Resumo: Partindo do conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, o artigo teve como objetivo central realizar uma análise do modelo de política proposto pelas Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) e de seus principais resultados, por meio de um balanço crítico do grau de cumprimento dos principais objetivos explícitos da política. A partir da realização de uma extensa revisão bibliográfica de materiais referentes à temática das PDPs, a contribuição central do artigo consiste na realização de uma síntese organizada dos principais argumentos das potencialidades e dos limites associados ao modelo das PDPs diante dos objetivos a que se que propõem, separados pelas categorias de compras públicas, produção nacional de medicamentos, processos de inovação e impactos sociais, trazendo reflexões acerca de possíveis aprimoramentos para que sejam alcançados de forma ainda mais exitosa.
Palavras-chave: Parcerias para o desenvolvimento produtivo, Complexo econômico-industrial da saúde, Políticas industriais, Sistema Único de Saúde.
Abstract:
Based on the concept of the Health Economic-Industrial Complex, this paper aims
at analyzing the policy design proposed by Productive Development Partnerships
(PDPs), as well as its most relevant results, through a critical assessment of
the degree of achievement of the main policy explicit goals. Conducting an
extensive bibliographic review of materials related to the area of PDPs, the
main contribution of the article consists in carrying out an organized synthesis
of the principal arguments regarding the potentialities and limits associated
with the policy model concerning the proposed objectives, which are separated
according to the following categories: public purchases, national production of
medicines, innovation processes and social impacts. It also presents reflections
about possible improvements to the policy model, so that its goals can be
reached with even greater success.
JEL: O25, I15.
Keywords: Productive Development Partnerships, Health Economic-Industrial Complex, Industrial Policies, Health Unified System.
Artigos originais
O conceito do complexo econômico-industrial da saúde na prática: um olhar sobre o caso das parcerias para o desenvolvimento produtivo
The concept of the health economic-industrial complex in practice: a look at productive development partnerships
Recepção: 27 Julho 2021
Aprovação: 04 Abril 2022
A Constituição Federal de 1988 (CF-88) inaugurou a existência de um sistema de seguridade no Brasil em que a saúde passa ao patamar de direito de todos os cidadãos, devendo ser garantida pelo Estado. Neste contexto, é criado o Sistema Único de Saúde (SUS), regido pelos princípios de universalidade, integralidade e equanimidade (Brasil, 1988), rompendo as bases excludentes que regiam o paradigma de política de saúde vigente no país.
Apesar de ter empreendido grandes avanços desde a sua criação, consolidando-se como o maior sistema de saúde pública do mundo (Gadelha, 2021) e sendo a única forma de acesso à saúde para 75% da população brasileira (Temporão; Gadelha, 2019), a falta de articulação entre as políticas econômicas e as políticas sociais previstas pela CF-88 tem trazido grandes limitações às possibilidades de avanços em direção à consolidação da garantia dos direitos sociais universais no país (Gimenez, 2008). Um aspecto central é a situação de subfinanciamento crônico ao qual o SUS tem sido submetido desde sua gênese (Gadelha et al., 2012; Ocké-Reis, 2018). Ademais, além das restrições orçamentárias na oferta de serviços de saúde, a indústria de saúde brasileira, compreendida como o conjunto de setores produtores de bens relacionados à prestação de serviços de saúde, exibe grave fragilidade, atuando em setores de menor valor agregado e posicionando-se de forma distante das fronteiras tecnológicas mundiais (Gadelha et al., 2012), evidenciada pela trajetória deficitária persistente e crescente da balança comercial brasileira associada a tais setores (Temporão; Gadelha, 2019).
Ainda que o cenário descrito evidencie grandes barreiras para a consolidação do projeto proposto pelo SUS, Gadelha (2003), ao introduzir o conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), apresenta uma leitura alternativa que contribui para a superação dos impasses apontados. Ao propor uma análise sistêmica e dinâmica da saúde no Brasil, o autor aponta o vasto conjunto de setores produtivos e instituições envolvidos no processo de oferta de serviços de saúde, os quais compõem um todo complexo, com profundas relações de interação e interdependência político-institucionais e de mercado.
Dentro desta perspectiva, os setores ligados à área da saúde movimentam o equivalente a 9% do produto interno bruto brasileiro (Temporão; Gadelha, 2019). Também à saúde estão vinculados 6,6 milhões de trabalhadores qualificados (quando considerados os empregos indiretos, este número chega a 20 milhões) e 35% das pesquisas realizadas no Brasil (incluindo as áreas de ciências biológicas e biomédicas). O mercado farmacêutico brasileiro ocupa a sétima posição no mundo (Interfarma, 2019) e o Governo ocupa a posição de maior comprador de medicamentos do país (Varrichio, 2017).
A partir de tal visão, utilizada como marco teórico deste artigo, ao Estado brasileiro cabe papel essencial para a coordenação de políticas sistêmicas, articulando as dimensões social, produtiva e de inovação da política de saúde. Entre as diversas iniciativas realizadas pelo governo brasileiro em busca da dinamização de setores produtivos vinculados à saúde, destacam-se as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), iniciadas em 2009, as quais, de acordo com Gadelha e Temporão (2018), representam o esforço mais aprimorado, até o momento, da busca pela articulação entre desenvolvimento do parque produtivo brasileiro e as necessidades do SUS.
O presente artigo, assim, tem como objetivo realizar uma análise do modelo de política proposto pelas PDPs e de seus principais resultados, por meio de um balanço crítico do grau de cumprimento dos principais objetivos explícitos da política.
A partir da realização de uma extensa revisão bibliográfica de materiais referentes à temática das PDPs, a contribuição central do artigo consiste na realização de uma síntese organizada dos principais argumentos das potencialidades e dos limites associados ao modelo das PDPs diante dos objetivos a que se que propõem, trazendo reflexões acerca de possíveis aprimoramentos para que sejam alcançados de forma ainda mais exitosa.
O marco teórico utilizado pelo artigo é o conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), introduzido por Gadelha (2003) e que traz importantes contribuições para o pensamento sobre o desenvolvimento brasileiro. Este é o caso do uso de uma leitura sistêmica e dinâmica da saúde, a qual permite compreender o desafio da garantia do direito à saúde no país, representado pelo fortalecimento e sustentabilidade do SUS, não como uma meta impossível de ser alcançada, e sim como um grande potencial de construção de políticas sistêmicas de desenvolvimento, passíveis de promover o desenvolvimento econômico brasileiro, ao mesmo tempo em que enfrentariam diretamente as estruturas de reprodução de desigualdade social presentes no país desde a sua formação (Gadelha et al., 2012).
Entre as principais teorias econômicas que dão suporte à reflexão consubstanciada no conceito de CEIS, como expõem Gadelha e Temporão (2018), está a abordagem neo-schumpeteriana sobre a dinâmica do processo de concorrência capitalista e o papel central das inovações, bem como a concepção do Sistema Nacional de Inovação (SNI) e o reconhecimento da relevância do papel do Estado, em especial no contexto de países periféricos e de setores fortemente dependentes do progresso técnico e científico, tal como é caso de grande parte dos setores vinculados à saúde, altamente intensivos em inovação (Gadelha, 2021).
Freeman (1995), ao desenvolver o conceito de SNI, parte da análise do papel do Estado no processo de industrialização de países europeus, do Japão e dos EUA, assim o definindo: “the network of institutions in the public and private sectors whose activities and interactions initiate, import, modify and diffuse new 629echnologies” (Freeman, 1987 apud OECD, 1997, p. 10). A inovação é compreendida como um conceito sistêmico. Não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais, políticos, culturais e institucionais são determinantes da trajetória e da base tecnológica de cada país. Para Cassiolato e Lastres (2000), um sistema de inovação pode ser definido como um conjunto de instituições que contribuem para o desenvolvimento e difusão de tecnologias, abrangendo empresas, governo, centros de pesquisa e ensino, órgãos de financiamento, entre outros, de modo que na abordagem de SNI destaca-se a importância dada às instituições e suas estruturas de incentivos e capacitações. Nesta linha, processos históricos explicam diferenças em termos de evolução políticoinstitucional e trajetórias de desenvolvimento, revelando o caráter nacional dos sistemas de inovação, convergente com o estruturalismo latino-americano (Cassiolato; Lastres, 2007).
Com base nesta perspectiva, esforços de pesquisa, desenvolvimento e inovação também podem ser orientados para atender a demandas sociais do país compondo políticas setoriais, como privilegia o conceito do CEIS. Assim, a partir da identificação dos atores, organizações e instituições que estruturam o SNI em saúde no Brasil, tornar-se-ia possível a articulação da política de saúde e a política industrial e de inovação, em benefício da melhoria das condições de desenvolvimento do país. Destaca-se que, nesta perspectiva, o desenvolvimento tecnológico não é socialmente neutro e, quando inserido em uma dinâmica vinculada exclusivamente à lógica de acumulação capitalista, pode levar ao reforço de um padrão excludente de reprodução econômica e social (Gadelha, 2021a). A ausência da atuação estatal para contrabalancear tal movimento, desta maneira, legitimaria o aprofundamento das assimetrias, reforçando as desigualdades nas capacitações nacionais e internacionais de geração e difusão de progresso técnico.
A política das PDPs, tendo por base esta perspectiva, é reconhecida como a experiência mais aprimorada nesta direção (Gadelha; Temporão, 2018). Assim sendo, o artigo terá por base a análise do modelo das PDPs a partir de um olhar sistêmico de desenvolvimento, abrangendo as categorias de compras públicas, produção local de medicamentos, processos de inovação e impactos sociais, conforme apresentado na seção metodológica.
Como metodologia de pesquisa, o presente artigo teve por base a realização de um extenso levantamento bibliográfico acerca das PDPs. O método de busca dos materiais utilizados envolveu o uso de diferentes plataformas de pesquisa, tais como Google Acadêmico e geral, SciELO, Lilacs, Periódicos Capes, bem como sites de instituições governamentais, como o Ministério da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, BNDES, Finep, Ipea, IBGE, entre outras, as quais foram consultadas por meio das palavras-chave: Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), políticas industriais para a saúde, laboratórios farmacêuticos oficiais (LFOs), produção pública de medicamentos e indústria farmacêutica no Brasil e Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS). Dentre a ampla gama de materiais disponíveis a partir das palavras apresentadas, foram pré-selecionados artigos acadêmicos, teses e dissertações, livros, materiais disponibilizados por sites de instituições governamentais e leis diretamente relacionadas com a temática das PDPs. Foram lidos todos os resumos dos materiais encontrados e aqueles que apresentaram itens sobre condições para o seu surgimento, processo de implementação, principais resultados obtidos até o momento e reflexões críticas sobre os seus potenciais e limites, foram lidos e fichados. Privilegiou-se a busca por materiais publicados durante os anos de vigência das PDPs: de 2009 até o presente (2021).
Para a construção da seção que trata dos resultados encontrados, bem como as avaliações pertinentes às potencialidades e limitações das PDPs, os objetivos explícitos da política, apresentados pela Portaria do Ministério da Saúde (MS) n. 2.531 de 2014 (atualmente integralmente incorporada pela Portaria de Consolidação n. 5, de 28 de setembro de 2017), que regulamenta a política, foram separados em quatro blocos, de acordo com a proposta de Pimentel (2018): o primeiro abrange os objetivos que fazem referência a questões relacionadas às compras do SUS, no qual o autor enquadra os conceitos de “racionalização do poder de compra do Estado”, a “centralização seletiva”, o foco em “produtos estratégicos para o SUS”, a “economicidade e vantajosidade”, os “interesses da administração” e a “sustentabilidade do SUS”. O segundo refere-se aos objetivos voltados às condições da produção local, como expressam os conceitos de “competitividade”, “produção no país”, “fabricação em território nacional”, “desenvolvimento da rede de produção pública”, “promoção de condições estruturais para aumentar a capacidade produtiva e de inovação do país”, “desenvolvimento do CEIS” e “redução do déficit comercial”. Já o terceiro bloco é composto pelos objetivos que se relacionam aos processos de inovação, em que se enquadram os conceitos de “desenvolvimento tecnológico”, “intercâmbio de conhecimentos”, “capacitação” e “inovação”. O quarto bloco contém os objetivos relacionados aos impactos sociais esperados pela execução das PDPs, expressos pelos conceitos de “ampliação do acesso da população à saúde”, da redução da “vulnerabilidade do SUS”, da garantia do “acesso à saúde” e do atendimento “às necessidades de saúde da população brasileira a curto, médio e longo prazos, seguindo os princípios constitucionais do acesso universal e igualitário às ações e aos serviços de saúde” (Pimentel, 2018). Com isso, visionou-se a construção de uma abordagem crítica da política por meio de perspectiva interna, baseada, centralmente, na análise da arquitetura da política em relação aos objetivos apresentados, de forma explícita, em seu marco regulatório vigente, discutindo seus limites e potenciais apresentados pela literatura consultada. Os principais indicadores e argumentos obtidos foram separados conforme exposto no Quadro 1.

As informações sobre as parcerias vigentes, bem como sobre suas classificações e situações contratuais (se seguem vigentes, estão suspensas ou extintas) foram obtidas a partir de dados apresentados na página do MS referente às PDPs, publicados em setembro de 20191. Também por meio destes dados foram observados os principais laboratórios públicos e privados envolvidos nos acordos de PDPs.
Gadelha e Temporão (2018) destacam como antecedente da lógica regente da política as parcerias realizadas para a produção de vacinas, no contexto da criação do Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos (PASNI), em 1985, o qual procurou dar uma resposta à crise de abastecimento do Programa Nacional de Imunização (PNI) vivenciada na primeira metade da década de 1980, devido a dificuldades com o fornecimento público e privado interno e por constrangimentos de importação (Gadelha; Azevedo, 2003). O programa articulou a construção de um parque produtivo público, composto por uma rede de LFOs, coordenada de forma a estimular a substituição da importação de produtos estratégicos à continuidade do PNI (Gadelha; Azevedo, 2003), representando um antecedente de “processos de transferência de tecnologia para os produtores locais, associados ao uso do poder de compra do Estado” (Gadelha, Temporão, 2018, p. 1897).
Hasenclever et al. (2016) e Gadelha e Temporão (2018) também enfatizam, como marco para a construção do que viriam ser as PDPs, os desafios impostos e soluções adotadas para a produção do antirretroviral Efavirenz, utilizado no tratamento de portadores do vírus HIV/Aids, no contexto em que havia sido decretado o licenciamento compulsório de suas patentes, em 2007 (Chaves; Oliveira, 2016). A produção do medicamento pelo LFO Farmanguinhos/Fiocruz foi possível graças à articulação de um consórcio formado por três laboratórios privados nacionais pré-qualificados que foram capazes de realizar no Brasil a última etapa da síntese química do medicamento, apresentando uma forma alternativa de uso estratégico de poder de compra do Estado, para além das rígidas normas de licitação previstas pela Lei 8.666/1993 (Hasenclever et al., 2016).
Em 2008, antes mesmo do início das PDPs, destaca-se a criação do Grupo Executivo para o Complexo Industrial da Saúde (GECIS) como instância política de coordenação e supervisão dos processos envolvendo a produção local e a compra de medicamentos no âmbito do SUS – contexto em que foi publicada a primeira lista de produtos estratégicos para o SUS (Portaria MS 978/2008) (Pimentel, 2018). O grupo reuniu a representação formal de diversas instâncias e órgãos governamentais2 que, sob a coordenação do Ministério da Saúde (MS), criou um espaço de diálogo na construção e execução de iniciativas que buscassem um padrão sistêmico de intervenção política, voltadas ao desenvolvimento industrial, tecnológico e de inovação em favor do atendimento de necessidades do SUS (Gadelha; Temporão, 2018).
Em relação ao desenvolvimento específico das PDPs, Pimentel (2018) aponta que a sua construção foi realizada de forma gradual, envolvendo uma série de iniciativas integradas e podendo ser dividida em três períodos principais em sua trajetória institucional: sua “gênese” (2009-2010), sua “expansão e amadurecimento legal” (2011-2013) e sua “consolidação” (2014-2017, último ano analisado pelo autor em sua pesquisa). Ressalta-se que a consolidação das PDPs, por constituir uma proposta de intervenção sistêmica de grande complexidade, dependeu de muitas variáveis, com destaque às essenciais mudanças de marco regulatório e articulações entre instituições públicas e privadas. O terceiro período inicia-se com a instituição de um novo marco regulatório para as PDPs, por meio da Portaria MS 2.531/2014 (atualmente contida na Portaria de Consolidação 5/2017), que apresenta maior clareza e mais detalhes sobre os papéis atribuídos a cada participante das parcerias em todas as suas fases. Ele será a referência das informações expostas neste trabalho.
As PDPs surgem, segundo Gadelha e Temporão (2018), em um contexto de busca por tornar concreta a perspectiva proposta pelo conceito do CEIS, em que se objetiva, de maneira geral, tornar o uso do poder de compra do Estado estratégico, de forma a se induzir a transformação do sistema produtivo brasileiro, aumentando a autonomia nas áreas que apresentam maior nível de dependência tecnológica e orientar os investimentos de acordo com as necessidades do SUS, atuando em favor de sua sustentabilidade. Nas palavras dos autores:
No lugar de um simples processo administrativo, as compras públicas se tornam um instrumento de capacitação tecnológica e desenvolvimento da base produtiva do CEIS, visando reduzir a vulnerabilidade do SUS e a geração de investimentos, emprego e renda (Gadelha; Temporão, 2018, p. 1897).
A arquitetura geral da política, que busca sustentar os objetivos propostos, articula três elementos essenciais: as empresas portadoras das tecnologias consideradas estratégicas pelo MS, os LFOs e o uso do poder de compra do MS. De forma resumida, funciona da seguinte forma: anualmente, o MS lança uma lista com produtos estratégicos ao SUS. Para a realização das PDPs, as instituições públicas e privadas envolvidas devem desenvolver e enviar um projeto, que será ou não aprovado pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do MS. As instituições privadas capacitadas tecnologicamente para desenvolver os produtos devem comprometer-se com as normas sanitárias estipuladas e com a capacitação tecnológica e produtiva de LFOs que estejam aptos para tal. Isso garante às empresas privadas a exclusividade de compras governamentais durante o período que elas possuem para realizarem a transferência completa da capacitação tecnológica e produtiva dos laboratórios públicos parceiros. O prazo das PDPs varia conforme o grau avaliado de complexidade tecnológica envolvida na produção, podendo alcançar até dez anos para os produtos mais complexos e estratégicos. Após este prazo, intenciona-se que os LFOs estejam aptos a produzir, de forma autônoma, os produtos estipulados, sempre obedecendo aos princípios de economicidade e vantajosidade (Brasil, 2017a).
O processo de execução da política ocorre em quatro fases: I) Avaliação e decisão; II) Absorção e transferência tecnológica; III) Absorção e transferência tecnológica com aquisição; IV) Internalização da tecnologia. A forma de organização entre os atores pode variar, no entanto a presença dos LFOs e dos fabricantes do IFA em território nacional é sempre obrigatória. Ainda que as PDPs envolvam diversos atores, a responsabilidade pela formulação da proposta, bem como pela seleção dos parceiros privados e definição das relações contratuais envolvidas, é exclusiva dos LFOs, que são, também, responsáveis pelo fornecimento das informações ao MS (Pimentel, 2018).
A celebração do contrato de aquisição do produto pelo MS, que representa o momento em que de fato se inicia a PDP, ocorre a partir da Fase III, quando se inicia o processo de transferência tecnológica. Ao final desta fase, o LFO deve ser capaz de realizar a produção do item acordado pela PDP em sua própria planta fabril, executando todos os procedimentos necessários à submissão do registro sanitário do produto proveniente da instituição pública (Brasil, 2017a; Chaves et al., 2018). Já a Fase IV é caracterizada pela concretização da internalização da tecnologia, em condições de portabilidade tecnológica entre a instituição pública e a entidade parceira privada, caracterizando a finalização da PDP. Após essa fase, a aquisição do produto pelo MS não mais estará vinculada às regras apresentadas pela política em questão (Brasil, 2017a).
Nesta seção, será realizado um balanço crítico dos limites, potencialidades e principais resultados encontrados na literatura em referência à política, tendo por base a divisão proposta por Pimentel (2018) de quatro frentes dos objetivos explícitos da política, sendo elas: compras do SUS, produção local, inovação e impactos sociais.
Em relação aos efeitos das PDPs sobre as compras públicas, alguns avanços podem ser observados: entre 2011 e 2014, quando analisada a trajetória das compras centralizadas do MS totais em relação às compras provenientes de PDPs, fica evidente o ganho de espaço das compras provenientes de PDPs no período, que passaram de 20,63% para 35,42% das compras centralizadas totais realizadas pelo MS (as quais apresentaram crescimento em termos absolutos no intervalo mencionado). De acordo com Pimentel (2018), em uma tentativa de avaliação do potencial de participação das PDPs nas compras do MS, por meio do cálculo sobre o caso hipotético de que todos os produtos listados como estratégicos tivessem sido objeto de PDPs, estas chegariam a ocupar 48% das compras realizadas pelo MS. O autor também apresenta que, em 2016, entre as PDPs ativas, a grande maioria dos produtos contemplados fazia-se presente entre as classificações de elevada concentração de mercado (em situação de monopólio ou fortemente concentrado), o que pode levar a um panorama em que as PDPs atuem na direção de decisivo elemento regulador de preços (Pimentel, 2018).
No que tange à economicidade das PDPs, importantes estudos têm sido desenvolvidos. Estimativas realizadas pela SCTIE/MS, que compararam os preços do ano anterior às PDPs com os praticados posteriormente à sua implementação, apresentam que, entre 2011 e 2018, o MS acumulou economia de gastos em torno de R$7,1 bilhões, representando uma média de 32,1% de economia anual (Brasil, 2018). Já Albareda e Torres (2021) apresentam um estudo das diferenças entre as quantidades médias anuais e os preços dos medicamentos comprados por processo de licitação convencional, entre 2005 e 2018, e por meio de PDPs, entre 2009 e 2018, no âmbito das compras do MS. Em seus resultados, observam quedas reais dos valores unitários em 37 dos 39 produtos associados às PDPs analisados. No caso de 32 medicamentos, a redução do preço médio de aquisição observada foi superior a 50%. Neste sentido, Glassman (2020) ressalta que o modelo proposto pelas PDPs, se executado de maneira adequada, poderia significar uma oportunidade de reduzir “a vulnerabilidade das cadeias de fornecimento do SUS sem, contudo, onerar os cofres públicos” (p. 171), utilizando o grande poder de compra do MS como elemento de barganha.
Outro ponto, destacado na literatura por diversos autores e que se relaciona diretamente ao conceito de economicidade e às compras públicas, em geral, é a insegurança vivenciada pelos parceiros públicos e privados em relação à existência ou não de demanda para os projetos de PDP, uma vez que o MS tem possibilidades de reavaliar a compra caso se interprete que os critérios previstos no marco regulatório das PDPs não foram cumpridos (Gadelha; Temporão, 2018; Almeida, 2018; Pimentel, 2018; Meirelles et al., 2020). Uma primeira questão em relação a isso, apresentada por Glassman (2020), é que, ainda que o termo de compromisso firmado entre o LFO e o MS preveja “o percentual da demanda centralizada do SUS que será direcionado àquela determinada parceria” (p. 75), não há a predefinição dos volumes de produtos que serão adquiridos ao longo dos anos de vigência das parcerias. Os contratos de compra são realizados por diversas vezes ao longo do processo de transferência tecnológica, em que são definidas as quantidades de acordo com a demanda do SUS do ano de negociação (que pode apresentar variações), gerando inseguranças para o planejamento da escala dos investimentos por parte dos LFOs e dos parceiros privados (Pimentel, 2018; Meirelles et al., 2020), bem como os preços e os prazos do fornecimento (Glassman, 2020).
Também sobre este ponto, ainda que esteja prevista no marco regulatório a dispensa de licitação para as compras do MS que envolverem transferência de tecnologia, entre os critérios estabelecidos para a execução das PDPs encontram-se os conceitos de “economicidade e vantajosidade”, que associados a um processo de negociação anual das compras, buscam a proteção do interesse público frente a estratégias abusivas de preço por parte das empresas e LFOs envolvidos, uma vez que a política se propõe ao uso estratégico das compras públicas sem oneração extra dos cofres públicos (Glassman, 2020).
No entanto, relata-se na literatura que este ponto tem sido passível de interpretações ambíguas, uma vez que não foi estabelecida, com a devida clareza, a caracterização dessas duas situações, as quais, a princípio, somente determinam que os preços de venda dos produtos objeto de PDP devem apresentar tendência de queda (Scopel, 2016; Meirelles et al., 2020). Uma leitura por parte do MS de que esta tendência de queda corresponderia à ideia de que os preços de oferta dos produtos deveriam ser os mais competitivos do mercado, em uma perspectiva nacional e internacional, abrindo espaço a processos licitatórios, não protegeria o instrumento, por exemplo, do uso de estratégias agressivas de redução temporária de preços por parte de empresas privadas que queiram adentrar o mercado das compras públicas do MS. Uma vez que tais empresas ocupassem tais espaços, diante da fragilização dos LFOs e das demais empresas envolvidas nas PDPs, não haveria elementos regulatórios capazes de forçar a retomada da queda dos preços, prejudicando, desta forma, o processo de transferência tecnológica e o acesso da população à assistência farmacêutica (Gadelha; Temporão, 2018; Almeida, 2018). Uma possível solução para tal dilema, de acordo com a Controladoria Geral da União (Brasil, 2019), seria a separação entre os custos de produção e os custos de internalização da tecnologia durante a elaboração da proposta, deixando claro ao MS quais quantias referem-se ao pagamento pela aquisição do produto e pela transferência de tecnologia. No entanto, até o momento, não foram localizados na literatura estudos sobre a viabilidade de tal recomendação (Meirelles et al., 2020).
Por fim, em relação à vantajosidade apresentada pelas PDPs, destaca-se o estudo realizado por Albareda e Torres (2021). Os autores, partindo do princípio de que este seria um critério qualitativo no âmbito das licitações públicas, devendo ter por base o respeito aos princípios de isonomia, da seleção da proposta mais vantajosa para a administração e da promoção do desenvolvimento nacional sustentável (Brasil, 1993 apud Albareda; Torres, 2021, p. 2), interpretam a vantajosidade das PDPs a partir da convergência (ou não) dos seus produtos com as propostas da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) sobre a “incorporação, exclusão ou modificação das tecnologias do SUS” (p. 4), uma vez que se basearia em critérios de “eficácia, acurácia, efetividade e segurança” (p. 4) e análises de custo-efetividade nas suas tomadas de decisão. O estudo, no entanto, demonstrou que nem todos os medicamentos adquiridos por meio de PDPs analisados constam na Rename (Relação Nacional de Medicamentos) – principalmente quando observado o período de assinatura do termo de compromisso da PDP (apenas 8 de 33 medicamentos constavam na lista nesse momento) – e que apenas um terço dos medicamentos (11 de 33) passaram por adequada avaliação da Conitec antes da assinatura do contrato de PDP. Ainda que os autores tenham identificado diversas falhas na ordem do fluxo de incorporação tecnológica ideal (Conitec-Rename) que podem estar associadas a questões para além das PDPs, o fato de a política não estar alinhada de forma adequada às avaliações de tecnologia em saúde por parte da Conitec pode significar que os produtos envolvidos nas parcerias não sejam aqueles que mais se adequam aos critérios de custo-efetividade (compreendidos pelo estudo como vantajosidade), representando um risco de “dispensa de licitação e a transferência de tecnologia para os laboratórios oficiais de medicamentos que não atendam às reais necessidades do SUS” (p. 12). Aspectos relevantes sobre a definição da listagem dos produtos estratégicos, que possui relação direta com esse tema, serão abordados adiante, na seção referente ao quarto bloco dos objetivos (impacto social).
A partir dos dados apresentados pelo MS em 2019, pôde-se observar 92 parcerias vigentes (69 em andamento e 23 suspensas), envolvendo 35 laboratórios privados e 17 públicos (Brasil, 2019). Entre estes, destacam-se o Farmanguinhos, o Lafepe, o Butantan e o Bio-Manguinhos (que juntos somam 50% das parcerias totais), sendo os dois últimos responsáveis pela maioria das parcerias envolvendo biotecnologia (18). Entre as parcerias vigentes, destacam-se, em termos quantitativos, as voltadas à produção de medicamentos sintéticos (46), em que se sobressaem como empresas detentoras/desenvolvedoras da tecnologia do produto a Cristália (com 17 parcerias) e a EMS (com 16) e como fabricantes do IFA da mesma categoria, também se destacam a Cristália (com 14 parcerias) e a Nortec (também com 14). Também as parcerias vigentes voltadas à produção de medicamentos biotecnológicos têm valor expressivo (14), sendo a empresa com maior número de parcerias na posição de detentora/desenvolvedora da tecnologia de produto a Libbs (com 4) e como produtora de IFA, destaca-se a Bionovis (presente em 9 PDPs da categoria).
De acordo com Pimentel (2018) entre as empresas farmacêuticas nacionais privadas, no período de 2009 a 2017, as que apresentaram maior taxa de aprovação (com mais de dez propostas de transferência de tecnologia do produto) são a Libbs (com 19 propostas e 68% de aprovação), a Bionovis (27 e 55%) a Cristália (114 e 38%) e a EMS (39 e 37%). Entre as principais empresas farmacêuticas multinacionais participantes das propostas de PDP (com mais de 10 propostas), destacam-se a Merck (com 15 propostas e 73% de aprovação) e a Novartis (12 e 33%). Entre os maiores parceiros do ramo farmoquímico, capazes de fornecer e transferir a tecnologia dos IFAs, estiveram em destaque a Cristália (com 102 propostas e 37% de aprovação), a Nortec (64 e 36%), a Bionovis (27 e 56%) e, finalmente, a Libbs (22 e 55%). Já entre os laboratórios oficiais, as taxas de aprovação mais elevadas são da Hemobrás e do LAFERGS (de 100%, ainda que cada um, no período estudado, tenha feito apenas 3 propostas), seguidos por Biomanguinhos (com 26 propostas e taxa de 73% de aprovação) e, empatados, Farmanguinhos e Butantan, com 58% de aprovação (com, respectivamente, 43 e 19 propostas) (Pimentel, 2018).
Os arranjos possíveis de PDPs, também de acordo com Varrichio (2017) são quatro: BR-Multi, que envolve, além do LFO (que deve estar presente em todos eles, porque tem a responsabilidade de realizar a proposta), a presença de uma empresa nacional e de uma empresa multinacional. O segundo é chamado de BR, pois envolve apenas empresas nacionais. O terceiro denomina-se Multi, abrangendo apenas empresa multinacional, e o quarto é o LFO, que apenas envolve parcerias entre laboratórios públicos. Dentre tais possibilidades, constatou-se a prevalência de acordos entre empresas de capital nacional e LFOs – modelo BR (88 projetos aprovados entre 2009 e 2017). Em relação à taxa de aprovação, observa-se um valor mais elevado para o modelo BR-Multi (de 55,1%), ainda que esse valor corresponda a 27 projetos aprovados durante o mesmo período. Sobre este aspecto, cabe uma ponderação exposta em Pimentel (2018), com base em argumentação presente em entrevistas concedidas por ex-gestores do MS envolvidos diretamente com a política, qual seja, a visão de que, na prática, mesmo os arranjos “BR” têm por trás parcerias de transferência de tecnologia com empresas estrangeiras, ainda que, nem sempre, isso se faça explicitado nos contratos de PDPs. Ou seja, nem sempre o fato de a parceria ocorrer com uma farmacêutica nacional significa que a tecnologia em questão seja fruto de um processo interno de desenvolvimento.
Sendo os LFOs elementos centrais para o desenvolvimento das PDPs, diversos autores dedicaram-se a observar os impactos da política no quadro geral destes laboratórios, em diferentes aspectos (Torres, 2015; Almeida, 2018; Gadelha; Temporão, 2018; Chaves et al., 2018). Entre os benefícios observados, Almeida (2018), com base em entrevistas a gestores de uma amostra de seis laboratórios oficiais (que representam o maior número de PDPs contratadas), aponta uma variação de 50 a 250% no faturamento desses LFOs após a realização de contratos de PDP (Almeida, 2018). Chaves et al. (2018), também ao observarem uma amostra de seis LFOs, apontam, entre os anos de 2005 e 2013, um crescimento de 13% para 31% da participação da produção pública nos gastos governamentais das três esferas do governo com medicamentos, com elevação marcada após o ano de 2009 (início das PDPs). Vieira e Santos (2020), ao analisarem as contas-satélite de saúde, observam que, ainda que a participação dos LFOs na oferta total de medicamentos (para além das compras públicas) não seja tão expressiva, apresentando variação de 1,7% para 2,6% entre os anos de 2010 e 2017, houve “aumento de 68,4% experimentado nesse período, de R$2,4 bilhões para R$4,1 bilhões da oferta por parte desses laboratórios” (p. 27).
Almeida (2018) e Chaves et al. (2018) também chegam a conclusões semelhantes quanto à influência positiva das PDPs para a ampliação do portfólio dos LFOs, permitindo a participação em nichos de mercado dos quais os LFOs não participavam antes da instauração da política (em relação a novas classes terapêuticas ou produtos de novas rotas tecnológicas, na perspectiva dos LFOs em questão), ampliando o número de opções de fornecimento ao SUS, tornando-se importante alternativa ao fornecimento de medicamentos participantes dos componentes especializados e estratégicos, uma vez que, anteriormente, a maioria dos LFOs possuía portfólios concentrados, de forma quase exclusiva, em produtos voltados para a atenção básica. Assim, ao produzirem medicamentos de maior valor agregado, os LFOs ganham novos espaços de mercado, o que permite a redução dos custos de compra desses medicamentos para o Governo, ao mesmo tempo em que eleva o faturamento dos LFOs – abrindo espaço para que realizem mais investimentos para a melhoria de sua condição competitiva.
A literatura consultada apresenta interpretações ambíguas sobre a escolha do papel central na política ocupado pelos LFOs. De um lado, conforme apresentam Varrichio (2017) e Pimentel (2018), os LFOs padecem de consideráveis limitações técnicas e gerenciais em suas estruturas, associadas, entre diversas causas, à condição que ocupam no mercado nacional (em que o poder público constituise, na grande maioria dos casos, como único comprador), às condicionalidades regulatórias a que estão submetidos (como as dificuldades para a contratação e demissão de funcionários, as burocracias associadas às compras públicas, por exemplo, por meio da obrigatoriedade de processos licitatórios, etc.) e às dificuldades encontradas para a obtenção de financiamento voltado aos LFOs – ponto que é especialmente relevante para a questão das PDPs, uma vez que, muitas vezes, são necessários investimentos de grande estatura para a concretização da transferência de tecnologia proposta (Almeida, 2018). Por outro lado, vê-se a presença central dos LFOs na condução das PDPs como essencial para garantir que os esforços realizados para o desenvolvimento industrial nos setores voltados à saúde permaneçam dando frutos ao país, além de permitirem uma maior flexibilidade de atuação dentro das situações muitas vezes contraditórias na promoção de saúde de toda a população, uma vez que, sendo instituições públicas, podem agir para além de uma lógica estrita de obtenção de lucratividade (Almeida, 2018; Glassman, 2020).
Um aspecto também relevante de ser observado quanto aos impactos das PDPs na produção local de medicamentos é referente à produção de medicamentos biotecnológicos no país. Tais produtos, que têm sido alvo de demanda crescente por parte do MS, bem como têm representado grandes parcelas do orçamento público destinado à compra de medicamentos3, de acordo com Meirelles et al. (2020) praticamente não eram produzidos no país até o fim da década de 2000. Para além do interesse da esfera pública para a produção local desses produtos, havia também o interesse de parte das empresas farmacêuticas nacionais de começar a produzi-los, uma vez que, diante da crescente pressão competitiva no mercado de genéricos e similares, a manutenção de margens elevadas passava pela diferenciação de produtos, principalmente de base biotecnológica. Diante dos elevados riscos desses investimentos, o modelo proposto pelas PDPs, que permite a previsibilidade de demanda por esses produtos, reduziria os riscos envolvidos para a entrada na nova rota tecnológica. Isso se refletiu, como apresentam os autores, tanto na participação dos medicamentos biotecnológicos na lista de produtos estratégicos (que variou de 15% para 25% entre 2008 e 2017), como também no anúncio de planos de investimento em biotecnologia por parte das farmacêuticas nacionais (que também contaram com apoio de outros instrumentos de fomento vigentes à época). Até o final do período de análise do estudo, estavam certificadas pela Anvisa quatro plantas de medicamentos biotecnológicos no país e mais três estavam em construção. Entre 22 dos registros da Anvisa referentes a medicamentos biotecnológicos (por comparabilidade, biológicos novos e anteriores à nova regulação), 8 estão associados a PDPs. Ressalta-se, ainda, que quase a totalidade dos registros de anticorpos clonais realizados por instituições brasileiras é resultado de PDPs, o que sugere, de acordo com os autores, “que a política pública foi determinante para essas empresas incluírem biofármacos complexos em seus portfólios” (p. 53). Paranhos et al. (2021a) também apontam em seu estudo, a partir de entrevistas realizadas com as maiores empresas do mercado farmacêutico brasileiro, as PDPs como importante fator de estímulo para a entrada das empresas farmacêuticas nacionais na rota biotecnológica.
Também relevante para avaliação dos impactos das PDPs na produção local de medicamentos é a observação dos seus efeitos sobre o saldo da balança comercial dos produtos a elas associados. Ainda que nenhum estudo com tal escopo tenha sido localizado na literatura, Vieira e Santos (2020) apontam que, embora entre 2010 e 2017 tenha havido elevação de 6,7% no valor da produção local de componentes da cadeia farmacêutica, no mesmo período as importações cresceram 25%, o que, em certa medida, demonstraria que o quadro de dependência não teria sido revertido pelo conjunto de políticas realizadas durante as duas primeiras décadas dos anos 2000. Em relação ao impacto da produção local de medicamentos biotecnológicos, os estudos também não são conclusivos: houve, a partir de 2014, redução do déficit, mas o fenômeno pode também estar relacionado à redução dos preços e das quantidades adquiridas pelo setor privado (Meirelles et al., 2020). No entanto, diante do fato de ainda serem recentes as certificações das plantas produtivas no país, mesmo diante do uso de mecanismos de transferência tecnológica, a internalização desse tipo de produto requer a aquisição de complexas competências técnicas e conhecimento regulatório. Assim, tanto os estudos de Meirelles et al. (2020), quanto de Reis e Pieroni (2021), estimam que impactos mais robustos sobre as importações nestes segmentos ainda estejam por vir.
Ainda que o modelo das PDPs seja centralmente baseado no acesso do SUS a tecnologias estratégicas, a política explicita em seus objetivos elementos vinculados ao fortalecimento da capacidade inovativa local. Uma avaliação qualificada sobre os efeitos das PDPs na capacitação tecnológica e de inovação do parque produtivo nacional, em especial dos LFOs, requer esforços de grande complexidade, combinando estratégias de avaliações contínuas e de longo prazo, bem como dos diversos fatores influenciadores, para além do âmbito exclusivo das PDPs. No entanto, alguns esforços já realizados trouxeram panoramas importantes, resumidos nos próximos parágrafos.
Em primeiro lugar, cabe destacar a hipótese de que a existência das PDPs tenha contribuído positivamente para as mudanças no padrão de esforços de inovação realizados pelas grandes empresas farmacêuticas nacionais. Ainda que este não tenha sido o objetivo de análise específica por parte da pesquisa realizada por Paranhos, Mercadante e Hasenclever (2020), os autores apontam as PDPs como possíveis influências positivas para a ocorrência desse processo, principalmente em relação ao amplo (e arriscado) salto tecnológico em direção à produção de medicamentos biotecnológicos, uma vez que elas acrescentariam elementos de segurança de mercado para os esforços pelas empresas ainda iniciantes no segmento (Paranhos; Mercadante; Hasenclever, 2020). Também sobre a questão do recente salto das farmacêuticas nacionais em direção à biotecnologia, Meirelles et al. (2020) apontam que ainda seria “cedo para uma avaliação quantitativa e mais robusta do impacto sobre o ecossistema de inovação” (p. 52). No entanto, com base nas entrevistas realizadas durante o estudo, com integrantes de empresas privadas, laboratórios públicos, universidades e da administração pública federal, observou-se a predominância de parcerias com empresas de base tecnológica estrangeiras para o desenvolvimento de biofármacos. Já a interação das empresas com universidades e ICTs brasileiras, ainda que tenha apresentado avanços, permanece sendo um desafio.
Em relação especificamente à influência das PDPs na capacitação inovativa dos LFOs, Almeida (2018), ao realizar pesquisa empírica com os seis LFOs (Biomanguinhos, Farmanguinhos, Instituto Vital Brazil, Lafepe, FURP e Butantan), aponta que a existência prévia de estruturas de P&D internas e externas consolidadas e bem-organizadas nos laboratórios representa fator decisivo para obtenção de maior sucesso neste quesito. Nestes laboratórios, com infraestrutura de P&D adequada (tais como ampla estrutura física para empreender atividades de P&D internas, número condizente de funcionários voltados a tais atividades nas instituições, boas e variadas relações de contratação de P&D externa, realização de pesquisa básica, ampla quantidade de fontes de informação de aprendizado tecnológico, etc.), as PDPs oferecem grande quantidade de fontes de informação e ampla gama de instrumentos empregados no aprendizado tecnológico, que podem ser muito úteis à construção de novas capacidades inovativas, bem como ao fortalecimento das já existentes, além de promover acesso a novas perspectivas gerenciais, que podem ser essenciais para a criação de novas formas de organizar a produção, o aprendizado tecnológico e a criação de rotinas nas atividades voltadas a atividades de PD&I. No entanto, nos laboratórios em que se fazem presentes estruturas de P&D pífias, com esforços pequenos e esporádicos, as PDPs tornam-se instrumentos bastante restritos de aprendizado tecnológico, o que faz com que estes LFOs sigam enfrentando grandes desafios para empreender pesquisas e, portanto, desenvolver inovações, limitando-se, assim, à cópia dos processos e produtos transferidos pelas PDPs, o que é especialmente problemático quando avaliado em uma perspectiva dinâmica, de sustentabilidade da competitividade de tais LFOs (ou seja, de sua capacidade de sobreviver no mercado após o fim dos contratos de PDPs) (Almeida, 2018).
Em relação a tal quesito, Chaves et al. (2018), ao realizarem uma pesquisa detalhada sobre a influência exercida pelas PDPs nas capacitações tecnológicas (envolvendo as dimensões de atividades de PD&I) de sete LFOs (Farmanguinhos, Lafepe, Funed, Iquego, FURP, LFM e Instituto Vital Brazil, escolhidos por terem feito parte de pesquisas anteriores, às quais se pretendeu dar continuidade), chegam a conclusões semelhantes: a pesquisa apresentou cenários de baixa articulação entre a execução de PDPs e a realização de atividades voltadas a PD&I. As atividades observadas, em sua maioria, concentraram-se em produtos e processos com baixo grau de novidade e com baixos esforços de organização de estratégias de P&D, voltadas à realização de rotinas voltadas à absorção e acumulação de conhecimentos, o que, para os autores, é essencial para a sustentabilidade do processo de capacitação tecnológica e para a geração de condições autênticas de competitividade a esses laboratórios. Entre as principais críticas apresentadas pelos gestores entrevistados, foram apontados fatores como a ausência de linhas de crédito destinadas à inovação, a excessiva burocracia, a descontinuidade de demanda e dificuldades de coordenação entre as ações do MS e dos LFOs, principalmente em referência a atividades de prospecção. No entanto, Chaves et al. (2018) destacam que o instrumento das PDPs tem sido utilizado, em muitos casos, como forma de obtenção de rentabilidade no curto prazo, sem que estejam acompanhados por estratégias voltadas ao uso da capacitação produtiva obtida para o desenvolvimento de outras atividades futuras e de um exercício adequado de prospecção, voltado ao acompanhamento das tendências das trajetórias tecnológicas a serem utilizadas pelo SUS e também pelo mercado global (Chaves et al., 2018).
No entanto, para além dos fatores apresentados, Chaves et al. (2018) também identificam na própria arquitetura da política dificuldades de criação de ampla capacidade inovativa, uma vez que ela se baseia em um modelo que pressupõe a demanda prévia por parte do MS de produtos avaliados como estratégicos ao SUS, em sua maioria, já existentes no mercado. Ou seja: há agregação de produtos novos do ponto de vista dos laboratórios públicos, mas estes não representam inovações diante do mercado, como um todo (Almeida, 2018; Chaves et al. 2018; Pimentel, 2018). Além disso, mesmo diante de PDPs que foram firmadas para a execução de projetos de desenvolvimento de produto, houve, na maior parte das vezes, grandes dificuldades para a ultrapassagem do risco tecnológico envolvido durante tal processo, uma vez que as PDPs começam a significar apoio financeiro apenas após a etapa de comercialização dos produtos (Pimentel, 2018).
Assim, ainda que as PDPs tenham alcançado relevantes êxitos, tais como o estímulo às capacitações produtiva e tecnológica brasileiras no campo da rota biotecnológica de produção de medicamentos (Vargas; Almeida; Guimarães, 2016; Meirelles et al., 2020), cabe ressaltar que, para consistentes ganhos estruturais e dinâmicos das PDPs, as capacitações voltadas aos processos de inovação são cruciais para o sucesso da política. Assim, entende-se como essencial que os LFOs realizem de forma constante, como sugerido por Chaves et al. (2018), atividades voltadas à prospecção, mantendo contato profundo, neste processo, com o MS e as suas instâncias voltadas às decisões quanto à incorporação de novas tecnologias no SUS, como é o caso da CONITEC. Além disso, o contato mais próximo dos LFOs com os Institutos de Ciência e Tecnologia (ICTs) poderia fortalecer capacitações importantes para o acompanhamento do desenvolvimento de tecnologias relevantes no contexto do mercado mundial e, principalmente, às necessidades do SUS. Esse tipo de estratégia também reduziria os riscos associados à obsolescência do produto após o término dos contratos de PDPs. Citado por Almeida (2018) e Pimentel (2018), tal risco é relevante, pois os protocolos do SUS podem sofrer alterações durante o período de vigência das parcerias (que podem durar até dez anos) e novas tecnologias podem substituir aquelas que foram incorporadas pelos LFOs.
Também como relevante ação para a ampliação do potencial de inovação das PDPs, Varrichio (2017) aponta a necessidade de legislação regulatória específica às PDPs de PD&I, que seriam aquelas PDPs voltadas ao desenvolvimento de novos produtos, ainda não existentes no mercado. No entanto, como expõe Pimentel (2018), tal categoria de PDP foi descontinuada. Nos últimos anos, ainda que utilizando diferentes nomenclaturas, esforços nessa direção puderam ser observados em iniciativas como a Política Nacional de Inovação Tecnológica na Saúde (PNITS), instaurada pelo decreto n. 9.245, de 20 de dezembro de 2017, que apresenta, além das PDPs, a categoria das Encomendas Tecnológicas na Área da Saúde (ETECS). As ETECs, como apresentam Rauen e Barbosa (2019), constituem-se como “tipos especiais de compras públicas diretas voltadas a situações muito específicas nas quais exista risco tecnológico” (p. 15). Diante do elevado risco tecnológico envolvido em uma solução inédita para determinado problema, nas ETECs, diferentemente das PDPs, adquire-se o esforço para a solução e não o resultado. Esse tipo de instrumento é regulamentado pelo Artigo 20 da Lei n. 10.973/2004, pelo Artigo 27 do Decreto n. 9.283/2018 e, no caso específico das ETECs de saúde, há o decreto n. 9.245/2017, acima mencionado (Rauen; Barbosa, 2019). Como uso recente bastante simbólico deste instrumento, apresenta-se a ETEC celebrada entre a Fiocruz, a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca para a vacina contra Covid-19 (Gadelha et al., 2021; Vargas; Alves; Mrejen, 2021). Em relação a este ponto, Gadelha et al. (2021) destacam a grande relevância dos processos anteriores de transferência tecnológica realizados para que a Fiocruz fosse capacitada para realizar esforços em direção a essa nova modalidade de arranjo, o que, na visão dos autores, representa a importante complementaridade dos instrumentos das PDPs e das ETECs.
Os objetivos das PDPs que se relacionam diretamente com questões ligadas aos impactos sociais da política, de acordo com Pimentel (2018), são aqueles relacionados ao acesso da população a medicamentos, à redução dos custos de aquisição dos produtos e também da vulnerabilidade do SUS. Ou seja, tais objetivos trazem em seu cerne a busca pela conciliação de efeitos positivos nos âmbitos sociais e econômicos de forma simultânea, vinculando diretamente a política ao atendimento das necessidades da população.
Em relação aos efeitos das PDPs sobre o acesso a medicamentos, ainda que este seja um tema complexo, envolvendo questões dos mais diversos níveis, como propriedade intelectual, definição dos medicamentos essenciais, questões logísticas, entre outras (Bermudez; Luiza; Silva, 2020a), um indicador presente na literatura e que poderia fornecer uma proxy do uso dos medicamentos (Chaves et al., 2015 apud Scopel, 2016, p. 86) seria o volume das compras realizadas pelo MS. Neste sentido, Albareda e Torres (2021) apresentam resultados interessantes associados aos produtos objetos de PDP nas fases III e IV, em que a razão das quantidades médias compradas por meio de contratos de PDPs em relação à média das compras realizadas fora dos contratos de PDPs no período de 2005 a 2018, ainda que tenha apresentado ampla variação entre os diferentes medicamentos, foi positiva para todos os produtos avaliados, com exceção de um. Em média, tal cálculo demonstrou aumento médio de 538 vezes na aquisição de medicamentos (por unidade) por meio dos contratos de PDPs (ainda que, entre os casos de razão positiva, esse número tenha ido de 1,01 a 9.661,40) (Albareda; Torres, 2021). A redução dos custos também foi verificada pelos autores e, por estar diretamente vinculada ao objetivo referente à economicidade, foi abordada ao longo do bloco I, relativo às compras públicas.
Em complemento a este aspecto, a partir de uma análise mais ampla tanto da dimensão do acesso, quanto relacionada à redução das vulnerabilidades do SUS (Figueiredo; Schramm; Pepe, 2017), quando examinadas as PDPs mais contempladas em relação aos produtos que constam na lista de produtos estratégicos do SUS, aponta-se na literatura consultada a baixa efetividade da política para a atração de investimentos direcionados ao desenvolvimento e à produção de medicamentos voltados ao tratamento de doenças negligenciadas (DN) (Figueiredo; Pepe, 2016; Vargas; Almeida; Guimarães, 2016; Pimentel, 2018; Silva; Elias, 2019). Ainda que como critério de definição da lista de produtos estratégicos conste a inclusão de produtos negligenciados e com potencial risco de desabastecimento, bem como também seja um critério de priorização de projetos de PDPs4, como expõem Vargas, Almeida e Guimarães (2016), se as PDPs foram capazes, de um lado, de cobrir de forma satisfatória a produção de medicamentos para agravos crônicos e com maior valor agregado, de outro, participaram de forma bastante reduzida da produção de medicamentos voltados ao tratamento de doenças tropicais negligenciadas.
Entre as principais causas deste cenário, Silva e Elias (2019), por meio da análise das respostas obtidas em questionários direcionados a atores envolvidos com as PDPs vigentes em 2016, identificam o “valor de fornecimento e custo produtivo, estudos clínicos e quesitos regulatórios” e “variação da demanda, obsolescência da tecnologia e dificuldade de seleção de parceiro privado” (p. 229). Vargas, Almeida e Guimarães (2016) e Pimentel (2018) interpretam a existência de tal cenário como reflexo do fato de que a avaliação por parte dos LFOs e, principalmente, por parte dos parceiros privados envolve, de forma relevante, as possibilidades de apropriação de ganhos financeiros por meio da execução de parcerias. Desta forma, as propostas vinculam-se, de maneira geral, aos medicamentos que apresentam elevadas faixas de faturamento, o que não contempla, muitas vezes, os tratamentos de doenças negligenciadas, ainda que estas se configurem como peças de extrema importância para a promoção da saúde da população brasileira. Como possível solução, Silva e Elias (2019) identificaram o estabelecimento de uma “precificação diferenciada para medicamentos para DN associada a investimentos e implantação de novas estratégias como as PDP de pesquisa, desenvolvimento e inovação” (p. 229).
Ainda em referência a questões relacionadas ao acesso a medicamentos e às vulnerabilidades do SUS, são apontadas na literatura questões relevantes acerca da definição da lista de produtos estratégicos para o SUS – a partir da qual são definidos os produtos passíveis de realização de acordo de PDPs. Ainda que, por um lado, observa-se como fator positivo a definição da lista a partir de discussões empreendidas no âmbito do GECIS (Rezende; Silva; Albuquerque, 2019; Glassman, 2020), refletindo o caráter sistêmico da política (Gadelha; Temporão, 2018), por outro, também são apresentadas críticas em relação ao processo de escolha dos produtos que fazem parte da lista, uma vez que, ainda que a legislação apresente os critérios a serem seguidos, não deixa evidente a metodologia mais detalhada para a definição dos produtos participantes da lista (Figueiredo; Schramm; Pepe, 2017; Pimentel, 2018; Rezende; Silva; Albuquerque, 2019).
Rezende, Silva e Albuquerque (2019) argumentam que, em projetos envolvendo altos riscos tecnológicos e grande mobilização de recursos públicos, tais como as PDPs, a definição de seus objetos deveria ser sistematicamente baseada em “evidências científicas e em relações bem estabelecidas entre tomadores de decisão e pesquisadores para alcance dos objetivos públicos e, assim, afastar os conflitos de interesses” (p. 156). As autoras também apontam que a falta de clareza sobre a necessidade prévia da recomendação de incorporação ou não dos produtos passíveis de PDP por parte da Conitec, com base nos critérios de custo-efetividade, coloca em risco não apenas a convergência dessas escolhas com as necessidades de saúde pública, como também torna esses produtos mais vulneráveis a mudanças no quadro de aquisições do SUS, trazendo consequências negativas tanto para os parceiros públicos quanto privados envolvidos. Ainda sobre este assunto, o estudo de Figueiredo, Schramm e Pepe (2017) aponta que a definição da lista de produtos estratégicos carece de critérios claros em relação à associação das escolhas aos níveis de carga de doença no país, fazendo com que classes de doença muito prevalentes no país sejam pouco contempladas pelas parcerias, tais como as doenças cardiovasculares e os transtornos mentais e comportamentais. Bermudez, Luiza e Silva (2020b) também apontam a necessidade de não se perder de vista na definição dos medicamentos estratégicos ao SUS os critérios definidos a partir do conceito de essencialidade, principalmente diante dos grandes e complexos desafios existentes (e que tendem a se intensificar no futuro) relacionados à incorporação de tecnologias no sistema, diante de uma situação de recursos escassos. Assim, verifica-se na literatura a argumentação em relação à necessidade de definição de critérios metodológicos mais claros e objetivos na definição dos produtos estratégicos ao SUS, uma vez que este seria um passo primordial para a garantia de que as parcerias cumpram com o atendimento das necessidades de saúde da população brasileira, tendo por base a obtenção da melhor relação de custo-efetividade possível.
Conclui-se que, ainda que tenham apresentado algumas dificuldades, em termos de sua arquitetura, para o alcance das suas quatro grandes frentes de objetivos, são inegáveis os avanços que as PDPs representaram, uma vez que foram construídas a partir de uma visão inovadora de política industrial, que buscou a conciliação das necessidades sociais com meios diretos de desenvolvimento industrial para o seu atendimento. Destaca-se, neste cenário, o uso estratégico do poder de compra do Estado e a presença de uma visão sistêmica, tanto do diagnóstico da situação vivenciada pela saúde no Brasil, quanto pela construção de instrumentos de ação. Este processo demandou amplo esforço de coordenação entre diversos órgãos e instituições (como MS, MDIC, BNDES, Finep, Anvisa, LFOs e parceiros privados), envolvendo articulação de objetivos sanitários, regulatórios, de compras públicas e de estímulo da transformação estrutural dos setores industriais associados ao CEIS.
No entanto, embora tenham sobrevivido à desarticulação dos instrumentos de políticas industrial no período recente, as PDPs também têm sido fragilizadas. Um exemplo deste movimento foi a descontinuidade de importantes instâncias que as sustentavam, tal como o caso da revogação do decreto de criação do GECIS (dada pelo Decreto n. 9.245/2017) e a extinção do DECIIS (Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde) e do GECIS em 2019 (pelo Decreto n. 9.795/2019) – elementos essenciais para a articulação sistêmica dos múltiplos interesses associados a este relevante instrumento de política (Gadelha et al. 2021; Paranhos et al., 2021b).
Ao mesmo tempo, a pandemia de Covid-19, ainda que tenha trazido perdas irreparáveis a toda a sociedade, evidenciou o cenário de grande fragilidade da indústria de saúde brasileira diante de emergências globais, envolvendo a escassez tanto de itens mais básicos, como luvas e máscaras cirúrgicas, até itens mais complexos, como o caso dos IFAs necessários para a produção de vacinas no país. Ainda assim, tornou-se ainda mais nítida a importância histórica das políticas associadas à capacitação produtiva e tecnológica dos LFOs brasileiros Fiocruz e Instituto Butantan, que puderam ser amplamente beneficiados por acordos de PDPs nos últimos anos, os quais foram fundamentais para a viabilização dos acordos de produção de vacinas contra a Covid-19 em solo nacional, em um momento em que o mundo em desenvolvimento enfrentava grandes problemas de acesso a esse produto essencial para o enfrentamento da pandemia (Gadelha et al., 2021; Reis; Pieroni, 2021).
A evidência do tema trouxe também importantes desdobramentos no Congresso Nacional: deputados têm se mobilizado para a discussão de estratégias de desenvolvimento do CEIS, ressaltando a relevância de se considerar o tema como uma política de Estado, que sobreviva às diferenças de interpretação provenientes dos diferentes mandatos do poder executivo. Entre as principais iniciativas destacam-se a criação da Subcomissão especial de desenvolvimento do Complexo Econômico e Industrial em Saúde, instalada no dia 19/04/2021 (Brasil, 2021) e do projeto de lei em tramitação n. 2.583 de 2020, referente à instituição da Estratégia Nacional de Saúde, que traz contribuições como a proposta de retorno com aprimoramentos do GECIS (que passaria a se chamar Conselho Gestor Executivo do Complexo Industrial da Saúde) e a regulamentação das PDPs no âmbito de uma lei nacional, o que, como apontam Pimentel (2018), Meirelles et al. (2020) e Glassman (2020), seria essencial para garantir a maior segurança jurídica da política.
Como sugestões de estudos futuros, ressalta-se a importância de um acompanhamento contínuo dos desdobramentos da política de PDPs. Isso poderia ser feito, por exemplo, por meio de pesquisas sobre os possíveis impactos das PDPs na redução de importações dos produtos finais e insumos farmacêuticos contemplados de forma bem-sucedida pela política, ou que acompanhem a situação de produção posterior ao término das PDPs, tanto no contexto dos laboratórios públicos, quanto privados envolvidos. Também seria de grande auxílio a realização de estudos que examinassem de forma detalhada os principais motivos de extinção e suspensão das parcerias, de forma a reunir elementos para o aprimoramento de sua arquitetura e de sua condução.
Por fim, e não de menor relevância, entende-se como de grande ajuda o avanço de estudos em direção ao exame e à proposição de novos arranjos que contemplem de maneira mais ampla os objetivos de sustentabilidade tecnológica do SUS no curto, médio e longo prazos, bem como a apreciação de medicamentos e produtos para a saúde com menor apelo de mercado (ou negligenciados), envolvendo, além da transferência tecnológica entre laboratórios públicos e privados, parcerias com ICTs, exercícios de prospecção tecnológica junto ao MS e formas de financiamento que promovam um ambiente de menor risco no processo prévio da entrada dos produtos no mercado. O estudo de casos envolvendo Encomendas Tecnológicas (ETECs) também pode ser de grande valia para a construção de novas alternativas de política.
