Artigos originais
A gênese do neoliberalismo no Brasil: uma análise dos ajustes da SEST*
The genesis of neoliberalism in Brazil: an analysis of SEST adjustments
A gênese do neoliberalismo no Brasil: uma análise dos ajustes da SEST*
Economia e Sociedade, vol. 31, núm. 3, pp. 553-578, 2022
Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas; Publicações
Recepção: 21 Fevereiro 2019
Aprovação: 23 Maio 2022
Resumo: O artigo discute o início do neoliberalismo no Brasil a partir dos ajustes promovidos sobre as empresas estatais do país pela Secretaria de Controle das Empresas Estatais (SEST) no começo dos anos 1980. As políticas da SEST promoveram o neoliberalismo no Brasil antes mesmo dos ajustes propostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) a partir de 1983 e muito anteriormente às propostas do Consenso de Washington e à política econômica implementada a partir dos anos 1990, como costuma ser datado pela literatura econômica o marco do neoliberalismo no país.
Palavras-chave: Empresas multinacionais, SEST, Neoliberalismo.
Abstract:
This article discusses the beginning of neoliberalism in Brazil during the 1980s,
considering the politics introduced by the Secretariat of Control of the Public
Companies (SEST) into state companies. SEST’s politics promoted neoliberalism in
Brazil even before the proposals made by the IMF in 1983 and came before the
Washington Consensus proposals that were implemented by the government during
the 1990s, which is understood as the beginning of neoliberalism in Brazil.
JEL O10, H23, H63, H83.
Keywords: Multinational companies, SEST, Neoliberalism.
Introdução
Esta pesquisa contribui para discutir algumas transformações importantes envolvendo as estatais brasileiras que permitem um debate sobre o início do neoliberalismo no Brasil anteriormente à data que se convencionou como este marco na literatura econômica, ou seja, o ano de 1989 e a década de 1990, a partir da implementação das políticas econômicas do presidente Fernando Collor de Mello. A análise presente neste artigo leva a uma aproximação temporal do início do neoliberalismo no Brasil – começo dos anos 1980 - com o de outras experiências neoliberais da América Latina, como a do Chile, de 1973.
Parte-se da hipótese de que o enquadramento sofrido pelas empresas estatais a partir da atuação da Secretaria de Controle sobre as Empresas Estatais (SEST) mostra o começo do neoliberalismo no país, pela maneira como essas empresas foram instrumentalizadas por meio da política macroeconômica. Nesse sentido, o neoliberalismo no Brasil não seria tardio, uma vez que este se deu antes do Consenso de Washington, datado de novembro de 1989.
Para alcançar seu objetivo, analisam-se, além de autores importantes para se entender a realidade brasileira e a mudança no padrão de acumulação capitalista, fontes primárias, como os relatórios da SEST.
A fim de dar conta da sua hipótese, esse artigo recorre ao importante período dos anos 1970, quando mundialmente há a crise estrutural do capital e no Brasil, especificamente, se inicia o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), o que resultou, nos anos 1980, na crise da dívida externa, por conta, sobretudo, do padrão de financiamento do II PND. É durante a década de 1980 que o governo utiliza a SEST e as empresas estatais como mecanismos de uma política econômica que, desde então, deve ser entendida como neoliberal. Além dessa introdução e das considerações finais, o artigo está dividido da seguinte forma: i) transnacionalização e o fim do espaço nacional de acumulação; ii) financiamento do II PND e crise da dívida externa; e iii) a criação da SEST e os ajustes sobre as empresas estatais.
1 Transnacionalização e o fim do espaço nacional de acumulação
Na transição para os anos 1970, o capitalismo passou por uma crise estrutural1, depois de um período de forte acumulação, como foram “os anos dourados”2 após a Segunda Guerra Mundial. Diante da crise das políticas keynesianas do pós-guerra, que desencadeou um período de estagnação econômica com inflação, houve uma redução dos lucros nos investimentos produtivos3 especialmente nos países centrais. Com isso, iniciou-se um processo de reestruturação das empresas multinacionais que se direcionaram para a financeirização e para novos espaços de acumulação.
As mudanças na estratégia de atuação das empresas multinacionais fizeram parte da política dos Estados Unidos para restabelecerem seu poder imperialista, em ascensão no imediato pós-guerra, contestado após o fim dos acordos de Bretton Woods em 19714, e retomado no fim dos anos 19705. Este período entre meados dos anos 1960 e a década de 1970, que constituiu a transição para a internacionalização financeira6, se diferenciava da fase anterior denominada “internacionalização produtiva”7, baseada na acumulação fordista.
A acumulação a partir de então passava principalmente “pelas novas formas de centralização de gigantescos capitais financeiros (os fundos mútuos e fundos de pensão), cuja função [era] frutificar principalmente no interior da esfera financeira” (Chesnais, 1996, p. 15). Como a acumulação não encontrava um retorno à taxa média de lucro esperada no setor produtivo, houve o recrudescimento do capital financeiro. Este contrarrestava a diminuição da taxa de lucro na esfera produtiva com recursos expressivos destinados à “acumulação financeira”8. A expansão do Euromercado9 oferecia ao capital internacional possibilidades sem precedentes de valorização financeira10 (Chesnais, 1996).
Com as mudanças no novo padrão de acumulação, entendido também como financeirização, as empresas multinacionais passaram a enviar seus recursos sobretudo para investimentos financeiros nos países periféricos. Ocorria também uma inversão no fluxo de Investimentos Diretos Externos (IDEs), não mais estes tendo como destino prioritário os países subdesenvolvidos da América Latina, mas sim o Sudeste Asiático e a China.
O deslocamento gradativo das empresas multinacionais para novos locais de acumulação era estimulado por auxílios concedidos pela legislação tributária dos Estados Unidos11 a produtos importados e pelas facilidades estabelecidas pelos países hospedeiros aos investimentos norteamericanos12 (Furtado, 1992). Começou a ocorrer, de acordo com Chesnais (1996), um processo de deslocalização da produção, que favoreceu países com níveis de salário e de proteção social muito baixos. Isso potencializou elevados ganhos aos investidores e comprometeu os espaços econômicos nacionais (Sampaio Jr., 1999).
A deslocalização era uma forma de descentralização da empresa multinacional, que fragmentava sua produção pelo mundo. A partir da transnacionalização das empresas, “as relações externas, comerciais ou financeiras, [eram] vistas, de preferência, como operações internas da empresa” (Furtado, 1992, p. 32), e, portanto, tenderiam a comprometer os espaços nacionais de acumulação13. Conforme Furtado (1982, p. 121), “posto que essas empresas têm acesso ao mercado financeiro internacional e decidem da localização de seus investimentos – decisões muitas vezes tomadas a partir de holdings localizadas em países de conveniência –, a possibilidade que tem um governo de atuar sobre elas é necessariamente limitada”.
Dentro deste quadro, os governos não mais teriam como coordenar a ação desses agentes poderosos do capitalismo. Por isso, Furtado havia estabelecido o termo “pós-nacional”14 como forma de interpretação do sistema capitalista desde então. Nesse sentido, se tornara muito mais limitada a possibilidade de um desenvolvimento nacional, especialmente nos países periféricos.
O Brasil, onde o tamanho do mercado interno chegou a ser determinante no período da internacionalização produtiva para a instalação da empresa multinacional, deixou de ter neste mercado interno um referencial para o seu crescimento. Em lugar do fortalecimento das relações internas, as regiões se vinculavam mais ao exterior. “Se se instalam plataformas de exportação no Nordeste, no estilo das ‘maquiladoras’ mexicanas, a integração regional com o exterior se fará por vários meios, em detrimento da articulação em nível nacional” (Furtado, 1992, p. 32).
A possibilidade de haver desenvolvimento nacional no Brasil, deste modo, entrou em crise, uma vez que os meios (racionalidade instrumental) se sobrepuseram aos fins (racionalidade substantiva)15, inclusive negando-os. Os determinantes externos, expressos pela transnacionalização e pela financeirização, deixaram o Estado sem condições de mediar os fins aos meios, ou seja, a acumulação capitalista foi prioritariamente usada para atender os interesses privados dos capitalistas sem a possibilidade de se levar adiante um projeto de nação. Nesse sentido, por mais que pudesse haver desenvolvimento capitalista no Brasil, o mesmo não redundava em desenvolvimento nacional. Internamente, a articulação para que isso ocorresse se deu, principalmente, a partir do golpe civilmilitar (1964), com o apoio decisivo das burguesias brasileiras que comandavam o Estado16.
Como a transnacionalização do capital esteve relacionada não somente ao aparecimento das empresas transnacionais industriais, mas também das empresas transnacionais bancárias, houve a criação de uma nova forma de articulação com a economia brasileira, entendida como uma “nova dependência”17. Esta vinculou-se, principalmente, à crise da dívida externa18. Em grande medida, a crise do endividamento externo resultou da política econômica estabelecida no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), sobretudo por conta do seu padrão de financiamento19.
2 Financiamento do II PND e crise da dívida externa
O II PND20 foi encaminhado ao Congresso Nacional no dia 10 de setembro de 1974 pelo presidente da República do regime autoritário, Ernesto Geisel. No plano, Geisel destacava a crise internacional e as possibilidades e potencialidades de o Brasil suplantar a crise internacional e integrar o seleto grupo dos países desenvolvidos. O II PND propunha equacionar o parque produtivo brasileiro e entendia que alguns setores da economia haviam ficado “atrofiados”, como era o caso dos insumos básicos e dos bens de capitais, que formavam gargalos que necessitariam ser sanados.
A crise do petróleo de 1973, ao mesmo tempo que criava problemas para a balança comercial brasileira e para o balanço de pagamentos, dada a grande dependência do país desse insumo, possibilitava a obtenção dos recursos externos necessários para levar o II PND adiante – e consequentemente diminuir a dependência em relação ao petróleo –, na visão dos formuladores do plano. A reciclagem dos petrodólares, fruto dessa crise do petróleo, era vista como a principal fonte de recursos externos aos países subdesenvolvidos.
Na leitura do governo, o endividamento externo, também chamado pela equipe econômica de “hiato de recursos”21, configurava-se, portanto, como elemento central para o financiamento do II PND22. Sem os recursos externos, de acordo com o governo, o plano se tornaria frustrante, assim como a previsão de crescimento para a indústria na ordem de 12% ao ano no quinquênio. Para essa ampliação, reservava-se ao setor privado papel de destaque enquanto as empresas estatais atuariam para dar suporte à iniciativa privada em setores que não eram do interesse do capital privado, mas importantes para o seu desenvolvimento industrial. A orientação do plano era deixar com a iniciativa privada a função de investir e produzir, com rentabilidade adequada. “Só [haveria] projetos sob controle de empresas governamentais se, na prática, a iniciativa privada, claramente, [demonstrasse] que não [poderia], ou não [desejaria], realizá-los (por motivos ligados ao volume dos investimentos, à baixa rentabilidade direta dos projetos ou à tecnologia)” (II PND, 1974, p. 38).
As empresas estatais teriam um papel fundamental no quinquênio, mas com o propósito de gerar economias externas às empresas privadas. “Uma leitura com maior atenção do II PND constataria o trivial mantido implícito: a Estratégia proposta desdobrar-se-ia precipuamente a partir de um elenco de projetos diretamente formulados e implantados pelas empresas estatais” (Lessa, 1998, p. 106), que estimulariam e beneficiariam o setor privado.
Os novos projetos seriam realizados com recursos externos, mesmo diante do contexto internacional desfavorável já a partir de 197423. Além de ampliar o endividamento externo em meio a uma conjuntura internacional recessiva, o país sofreria outro revés, dado pela diminuição das exportações brasileiras e pela deterioração dos termos de intercâmbio. Entre 1974 e 1976, o saldo da balança comercial ficou negativo em US$ 10,5 bilhões, impactado principalmente pela crise do petróleo (o preço do barril em 1970 era de US$ 1,80 e em 1974 já alcançava a cifra de US$ 11,58). Nesse triênio, os gastos com juros sofreram uma elevação, chegando a US$ 4 bilhões, o que significava “em termos médios anuais um acréscimo de 300% em relação à média do quinquênio 1969-73” (Cruz, 1984, p. 21).
Esse quadro já ressaltava o processo que se gestava de aumento da taxa básica de juros internacionais e a elevação dos spreads bancários. Contudo, a partir do segundo semestre de 1976 o Euromercado voltava a se ampliar e a dívida externa brasileira iniciava um novo movimento de crescimento. Como exemplo, em 1972 o país demandou 8,5% de todos os empréstimos realizados por esse mercado ante 1,8% em 1970. Esse volume chegou a alcançar 11,2% em 1976, durante o II PND, mantendo uma posição de destaque na contratação desses recursos. Nos anos compreendidos entre 1977 e 1978 a dívida externa crescia “a uma taxa média de 30% a.a” (Cruz, 1984, p. 21).
No período 1977-1978, no entanto, a melhora das relações comerciais do Brasil e a valorização dos preços dos produtos primários, como o café e a soja, somadas às restrições às importações, resultaram em uma balança comercial relativamente equilibrada, cujo déficit alcançou 0,9 bilhão de dólares. O problema era que “somados os déficits das contas de mercadorias e de serviços produtivos, [chegava-se] a um déficit de 3,8 bilhões de dólares no biênio” (Cruz, 1984, p. 22). Em contrapartida, entraram no período a título de contratação líquida de capitais de empréstimos US$ 13,5 bilhões. Os juros líquidos da dívida externa alcançaram US$ 4,8 bilhões e as reservas internacionais chegaram a US$ 5,3 bilhões, ou seja, 36% e 40% respectivamente do total de contratação líquida de empréstimos no biênio (Cruz, 1984).
Esses números explicitavam “que o acréscimo da dívida ocorrido no período [tinha] pouco a ver com o financiamento do ‘hiato de recursos’. Ou, em outras palavras, [revelava-se] o caráter predominantemente financeiro da tomada de novos recursos externos” (Cruz, 1984, p. 22). O endividamento nessa época se deveu, de fato, a um “segundo movimento de ‘transbordamento’ do Euromercado de moeda e de uma política indutora de tomada de recursos externos” (Cruz, 1984, p. 23). Baer (1986, p. 95), complementando essa interpretação, chegou a destacar que “no período 1974-1978, o endividamento externo passou a guardar uma relação mais estreita com o desequilíbrio do balanço de pagamentos, tanto em sua dimensão produtiva como financeira”.
Nos anos de 1979 e 1980, a balança comercial brasileira voltou a ter déficit, acumulando um saldo negativo de US$ 5,7 bilhões, como resultado direto do segundo choque do petróleo, em 1979. O preço do barril passou de US$ 13,60 em 1978 para US$ 30,03 em 1979. Segundo Baer (1993), quando ocorreu o segundo choque do petróleo o Brasil importava 87% do que consumia deste recurso.
No biênio 1979-1980, houve também um aumento significativo da taxa de juros internacional, que levou a uma situação inédita para o Brasil: o aumento da dívida externa seria insuficiente para fazer frente aos juros líquidos vencidos no período. “De fato, as tomadas líquidas totalizaram 9,2 bilhões de dólares, enquanto os juros líquidos alcançaram o montante de 10,5 bilhões de dólares”24 (Cruz, 1984, p. 24). Para fechar o balanço de pagamentos, só restavam duas alternativas: a utilização das reservas cambiais e/ou a contratação de mais empréstimos externos com um prazo menor e com custos mais elevados.
Os desequilíbrios derivados dos custos dos juros e das amortizações da dívida externa tornavam-se, assim, os causadores principais das crises do balanço de pagamentos brasileiro. Ao mesmo tempo, a política econômica voltava-se para a geração de megasuperávits na balança comercial para tentar honrar os compromissos da dívida externa.
A partir de 1980, os empréstimos e financiamentos deixavam de ser maiores do que os gastos com juros e amortizações da dívida externa. Em 1982, a diferença entre os serviços da dívida e os empréstimos e financiamentos alcançava US$ 5,59 bilhões, já em 1983 chegava a US$ 9,71 bilhões, em 1984 foi a US$ 6,27 bilhões e em 1985 atingiu impressionantes US$ 11,461 bilhões. Por isso, a única maneira que a equipe econômica encontrou para tentar saldar esses déficits, uma vez que o Brasil não pediu uma moratória da dívida, foi a geração de robustos superávits comerciais25, principalmente comprometendo o Sistema Produtivo Estatal (SPE), o que será discutido na próxima seção do artigo.
Dado que os empréstimos tornaram-se insuficientes, a partir de 1980 adotou-se uma política econômica ainda mais recessiva para diminuir as importações públicas e privadas e expandir as exportações, na tentativa de gerar saldos positivos na balança comercial, mesmo com o Brasil apresentando uma deterioração dos termos de troca. No período 1980-1985 houve uma queda de 27% neste indicador (Baer, 1993).
Essas medidas econômicas ortodoxas significaram: “corte no gasto público e redução de subsídios, controle quantitativo de expansão do crédito com a concomitante liberação das taxas de juros praticadas no segmento livre do mercado financeiro e contenção salarial” (Cruz, 1984, p. 26). Mesmo com os ajustes, ainda assim houve a necessidade de queima de reservas cambiais. Isso fragilizava as contas nacionais e tanto a capacidade do país quanto a das empresas do SPE de honrarem seus compromissos externos, uma vez que o governo havia promovido a estatização da dívida externa.
A princípio, os maiores demandantes dos recursos externos eram as empresas privadas, principalmente as multinacionais, com o privilégio de conseguir recursos no exterior por meio de suas matrizes, principalmente com as facilidades da Lei 4.131, com taxas de juros menores e prazos maiores aos praticados no mercado interno brasileiro. A dívida externa brasileira caracterizava-se, assim, em um primeiro momento, enquanto uma dívida notadamente privada. Entre os anos 1972 e 1973, quando houve o primeiro momento de crescimento elevado do endividamento externo, o setor privado detinha quase 75% de toda a dívida externa brasileira. Em 1975, essa participação diminuiu para algo em torno de 50%. Nos anos 1979-1980, houve a inversão: o setor estatal passou a responder por mais de 75% de toda a dívida externa brasileira e isso caracterizou o segundo momento do endividamento externo brasileiro (Cruz, 1984).
A estatização (ou socialização) da dívida externa ganhava impulso não só com a Circular n° 230, de 1974, bem como com a Resolução 43226 do Banco Central, de junho de 1977. Ambas absorviam o endividamento externo privado assumindo os custos relacionados aos juros, aos spreads bancários e às desvalorizações cambiais27.
3 A criação da SEST e os ajustes sobre as empresas estatais
Com o avanço do endividamento externo, os ajustes internos com o objetivo de amenizar a crise do país resultaram em medidas econômicas que se concentravam no combate ao déficit público, no controle da inflação, na redução da participação do Estado na economia, principalmente das empresas estatais, com a retórica de que com essas mudanças o Brasil retomaria o ciclo virtuoso do crescimento econômico com geração de emprego e renda.
Diferentemente do México que decretou moratória em agosto de 1982, a equipe econômica brasileira no período do governo militar de João Figueiredo (1979-1985) mostrou que faria todo o esforço necessário para o pagamento dos juros da dívida externa. Para tanto, o Brasil promoveu um ajuste fiscal alinhado ao conceito de Necessidade de Financiamento do Setor Público (NFSP)28, que confundia a identificação dos reais motivos do déficit público e permitia ao governo fazer cortes em setores nos quais não havia “desequilíbrio”, situação que envolvia muitas empresas estatais.
Os ajustes ocorreram principalmente sobre o SPE, que tinha aumentado significativamente sua participação na economia não só na fase de instalação da indústria pesada no país como também no período dos governos ditatoriais29. O SPE foi identificado pela equipe econômica como “desequilibrado” por conta do excesso de gastos do governo, principalmente para manter as empresas estatais. Estas eram entendidas como as geradoras do déficit público; do quadro inflacionário pelo excesso de demanda agregada, expansão monetária e elevação do salário acima da produtividade. Ou seja, havia uma interpretação monetarista/ortodoxa da crise e, como tal, o governo direcionava-se de maneira equivocada para tentar resolver os problemas que o país atravessava.
Para promover o ajuste das empresas estatais, foi criada a Secretaria de Controle das Empresas Estatais (SEST)30, por meio do Decreto 84.128, de 29 de outubro de 197931. A SEST ficou subordinada diretamente à Secretaria de Planejamento Econômico (SEPLAN)32.
A presidência da SEST esteve a cargo de um representante do setor privado, Nelson Mortada, do grupo Matarazzo, indicado pelo então ministro do Planejamento Delfim Netto. Em seu primeiro relatório33, publicado em 1981, a nova secretaria explicitava que as empresas estatais cresceram muito, acabaram causando desequilíbrios nas contas do governo e comprometeram a atuação do setor privado. Mortada desvelava sua preocupação com a situação inflacionária causada, em sua visão, pela forma de atuação das empresas estatais34, discurso que era consonante com o do ministro que o indicou35.
A SEST surgiu como uma secretaria com grandes poderes. Ela tornou-se responsável pela elaboração do orçamento das empresas estatais, financiamentos internos e externos, cortes, quadro de trabalhadores das empresas, salários, investimentos e política de preços do setor. A SEST também ficou incumbida das alterações institucionais e patrimoniais das empresas estatais, com a meta de “evitar o excessivo crescimento do setor público na economia e, se possível, reduzir a sua participação aos setores monopolísticos e de infraestrutura” (Brasil, 1981, p. 28).
Cabia à SEST, ainda, impor tetos de importações com o objetivo de diminuí-las para ajudar a elevar o saldo da balança comercial, controlar a aquisição de combustíveis “destinados a veículos automotores, por parte das empresas estatais e dos órgãos da Administração Direta Federal” (Brasil, 1981, p. 29), principalmente após o segundo choque do petróleo. Além disso, a secretaria responsabilizava-se pelo recolhimento de dividendos da União, a remuneração dos dirigentes das empresas estatais e, por fim, pelo controle dos planos assistenciais e benefícios indiretos. Com todas essas atribuições, as empresas estatais passavam ao controle quase irrestrito da SEST. A secretaria ganhava mais poder do que o de vários ministérios36.
Em relação aos orçamentos das empresas estatais, a SEST os elaborava a partir das informações obtidas das próprias empresas, fixava os limites máximos de “dispêndios globais” e os encaminhava para aprovação do presidente da República. As fontes de recursos eram oriundas, principalmente, de quatro itens: recursos próprios, transferências orçamentárias, operações de crédito externo e operações de crédito interno. Todas essas fontes ficavam sob o manejo da secretaria para análise e aprovação. A SEST dispunha então de “todos os instrumentos necessários à definição e controle dos limites de recursos a serem utilizados pela empresa” (Brasil, 1981, p. 27). Com base nesses orçamentos37, ela promovia “o acompanhamento permanente, a partir de informações ou relatórios próprios preenchidos pelas empresas regularmente a cada mês ou trimestre, dependendo do caso, estudando os devidos ajustes, se necessário, e submetendo-os à aprovação presidencial” (Brasil, 1981, p. 32).
A secretaria lançava anualmente duas publicações: o Orçamento SEST e o Relatório Anual SEST. No Orçamento, havia inicialmente as Exposições dos Motivos (EMs) pelos quais a secretaria havia feito o planejamento para as empresas estatais referente ao ano seguinte para aprovação do presidente da República. No Relatório, por sua vez, constava um balanço sobre os resultados obtidos a partir das orientações da SEST.
No primeiro Relatório da SEST, foi realizado um histórico sobre as empresas estatais no Brasil e as razões da criação das mesmas. Concluiu-se que elas cresceram tanto que acabaram causando desequilíbrios nas contas do governo e prejudicaram a atuação do setor privado. Os organizadores do documento38 explicitavam que a intervenção federal na economia por meio da criação das empresas estatais se deveu menos a uma opção do governo e mais a uma imposição da conjuntura mundial. Assim, as mudanças em âmbito mundial, principalmente no pós-Segunda Guerra Mundial, teriam obrigado o governo a atuar em áreas em que a iniciativa privada não tinha condições de responder prontamente e nem de atender sua crescente demanda.
Curiosamente, o relatório39 revelou que a constituição das estatais não ocorreu como uma política estratégica do Estado brasileiro para fortalecer a economia interna no sentido de o país se dirigir para um capitalismo autodeterminado, mas se deu principalmente como uma reação às demandas externas. Como desdobramento, em uma situação de mudança do contexto internacional, da internacionalização financeira, desfazer-se dessas empresas seria a medida mais coerente. Daí o importante papel da SEST, como explicitava o decreto de sua criação ao fundamentar suas obrigações:
a) compatibilizar os programas de investimentos das empresas estatais com os Planos Nacionais de Desenvolvimento, segundo as prioridades estabelecidas e a disponibilidade de recursos, ajustando-os às políticas monetária, cambial e fiscal;
b) garantir o bom desempenho do setor público, quanto à execução de seus programas de investimentos, propiciando, em consequência, melhores condições ao setor privado para o planejamento adequado de suas atividades (BRASIL, 1981, p. 17-18).
Antes da existência da SEST, as empresas estatais eram vinculadas aos ministérios que correspondiam às suas principais áreas de atuação (por exemplo, a Petrobrás e a CSN se vinculavam ao Ministério de Minas e Energia). Com o controle das empresas estatais por parte da SEST, alguns ministérios perderam seu poder de influência, já que seus ministros não podiam mais atuar sobre importantes estatais. Como órgão de controle das estatais, a SEST era definida como portadora de instrumentos de ação que tinham
em vista o objetivo maior de que as empresas estatais [estivessem] realmente envolvidas não só com projetos efetivamente prioritários, mas também devidamente ajustados às metas de combate ao processo inflacionário e da busca do equilíbrio da balança comercial. [Procurava-se], ainda, buscar maior eficiência do aparato estatal empresarial e, também, limitar o aumento indiscriminado da participação das empresas estatais na economia brasileira, mantendo, assim, uma das condições necessárias para o fortalecimento do setor privado. Nesse sentido, a fixação antecipada de tetos de gastos das empresas estatais [permitia] que o setor privado se [orientasse] na sua programação de trabalho e de investimentos (Brasil, 1981, p. 19).
Os objetivos da secretaria manifestavam-se nesse primeiro relatório: atuar sobre o SPE para conter a inflação; ajudar nos resultados da balança comercial, isto é, diminuir as importações e seus investimentos; reduzir sua participação na economia, o que significava privatizações; e fortalecer o setor privado, e assim continuar favorecendo esse setor com o fornecimento de bens e serviços a preços subsidiados. A SEST sinalizava que promoveria alterações na economia brasileira que antecipavam inclusive as medidas impostas pelo FMI a partir de 198340.
Conforme definição das empresas estatais estabelecida pelo decreto de criação da SEST41, um dos grandes problemas foi caracterizar da mesma forma empresas totalmente diferentes em seus meios e fins e englobá-las, sem distinções, como equivalentes. Por exemplo, eram enquadradas como empresas estatais até mesmo as universidades públicas, cuja capacidade de gerar recursos próprios era baixa, uma vez que este não era seu objetivo. Ao mesmo tempo, entrava também nesta denominação a Petrobrás, uma empresa com grande capacidade de geração de recursos próprios e de autofinanciamento42 (Decreto Federal, n. 84.128, 1979).
A estratégia de considerar como similares estatais tão heterogêneas43 tinha como objetivo promover a privatização e os ajustes de muitas delas, visto que com essa metodologia as especificidades desapareciam e todas as empresas caracterizadas enquanto estatais poderiam ser vistas como supostas causadoras dos desequilíbrios das contas do governo e, consequentemente, responsáveis pela inflação e por onerar o erário. “O discurso oficial com frequência chamava a atenção para o fato de que boa parte dos recursos do Tesouro acabava tendo que ser utilizada para ‘cobrir o déficit’ do orçamento das ‘empresas estatais’” (Werneck, 1987, p. 22).
Além disso, havia outro problema de metodologia por parte da SEST, uma vez que elaborava, “com base nas informações fornecidas pelas empresas estatais, propostas de fixação de limites máximos de dispêndios globais a serem aprovados pelo Presidente da República, no âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico (CDE)”. Ao avaliar os gastos por meio dos dispêndios globais, impossibilitava-se uma análise das especificidades de cada estatal. Em razão disso, as despesas com pessoal ou com investimentos – certamente muito diferentes entre si – entravam simplesmente como gasto44.
O cálculo dos dispêndios globais passou a ser o principal parâmetro para o valor de recursos que as empresas estatais teriam acesso e para o montante de investimentos que poderiam realizar. Entretanto, o valor global de dispêndio representava “um agregado que não se [sabia] bem o que [significava] ou o que [media], sendo totalmente destituído de sentido macroeconômico. É surpreendente, portanto, a centralidade que se [atribuiu] exatamente ao controle deste agregado pela SEST” (Werneck, 1986a, p. 385).
Além do problema de agregação das empresas estatais heterogêneas, a SEST estabeleceu um esquema de financiamento que juntava todos os tipos de financiamentos em uma única denominação, de modo a não deixar explícitas as especificidades financeiras de cada empresa. Ao serem tidos todos como iguais, desconsiderava-se que os financiamentos poderiam se dar de diferentes formas: i) receita operacional; ii) outros recursos próprios; iii) crédito; iv) recursos do Tesouro e; v) outros recursos. Essa metodologia levava a conclusões equivocadas sobre a suposta dependência dessas empresas em relação ao Estado, além de superdimensionar a participação das mesmas na economia. Essa forma de enquadramento satisfazia os apelos que recrudesceram na segunda metade da década de 1970 em defesa das privatizações. De acordo com Prado (1985, p. 166, grifos do autor),
Seguramente, boa parte das análises mais apressadas e superficiais se contenta com os dados a este nível de agregação, para dar suporte às críticas quanto ao gigantismo e ao parasitismo das “empresas” estatais. No entanto, tal ordem de conclusões só seria sustentável caso esta estrutura agregada de financiamento se referisse a um universo homogêneo de empresas, isto é, entidades que formassem preços para seus produtos, e caso tivessem esses preços uma relação microeconômica específica com os custos de produção. Na realidade, o universo em questão é uma disparatada coleção dos mais diversos tipos de organismos estatais, envolve padrões de financiamento os mais diversos e, principalmente, refere-se à execução de muitas atividades que nada têm de empresariais ou produtivas.
A secretaria não diferenciava recursos operacionais, ou seja, aqueles gerados pela própria empresa, e recursos fiscais, que eram externos às empresas, como, por exemplo, recursos do Tesouro Nacional. Além disso, não havia a separação, por parte da SEST, dessas empresas e das outras que eram deficitárias e dependentes por sua própria natureza, mas estratégicas para o suposto desenvolvimento do país.
As distorções causadas pela SEST no sentido de colocar em um mesmo grupo empresas tão diferentes, de não fazer distinção entre recursos operacionais e fiscais ou entre despesas correntes e despesas com capital, e de analisar simplesmente o lado dos dispêndios globais, tinha como meta fazer o ajuste das estatais de maneira indiscriminada45.
Para construir um parâmetro mais adequado para o enquadramento das empresas estatais e um estudo mais acurado sobre as necessidades de seu financiamento em relação às suas receitas operacionais, Prado (1985, p. 214, grifos do autor) caracterizou como empresas estatais aquelas nas quais ocorria “um padrão apoiado na formação do preço como elemento principal do financiamento, deslocando-se os fluxos fiscais abertos para uma posição complementar e crescentemente esporádica e assistemática”. A partir desta metodologia, concluiu o autor que a capacidade de autofinanciamento dessas empresas era bastante elevada e, portanto, não se caracterizavam enquanto empresas deficitárias como sinalizava a metodologia adotada pela SEST.
Contudo, no primeiro Relatório da SEST, ficava explícito qual era o verdadeiro objetivo da recém-criada secretaria:
– permitir às empresas a utilização de maior parcela relativa de recursos próprios no desenvolvimento de suas atividades, mediante política de preços e tarifas que melhor se ajustem às suas estruturas de custos, mas sem perder de vista as metas de contenção inflacionária estabelecidas para o exercício.
– evitar aumento da participação das empresas estatais na economia brasileira e, com isso, manter as condições necessárias para o fortalecimento do setor privado.
– estabelecer parâmetros, através da fixação antecipada de tetos e fluxos de gastos das empresas estatais, a fim de orientar o programa de trabalho do setor privado (Brasil, 1981, p. 74-75).
As restrições impostas às empresas estatais foram tão grandes que elas não podiam aumentar de maneira autônoma seus investimentos mesmo que suas receitas com recursos próprios se elevassem. Isso porque os dispêndios globais estabelecidos pela secretaria eram considerados valores máximos de gastos e deveriam ser cumpridos. Caso houvesse necessidade de extrapolar esses valores, seria necessária uma autorização do presidente da República após a proposta ter o aval da SEPLAN.
Mesmo com a posterior divisão das empresas estatais em cinco grupos, a partir de 1983, o problema da agregação não foi resolvido. Werneck (1986a, p. 389) chegou a destacar que “apesar da separação, todas estas entidades [continuaram] sendo inapropriadamente rotuladas de ‘empresas estatais’. E os orçamentos, embora os relatórios SEST [apresentassem] os dados separados, [continuaram] também sendo agregados”. As novas categorias, que compunham o universo das empresas estatais, passavam a ser:
a) Empresas do Setor Produtivo Estatal – são as empresas que produzem bens e serviços, quase sempre de forma monopolista ou oligopolista, em setores importantes, de insumos básicos, como a PETROBRÁS, CVRD, SIDERBRÁS, ELETROBRÁS e em setores de serviços, como na área de telecomunicações (TELEBRÁS), de transportes (RFFSA, PORTOBRÁS), entre outros. Normalmente essas empresas são regidas pela Lei n. 6.404/76.
b) Entidades Típicas de Governo – são as instituições regidas, em geral, pela Lei 4.320/64 (órgãos autônomos, autarquias e fundações e outros), que possuem objetivos típicos de atividade governamental (educação, saúde, fiscalização, normatização) e dependem basicamente de recursos do Tesouro.
c) Previdência Social – são as entidades que compõem o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS) cujas fontes básicas de recursos são as contribuições legais feitas por empregados e empregadores.
d) Bancos Oficiais Federais – são as instituições financeiras oficiais cuja atuação é regida pela Lei 4.595/64.
e) Empresas Estaduais – constituídas de concessionárias de energia elétrica por autorização do Governo Federal e dos dois metrôs, dado o grau de dependência de decisões na área federal no que diz respeito ao programa de investimento (Brasil, 1983, p. 10).
Apesar de a equipe econômica do governo reconhecer que a divisão das empresas estatais estava errada, o equívoco metodológico persistiu tanto do ponto de vista do enquadramento das estatais, que continuou com grupos muito heterogêneos, quanto do ponto de vista do orçamento, que prosseguiu agregando as empresas sem considerar suas especificidades financeiras. Era esse equívoco que “justificava” os ajustes que a SEST passava a promover sobre o SPE.
3.1 Os ajustes sobre as empresas estatais e o início do neoliberalismo no Brasil
Os ajustes da SEST sobre as empresas estatais já no começo da década de 1980 foram representativos do início do neoliberalismo no Brasil, tendo antecipado as exigências do FMI com os acordos de 1983. Ideias ortodoxas nortearam o diagnóstico da secretaria, uma vez que se partia de uma leitura de que a crise pela qual o país passava se devia essencialmente a fatores endógenos, pela grande participação do Estado, por meio da forte atuação das empresas estatais na economia. Estas, aliás, na análise da SEST, teriam sido as responsáveis pelos desequilíbrios pelos quais a economia passava, basicamente resumidos em alta inflação e elevação do endividamento externo. Como complemento, a SEST ainda entendia que a expansão das empresas estatais havia comprometido o livre funcionamento das leis de mercado e prejudicado a atuação da iniciativa privada. Logo, a “solução” da secretaria seria a implantação do neoliberalismo, a partir da diminuição da presença do Estado na economia, de modo que isso supostamente resolvesse a crise do país.
Os Relatórios da SEST dos anos 1980 a 1985, que serão analisados a seguir, mostram esses ajustes sob várias formas, desde a redução do orçamento das empresas estatais no sentido de este praticamente bloquear novos investimentos produtivos, passando pelo controle de importação de equipamentos necessários ao seu desenvolvimento, a fim de que com isso o governo melhorasse a balança comercial do país, até o aumento do seu endividamento externo para que o governo pudesse usar esses recursos em dólar para diminuir o déficit no balanço de pagamentos.
Baseada em dados dos Relatórios, a tabela 1 traz a diminuição dos dispêndios globais do setor público, ou seja, explicita como o orçamento das empresas estatais sofreu forte redução e comprometeu os investimentos produtivos no país já a partir do início dos anos 1980.

Conforme a Tabela 1, apesar de os gastos entre 1980 e 1981 serem mantidos praticamente estáveis, após este período o corte tornou-se significativo. Em 1982, há uma primeira redução importante de gastos. Posteriormente, já considerando o ajuste voluntário com o FMI, a redução dos gastos foi de 31% em 1984 e, por fim, de 25% em 1985, do total dos investimentos de 198046.
A tabela 2, que compara os dispêndios globais da SEST com o PIB, não deixa dúvidas sobre a diminuição das despesas com as empresas estatais na tentativa de a equipe econômica conter os déficits das contas públicas, na direção errada, uma vez que os cortes comprometiam ainda mais a possibilidade de a economia brasileira reagir diante da crise que se instalava no período.

Pelos dados da Tabela 2, observa-se uma trajetória de diminuição dos gastos com as empresas estatais em relação ao PIB. Passou-se de um patamar de gastos de 42,46% do PIB em 1980 para 41,47% em 1982, para 40,0% em 1983 e então para 37,93% do PIB em 1985. Como se nota, essa retração gradativa iniciou-se mesmo antes dos acordos com o FMI.
O aumento da entrada de recursos externos destinados ao SPE foi considerável até a moratória mexicana e refletiu em um maior endividamento das empresas estatais. Entre 1980 e 1982, portanto, antes da assinatura dos acordos com o FMI, mais que dobrou o volume de recursos externos no orçamento das empresas estatais. Após 1982 houve uma queda expressiva e em 1985 voltou a um patamar próximo ao de 1982, conforme a Tabela 3.

Os dados da Tabela 3 explicitam que, mesmo com um discurso de contingenciamento dos dispêndios das empresas estatais, o endividamento externo por parte dessas empresas não foi controlado. Ao contrário, aumentou entre 1980 e 1982 quase 130%. E continuou em trajetória ascendente nos anos posteriores.
O governo utilizava esses recursos em moeda estrangeira para minimizar o déficit no balanço de pagamentos. Com elevado endividamento e taxas de juros mais altas no mercado internacional, o resultado não podia ser outro senão o aumento dos gastos financeiros das empresas estatais, como explicita a Tabela 4.

Como mostra a Tabela 4, é importante notar que houve um salto do endividamento já a partir de 1981, quando os encargos chegaram a 11,20% da receita operacional. Em 1982, essa relação subiu para 15,67%. Após os acordos com o FMI, cresceu um pouco mais, para 17,39% e chegou a 23,33% em 1985.
As estatais sofreram um duplo processo de endividamento: tanto para assumir boa parte da dívida externa privada de terceiros quanto para si mesmas em busca de dólares a fim de ajudar as contas públicas. Nesse período, os encargos financeiros cresceram quase 300% em relação às receitas operacionais, sem contrapartida nos investimentos.
A Tabela 5 complementa este quadro ao mostrar o aumento dos encargos com a dívida externa de quatro setores estatais: elétrico, siderúrgico, petrolífero e de telecomunicações.

De acordo com a Tabela 5, o setor elétrico teve uma elevação de seus encargos entre 1977 e 1983 na ordem de 350%. Entre 1983 e 1985, o aumento foi de 123%. O setor siderúrgico viu seus gastos com a dívida externa aumentarem entre 1977 e 1983 em 325% e entre 1983 e 1985 em 108%. O setor de petróleo, por sua vez, teve seus custos com a dívida externa exorbitados em mais de 380% em 1983 se comparado com os gastos em 1977 e, entre os anos de 1983 e 1985, contata-se uma diminuição de 11%; esse recuo se deveu ao grande crescimento de sua dívida externa no período anterior. Por fim, apenas o setor de telecomunicações teve uma diminuição de seus encargos com a dívida externa, que caíram em torno de 26% em 1983 em relação a 1977, e em 37% entre 1983 e 1985, situação que evidencia sua menor capacidade de angariar recursos externos.
Esses números revelam o quanto esses setores foram sacrificados para trazer recursos externos, sobretudo para o país pagar juros e amortizações da dívida externa. E também explicitam um ajuste robusto antes daquele feito após os acordos com o FMI em 1983.
Além da elevação do endividamento, que aumentava o passivo dessas empresas, elas também tiveram que lidar com outro problema relativo às suas receitas. Apesar do discurso do governo sobre “realismo tarifário”, as tarifas das empresas estatais não eram reajustadas de acordo com a inflação. Seus preços ficavam sempre abaixo desse nível, na tentativa de conter o avanço de preços da economia. Essa situação comprometeu a rentabilidade e a capacidade de promoverem o autofinanciamento. Tal cenário favorecia as empresas privadas, sobretudo as multinacionais, que adquiriam bens e serviços das empresas estatais com preços bastante defasados.
O descompasso entre o aumento dos preços do SPE e a inflação fica evidente na análise de cinco estatais: Petrobrás, Siderbrás, Telebrás, Eletrobrás e CVRD. A forte baixa real de seus preços caracterizou as melhorias que o setor privado obteria em sua relação comercial com as empresas estatais, além de confirmar os ajustes que essas empresas sofreram sob controle da SEST.
Entre os anos 1980 e 1983, a Petrobrás teve um aumento de seus preços abaixo da inflação. Essa diferença se acentua a partir de 1984, chegando em 1985 a uma situação na qual seus preços ficaram defasados em quase 60% em relação à inflação (Gráfico 1).

O Sistema Siderbrás apresentou preços menores do que a inflação em todo o período considerado (1980-1985), de acordo com o Gráfico 2. Essa diferença foi aprofundada em 1983, quando seus preços ficaram defasados em mais de 35%, diminuindo em 1984 para 27% e em 1985, quando ficaram 22% abaixo da inflação.

O Grupo Telebrás também teve seus preços aumentados em patamares inferiores aos da inflação entre 1980 e 1985, mas essa discrepância começou a ficar mais notória a partir de 1984, alcançando o pico em 1985, conforme Gráfico 3. Naquele ano, seus preços representavam apenas 47% do índice de inflação (IGP-DI).

O Grupo Eletrobrás teve o reajuste dos preços de seus bens e serviços em número sempre menor do que a inflação de 1980 a 1985, de acordo com o gráfico 4. A diferença entre reposição tarifária e inflação começou a ficar mais acentuada a partir de 1984, alcançando maior descompasso em 1985, quando seu preço ficou abaixo da inflação em 38%.

A CVRD também mostrou preços defasados em relação à inflação nos anos de 1980 a 1985, conforme o Gráfico 5, ficando mais evidente essa desigualdade em 1984, quando seus preços ficaram em torno de 40% abaixo da inflação.

Como apontado, houve um comportamento similar dos preços dos bens e serviços fornecidos pelas empresas estatais analisadas, destacando-se o seu contingenciamento como resultado de uma política deliberada da SEST. No triênio 1980-1982, os reajustes dos preços das empresas estatais ficaram abaixo do índice de inflação (IGP-DI), e após os acordos com o FMI, a partir de 1983, essa discrepância ficou ainda maior, mostrando que a SEST já seguia uma política junto a essas empresas em consonância com as propostas do Fundo, mesmo antes do programa de ajustamento monitorado pelo FMI47.
Com a grande defasagem nos preços dessas empresas e o crescente endividamento, os encargos financeiros em relação à receita operacional elevaram-se significativamente, alcançando quase um quarto de toda a receita operacional em 1985. Como resultado, houve redução e cancelamento de investimentos.
Durante o início dos anos 1980, essa diminuição dos investimentos foi considerável, especialmente a partir do triênio 1983/1985, “situando-se em média, 40% abaixo dos níveis verificados em 1980” (Cruz, 1995, p. 137). Com a queda dos investimentos do SPE, houve um impacto imediato na Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), que comprometeu a capacidade de crescimento da economia (Tabela 6).

Com uma retração tão expressiva da FBCF na economia brasileira, que já mostrava uma tendência de diminuição entre os anos 1980/1983, período em que decresceu de 23,5% para 19,9% do PIB; apresentou uma redução ainda maior entre os anos 1983 e 1985, alcançando neste último ano apenas 18% do Produto. Observa-se que a industrialização, mesmo que dependente, deixou de ser o foco da política econômica. Isto significou o abandono por completo da política econômica desenvolvimentista e a introdução do neoliberalismo no país a partir dos ajustes promovidos pela SEST.
Considerações finais
A crise estrutural do capital na transição dos anos 1960 para os anos 1970 estimulou as empresas multinacionais a caminharem cada vez mais no sentido da financeirização e a promover sua reestruturação produtiva mundial, com diversos desdobramentos sobre o Brasil. Internamente, as respostas às transformações do capitalismo global foram dadas pelos governos ditatoriais sob várias políticas, entre as mais relevantes, a elaboração do II PND, ancorado em um elevado endividamento externo, que não só conduziu o país ao circuito financeiro internacional, como resultou no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 na crise da dívida externa, dada a manutenção da captação externa mesmo nos momentos mais desfavoráveis da conjuntura internacional. Como forma de “resolver” o problema do endividamento externo e da alta inflação, entendido, em grande medida, como excesso de Estado na economia, iniciaram-se nos anos 1980 ajustes sobre o SPE por meio da SEST, que introduziria o neoliberalismo no país.
Após experimentarem um processo de endividamento significativo, por absorver parte da dívida externa privada nos anos 1970, as empresas estatais sofreram nos anos 1980, por meio da SEST, ajustes para que o governo “resolvesse” a crise que se instalou no país. Com praticamente o congelamento dos seus orçamentos para investimentos e reajustes tarifários abaixo da inflação, as empresas estatais foram sucateadas. Ao mesmo tempo que ampliavam o seu passivo, uma vez que eram obrigadas a capitanear no mercado externo recursos em moeda estrangeira, mesmo que a condições desfavoráveis, para auxiliar o governo no pagamento dos juros da dívida externa, também sofriam redução de suas receitas.
O fato é que as políticas da SEST direcionavam-se prioritariamente para o uso das estatais como meio de o governo conseguir os recursos necessários para pagar os juros e as amortizações da dívida externa. Esses ajustes de cunho ortodoxo resultaram, na verdade, no aumento da dívida pública; numa recessão interna que comprometia o crescimento da economia e a geração de empregos; numa diminuição da FBCF; e no fim de uma política econômica desenvolvimentista que preconizava uma industrialização, mesmo que dependente.
Neste processo, caracterizou-se a gênese do neoliberalismo no Brasil já no início da década de 1980. Dados os ajustes promovidos pela SEST no SPE, a introdução do neoliberalismo no Brasil não pode, portanto, ser considerada tardia em relação a outros países da América Latina.
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Notas