich von Pfeiffer (1718-1787) merece reconhecimento tanto por sua imprescindível contribuição à disseminação do cameralismo, quanto por articular fecundas conexões entre esta ciência e a doutrina clássica. Na década de 1780, já sob a influência de Smith, Pfeiffer se ocupa do estudo atinente às estratégias de crescimento econômico. O resultado de sua diligente reflexão encontra-se em sua obra Die Manufacturen und Fabricken Deutschlands: nach ihrer heutigen Lage betrachtet und mit allgemeinen Vorschlagen zu ihren vorzuglichsten Verbesserung Mitteln begleitet (Manufaturas e fábricas na Alemanha, considerados segundo sua localização presente, juntamente com as propostas gerais que acompanham seu principal meio de melhoramento, 1780). Após tornar-se professor na Universidade de Mainz, Pfeiffer escreveu seus Grundsätze der Universal-Kameral-Wissenschaft (Princípios da Ciência Cameralista Universal, 1783), em que dedica espaço a uma exposição de A Riqueza das Nações, considerando a obra de célebre economista escocês uma variante estrangeira do cameralismo. No mesmo ano, Joseph von Sonnenfels (1732-1817), último expoente da tradição cameralista, na quinta edição do segundo volume dos seus Grundsätze der Polizey, Handlung und Finanz (Princípios da Polícia, Comércio e Finanças, 1765), acrescenta referências da obra de Smith em sua discussão sobre as manufaturas, salientando destas os benefícios da divisão do trabalho para as economias industriais.
Ainda nesse contexto de final do século XVIII, merece destaque o trabalho do Christian Jakob Kraus (1753-1807). Em sua extensa Staatswirthschaft (A Economia Política, 1808-1811), o autor apresenta críticas contundentes à concepção mercantilista de riqueza ainda em voga na época, a qual apregoava que, assim como na vida privada, uma nação é rica ou pobre consoante a quantidade de ouro e prata de que dispõe. Contra isso, Kraus recomenda urgente redução dos tributos de importação, ao destacar a inutilidade do entesouramento ocioso, ao mesmo tempo em que ressalta os benefícios advindo do livre comércio, tanto para a indústria nativa quanto para a estrangeira. Por outro lado, na mesma obra, ele faz eloquente apelo ao individualismo, defendendo a supressão drástica da intervenção do Estado na economia. Graças a ele, por volta do limiar do século XIX, os princípios da economia clássica foram amplamente difundidos, sobretudo nos Estados Alemães do norte, fazendose sentir sua influência nas políticas públicas de importantes estadistas prussianos como Heinrich F. von Stein, Karl A. Hardenberg e Theodor von Schön (Schumpeter, 2006, p. 476; Kraus, 1808, p. 6-10; Tribe, 1988, p. 146-147).
August Ferdinand Lueder (1760-1819), Professor de Filosofia na Universidade de Göttingen, fez outrossim incessante apelo em favor da obra de Smith em seu Über Nationalindustrie und Staatswirthschaft (Sobre a Indústria Nacional e a Economia Política, 1800-1802). Lueder divide sua exposição em dois volumes, de modo que, no primeiro, ele trata de questões estritamente econômicas como a divisão do trabalho, o valor de troca, a renda da terra, o capital e os mercados interno e externo. O segundo volume, o qual se ocupa dos princípios de economia política, trata especificamente das funções precípuas do Estado, da teoria do governo, a finalidade da constituição política, do sistema militar e de educação etc. Após exaustiva análise psicológica, apoiada nos ensaios de Hume e na antropologia de Kant, Lueder argumenta que o governo deve se encarregar de assegurar a moralidade, a felicidade e, principalmente, a segurança dos cidadãos. Em seguida, ele fornece exaltada defesa da liberdade em todas esferas da vida política e social, dando considerável destaque à esfera econômica. Na verdade, Lueder acreditava que a ingerência do Estado na circulação natural de mercadorias diminui a possibilidade de empregos. Medidas dessa natureza conspiram contra a nação, uma vez que aumentam o número de pessoas improdutivas (Lueder, 1802, p. 16-38; Roscher, 1874, p. 619).
Ainda no campo da filosofia, sem dúvida um grande intérprete do pensamento de Smith foi Georg Friedrich Hegel (1770-1831), o qual ensinou durante anos as obras de James Steuart e, principalmente, Adam Smith, durante sua docência na Universidade de Jena. Em Philosophie des Rechts (Filosofia do Direito, 1821), Hegel apresenta provas irrecorríveis de sua dívida para com esses pensadores, sobretudo no tocante à sua concepção de sociedade civil (Bürgerlichen Gesellschaft). Em Das System der Bedürfnisse (Sistema das Necessidades), por exemplo, Hegel adotou a ideia de que o desenvolvimento da economia de mercado favorece o crescimento da liberdade e, ao mesmo tempo, estreita os laços de dependência mútua entre os indivíduos. De Smith, o grande filósofo alemão converteu a “mão invisível” no princípio dialético que rege a sociedade. Além disso, é provável que Hegel tenha concebido a ideia de que o espírito (Geist) se imprime na natureza mediante o trabalho, a partir da concepção smithiana de que o trabalho constitui parte essencial da natureza humana. Por outro lado, a History of England de Hume serviu a Hegel como ponto de partida para compreender o surgimento do moderno Estado de Direito (Rechtsstaat) (Henderson; Davis, 1991, p. 142-143; Hegel, 1973 [1818/1819], p. 310; 1969 [1830], p. 406).
Outro protagonista no processo de difusão do pensamento clássico e, por conseguinte, defensor do cosmopolitismo econômico alemão foi Dietrich Hermann Hegewisch (1746-1812), o eminente historiador e Professor da Universidade de Kiel. Seus dois artigos intitulados Welche von den europäischen Nationen hat das Merkantilsystem zuerst vollständig in Ausübung gebracht? (Qual das nações européias levou a cabo o primeiro Sistema Mercantil ao exercício pleno?, 1792) e Über den wahren Grundsatz der Handelsgesetzgebung, und ueber die Vorbereitungsmittel, das Handelsverkehr unter allen Volker zum möglich höchsten Grade zu erweitern und zu beleben (Sobre o verdadeiro princípio da legislação comercial, e meio de preparação minucioso para expandir e vivificar o comércio entre todos povos ao mais alto grau possível, 1792), publicados no Berlinische Monatsschrift e, posteriormente, na Historische, Philosophische, und Literarische Schriften, em 1801, atacaram veemente toda e qualquer forma de ação estatal intervencionista.
Hegewish compara a prática mercantilista com a prosperidade advinda da economia política inglesa da época. Em seguida, argumenta que a doutrina do livre comércio é a forma mais rápida e profícua de promover o crescimento econômico dos Estados Alemães. Sem grandes pormenores, seu raciocínio partia do pressuposto de que se fossem abolidas todas as medidas protecionistas, outros Estados poderiam se beneficiar das vantagens recíprocas oferecidas pelo comércio internacional. Ademais, em seu modo de ver, a supressão das fronteiras nacionais permitiria a livre circulação não somente de mercadorias, mas, principalmente, de mão-de-obra. Nesse caso, os indivíduos desempregados em um país poderiam migrar para outro em busca de melhores condições de vida. Do mesmo modo, o comércio livre e universal levaria à situação em que cada país produziria os bens para os quais a natureza melhor lhes preparou, o que estimularia, por seu turno, o comércio entre todas as regiões do mundo, contribuindo sobremaneira para elevar o nível de vida de todos os seres humanos (Kleingeld, 1999, p. 519-520; Hegewisch, 1801, p. 152-153).
As turbulências causadas pela Revolução Francesa e, sobretudo, pelas guerras napoleônicas provocaram relativo declínio do ensino universitário alemão. A ocupação napoleônica, por sua vez, minou não apenas a estrutura social, política e econômica dos principados alemães, mas também implodiu o edifício do Cameralismo. Por conseguinte, no exato momento em que as Ciências Camerais tinham finalmente adquirido o estatuto de disciplina universitária, elas começaram a ser suplantadas por uma nova forma de raciocínio econômico. A partir de então, com a difusão da obra de Smith, o ensino da Economia em universidades alemãs tornou-se província de uma nova doutrina, a qual enfatizava a produtividade e as necessidades dos indivíduos como instâncias fundadoras da ordem econômica, ainda que em prejuízo da atividade do governo sobre as populações dos Estados territoriais. O Cameralismo, todavia, produziu um efeito de longo prazo, na medida em que fundou as bases de uma genuína concepção de Economia Nacional, a qual, como veremos a seguir, veio a ser examinada a fundo e discutida de forma abrangente por List, o qual, como burocrata, formou-se sob a égide do cameralismo. (Small, 2001 [1909], p. 167; Lindenfeld, 1997, p. 36-46; Tribe, 1988, 91-92).
List ingressou muito jovem à vida pública, primeiro como aprendiz em Blaubeuren, depois como assistente comissário de alfândega em Schelklingen, perto de Ulm6. Em outubro de 1813, List veio a ocupar um posto na burocracia de Tübingen. Em seguida, assumiu um cargo como substituto na Secretaria da Fazenda Real de Württemberg (Cameralamts-Substitut), servindo nas cidades vizinhas de Wiblingen e Ulm como assessor de finanças e contabilidade (Finanzrat und Rechnungsrat). Subsequentemente, List foi nomeado para o conselho governamental do Ministério do Interior de Württemberg7. Em 1816, List retorna à administração como contador, sendo, logo depois, promovido secretário do Ministério do departamento do governo local. No ano seguinte, o rei Wilhelm I incumbiu-o de realizar um inquérito para saber por que tantos súditos em Heilbronn, Neckarsulm e Weinsberg estavam prestes a emigrar para os Estados Unidos. A conclusão de List apontava como principal causa, além das agruras do ano precedente, a opressão pessoal do prefeito e seus funcionários, contra os quais uma série de casos foram citados como prova de arbitrariedade e despotismo8 (Wendler, 2013, p. 9; Henderson, 2006, p. 4; Hirst, 1909, p. 3).
Contrariado com esses fatos, List sugeriu ao rei fundar uma faculdade de economia política (Staatswirtschaft) na Universidade de Tübingen, na qual os futuros gestores públicos deveriam receber formação acadêmica como meio para suprimir práticas antiquadas, bem como levar adiante a industrialização do então estado agrícola de Württemberg. Após alguma hesitação, o rei aprovou o estabelecimento da faculdade de economia e negócios continuamente existente em uma universidade alemã. Devido ao seu notável entusiasmo e anseio por mudanças, List ganhou a confiança e os favores do Ministro da Cultura, Freiherr Karl August von Wangenheim, o qual almejava que os funcionários do Estado tivessem a oportunidade de instruírem-se da melhor maneira na arte da administração pública. Com esse objetivo, ele instituiu a cátedra de Administração e Política (Staatspraxis und Staatswissenschaft) na Universidade de Tübingen e nomeou List professor da recém fundada disciplina.
Ao tratar de questões como liberdade constitucional, reforma administrativa e supressão de direitos aduaneiros, no entanto, iniciou List verdadeiro embate com altos funcionários e principalmente latifundiários (Landesherren), que logo reagiram violentamente contra ele, situação que se tornou insuportável, sobretudo, após Wangenheim ser removido de seu cargo. Assim, perdeu List o apoio que tinha em um governo progressista e liberal, prejudicando especialmente sua atividade acadêmica em Tübingen (Häusser, 1850, p. 17-18). Desde então, suas aulas foram inspecionadas pela polícia secreta do Senado, a pedido do alto escalão do serviço público da Suábia, que há muito era objeto da incensante exprobação de List. Decerto, List mostrava-se demasiado enérgico para manterse distante das questões políticas externas à universidade. Ao mesmo tempo em que lecionava, ele escrevia copiosamente para diversos jornais, onde denunciava práticas antiquadas à administração pública e defendia reformas como governo representativo, responsabilidade ministerial e liberdade de imprensa9 (Häusser, 1850, p. 8-9; Hirst, 1909, p. 10; Daastøl, 2016, p. 87).
List defendia um acordo comercial englobando todos os Estados Alemães. Com esses pensamentos, ele tinha partido em viagem a Frankfurt am Main, durante a feira da Páscoa, onde se reunia grande número de comerciantes e fabricantes alemães e estrangeiros. Naturalmente, a questão aduaneira figurava entre as mais importantes a serem debatidas neste encontro (Häusser, 1850, p. 36-37). A esse respeito, as propostas de List convergiam com as ideias de homens de negócio como Herr Schnell de Nürnberg, Weber de Gera, Arnoldi de Gotha e outros, que apontavam as inúmeras barreiras alfandegárias como responsáveis de estrangular o comércio, além de tornar menos competitivo os manufaturados alemães, quando comparados com os produtos oriundos da Inglaterra e da França. Com o propósito de reverter isso, redigiu List uma petição e enviou ao parlamento, representando os anseios dos comerciantes e industriais alemães. Nesta ocasião, foi fundada a Associação Alemã da Indústria e Comércio, sendo nomeado List seu secretário10 (Häusser, 1850, p. 36-37; Hirst, 1909, p. 7; Levi-Faur, 2012, p. 156).
Desde então, esforçou-se List no sentido de demonstrar os benefícios da integração econômica para os Estados Alemães. Ele acreditava que alfândegas e pedágios, como a guerra, só podem ser justificados como defesa. Por outro lado, reconhece que quanto menor é o estado que cobra o pedágio, maior o dano resultante disso. Dito de outra forma, quanto mais se inibe a atividade doméstica de um povo, menor é a arrecadação. Como boa parte dos pequenos estados situam-se na fronteira, continua List, as tarifas internas que cortavam Alemanha eram muito mais prejudiciais para os alemães do que as aduanas estabelecidas nas regiões fronteiriças. Referindo-se aos inúmeros portos de alfândegas espalhados pela Alemanha, ressalta List que para ir de Hamburg à Áustria, ou de Berlim à Suíça, contavam-se dez aduanas e dez portagens, que além de dificultar o comércio, oneravam sobremodo o preço final das mercadorias. Em sua visão, somente por meio da abolição das linhas de pedágios e o estabelecimento de uma política aduaneira para toda a federação, o comércio e a indústria alemães poderiam promover, de fato, o bem-estar comum. List pugnava, pois, pela união das forças e interesses de todos os alemães com o propósito de se defenderem externamente, em vez de se tratarem reciprocamente como estrangeiros, o que não dificulta apenas o tráfego interno, mas também impede a Alemanha de competir com seus produtos no mercado mundial, paralisando a indústria ao separar o interior das cidades litorâneas (List, 1850 [1819], p. 16-19; Schumpeter, 1964, p. 150; Hirst, 1909, p. 9-11).
Uma vez alijado da burocracia, List vislumbrou possibilidade de concretizar seus anseios de reforma administrativa e integração econômica, ingressando na vida política como deputado. E assim aconteceu. Em 6 de julho de 1819, a cidade de Reutlingen o elegeu membro da Assembleia Legislativa de Württemberg, vindo a assumir suas funções no dia 7 de dezembro, não obstante todos os esforços no sentido de impedi-lo (Häusser, 1850, p. 27). Duas semanas empossado no cargo, List tomou parte no debate proposto pelo deputado Heinrich Kessler (1783-1842), em sua moção em favor da proibição da importação de artigos de luxo, responsável pela emissão anual de 2 milhões de florins para o exterior. Embora List e Kessler fossem amigos, aquele tomou a palavra contra este, alegando que se desconsiderava as condições gerais do comércio alemão. List alegava que se excluísse-se certos países do comércio de tecidos de seda, devia-se esperar como retalhação a imposição de restrições aos produtos de Württemberg, como era o caso não apenas da França, Inglaterra, Áustria e Itália, mas também os próprios Estados da Baviera e Prússia, que inviabilizavam o comércio elevando as tarifas alfandegárias11 (Hirst, 1909, 21).
List afirmava que o empobrecimento de uma nação (Volk) constitui uma das principais causas de sua degeneração física e moral, sendo, portanto, dever impostergável dos representantes do povo garantir que o comércio, a indústria e a agricultura floresçam. Na visão de List, a Câmara de Deputados deveria formar uma comissão permanente e ter como principal objetivo criar as condições propícias para progresso initerrupto das forças produtivas nacionais, isto é, desenvolver no cidadão seu potencial produtivo e sua responsabilidade para com o bem comum. Não obstante oportunas, suas ideias foram, todavia, desdenhadas como inaplicáveis. Suas considerações sobre a integração econômica, levadas à Dieta Federal por von Martens, um deputado de Hanover, por exemplo, foram recebidas como teoricamente desejáveis, mas difícil de se levar a termo na prática, já que configurava tarefa árdua e irrealizável unificar as aduanas e abolir as tarifas internas em um país formado por províncias independentes e autônomas (Hirst, 1909, p. 17).
Tão longo iniciou suas atividades como deputado, List apresentou três propostas, a saber, que (i) a Câmara deveria tomar medidas para apoiar a decadente indústria de Württemberg; (ii) o Comitê de Finanças deveria acomodar a carga tributária à situação geral do comércio alemão; e (iii) dever-se-ia, ademais, instituir orçamento anual. List passou as férias de Natal redigindo uma petição em que continha uma denúncia, embora um tanto excessiva, contra o regime existente em Württemberg, com algumas propostas inovadoras de reforma financeira, administrativa e judicial. A petição tinha acabado de ser escrita quando a casa de List foi invadida por policiais; os manuscritos foram apreendidos e o autor submetido a julgamento por sedição. Após ser submetido ao plenário da Câmara, foi decidido que List deveria ser afastado de suas funções políticas, desencadeando o processo por meio do qual foi preso e exilado nos Estados Unidos (Hirst, 1909, p. 22-23).
Nos Estados Unidos, graças à sua amizade com o Marquis de Lafaye, famoso “herói da liberdade” na luta pela independência americana, List conheceu os mais eminentes eruditos e políticos americanos da época, como John Quincy Adams, Henry Clay, Daniel Hamilton, Charles Irgensoll, Andrew Jackson, Ralph Waldo Emerson, entre outros12, Nesse ínterim, ficou inteiramente a par do fecundo debate envolvendo os adeptos da economia política clássica e os defensores do pensamento econômico que viria a ser posteriormente denominado Sistema Americano (The American System). Este baseava-se, sobretudo, no Report on Manufactures: Communicated to the House of Representatives (1791) de Alexander Halmiton, primeiro Secretário do Tesouro Americano (1789-1795), que defendia o uso de tarifas protecionistas temporariamente como forma não apenas de proteger as indústrias nascentes, mas também de criar um mercado interno e um banco nacional para garantir a estabilidade monetária13 (Daastøl, 2011, p. 56; Chang, 2007a, p. 25; 2007b, p. 33-34; Hughes, 1990, p. 154).
Como exposto acima, desde a docência em Tübingen, List escrevia copiosamente para diversos jornais, tratando não apenas de temas relacionados à reforma administrativa, mas também, contrariando o pensamento predominante à época, colocava em dúvida a validade universal do laisser-faire, defendendo uma política econômica nacional (Schumpeter, 1964, p. 150; Levi-Faur, 2012, p. 156). Atendendo ao pedido de Charles Jared Ingersoll (Earle, 1943, p. 431), vice-presidente da “Sociedade de Pensilvânia para a Promoção das Manufaturas e Artes Mecânicas” (Pennsylvania Society for the Promotion of Manufactures and Mechanic Arts), List submeteu seus escritos sobre Economia Política ao National Gazette, os quais foram divulgados na forma de doze cartas entre agosto e novembro de 1827, e posteriormente publicados sob o título de Outlines of American Political Economy, obra em que o autor alemão rejeitou as conclusões de Adam Smith e seus seguidores sobre a liberdade de comércio, expondo seu descontentamento para com o que denomina Economia Cosmopolítica14.
List apregoa que a escola smithiana profere uma teoria econômica ingênua e de natureza essencialmente cosmopolítica, centrada na relação dual entre a economia privada de transações individuais e a economia global como um todo. Seu cosmopolitismo baseado na idéia de “república comercial em perpétuo estado de paz” negligenciou, contudo, o fato histórico de que os seres humanos sempre foram organizados em políticas restritivas que impunham um “interesse intermediário entre os do individualismo e de toda a humanidade” (List, [1827] 1909, p. 129). Segundo List, François Quesnay (1694-1774), “[...] do qual se originou a ideia do comércio livre e universal, foi o primeiro a estender suas investigações à humanidade inteira, sem levar em consideração a idéia de nação” (List, 1983 [1841], p. 89). Na verdade, continua List, em sua Physiocratie, ou Constitution Naturelle du Gouvernment le plus Avantageux au Genre Humain (Fisiocracia ou Constituição Natural do Governo mais Vantajoso para a Humanidade, 1767), encontra-se enunciada pela primeira vez a ideia de que os comerciantes de todo o mundo formam uma única república comercial em perpétuo estado de paz15 (List, 1983 [1837], p. 21). List identificava nesse pressuposto, contudo, a existência de uma pseudociência que se propõe a ensinar como a humanidade inteira pode atingir a prosperidade, ignorando o fato de que o mundo encontra-se fracionado em diferentes nações. Ao discorrer sobre o progresso social, Quesnay alerta:
Existe, portanto, uma ordem natural, essencial e geral, que contém as leis constitutivas e fundamentais de todas as sociedades; uma ordem da qual as sociedades não podem se apartar sem deixarem de ser sociedades, sem que o estado político perca consistência, sem que os seus membros se sintam mais ou menos desunidos e sujeitos a uma situação violenta. Uma ordem que não se pode abandonar inteiramente sem operar a dissolução da sociedade e, logo, a destruição absoluta da espécie humana16 (Quesnay, Tome III, 1768, p. 8; destaque no original).
List afirmava, ademais, que embora a doutrina do livre comércio tenha sido prenunciada por Quesnay, foi Adam Smith quem lhe deu a forma de uma ciência. De fato, Smith argumenta que a supressão de todos os obstáculos que obliteram o fluxo natural das atividades econômicas acarretaria significativo aumento da prosperidade nacional. Em outros termos, a riqueza de um país decorre do esforço natural de cada ser humano para melhorar sua própria condição de vida. Quando este esforço inato está autorizado a exercer-se com liberdade e segurança, “o indivíduo se torna, por si só, apto a conduzir a sociedade à riqueza e à prosperidade, sendo até mesmo capaz de, sem qualquer assistência, superar uma centena de obstruções impertinentes, com as quais a estupidez das leis humanas com tanta frequência inibem suas operações”17 (Smith, 1983 [1776], v. I, p. 379-380). Em palavras mais claras, o autor de A Riqueza das Nações (1776) considerava que, se um governo deseja aumentar o bem-estar dos cidadãos, tem apenas de liberar a produção e o comércio exterior de todas as restrições.
É evidente que cada indivíduo, na situação local em que se encontra tem muito melhores condições do que qualquer estadista ou legislador de julgar por si mesmo qual o tipo de atividade nacional no qual pode empregar seu capital, e cujo produto tenha probabilidade de alcançar o valor máximo. O estadista que tentasse orientar pessoas particulares sobre como devem empregar seu capital não somente se sobrecarregaria com uma preocupação altamente desnecessária, mas também assumiria uma autoridade que seguramente não pode ser confiada nem a uma pessoa individual nem mesmo a alguma assembléia ou conselho, e que em lugar algum seria tão perigosa como nas mãos de uma pessoa com insensatez e presunção suficientes para imaginar-se capaz de exercer tal autoridade (Smith, 1983 [1776], v. I, p. 380).
List contesta, entretanto, a ideia de que os indivíduos, na promoção dos seus interesses, beneficiam toda a nação. Para ele, o princípio do livre comércio beneficiaria a todos se e somente se o interesse dos indivíduos e o interesse nacional nunca estivessem em oposição. Ele ainda afirma que o grande erro dos economistas liberais clássicos localiza-se no fato de terem tratado somente dos efeitos das trocas materiais. Por conseguinte, como esses teóricos confundiram princípios cosmopolíticos com princípios políticos, não lograram apreender por inteiro o objeto da Economia Política, que, em seu entendimento, não consiste propriamente em trocar matéria por matéria, como acontece na economia individual e cosmopolítica, particularmente nos negócios de um comerciante, mas sim em aumentar as forças produtivas da nação (List, 1909 [1827], p. 187-213).
List divide, assim, a Economia Política em economia do indivíduo, economia da nação e economia da humanidade. A “teoria popular”, como List denominou a economia política inglesa, ignorava a existência de diferentes nações, focalizando a raça humana como um todo, por um lado, e indivíduos isolados, de outro. Em sua visão, Quesnay e, subsequentemente, Smith e seus seguidores trataram especificamente da primeira e da última. Não levando em consideração os diferentes estágios de desenvolvimento em se encontram as diversas nações, suas constituições políticas e culturais, os adeptos do que List denomina escola cosmopolítica, sejam eles ingleses, franceses, americanos ou alemães, ocupam-se apenas de investigar como a economia dos indivíduos e da humanidade se comportariam se a espécie humana não fosse separada em nações, mas unidas por uma única lei e cultura universais. Em A Riqueza das Nações, prossegue List, ensina-se como a economia do indivíduo é criada, aumentada e consumida na forma de riqueza social, e como a indústria e a riqueza da humanidade influenciam a indústria e a riqueza do indivíduo. Nesse sentido, enquanto o objeto da economia individual é obter os meios para uma vida opulenta, o objeto da economia cosmopolítica é assegurar a toda a raça humana a maior quantidade de bens necessários ao conforto da vida (List, 1909 [1827], p. 155-159; Szporluk, 1988, p. 116).
Em seu Système Naturel D’Économie Politique, List afirma que escola clássica tem por objeto apenas a economia dos indivíduos, tendo em vista uma república universal, que abrange todos os membros da raça humana. Essa doutrina omite, todavia, um estágio intermediário entre o indivíduo e o mundo inteiro, a saber, a nação, à qual seus membros estão unidos pelos laços do patriotismo (List, 1989 [1837], p. 28). Em Das Nationale System der Politischen Oekonomie, obra em que aprofunda e aprimora argumentos apresentados nos Outlines e no Sistema Natural, List ressalta que no momento a raça humana está ainda separada em nacionalidades distintas, sendo cada uma delas mantida coesa por poderes comuns, sendo diferente de outras sociedades da mesma espécie, as quais, no exercício de sua liberdade natural, se opõem entre si. Desse modo, List acusa Smith, Say, Thomas Cooper e outros de terem criado uma doutrina que é obviamente de natureza cosmopolítica, ao preconizar liberdade absoluta, desconsiderando os interesses específicos de nações individuais (List, 1983 [1841], p. 97-99).
Nota-se que List até reconhece as vantagens gerais inerentes ao livre comércio, mas prefere limitar seu impacto a países com grau semelhante de desenvolvimento. Decerto, ele infere os benefícios do comércio irrestrito, ao considerar a experiência bem sucedida de sua introdução entre os vinte quatro estados que compunham os Estados Unidos da América à época. Em se tratando de Estados-nações independentes, ele acreditava, no entanto, que o livre comércio, tal como apregoado pela ortodoxia clássica, compreende o último estágio de desenvolvimento da humanidade (Wendler, 2013, p. 224, LIST, 1983 [1841], p. 100). Smith e seus seguidores, cometeram, assim, o grave erro de considerar como dado um estado de coisas que ainda se encontra por vir. Ao conferir abrangência universal à sua doutrina do livre comércio, eles arrogam para si terem encontrado o caminho por meio do qual todas as nações poderiam alcançar riqueza e prosperidade. No entanto, continua List, se o livre comércio fosse implantado nas condições vigentes do mundo, o resultado disso não seria uma república universal, mas, ao contrário, uma sujeição total de todas as nações menos adiantadas à supremacia da potência industrial, comercial e naval dominante. Em outras palavras, se o livre comércio viesse a ser plenamente instituído em sua época, a Inglaterra, devido ao seu estágio superior de desenvolvimento, tornar-se-ia uma cidade industrial de proporções imensuráveis18 (List, 1983 [1841], p. 89, Szporluk, 1988, p. 119). Nesse caso, adverte List:
A Ásia, a África e a Austrália seriam civilizadas pela Inglaterra, sendo cobertas por novos Estados conforme ao padrão inglês. Formar-se-ia um mundo de Estados ingleses, sob a presidência do Estado mãe, sendo que, neste mundo de Estados, as nações do continente europeu se perderiam como raças sem importância e improdutivas. Neste arranjo, caberia à França, à Espanha e a Portugal fornecer a este mundo inglês os vinhos mais selecionados, ficando para eles os vinhos de má qualidade; no máximo a França poderia conservar uma pequena indústria de modas. A Alemanha dificilmente caberia outra função senão fornecer a este mundo inglês brinquedos de crianças, relógios de madeira, escritos sobre filologia, e vez por outra, também um destacamento militar, disposto a sacrificar-se nos desertos da Ásia e da África, empenhando-se em difundir a supremacia comercial e industrial, a literatura e a língua da Inglaterra (List, 1983 [1841], p. 95-96).
Baseando-se na experiência histórica, List chega então à conclusão de que uma união entre as nações da terra, reconhecendo todas elas as mesmas condições de direito entre si e renunciando aos seus próprios interesses, somente poderia ser realizada se a maioria destas nações tivesse atingido grau equivalente de indústria e civilização, assim como de cultura política e poder. Apenas sob tais circunstâncias essa união poderia desenvolver o livre comércio e proporcionar as mesmas vantagens auferidas pelas províncias e Estados já politicamente unidos. Ele acreditava que um dia a liberdade de comércio se tornaria uma realidade. Mas, antes que isso aconteça – ou melhor, para que aconteça –, as nações menos avançadas devem primeiro ser elevadas por medidas artificiais ao estágio de cultivo ao qual a nação inglesa foi elevada (Szporluk, 1988, p. 119).
A liberdade do comércio e a paz perpétua são, ao que nos parece, dois princípios que repousam sobre a mesma base e estão intimamente ligados; eles não serão possíveis a menos que a civilização, a condição política e a indústria das nações se encontrem de tal modo avançadas, e sejam de tal modo similares que sua união possa ser útil a cada uma delas, da forma como atualmente ocorre entre os vinte e quatro estados da América do Norte e que a todos eles é vantajosa19 (List, 1831, p. 38).
As guerras religiosas e dinásticas que se sucederam ao longo dos séculos XVII e XVIII não apenas desencadearam o processo de fragmentação política do Sacro Império Germânico, mas também tornaram imprescindíveis a reorganização de todo um aparato administrativo. Nesse sentido, o Cameralismo resulta de um esforço intelectual levado a termo por altos funcionários, consultores administrativos e professores universitários para conhecer, instrumentalizar, enriquecer e fortalecer o Estado, definindo-se como um tipo específico de reflexão econômica e, ao mesmo tempo, um programa de ação prática que articulava economia, política e administração pública, com vistas a gerir homens e recursos limitados, estimulando, assim, a emulação, a indústria e a proliferação de conhecimento útil20 (Small, 2001 [1909], p. 3; Schumpeter, 2006, p. 142-155; Guerrero, 1985, p. 16).
À época, os homens incumbidos de elaborar uma teoria da gestão pública tiveram efetivamente que responder à seguinte questão: que programa deve um governo sábio adotar a fim de ser suficientemente abastecido com dinheiro e, assim, ser capaz de cumprir os deveres do Estado em suas várias ordens de importância? A esse respeito, Veit Ludwig von Seckendorff (1626-1692) apregoava que a única maneira de garantir o financiamento adequado da máquina do Estado é conjugar os interesses do governo com os anseios dos indivíduos. Para isso, é premente desenvolver a capacidade produtiva destes para que a nação escape à dependência externa21 (Small, 2001 [1909], p. 21-22; Schumpeter, 2006, p. 164).
Para Johann H. G. von Justi (1717-1771), outro expoente do Cameralismo, assim como a Economia ocupa-se de ensinar como os meios de vida das pessoas podem ser preservados, incrementados e razoavelmente aplicados, assim também sucederia com as Ciências do Governo (Regierungswissenschaften), relativamente aos bens do Estado. Outrossim, Justi, tal como Seckendorff antes dele, analisa os problemas econômicos tendo em vista um governo que aceita as responsabilidades inerentes ao melhoramento das condições de vida e aperfeiçoamento moral dos súditos, obrigando-se não apenas a criar empregos e prover meios de subsistência para todos, mas também a aprimorar os métodos e organização da produção para um fornecimento suficiente e satisfatório de matérias-primas e manufaturados (Justi, 1755, p. 4-22).
Joseph von Sonnenfels (1733-1817), por seu turno, sustenta a tese de que os objetivos primordiais do Estado podem ser divididos em quatro temas correlacionados, a saber, (i) a proteção externa; (ii) a segurança interna; (iii) a diversificação de ocupações produtivas e (iv) o incremento da renda. Essas quatro áreas compõem o conteúdo da Ciência do Estado (Staatswissenschaft) e, ao mesmo tempo, as linhas de especialização das quatro ciências especiais que formam a Ciência Política ou arte do governo, compreendendo a Ciência da Polícia, a Ciência do Comércio e a Ciência das Finanças. O objetivo da política econômica seria prevenir a diminuição da oferta de bens por meio da regulação proficiente dos mercados e do comércio. A esse respeito, cumpre frisar que a importância da obra de Sonnenfels manteve-se unânime não apenas dentro do Império Austro-Húngaro, mas também exerceu considerável influência, sobretudo, nos Estados Alemães do Sul (Sonnenfels, 1770, p. 29-30; Guerrero, 1985, p. 17; 1986, p. 144).
Durante sua docência em Tübingen, List escreveu seu Gutachten über die Errichtung einer Staatswirthschaftlichen Fakultät (Parecer sobre o estabelecimento de uma Faculdade de Economia Política, 1817), em que sugeria ser imperativo fundar as bases de uma nova Ciência do Estado, pois em seu ponto de vista esta disciplina, sobretudo no tocante à Ciência da Policia (Polizeiwissenschaft) e das Finanças (Finanzwissenschaft), havia sido construída sobre alicerces inconsistentes, já que se baseava, em grande medida, na experiência prática dos homens de ofício, de sorte que o processo constituía a base de toda formação burocrática e toda mudança era recebida com desconfiança e como algo perigoso22. List se queixava de que, com exceção da jurisprudência, não se aprendia na universidade nada que tenha algo a ver com administração do Estado; “[...] todas as disciplinas da administração pública só podiam ser aprendidas nos escritórios e chancelarias. [...] Não havia entre nós conceito de economia nacional. Ninguém ensinava a filosofia da agricultura, silvicultura, mineração, indústria e comércio”23 (List, 1850 [1817], p. 2).
Grosso modo, em seu plano de curso, List destaca duas disciplinas essenciais, uma voltada à aprendizagem dos fundamentos do Estado (Staatsgelehrtheit) e a outra dedicada a ocupar-se da instrução atinente à Ciência do Direito (Rechtsgelehrtheit). Nesse respeito, a primeira disciplina subdivide-se, inter alia, em (i) História do Estado e Estatística (Staatsgeschichte und Statistik); Filosofia do Estado de Direito ou Ciência do Estado (Philosophisches Staatsrecht oder Staatswissenschaft); Jurisprudência e Administração (Gesetzkunde und Verwaltung); Teoria da Administração Pública (Staatsregierungslehre) e Estado de Policia (Staatspolizei), ao passo que a segunda trata especificamente da Filosofia do Direito (Rechtsphilosophie); História do Direito e o Espírito da Legislação (Rechtsgeschichte und Geist der Rechtsgesetzgebung); Prática Jurídica (Rechtspraxis) etc. (List, 1850 [1817], p. 6). É importante frisar que, dentre as Ciências do Estado (Staatswissenschaften), List concede especial atenção ao que denomina de ciências especiais:
Terra, indústria e comércio são o alimento do Estado. Não se pode, é claro, formar na universidade um agricultor, nem ensinar artesãos ou comerciantes. Mas existe uma filosofia universalmente válida dessas ciências, que o estadista deve reconhecer se não quiser colocar em risco a vida do Estado em suas operações24 (List, 1850 [1817], p. 8).
Além disso, List ainda propõe neste ensaio um primeiro esboço de sistematização das ciências econômicas em que a Nationalökonomie (Economia Nacional) e a Privatökonomie (Economia Privada ou Individual) são apresentadas como disciplinas auxiliares. Um segundo esquema encontrase em sua Enzyklopädie der Staatswissenschaften (Enciclopédia das Ciências Políticas, 1823).25 Neste manuscrito, List concebe a Economia Nacional como teoria das leis naturais de produção, distribuição e consumo de bens oriundos do comércio, indústria e agricultura (List, 1823, p. 440-441). Trata-se, pois, da doutrina que ensina em que medida a influência do poder estatal pode ser benéfica ou prejudicial ao bem-estar econômico dos indivíduos, dos Estados e da humanidade, argumento que será retomado nos Outlines (1827) e, subsequentemente, no Sistema Natural (1837). No Sistema Nacional de Economia Política e em outros escritos sobre a constituição das disciplinas econômicas, List apresenta uma concepção sistemática da economia ao dividi-la em: (i) Gesellschaftsökonomie (Économie Sociale, conforme a nomeclatura já empregada no Sistème Naturel), a qual abrange a Economia da Humanidade ou Cosmopolítica (Weltökonomie oder Ökonomie des gesamten menschlichen Geschlechts); Economia Política ou Nacional (Nationalökonomie oder Volkswirtschaftslehre); Economia Financiária Estatal (Staatsökonomie, Staatsfinanzwirtschaft, Finanzwissenschaft); e por fim (ii) Privatökonomie (Economia Privada ou do Indivíduo) (List, 1983 [1841], p. 90; Wendler, 1977, p. 110-113).
Diferentemente da Economia Cosmopolítica, que tem como objeto o interesse da sociedade humana inteira, a Economia Nacional “ensina de que maneira determinada nação, na atual situação do mundo e nas suas próprias relações nacionais específicas, pode manter e melhorar suas condições econômicas” (List, 1983 [1841], p. 91). De acordo com List, ao afastar a política da economia, os pensadores de corte smithiano estavam em total desacordo com o que, de fato, consistiria a verdadeira Economia Política, isto é, “a ciência que limita seu ensinamento a investigar como determinada nação pode obter, nas condições vigentes do mundo, a prosperidade, a civilização e o poder, por meio da agricultura, da indústria e do comércio” (List, 1983 [1841], p. 89).
Por outro lado, List nota que as nações são tão diferentes em sua condição quanto o são os indivíduos. Uns são enormes, outros anões; uns são jovens, outros são velhos. Alguns são supersticiosos, aborrecidos, indolentes, sem instrução e bárbaros; outros são iluminados, ativos e empreendedores. Do mesmo modo, algumas nações são predominantes sobre outras. Umas são independentes, ao passo que outras vivem mais ou menos em um estado de dependência (List, 1909 [1827], p. 164-165). Ademais, algumas nações são dotadas de abundantes recursos naturais, enquanto outras são totalmente desprovidas desta parte da riqueza nacional. Muitas nações sustentam-se por meio de um frágil setor agrário; outras dispõem de indústrias e atividades comerciais; enquanto só algumas conseguiram estabelecer admirável equilíbrio entre todos os setores da atividade econômica. Por conseguinte, List define a Economia Política ou Nacional como a ciência que prescreve normas às quais cada nação individual tem que obedecer a fim de progredir em suas condições econômicas.
Nos Outlines, List assevera que a Economia Nacional ensina de que maneira uma determinada nação, em sua situação particular, pode dirigir e regular a economia da humanidade, seja para impedir restrições estrangeiras, seja para aumentar-lhes os poderes produtivos; ou, em outros termos, como criar um mundo em si mesmo, a fim de crescer em poder e riqueza para ser uma nação mais poderosa, rica e bem sucedida, sem delimitar, todavia, a economia dos indivíduos e a economia da humanidade mais do que o bem-estar dos povos permite. A ideia de Economia Nacional originase, portanto, do próprio conceito de nação, entendida como uma comunidade de indivíduos que possui governo, leis, instituições, interesses e história comuns, constituindo um só corpo livre e independente que segue apenas os seus ditames, sendo dotada de prerrogativas para tomar parte em certos interesses dos indivíduos, até mesmo para proporcionar-lhes segurança política em relação a outras nações. Nesse sentido, o objeto da economia desse corpo não deve ser apenas a riqueza como um fim em si mesmo, mas principalmente o poder, pois a riqueza nacional é aumentada e assegurada pelo poderio da nação, na mesma proporção que o poderio nacional é aumentado e assegurado pela riqueza nacional (List, 1909, p. 162).
Aliás, para o economista alemão, inteligência, moralidade, industriosidade, parcimônia, espírito de invenção e empreendimento dos cidadãos constituem os fundamentos da economia nacional, enquanto que liberdade civil, instituições ilibadas, probidade administrativa, leis públicas e política externa proficiente é sua condição necessária. Uma questão fundamental que emana disso, todavia, resume-se em saber de onde extraiu List a substância para elaboração de sua concepção de economia política ou nacional. Três hipóteses aqui se salientam: (i) List pode ter concebido isso a partir da própria tradição cameralista alemã; (ii) de suas considerações sobre a história das políticas econômicas e comerciais dos Estados Europeus e dos Estados Unidos da América; ou (iii) de sua experiência na América, já que como ele mesmo afirma, após visitar os Estados Unidos, colocara de lado os livros, pois estes tenderiam a desviá-lo do caminho certo26.
Comumente, diz-se que List somente auferiu, de fato, maior compreensão dos fenômenos econômicos durante sua permanência nos Estados Unidos. Estes comentadores desconsideram, contudo, os eventos relacionados à sua experiência prática na burocracia de Württemberg, seu período de docência em Tübingen, bem como sua atividade como secretário na Associação Alemã da Indústria e Comércio. O próprio List salienta isso em sua primeira carta ao National Gazette, ao declarar que suas reflexões sobre a Economia Política decorrem não apenas de muitos anos de árduo estudo para formulação de um sistema nacional de economia para Alemanha, mas também de longo exercício prático como burocrata e conselheiro da Sociedade de Manufatores Alemães (List, 1909 [1827], p. 158). Por outro lado, é provável que List tenha extraído das lições da História, já enuncia em seus Aufsätze in Sache des Handelsverein (Ensaios em matéria de união comercial, 1819), os elementos nacionais da prosperidade e do bem-estar, já que, como ele mesmo afirma, historicamente as forças produtivas e, consequentemente, a riqueza dos indivíduos, aumentam em proporção à liberdade e perfeição das instituições políticas e sociais, ao passo que estas, por sua vez, se aprimoram à medida em que se aumentam a riqueza material e as forças produtivas dos indivíduos.
O artigo evidenciou alguns dos problemas econômicos inerentes à configuração política dos Estados Alemães a fim de explicitar os elementos constitutivos da crítica de List às ideias de Adam Smith e seus seguidores. Para tanto, detalhou-se o processo de divulgação de A Riqueza das Nações nos domínios alemães. Constatou-se que a ortodoxia liberal clássica logrou maior receptividade principalmente entre os Estados Alemães do norte, isto é, onde a presença da coroa inglesa era significativa, bem como nas cidades hanseáticas, em que, devido à sua tradição comercial, pugnavase por menor intervenção do Estado na economia. Por outro lado, não se verifica o mesmo nível de penetração e assimilação da doutrina clássica nos domínios situados no Sul. Não obstante se reconheça a necessidade de um estudo empírico sistemático sobre esse assunto, pode-se afirmar com segurança que o Cameralismo, sobretudo, nos pequenos Estados do Sul da Alemanha, assentou, a longo prazo, as bases de uma concepção de economia política ou nacional, a qual, posteriormente, veio a ser examinada em profundidade e discutida extensamente por List, que percebeu a necessidade de uma reformulação da Nationalökonomie em consonância com sua preocupação relativa ao ensino universitário da Ciência do Estado, o que mostra o quanto seu pensamento, durante a docência em Tübingen, exprime certa continuidade da tradição cameralista.
A formação prática de List na burocracia de Württemberg, bem como sua atuação em favor da reforma administrativa e da integração econômica dos Estados Alemães, durante o período de docência em Tübingen e como secretário da Associação Alemã da Indústria e Comércio, foram ressaltadas para contestar a idea de que List desenvolveu suas principais teses econômicas somente quando do contato com o American System. Como exposto acima, List escrevia copiosamente para diversos jornais e revistas tratando de temas relacionados à Ciência do Estado, política aduaneira e integração econômica. Decerto, muitos dos argumentos de natureza histórica desenvolvidos por List, além de sua crítica à ortodoxia liberal clássica, já se encontram enunciados, por exemplo, nos Aufsätze in Sache des Handelsverein (Ensaios em matéria de associação comercial, 1820). Na verdade, é mais apropriado dizer que nos Estados Unidos ele tenha refinado seu instrumental analítico e reforçado suas convicções acerca das inconsistências das ideias de Adam Smith, percepção que decerto se verifica nos Outlines, mas que foi se esmerilhando nos escritos subsequentes do autor alemão.